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THOMAS PAINE E A REVOLUÇÃO FRANCESA: ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA (1794-1795)1 1 Este artigo foi produzido após uma série de atualizações, revisões e mesmo algumas correções do segundo capítulo de minha tese de doutoramento pelo Programa de pós-graduação em História Social, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, defendida em 2017 e intitulada O pensamento radical de Thomas Paine (1793-1797): artífice e obra da Revolução Francesa. Sou grato aos professores André Gustavo de Melo Araújo, José Miguel Nanni Soares, Marcos Sorrilha e Modesto Florenzano pelas leituras, sugestões e conversas a respeito deste artigo. Agradeço também os membros do Laboratório de História Social (LHS) da Universidade de Brasília, cujas discussões foram fundamentais para o refinamento deste texto. Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referidas no artigo.

THOMAS PAINE AND THE FRENCH REVOLUTION: BETWEEN LIBERALISM AND DEMOCRACY (1794-1795)

Resumo

O propósito deste artigo é explorar a especificidade de um panfleto de Thomas Paine pouquíssimo estudado pelos historiadores, Dissertation on First Principles of Government (1795), no cenário das relações entre liberalismo e democracia na passagem do século XVIII ao século XIX. Trata-se de discutir a maneira como o revolucionário inglês - que foi ator, testemunho e intérprete da Era das Revoluções - elaborou uma formulação teórica que o afastou tanto do pensamento e das práticas jacobinas quanto das legislações e discursos dos deputados termidorianos durante o período da República Termidoriana (1794-1795) da Revolução Francesa. Para tanto, iremos recorrer também a outros textos e cartas do autor e discutir suas mudanças em relação aos panfletos anteriores, como Common Sense e Rights of Man. Com isso, pretende-se abrir novas perspectivas a respeito da obra de Paine e de seu lugar na história do pensamento político.

Palavras-chave:
Thomas Paine; Liberalismo; Democracia; Revolução Francesa; História Intelectual

Abstract

The purpose of this paper is to demonstrate the specificity of Thomas Paine’s pamphlet, Dissertation on First Principles of Government (1795), practically ignored by historians, in the context of the relations between liberalism and democracy in the transition from the eighteenth to the nineteenth century. The objective is to explain how Paine - as an English revolutionary and an actor, witness, and interpreter of the Age of Revolutions - developed a liberal and democratic vision during the period of the Convention initiated on 9 Thermidor (1794-1795) that distanced him from both Jacobin formulations and practices, and from legislations and speeches by Thermidorian deputies. To this end, we will also investigate other texts and letters by the author, and demonstrate his profound changes in relation to previous texts, such as Common Sense and Rights of Man. With this in mind, this article intends to open new perspectives regarding Paine’s work and its place in the history of political thought.

Keywords:
Thomas Paine; Liberalism; Democracy; French Revolution; Intellectual History

1. Introdução

The pomp of courts and pride of kings I prize above all earthly things; I love my country; the king Above all men his praise I sing: The royal banners are displayed, And may success the standard aid. I fain would banish far from hence, The Rights of Man and Common Sense; Confusion to his odious reign, That foe to princes, Thomas Paine! Defeat and ruin seize the cause Of France, its liberties and laws (Arthur O’Connell3 3 A pompa das cortes e o orgulho dos monarcas/ Eu prezo acima de todas as coisas terrenas/ Amo meu país; o monarca/ Acima de todos os homens; seu louvor eu canto/ Desfraldam-se as bandeiras majestosas/ E que o sucesso ampare o estandarte/ De bom grado, eu baniria para longe daqui/ Os “Direitos do Homem” e “Senso Comum”/ Cobriria de vergonha o odioso reino/ Desse antagonista dos príncipes, Thomas Paine!/ Derrota e ruína se abatem sobre a causa/ Da França, sua liberdade e suas leis. Esse poema foi distribuído pelo irlandês Arthur O’Connell, em 1798. Aparentemente, ele era um repúdio a Thomas Paine. Entretanto, se o primeiro verso da primeira estrofe for intercalado com o primeiro verso da segunda estrofe, assim, como o segundo, o terceiro e assim por diante, o resultado seria um panfleto subversivo, que era o real objetivo de O’Connel. Paine, aliás, era sócio honorário da sociedade dos Irlandeses Unidos, que defendia uma reforma parlamentar (HITCHENS, 2007). )

Escrito e publicado em julho de 1795, o texto Dissertation on the First Principles of Government4 4 As obras de Paine citadas nesse artigo foram reunidas por FONER, 1945. Trata-se da principal coletânea das obras completas de Paine, conforme discutido em CARVALHO; FLORENZANO, 2019. foi o ponto de chegada da teoria democrática de Thomas Paine (1737-1809), no qual ele defende o voto universal (masculino) e critica a sua ausência na Constituição francesa termidoriana, terceira do período revolucionário, posta em vigor no mesmo ano.

Nesse momento, Paine, antigo espartilheiro de Thetford, era figura de destaque no mundo atlântico5 5 Um dos inimigos políticos de Paine, John Adams, disse não conhecer “nenhum outro homem no mundo que tenha exercido maior influência nos últimos trinta anos do que Tom Paine” (HAWKE, 1974, p. 7). por meio de diversos escritos, principalmente Common Sense (1776), principal panfleto da Revolução Norte-Americana, e Rights of Man (1791), defesa da Revolução Francesa contra as Reflexões sobre a Revolução na França, de Edmund Burke.

Nenhum estrangeiro tomou parte da Revolução Francesa de modo tão incisivo e de maneira tão prolongada quanto Paine. Eleito deputado por Pas-de-Calais, foi preso pelo governo jacobino em dezembro de 1793, junto ao deputado Anacharsis Cloots (de origem prussiana e de família holandesa), ambos sob a justificativa de serem estrangeiros6 6 Em 1794, referindo-se a Paine, disse Robespierre: “o estrangeiro hipócrita, que há cinco anos proclama Paris a capital do globo, não fazia outra coisa senão traduzir, num jargão, os anátemas dos vis federalistas que destinavam Paris à destruição” (ROBESPIERRE, 1999, p. 135). . Com ajuda do embaixador norte-americano e futuro presidente dos Estados Unidos, James Monroe, Paine foi libertado em novembro de 1794. O motivo não declarado7 7 A absolvição de oitenta por cento dos acusados seria prova de que “Paine, Antonelle ou Le Peletier padecem das iras da lei não por serem estrangeiros ou nobres, mas por suas opiniões girondinas ou hebertistas” (MARTIN, 2019, p. 386). de sua prisão foi a oposição à decapitação de Luís XVI (embora fosse republicano, Paine era contrário à pena de morte e defendia o exílio do rei Bourbon) e sua proximidade com Brissot e os girondinos.

Fora da prisão e novamente deputado, contudo, Paine afastou-se também dos antigos girondinos (muitos dos quais eram, agora, termidorianos), ao defender o voto universal. A oposição de Paine a estes não era nova: cabe ressaltar sua defesa da República em 1790, antes mesmo de Robespierre8 8 Hobsbawm, por conseguinte, não faz justiça ao dizer que “Tom Paine era um extremista na Grã-Bretanha e na América; mas, em Paris, ele estava entre os mais moderados dos girondinos” (HOBSBAWM, 2009, p. 11). Em contrapartida, Michelet foi mais preciso ao afirmar que Paine, embora próximo aos girondinos, não era ele próprio um deles (MICHELET, 1979). A ideia de um Paine jacobino, construída no século XVIII pelos seus adversários na Grã-Bretanha, como se verá, é igualmente equivocada (LEBOVITZ, 2018). . Tal crítica, entretanto, arrefeceu no período jacobino - urgia opor-se ao Terror e ao movimento descristianizador. Derrubados os jacobinos, o afastamento entre Paine e os termidorianos ganhou fôlego, fator decisivo para sua volta aos Estados Unidos em setembro de 1802.

Paine havia embarcado pela primeira vez para a América do Norte em 1775 com uma posição política incógnita, que poderíamos chamar de niveladora9 9 Sobre a posição niveladora, ver o clássico MACPHERSON, 1979, e, mais recentemente, TAYLOR; TAPSELL, 2013. (referência aos levellers ingleses durante a Guerra Civil inglesa de 1642-1649) e censitária, segundo a qual só quem dispusesse de ócio e autonomia financeira poderia votar. Em 1778, Paine afirmou que o interesse dos assalariados, “tal como de todos os servos nas famílias, é o interesse de seu patrão” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 143). Em carta publicada no mesmo ano, Paine, a julgar pelas obras completas de Foner, utilizou pela primeira vez a palavra democracy e democratical. Nesse momento, contudo, ele ainda pensava a democracia no sentido pejorativo corrente, isto é, como uma forma de governo degenerado (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945.). Esse uso, no contexto do debate da independência das 13 colônias, tinha como propósito a defesa de um governo constitucional.

No contexto revolucionário francês, Paine passou a condenar as qualificações de propriedade para votar. Em Rights of Man (1791), resposta ao texto de Edmund Burke, Paine argumentou que o voto deveria ser tão universal quanto a taxação, uma proposta radical no contexto inglês, no qual virtualmente todo homem adulto pagava alguma taxa indireta; mas é preciso frisar que não houve nesse texto uma defesa explícita do sufrágio universal masculino. Apenas em 1795, em Dissertation on the First Principles of Government, ele defendeu abertamente o voto universal. Por isso, Conway, que escreveu a primeira biografia bem fundamentada sobre o autor, disse que “poucos panfletos de Paine merecem mais estudo” (1996CONWAY, Moncure Daniel. The Life of Thomas Paine. Londres: Thoemmes Press, 1996., p. 161-162).

A propósito, Rights of Man representou a segunda vez - sempre a julgar pelas obras completas de Foner - em que Paine utilizou as palavras democracy e democratical, mas desta vez em sentido positivo: agora, a noção de “democracia” era equivalente a um desejável governo representativo igualitário, em gestação nos Estados Unidos e na França. Dissertation, por sua vez, teria sido terceira e última vez que o autor utiliza o termo em seus textos10 10 As obras completas de Foner, mesmo que apresentem lacunas, contém milhares de páginas e podem ser consideradas como bastante representativas. O que se observa, portanto, é que o uso do termo “democracia”, em Paine, é menos frequente do que se costuma supor. ; nesse caso, embora a ideia de democracia seja mais ousada, o uso da palavra é mais tímido (aparece apenas duas vezes no texto), de modo que o autor prefere o termo “governo representativo” para referir-se ao voto universal masculino, igualdade perante a lei, pesos e contrapesos e direitos humanos (entre os dois textos, aliás, há Robespierre e o Comitê de Salvação Pública, o que, como se verá adiante, deve explicar os diferentes usos e noções).

Já os termos “liberal” e “iliberal” aparecem em Paine com muito mais frequência (“liberalism”, por sua vez, é um termo do século XIX, como se verá). Na maioria dos escritos de Paine, o termo aparece na sua acepção corrente, referindo-se a um sentimento de generosidade (“my intentions were liberal, they were friendly”, FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 1238), amistosidade (os termos liberality e liberal sentiments também são frequentes) ou a um tipo de educação específica (como, por exemplo, liberal arts and sciences).

Contudo, conforme veremos adiante, a partir de alguns estudos recentes, como o termo “liberal” conhece transformações na ilustração anglo-escocesa do século XVIII. E as obras de Paine parecem acompanhar esse movimento. O termo passa, por exemplo, a aparecer em sua obra de forma composta - como liberal ground, liberal cast e liberal thinking (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 61, 127 e 237) - e relacionado a formas de não interferência e não opressão. Por exemplo, em carta a George Washington, Paine afirmou que o comércio entre América do Norte e França está fundado nos “mais liberais princípios [liberal principles], feitos para encorajar o comércio nascente na América” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 715). Uma outra carta de Paine, concernente a Constituição da Pensilvânia, expressa bem essa transformação do termo, pois aqui a palavra liberal pode ser entendida como “generosidade”, mas, ao mesmo tempo, “não interferência” e “não opressão”:

Ser livre é da natureza da liberdade [freedom]. A liberdade é associada a inocência, e não companheira da suspeita. Ela necessita ser límpida, e não presa, e ser amada é, para ela, ser protegida. Sua residência é a indistinta multidão de ricos e pobres, partidária de ninguém e patrona de todos (...). Aprisioná-la é afrontá-la, pois, liberal ela própria, ela deve ser tratada liberalmente [liberal herself, she must be liberally dealt with] (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 284)

Feitas essas observações preliminares, é preciso notar que Dissertation on the First Principles of Government nunca recebeu a devida atenção por parte dos historiadores. Tal ausência salta aos olhos entre os estudiosos clássicos de Paine. Foner limitou-se a enfatizar que o panfleto aborda a questão do voto (1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945.). Aldridge ateve-se a dizer que ele escreveu o panfleto em atenção “à nova constituição” (1959, p. 225). Vincent (1989VINCENT, Bernard. Thomas Paine: o Revolucionário da Liberdade. São Paulo: Paz e Terra , 1989.) somente ressaltou a defesa bicameralismo. Keane (1995KEANE, John. Tom Paine: a Political Life. Londres: Bloomsbury, 1995.) e Nelson (2006NELSON, Craig. Thomas Paine Enlightenment, Revolution and the Birth of Modern Nations. New York: Viking Penguin, 2006) tão-só afirmaram que Paine defendeu o voto universal. Philp e Claeys, os dois historiadores que melhor se dedicaram ao estudo do pensamento de Paine, foram lacônicos: o primeiro inusitadamente qualifica-o como “um resumo de Rights of Man (1791)” (1989CLAEYS, Gregory. Thomas Paine: Social and political thought. Boston: Unwin Hyman, 1989., p. 21) e o segundo apenas ressalta sua pouca receptividade (1989PHILP, Mark. Paine. Oxford: Oxford University Press , 1989). Florenzano (1999FLORENZANO, Modesto. Começar o mundo de novo: Thomas Paine e outros estudos. Tese (livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.) apontou o lugar fundamental do texto na discussão sobre liberalismo e democracia; contudo, seu estudo, por estar mais preocupado com outras questões a respeito da vida e da obra de Paine, não se dedicou a uma análise propriamente dita desse panfleto.

Atualmente, o revolucionário inglês tem recebido uma grande quantidade de estudos, seja por sua atuação como revolucionário atlântico, seja por sua posição nem propriamente jacobina nem exatamente girondina11 11 Lounissi o chama de “o mais emblemático revolucionário atlântico do século XVIII” (LOUNISSI, 2018, p. 235). É notória a importância de Paine, por exemplo, livros recentes como The Expanding Blaze (ISRAEL, 2017) ou Revolutions Without Borders (POLASKY, 2015). Para outros estudos recentes, ver KUKLICK, 2018 e, traduzido para a língua portuguesa, LEVIN, 2017. . Contudo, Dissertation continua secundário nos três estudos mais recentes sobre o autor: Feit cita o texto apenas três vezes para abordar a relação entre tempo e direitos em Paine (2016FEIT, Mario. For the Living: Thomas Paine’s Generational Democracy. Polity, v. 48, n. 1, p. 55-81, 2016.); Lounissi, que o considerava um “marco na carreira de Paine” (2018LOUNISSI, Carine. Thomas Paine and the French Revolution. Springer, 2018., p. 235), resume-o em três parágrafos; Clarck afirma que ele “tem pouco a dizer sobre a França” (2018, p. 359-362).

Dissertation, portanto, nunca recebeu a devida atenção. Contudo, além de preencher uma importante lacuna, sua análise irá revelar importantes inflexões em relação aos mais conhecidos textos Common Sense e Rights of Man, e, por isso, mostrar facetas do autor até então pouco discutidas, as quais podem avigorar o lugar de Paine como pensador político e, na direção oposta do que foi dito por Clarck, intérprete da Revolução Francesa.

Para cumprir esse propósito, este artigo será estruturado em três partes: em primeiro lugar, pensaremos a publicação de Dissertation a partir de seu contexto; em segundo lugar, serão analisadas suas ideias fundamentais; e finalmente, o panfleto será pensado no seio dos debates político-filosóficos de sua época. O texto, como toda a obra política de Paine, está profundamente imbricado com o eixo revolucionário Londres-Paris-Filadélfia, e só pode ser compreendido dentro desses diálogos (embora também tenha sua importância em outros espaços como a Irlanda e os Países Baixos).

2. O Liberalismo termidoriano

Paine iniciou a redação de Dissertation tendo em vista os Países Baixos. Porém, após a queda do governo jacobino, em 27 de julho de 1794 (9 Termidor), o texto destinou-se a Convenção Nacional Termidoriana, enquanto ela discutia a Constituição do Ano III.

A Convenção Termidoriana, que sucede ao governo jacobino, durou quinze meses, até outubro de 1795, quando deu lugar ao Diretório. No dia seguinte ao 9 Termidor, os deputados opuseram ao antigo slogan, “O Terror na ordem do dia”, uma nova contrassenha, “a Justiça na ordem do dia!” (BACZKO, 1989BACZKO, Bronislaw. Comment sortir de la Terreur. Paris: Gallimard, 1989. p. 421) e uma nova palavra de ordem, “repor a ordem social no lugar do caos das revoluções” (SOBOUL, 2003SOBOUL, Albert. A Revolução Francesa. São Paulo: Difel, 2003. , p. 108). Um governo, portanto, que se dispunha a encerrar a Revolução e se justificava negativamente: nem Terror, nem monarquia.

A nova declaração de direitos substituiu “os homens nascem livres e iguais” por “a igualdade consiste na lei a mesma para todos”, da mesma forma que o direito de propriedade, que não havia sido definido em 1789, foi precisado: “a propriedade é o direito de usufruir e de dispor de seus bens, de suas rendas, do fruto de seu trabalho e da sua indústria” (MARTIN, 2019MARTIN, Jean-Clément. La Revolución Francesa: Una Nueva Historia. Barcelona: Crítica, 2019, p. 447). Sem perder de vista o mundo caribenho, a Convenção manteve a abolição da escravidão e garantiu a cidadania para os haitianos.

Após a ocupação da Convenção por representantes das seções, ligados aos sans-culottes, exigindo pão e liberdade, a Assembleia nomeou, em abril de 1795, uma comissão de onze membros para redigir uma nova Constituição. O relatório foi entregue em 23 de junho. É ilustrativo o conhecido discurso do relator Boissy d’Anglais:

Devemos ser governados pelos melhores homens; e estes são os mais instruídos e os mais interessados na manutenção da lei. Ora, com raras exceções, tais homens só se encontram entre os detentores de propriedade que, por conseguinte, estão vinculados ao seu país, às leis que protegem suas propriedades e à paz social que as preserva. Um país governado por homens de posses é uma sociedade autenticamente civil; um país em que os homens sem propriedades governem encontra-se no estado de natureza (POPKIN, 2019POPKIN, Jeremy. A New World Begins: The History of the French Revolution. Hachette UK, 2019., p. 448).

Em 6 de junho de 1795, Paine, alarmado com os rumos da Convenção, escreveu ao deputado Thibaudeau enfatizando que voltar a um sistema censitário justificaria novas rebeliões: “como imaginar que recrutas dispostos a morrer pela causa da igualdade amanhã concordassem em sacrificar suas vidas por um governo que os tivesse destituído de seus direitos naturais elementares?” (VINCENT, 1989VINCENT, Bernard. Thomas Paine: o Revolucionário da Liberdade. São Paulo: Paz e Terra , 1989., p. 258).

Thomas Paine, então, publicou o panfleto Dissertation on First Principles of Government no dia 4 de julho de 1795. Três dias depois, pela primeira vez desde a queda dos jacobinos e pela última vez em sua vida, Paine subiu à tribuna da Convenção. O pequeno discurso está transcrito em The Constitution of 1795 - Speech in the French National Convention:

A Constituição que vocês apresentam não é compatível com o grande propósito da Revolução, nem coerente com as opiniões dos indivíduos que a defenderam (...). A Constituição diz: ‘todo homem, nascido e residente na França, com mais de 21 anos de idade, que inscreveu seu nome no registro cívico de seu cantão, viveu pelo menos um ano no território da República, e paga alguma contribuição direta, é um cidadão da França’. Eu devo aqui perguntar, se aqueles que não se encaixam na descrição acima não são cidadãos, qual designação devemos dar ao resto da população? Na estrutura do tecido social, essa classe de pessoas é infinitamente superior à ordem privilegiada cuja única qualificação é sua riqueza ou posse de territórios. O que é o comércio sem os mercadores? O que é a terra sem o cultivo? E o que é a produção da terra sem as manufaturas?” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 588-594)

A Constituição, prossegue Paine, beneficia uma minoria, torna o povo vulnerável à tirania e habilita uma parcela da população a destruir a liberdade de outra. Enquanto alguns trabalhadores estariam privados do voto, outros, com poucos acres de terra, estariam aptos a exercerem a cidadania.

A fala foi recebida com indiferença: “se Paine buscou colocar o dedo na ferida da Convenção, o efeito foi o inverso” (GAUCHET, 1989GAUCHET, Marcel. La Révolution des droits de l’homme. Paris: Gallimard , 1989., p. 300). Somente dois outros deputados advogaram em favor de Paine: o amigo e tradutor de Paine, Lanthenas, e Julian Souhait.12 12 Lanthenas, embora contrário à propriedade como critério para voto, não defendia o voto universal. Já o texto de Souhait (Opinion de Julien Souhait, représentant du peuple français, sur le droit de suffrage dans les assemblées primaires et électorales), embora impresso, nunca foi distribuído. O texto, posterior à Dissertation, surpreende não apenas pela semelhança de ideias com Paine, mas também pelo uso de expressões idênticas e paráfrases. LOUSSINI, 2016., p. 241-242.

A Constituição do ano III foi votada em 22 de agosto de 1795 e proclamada em 23 de setembro. Nessa constituição, era reconhecido o voto censitário. Vale, contudo, apontar que “nenhuma das Constituições norte-americanas dispunha de um sufrágio tão amplo” (VINCENT, 1989VINCENT, Bernard. Thomas Paine: o Revolucionário da Liberdade. São Paulo: Paz e Terra , 1989., p. 259). Os relatores da constituição, aliás, declararam admiração pelo texto de Adams, Defence of the Constitutions of Government of the United States, de 1787, traduzido em 1792 (KLOOSTER, 2018KLOOSTER, Wim. Revolutions in the Atlantic World, New Edition: A Comparative History. NYU Press, 2018.).

Um dos traços mais casuístas dessa Constituição foi o “decreto dos dois terços”, cujo objetivo era evitar que os monarquistas (instigados pelo autoproclamado Luís XVIII) formassem maioria na assembleia: nas primeiras eleições, dois terços dos futuros deputados deveriam ser escolhidos entre os convencionais, cujos mandatos estavam para expirar. Apesar da queda dos jacobinos, permanecia, assim, “a lógica da salvação pública, segundo a qual a Revolução deveria ser defendida, inclusive ao custo da transgressão de seus princípios” (OZOUF e FURET, 1988FURET, François e OZOUF, Mona. Dicionário Crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988., p. 50). A propósito, dois importantes líderes, os antigos apoiadores do governo jacobino Tallien e Billayd-Varenne, falavam abertamente em manter o terror contra os traidores (BIENVENU, 1968BIENVENU, Richard. The Ninth of Thermidor: The Fall of Robespierre. New York: Oxford University Press, 1968.).

Em 26 de Outubro, a Convenção dissolveu-se e, conforme proposta de Sieyès para a nova Constituição, foi substituída pelo Conselho dos Quinhentos (encarregados de elaborar as leis) e dos Anciões (encarregados de votá-las, sendo duas vezes menos numerosos, e cujos membros deveriam ter mais de quarenta anos de idade). O poder executivo (os cinco integrantes do diretório), por sua vez, era eleito pelos dois ramos do legislativo: ao contrário das outras duas constituições revolucionárias, estabeleceu-se aqui o bicameralismo, sob forte influência norte-americana (NORA, 1988). O Diretório cassaria sem apelação membros da administração local, dirigiria a diplomacia e poderia decretar ordens de prisão; nesses aspectos, aliás, o Consulado não foi uma ruptura, mas um adensamento do governo anterior (SOBOUL, 2003SOBOUL, Albert. A Revolução Francesa. São Paulo: Difel, 2003. ). Em Outubro, foi realizada a eleição do Diretório; Paine, que nunca mais se candidatou, tornou-se um cidadão comum.

Dito isso, é fundamental a constatação de que, no período termidoriano, ganhou contorno uma “versão do liberalismo francês” (BACZKO, 1989BACZKO, Bronislaw. Comment sortir de la Terreur. Paris: Gallimard, 1989., p. 429), que chamaremos de liberalismo termidoriano13 13 Preferimos o termo “liberalismo termidoriano” em vez de “autoritarismo liberal”, utilizado por Brown para o mesmo período. A escolha visa diferenciar este de outros liberalismos também antidemocráticos, como o liberalismo doutrinário (BROWN, 2006, p. 235). . Essa versão consistiria na ideia de que há uma impossibilidade de conciliar a participação da população no processo político (princípios democráticos) com a proteção dos direitos e liberdades individuais (princípios liberais) na conjuntura pós-jacobina.14 14 Esta caracterização está em consonância com uma historiografia recente que busca ver o período termidoriano como não apenas um interlúdio entre o Terror e Napoleão, mas sobretudo uma época com características e problemáticas específicas. Ver STEINBERG, 2019. Por isso, em seu discurso de 20 de julho de 1795, Sieyès criticou “a soberania ilimitada que os Montanheses haviam atribuído ao povo, a partir do modelo da soberania do rei no Antigo Regime”- ele chama, a propósito, o regime jacobino de ré-totale, em oposição à ré-publique (POPKIN, 2019POPKIN, Jeremy. A New World Begins: The History of the French Revolution. Hachette UK, 2019., p. 420 e 450). Nota-se que a tensão entre as liberdades individuais e a democracia - frequentemente associadas a década de 1820 - estava presente desde antes, na Convenção Termidoriana.

Feitas essas considerações, é possível destacar o problema que é o coração deste texto, qual seja, explicar como Paine, deputado termidoriano abertamente antijacobino e preocupado com as liberdades individuais e limites do Estado, posicionou-se nesse momento.

3. Dissertação sobre os primeiros princípios do governo

O panfleto Dissertation on the First Principles of Government exibe uma arquitetura clara e bem construída, a fim de que o autor introduza seu argumento mais radical, qual seja, de que a propriedade privada não pode ser um direito natural que se sobreponha aos demais e, por isso, não pode transformar-se em critério para o voto.

O panfleto comporta cinco momentos: na primeira parte, ele pontua sua crença na centralidade da política; na segunda, apresenta três argumentos contra os governos hereditários, ao lado de suas concepções a respeito de nação, contrato social e soberania popular; na terceira, ele discorre sobre o governo representativo, tendo como objetivo fundamental evidenciar a irracionalidade do voto censitário; na quarta, defende o bicameralismo (uma notável mudança em relação à suas ideias em Common Sense e um afastamento em relação aos antifederalistas15 15 Sobre os antifederalistas, ver CORNELL, 2012. 16 16 Importante de lembrar que, na ocasião da publicação de Common Sense, John Adams disse que o panfleto de Paine é “tão democrático, sem qualquer controle ou mesmo uma tentativa de qualquer equilíbrio ou contrapeso, que devia produzir confusão e toda espécie de calamidade.” (BAILYN, 2003, p. 262). Já durante a Revolução Francesa, em texto provavelmente escrito em 1791, Paine escreveu um interessante e pouco conhecido panfleto, organizado em torno de perguntas e respostas, chamado Answer to Four Questions on the Legislative and Executive Powers. A primeira das quatro perguntas (o que por si só é representativo da premência da questão) diz respeito aos possíveis abusos dos poderes executivo e legislativo. Paine, então, é taxativo ao dizer que, “se os poderes legislativos e executivos forem considerados como derivados de uma mesma fonte, a nação (...) é difícil pensar qualquer contingência na qual um poder se sobrepõe ao outro” (FONER, 1945, p. 522). Há, portanto, uma importante inflexão no pensamento de Paine que ocorre à luz das práticas jacobinas, qual seja, a maior importância dos pesos e contrapesos nas estruturas políticas. ), expõe a função do poder executivo e da rotatividade do poder e reafirma a importância da educação; por fim, conclui seu texto com uma profissão de fé em favor da tolerância.

Paine principia dizendo não existir “assunto que interesse mais a qualquer homem do que o tema do governo. Sua segurança - seja ele rico, seja pobre - e em grande medida sua prosperidade estão conectadas ao governo” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 571). Seu objetivo, portanto, é estudar e aperfeiçoar o que ele chamou de ciência do governo, a qual, “de todas as coisas, é a menos misteriosa e a mais fácil de entender.” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 571) É a partir daí que o autor se afasta das subdivisões dos autores clássicos e propõe que:

As divisões primárias do governo são apenas duas:

Primeira, governo por eleição e representação.

Segunda, governo por sucessão hereditária.

(...) Quanto a essa coisa equívoca chamada ‘governo misto’, como o último governo da Holanda e o atual da Inglaterra, não constitui uma exceção à regra geral, já que suas partes, consideradas separadamente, são representativas ou hereditárias (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 571-572).

As revoluções que se espalhavam pela Europa são em última instância, “um conflito entre o sistema representativo - fundado sobre os direitos do povo - e o sistema hereditário, fundado na usurpação” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 572), de modo que a aristocracia, a oligarquia e a monarquia não passam de expressões distintas de um mesmo sistema hereditário, que deve ser rejeitado. Da mesma forma, retomando o que já havia dito em Rights of Man - quando definiu governo norte-americano como “a representação enxertada na democracia” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 354) - Paine rejeita como impraticável a “democracia simples” (isto é, direta): “o único sistema compatível com esse princípio, dado que a democracia simples é impraticável, é o sistema representativo” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 584).

Paine fora, nas Treze Colônias, nome fundamental no processo de transformação do republicanismo de um ideal ético e “forma de vida”, como era visto em meados dos setecentos, (VENTURI, 2003VENTURI, Franco. Utopia e reforma no Iluminismo. Edusc, 2003.), para um regime político praticável e desejável. Nesse momento, o autor reafirma seu conhecido afastamento de parte da linguagem republicana setecentista17 17 As palavras de ordem do discurso republicano seriam: “república, autonomia, espírito cívico, recusa dos exércitos mercenários, repúdio da especialização das funções e da representação, elogio da participação ativa de todos os cidadãos na defesa e no exercício do poder, graças à renovação frequente das assembleias eletivas, à rotação das funções, à recusa dos exércitos permanentes, e às precauções multiplicadas para evitar que os governantes cedessem à corrupção” (SPITZ, 1997, p. 19). Nesse sentido, Kramnik, apontando para um resgate de Locke em fins do século XVIII diz que “a linguagem de Paine e outros radicais, não obstante todo o seu ataque à corrupção, deviam mais a Locke do que ao vocabulário do humanismo cívico” (KRAMNICK, 1982, pp. 629-664). A afirmação de Kramnik é passível de contestação na medida em que há uma historicidade no pensamento de Paine, conforme sugerido no início desse artigo - seu texto Common Sense, de 1776, por exemplo, retoma muitos argumentos presentes em A Tenência dos Reis e Magistrados (1649) de Milton, autor por quem Paine possui confessa admiração. Da mesma forma, a própria noção de liberdade que Paine apresenta no panfleto aqui analisado - “estar sujeito à vontade de outrem” (FONER, 1945, p. 579) - é patentemente republicana (SKINNER, 1999). ao conceber o governo inglês não como “misto e equilibrado”, mas como aristocrático: “é certo”, disse Paine em carta a Condorcet, “que certos lugares, como Holanda, Berna, Gênova, Veneza etc., que são chamadas de repúblicas, não merecem tal designação (...) pois estão em condição de absoluto servilismo à aristocracia” (ISRAEL, 2017ISRAEL, Jonathan. The Expanding Blaze: How the American Revolution Ignited the World, 1775-1848. Princeton: Princeton University Press, 2017., p. 4).

De tal modo, Paine passa a tratar dos governos hereditários: “não há em Euclides uma proposição matematicamente mais verdadeira que a proposição de que o governo hereditário não tem direito a existir” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 572-573). O autor, então, elenca três argumentos contra o regime hereditário, todos de ordem temporal: o primeiro diz respeito à sucessão dos governos; o segundo, às suas origens; o terceiro, à eternidade dos direitos.

O governo hereditário é contrário à razão uma vez que, pela sua natureza, é suscetível de cair “nas mãos de um rapaz desprovido de experiência e muitas vezes pouco melhor que um idiota” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 573). Se a incerteza da sucessão depõe contra os governos hereditários, o mesmo pode ser dito sobre suas origens: o governo hereditário não pode começar porque nenhum homem e nenhuma família estão acima dos demais. “Se não tiver direito a começar”, diz Paine, “tampouco o terá para continuar”, pois:

O direito que um homem ou uma família quaisquer tinham inicialmente para estabelecer-se no governo de uma nação e assentar uma sucessão hereditária não é diferente do direito que tinha Robespierre de fazer o mesmo na França. (...) Os Capetos, os Guelfos, os Robespierres e os Marats se encontram na mesma situação com respeito ao direito (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 573).

Nesse aspecto, o poder de Robespierre aproxima-se mais do despotismo do Antigo Regime do que da democracia. Ao contrário de muitos liberais do início do século XIX, Paine não pensava o jacobinismo como um perigo inerente ao impulso igualitário da democracia, tampouco concebia a liberdade como reduto aristocrático, mas, precisamente, o inverso.

O governo hereditário também é incoerente ao considerar a relação entre tempo e direitos: mesmo que um governo tenha iniciado, de maneira ilegítima, sua usurpação converter-se-ia em direito pela autoridade do tempo? A resposta é negativa nas duas direções: as gerações do presente não têm o dever de submeter-se aos homens do passado (como ele já afirmara em Rights of Man), tampouco têm o direito de subjugar as gerações futuras. Os direitos seriam atemporais e meta-históricos e, por isso mesmo, universais no tempo e no espaço: “o tempo, em relação aos princípios, é um eterno agora” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 574). Compete aos vivos fazer política, de modo que “a injustiça que começou há mil anos é tão iníqua quanto se tivesse começado hoje; e o direito que se origina hoje é tão justo quanto se tivesse sido sancionado há mil anos” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 574).

A noção de que o tempo não cria qualquer forma de direito, razão ou autoridade é o que afasta definitivamente Paine das ideias de Burke e daqueles que ficaram conhecidos como os conservadores britânicos. Para Quinton (1978QUINTON, Anthony. The Politics of Imperfection: The Religious and Secular Traditions of Conservative Thought in England from Hooker to Oakeshott. London: Faber, 1978.), o conservadorismo britânico dos séculos XVIII e XIX, ao pretender preservar o arranjo histórico da Revolução Gloriosa de 1688-89, abrangia três doutrinas: a crença de que a sabedoria política é histórica e coletiva, residindo no tempo (tradicionalismo); a crença de que a sociedade é um todo, e não apenas a soma de suas partes (organicismo); e a desconfiança da teoria quando aplicada à vida pública (ceticismo político).

Para Paine, em contrapartida, qualquer nação que elaborar uma lei ou tradição irrevogável estaria traindo, de uma só vez, “o direito de todo menor de idade da nação e os direitos das gerações seguintes” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 574). Assim, sendo os menores e as gerações futuras portadores de direitos, qualquer lei que viole esses grupos é ilegítima. A autoridade legal (isto é, o poder de eleger representantes e formular leis), para Paine, repousa no consenso dos homens vivos maiores de 21 anos; entretanto, grupos destituídos de autoridade legal não são destituídos de direitos: “uma nação abarca todos os indivíduos de qualquer idade, desde o que acaba de nascer até aquele que está morrendo. Nesse incessante fluxo de gerações, nenhuma parte é superior a outra em autoridade” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 575).

Assim, se é evidente que, quando uma família estabelece a si mesma no poder temos uma forma de inquestionável despotismo, seria um igual despotismo quando uma nação consente em estabelecer um regime com poderes hereditários: “não é um alívio, mas antes uma piora para uma pessoa escravizada pensar que foi vendida por seus pais” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 576). O princípio compromisso como fonte de legitimidade aqui é levado às últimas consequências, e estendido aos menores de idade e àqueles que ainda não nasceram: “se a atual geração, ou qualquer outra, está disposta a ser escravizada, isso não diminui o direito da geração seguinte de ser livre” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 576).

Para Paine, incluir os menores e as gerações futuras no conceito de povo e, consequentemente, protegê-los pela lei, impediria a democracia de transformar-se em tirania; e, por isso, em Paine, “o sujeito da democracia precisa ser compreendido como um sujeito indissociavelmente jurídico (o povo de cidadãos-eleitores) e histórico (a nação que vincula a memória e a promessa de um futuro compartilhado)” (ROSANVALLON, 2010ROSANVALLON, Pierre Por uma História do Político. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010., p. 90). Contudo, a democracia é histórica precisamente porque comporta valores e direitos humanos atemporais - o compromisso com as gerações futuras e a liberdade em relação às gerações passadas deve-se a esse elo inquebrantável que uniria vivos e mortos que, ao contrário do que pensam Burke e os conservadores, não é histórico.

Posto isto, a democracia em Paine é um prolongado exercício de compromisso, muitas vezes tácito. Não se trata, portanto, de uma democracia plebiscitária no sentido de uma consulta ao povo a respeito de todas as decisões, ou de uma “revolução permanente”, no sentido de uma tábua rasa da organização política e de uma reformulação total das instituições, leis e costumes a cada geração; mas, como ele afirmara em Rights of Man, a ideia de que “uma lei não revogada continua em vigor não porque não possa ser revogada, mas porque não foi revogada. A não revogação é tomada por consentimento” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 254). Portanto, Himmelfarb parece exagerar ao dizer que

a revolução política que se pedia em Os Direitos do Homem era uma revolução genuína que requeria a abolição de toda a herança do passado, inclusive da monarquia e da aristocracia, e inaugurava uma espécie de ‘revolução permanente’ em que cada geração criaria suas próprias leis e instituições (HIMMELFARB, 1988HIMMELFARB, Gertrude. La Idea de Pobreza: Inglaterra a Principios de la Era Industrial. México: Fondo de Cultura Economica, 1988, p. 116)18 18 Em outras passagens de Rights of Man, torna-se ainda mais claro como é inexato atribuir a Paine a abolição de toda a herança a cada geração: “é melhor obedecer a uma lei que má, utilizando ao mesmo tempo todos os argumentos possíveis para demonstrar seus erros e buscar sua revogação, do que a violar pela força (...) não vale a pena fazer transformações ou revoluções a não ser em prol de um grande benefício nacional” FONER, 1945, p. 351. Para Paine, todo governo hereditário é tirânico uma vez que torna a humanidade uma espécie de propriedade a ser herdade pelo monarca, violando os direitos de eleição das gerações futuras; contudo, uma vez estabelecido o governo livre sobre os princípios da natureza, todas as gerações podem fazer tábua rasa de seus governantes, mas não de suas instituições, como disse Himmelfarb. .

Entretanto, é importante observar que, no texto, o autor não vislumbra a hipótese de conceder o voto às mulheres, cuja exclusão nem chega a ser discutida19 19 No entanto, é notória sua proximidade com Wollstonecraft, a quem incentivou a publicação de A Vindication of the Rights of Woman (sobre a proximidade entre os dois, ver MOTTA, 2009). Na 2ª parte de Rights of Man e em Agrarian Justice, Paine sempre inclui as mulheres em seus projetos de assistência social, o que nos permite, reproduzindo a análise de BOTTING (2014), pensar em uma crescente adesão de Paine em relação aos direitos da mulher. .

Em contraposição ao governo hereditário, no governo representativo (em Rights of Man, ele já observara que a democracia direta seria factível apenas em pequenos territórios) não há o problema das origens, pois não é ancorado na conquista ou na usurpação, mas nos direitos naturais: “o próprio homem é a origem e a evidência desse direito. Este lhe pertence por força de sua própria existência, e sua pessoa é o titular da propriedade desse direito” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 577).

O voto censitário, de tal modo, produziria um novo tipo de aristocracia20 20 Interessante que Burke já notara a contradição entre proclamar os direitos do homem e, em seguida, instituir o voto censitário, embora, ao contrário de Paine, o objetivo da crítica fosse desmerecer a Revolução, e não aprofundá-la: “os senhores o obrigam [o votante] a comprar um direito cujo exercício disseram-lhe ser inerente à natureza (...) Desde logo, forma-se uma aristocracia tirânica contra aqueles que não podem atender às exigências de mercado” (BURKE, 2014, p. 188). , como um despotismo instalado no seio do governo representativo. A propriedade privada, quando utilizada para arrancar direitos dos outros, converte-se em privilégio e torna-se ilegítima:

Os direitos pessoais, um dos quais o de votar em representantes, são uma espécie de propriedade do tipo mais sagrado; aquele que utilizar sua propriedade pecuniária ou abusar da influência que ela lhe confere para expropriar ou roubar a propriedade ou os direitos de outra pessoa estará utilizando sua propriedade pecuniária como uma arma de fogo e merecerá ser privado dela (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 577).

Se, na natureza, “todos os homens são iguais em direitos, mas não em poder” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 583), a instituição da sociedade civil objetiva uma “equalização de poderes que será paralela e servirá de garantia à igualdade de direitos” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 583). Enquanto a natureza e a sociedade civil são o espaço da desigualdade, a sociedade política é o espaço da igualdade; assim, a democracia, indissociável da ideia de direitos, garante um campo de negociações e compromissos, que criam a possibilidade de defesa dos mais pobres contra os mais ricos e de todos contra o Estado21 21 Indissociável da ideia de direitos, a democracia não se reduz ao governo da maioria. Trata-se, assim, de uma concepção muito próxima daquela presente em TOURAINE, 1996. Ao longo de seu livro o autor apresenta como condições para uma sociedade democrática moderna a representatividade dos governantes, a prática da cidadania e a existência de limites para o governo. Touraine, contudo, não cita Paine. .

A desigualdade de direitos é criada por uma manobra de uma parte da comunidade para privar a outra parte de seus direitos. Cada vez que se cria um artigo de uma Constituição ou de uma lei em que o direito de eleger ou ser eleito pertença exclusivamente a pessoas que possuem propriedade, seja pequena, seja grande, trata-se de uma manobra das pessoas que possuem tal quantidade para excluir aqueles que não possuem. (...) é perigoso e impolítico, às vezes ridículo e sempre injusto fazer da propriedade critério do direito de votar (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 579).

Subjugar a liberdade de voto à propriedade é relegar o direito de escolha dos representantes à irrelevância. Daí o absurdo de submeter a liberdade de voto à propriedade, o que, no final das contas, vincula o direito às coisas ou animais:

Um potro ou uma mula afortunadamente paridos por uma égua e que valham a soma necessária para votar concederão a seus proprietários o direito a votar; mas, se morrem, os privarão desse direito; nesse caso, em quem reside o direito, no homem ou na cria? (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 578)

O sufrágio censitário, além disso, pode vincular o voto ao crime, já que, lembra o autor, é possível adquirir renda pelo roubo; nesse sentido, um delito poderia criar direitos. No mais, como, em uma democracia, alguém só pode perder seus direitos mediante um crime, a exclusão do direito de votar criaria um “estigma” (stigma) sobre os que não possuem propriedade, como se fossem delinquentes: “a riqueza não é prova do caráter moral, nem a pobreza, de sua falta. Pelo contrário, a riqueza é frequentemente evidência de desonestidade, e a pobreza, evidência negativa de inocência” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 579).

Se a escravidão “consiste em estar sujeito à vontade de outrem” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 579), suprimir o direito de votar é reduzir o homem à condição de escravo. Como é justo revoltar-se contra qualquer um que tente reduzir-nos à escravidão, “o direito a rebelar-se torna-se perfeito” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 579). Garantir a todos os direitos de liberdade e igualdade é a melhor maneira de promover coesão social.

Tudo isso não significa que Paine opõe-se à propriedade privada ou defende uma Lei Agrária22 22 Termo utilizado no período revolucionário para referir ao que hoje chamamos reforma agrária. Para uma excelente análise da questão agrária na política revolucionária francesa, ver SAES, 2008. . A complexidade das personalidades, ambições, aspirações, talentos e relações, bem como a diversidade de meios de aquisição de propriedade, implicam a inevitável desigualdade social. Todavia, um governo não é um “banco ou uma companhia comercial”, no qual os direitos dos membros são criados pela propriedade investida: “a proteção de um homem é mais sagrada que a da propriedade” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 581).

De tal modo, cabem aqui duas notas: em primeiro lugar, a percepção de Paine de que a sociedade é dividida em grupos definidos pelo critério de propriedade e permeada por tensões inevitáveis e, em segundo lugar, a concepção de democracia como uma maneira não de subverter, mas de preservar a propriedade privada. A sociedade civil é o espaço da contradição e do conflito; a democracia é o espaço do compromisso, que torna a vida humana possível e potencialmente pacífica mesmo quando ela repousa por sobre uma sociedade permeada por contradições que lhe são inerentes.

Dessa afirmação, naturalmente decorre a pergunta que, como se viu, era bastante alentada para os homens da época: como proceder se, em um regime democrático, a minoria tiver a razão e a maioria estiver errada?

Tão logo a minoria aumentará e será maioria, e o erro corrigirá a si mesmo através do exercício pacífico da liberdade de opinião (...). Nada, portanto, poderá justificar a insurreição, nem poderá ela tornar-se necessária se os direitos forem iguais e as opiniões, livres (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 585).

A democracia fomenta a discussão e, por conseguinte, o esclarecimento, evitando que os conflitos de ideias se tornem confrontos físicos - ela tem, portanto, um potencial esclarecedor e pacifista, interiorizando as contendas e dando-lhes uma vazão não violenta.

Paine, nesse momento, afasta-se de outro democrata, de quem era próximo, Condorcet, também vítima dos jacobinos. Este, a propósito, passou a defender o voto universal (inclusive feminino) a partir de 1792, quando participou, junto a Paine, do “Comitê dos Nove”, encarregado de escrever a Constituição do Ano II - o Comitê, todavia, foi malogrado e deu lugar à Constituição montanhesa (VINCENT, 1989VINCENT, Bernard. Thomas Paine: o Revolucionário da Liberdade. São Paulo: Paz e Terra , 1989.).

Dito isso, Condorcet pensava a instrução pública como pressuposto para a formação de cidadãos esclarecidos. Paine, embora defensor de uma educação universal, o fazia em outro modelo, previamente exposto em The Age of Reason: para ele, a instrução, predominantemente científica, deveria limitar-se a oferecer um small capital aos estudantes, os quais, por si só, deveriam desenvolver-se (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945.). Em Paine, em vez de uma educação que prepare para a democracia, é a própria prática da vida democrática que é instrutiva.

De qualquer forma, é clara a preocupação de Paine, à luz da experiência jacobina e em consonância com o pensamento político termidoriano, com a possibilidade de deterioração da democracia. E, como ele estava cônscio, tal aperfeiçoamento pelo debate não seria suficiente para conter seus possíveis excessos. Dessa forma, nas últimas páginas do panfleto, ele dedica-se aos pesos e contrapesos necessários para a vida política.

O pior tipo de governo, argumenta Paine, é aquele em que as deliberações e decisões estão sujeitas à paixão de um único indivíduo. Quando o legislativo se amontoa em um órgão, ele assemelha-se a esse indivíduo. Por isso, a representação deve-se dividir em dois órgãos eleitos, cuja separação se daria por sorteio. Tal separação de poderes não ocorria de fato na Inglaterra, pois a Câmara dos Lordes, ao carecer de representatividade, relaciona-se com o poder legislativo como “um membro do corpo humano como um cisto ulcerado” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 586).

Já o poder executivo e o poder judiciário exerceriam ambos uma função mecânica: “a primeira [o legislativo] corresponde a faculdades intelectuais da mente humana, que pondera e determina o que deve ser feito; a segunda [o executivo e o judiciário], aos poderes mecânicos do corpo humano que executam aquela determinação” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 586). Os magistrados, assim, são meros delegados, “e isso ocorre porque é impossível conceber a ideia de duas soberanias, a soberania da vontade e a soberania da ação” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 586). Não obstante, a defesa da separação de poderes permanece intacta a unicidade da soberania.

Da mesma forma, continua Paine, não se deve nunca depositar o poder por muito tempo nas mãos de alguém, pois “as supostas inconveniências que podem acompanhar as mudanças frequentes são menos temíveis que os perigos de uma continuidade prolongada” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 587).

São propriamente esses checks and balances que esvaneceram no período jacobino. Paine, então, distingue os métodos usados “para derrotar o despotismo” e os procedimentos “a serem empregados depois da derrota do despotismo”, que são os “meios para preservar a liberdade” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 587). No primeiro caso, predomina a necessidade, que pede a insurreição e a violência, uma vez que, em um regime despótico, estão vetados os meios legais para as mudanças. No segundo caso, predomina o respeito, o pacifismo e o debate, de forma que

tempo e a razão devem cooperar entre si para o estabelecimento de qualquer princípio; portanto, os primeiros convencidos [da importância dos direitos] não teriam o direito de perseguir os outros, em quem a convicção operaria mais lentamente. O princípio moral das revoluções é instruir, e não destruir (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 587).

Portanto, o governo posterior a revolução não deve ser um governo revolucionário. Por governo revolucionário Paine entende - e este é o coração de sua interpretação sobre o jacobinismo - um regime que mantém o uso dos meios que foram necessários para derrubar o regime anterior:

Se uma Constituição tivesse sido estabelecida há dois anos, as violências que desde então assolam a França teriam, na minha opinião, sido prevenidas (...) Mas, em vez disso, um governo revolucionário, algo sem princípio nem autoridade, assumiu o lugar dela. (...) Na ausência de uma Constituição, em vez dos princípios governarem o partido, é o partido quem governa os princípios (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 587-588).

A manutenção de métodos revolucionários após a revolução contraria a liberdade que deve se instituir e, paradoxalmente, justifica novas revoluções e dificulta o estabelecimento de uma sociedade democrática.

Em resumo, Paine alinha-se com a preocupação predominante dos deputados termidorianos, qual seja, a de “encerrar a Revolução”. No entanto, os termidorianos, ao retirarem o direito de voto da população, assemelham-se em despotismo aos jacobinos, e acabam por justificar novas rebeliões. De certa forma, embora Paine rejeite, como se viu, o conservadorismo britânico e a perspectiva antidemocrática termidoriana, ele não deixa de almejar uma espécie de status quo liberal-democrático que institucionalize as medidas e ideias revolucionárias, abolindo o governo revolucionário e não deixando outro caminho para a mudança se não os meios legais. Assim, ele encerra seu panfleto com uma das suas mais expressivas frases:

A avidez para castigar é sempre perigosa para a liberdade. Ela leva os homens a deturpar, interpretar ou aplicar mal até a melhor das leis. Aquele que assegura a sua própria liberdade deve proteger da opressão até mesmo o seu inimigo porque, se viola o seu dever, estabelece um precedente que terminará alcançando a ele próprio (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 588).

Entretanto, cabe aqui uma nota: a democracia, em Paine, será incompleta se pensarmos apenas em sua dimensão política. Restam ainda sua dimensão religiosa e social. À época das Dissertation, Paine escreveu, em 1793, The Age of Reason (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945.), na qual apresentou as religiões reveladas como antidemocráticas, na medida em que reforçavam a autoridade das instituições, e excluíam da Verdade e da Salvação os analfabetos (pois não poderiam ler as Escrituras) e aqueles que não tiveram a oportunidade de ter contato com a religião verdadeira. Assim, o deísmo seria a religião verdadeiramente democrática, pois igualmente acessível a todos os seres humanos, independentemente de onde nasceram ou de seu grau de instrução. Nesse texto, Paine discorreu, ainda, sobre a importância das religiões protegerem os outros animais além do homem. Em 1797, ele lançou Agrarian Justice (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945.), no qual defendeu que a democracia só se realizará quando todos tiverem condições sociais mínimas de existência e oportunidades básicas asseguradas - daí a sua ideia de uma renda garantida pelo Estado a todos os cidadãos a partir de um fundo constituído com taxação universal das heranças (no valor de 10%)23 23 Portanto, embora defensor da propriedade privada e do livre comércio, Paine nunca foi um defensor de um laissez-faire dogmático ou liberista, para referirmo-nos a conhecida distinção de Benedetto Croce. Vale lembrar que a estatofobia, hoje associada ao liberalismo, não é um traço do pensamento clássico. Adam Smith, para citar um exemplo famoso, “apoiava a razão proporcional e maiores impostos sobre supérfluos do que sobre itens básicos” (HIMMELFARB, 2011, p. 84). Mesmo Guizot qualificava como perigoso e vago o axioma laissez-faire (ROSANVALLON, 2015). Por isso, a noção de uma renda universal em Paine, embora vista frequentemente como mais “radical” que a posição de outros autores, não o aproxima de Babeuf, por exemplo. Uma evidência disso foi o fato de Spence, em seu Rights of Infants, de 1797, chama de “miseráveis” os 10% de impostos propostos por Paine, pois nada justifica que os outros 90% permaneçam nas mãos dos proprietários. Sobre o debate entre Paine e Spence, ver MARANGOS, 2005. , proposta de reforma que deveria funcionar como alternativa a Lei Agrária. Um tratamento dessas outras dimensões da democracia em Paine será feito em outra ocasião. É digno de nota, de qualquer forma, que Paine está longe de reduzir o ideal democrático ao voto ou a meros mecanismos político-institucionais.

Nesse ínterim, compete uma pergunta: o discurso de Paine, por se autodefinir como democrata, vai ao encontro, de algum modo, dos projetos robespierristas? São várias as convergências entre Paine e Robespierre: ambos convergem na crítica à Lei Agrária, na defesa de alguma forma de Imposto Progressivo, na rejeição do ateísmo e na defesa do deísmo, embora Robespierre adote a noção de um Culto ao Ser Supremo a partir de uma tutela estatal, o que é descartado pelo pensador inglês em The Age of Reason.

As divergências mais garridas entre Paine e Robespierre ocorrem, nesse sentido, no campo político. Cumpre observar que o grupo jacobino não teve um programa pronto e acabado, como por vezes se supõe (ademais, não existiam partidos políticos como entendemos hoje), mas uma ideologia sempre modificada nas circunstâncias revolucionárias e que só pode ser qualificada a partir de seus discursos e práticas. O mesmo ocorreu, a propósito, com o próprio Robespierre, que oscilou na defesa da democracia direta (1789-1792), do governo representativo (a partir do fim de 1792), da importância das assembleias primárias (mudanças de opinião se verificam em setembro de 1792) e da Constituição de 1791 (OZOUF e FURET, 1988FURET, François e OZOUF, Mona. Dicionário Crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988., p. 320).

Nesse sentido, referimo-nos aqui ao Robespierre nos meses em que integrou o colegiado do Comitê de Salvação Pública. À primeira vista, Robespierre concordava com Paine, ao afirmar que o voto censitário criaria uma aristocracia nova, a “dos ricos” (ZIZEK, 2007ZIZEK, Slavoj. Robespierre: Virtude e Terror. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007, p. 53). Contudo, embora a Constituição jacobina tenha garantido o voto universal, ela não o colocou em prática, pois, como ele afirmou em fevereiro de 1794, é preciso “terminar a guerra da liberdade contra a tirania” (ZIZEK, 2007ZIZEK, Slavoj. Robespierre: Virtude e Terror. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007, p. 144). Para entender tais medidas, disse Robespierre, bastaria “consultar as circunstâncias” (ZIZEK, 2007ZIZEK, Slavoj. Robespierre: Virtude e Terror. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007, p. 146), tese reproduzida tanto pelos jacobinos quanto por parte da historiografia nos séculos XIX e XX.

Robespierre, então, acusava de traidores aqueles que se diziam moderados (visto por ele, na verdade, como “moderantistas”), pois desejavam uma revolução “subordinada a normas preexistentes” (ZIZEK, 2007ZIZEK, Slavoj. Robespierre: Virtude e Terror. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007, p. 12). Da mesma forma, embora Robespierre se posicionasse filosoficamente contra a pena de morte, enfatizou que um “governo revolucionário” exigiria medidas extremas: “o governo deve aos bons cidadãos toda a proteção nacional; aos inimigos do povo não deve outra coisa senão a morte” (ROBESPIERRE, 1999ROBESPIERRE, Maximilien de. Discursos e Relatórios na Convenção. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 1999., p. 130).

Portanto, a oposição à ideia de um “governo revolucionário”, como se viu na análise de Dissertation, é o pomo da discórdia entre Paine e Robespierre - a tensão “necessidade/liberdade”, capaz de realizar a inversão da democracia em despotismo, é rejeitada pelo pensador inglês (FAUSTO, 2008FAUSTO, Ruy. Em torno da pré-história intelectual do totalitarismo igualitarista. Lua Nova, n. 75, p. 143-198, 2008.). Tanto para Paine, quanto para a historiografia crítica de Robespierre, o Terror seria menos uma consequência necessária do que uma negação da democracia republicana.

Cumpre observar que, ao mesmo tempo que Paine afasta-se da “tese das circunstâncias” (geralmente associado a uma historiografia marxista ou jacobina), também não compactua com a noção, defendida por certo campo “liberal” da historiografia, de que o Terror seria uma conclusão lógica da Revolução (FURET e OZOUF, 1988FURET, François e OZOUF, Mona. Dicionário Crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.) ou de que a violência contra os não cidadãos foi “a mola propulsora” do processo revolucionário (SCHAMA, 1989SCHAMA, Simon. Cidadãos: Uma Crônica da Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 689). O lugar da Dissertation nas primeiras interpretações do jacobinismo, portanto, reside na leitura do Terror como um desvio da Revolução e uma reminiscência do próprio despotismo do Antigo Regime (espero que, assim, fique demonstrado que o texto de Paine, ao contrário do que apontou Clarck, tem algo a nos dizer sobre a Revolução Francesa).

4. Um liberalismo democrático?

Nesse sentido, o moderantismo e as “normas preexistentes” a que se refere Robespierre tocam, exatamente, no que pode ser lido, a partir de determinado ponto de vista, como o caráter liberal do pensamento de Paine, elemento chave que separa os posicionamentos dos dois protagonistas.

Os primeiros usos da palavra liberal em referência às ideias corporificadas nas revoluções de 1776-1848 - e não mais em relação a uma educação específica ou a uma vaga ideia de amistosidade (SIMPSON, WEINER e PROFFITT, 1989SIMPSON, John Andrew; WEINER, Edmund SC; PROFFITT, Michael (Ed.). Oxford English dictionary additions series. Clarendon Press, 1989.) - datam da Espanha no início do século XIX. No contexto da constituição gaditana, os liberales chamavam de serviles àqueles que eram contrários ao governo representativo e à Constituição.24 24 A contraposição entre liberal e servil aparece em um poema de Don Eugenio Taipa, em seus Ensayos Satíricos, sob o título de La muerte de la inquisición. Ver: LLORÉNS,1958, pp. 53-58; GRASES, 1961, pp. 539-541. Nos textos acima, os historiadores reconstroem os vários momentos em que os deputados - em especial, Canga-Argüelles - utilizam o termo nas cortes. Por exemplo, a revista El Español, em 1811, Blanco White chamou os constitucionalistas de liberais em referência ao impacto da Revolução Francesa na Europa25 25 Ver MARICHAL, 1955, 291-293; e, mais recentemente, BUSAALL, 2012. . Em carta a Jovellanos, de 1809, o general francês Sebastiani refere-se a “vuestras ideias liberales” para referir-se às ideias de tolerância e igualdade que deveriam fazer os espanhóis aliarem-se a Napoleão em detrimento da monarquia hispânica (JOVELLANOS, 1963JOVELLANOS, Gaspar Melchor. Obras Completas. Madrid: Atlas, 1963, tomo I.p. 590-591). Em 1813, no Diario Militar, Politico y Mercantil de Tarragona, tem-se o primeiro uso conhecido da palavra liberalismo: “se o liberalismo é (...) descatolicizar um povo, detesto ser liberal” (LLORÉNS, 1958LLORÉNS, Vicente. Sobre la aparición de liberal. Nueva Revista de Filología Hispánica. Año 12, No. 1, 1958, p. 53-58., p. 58). Em 1816, o Oxford English Dictionary ainda mantinha a grafia espanhola - “British liberales” (BEYME, 1985BEYME, Klaus Von. Political parties in Western democracies. Gower Publishing Company, Limited, 1985., p. 31-32) - substituída pela inglesa apenas na década de 182026 26 Quando jovem, Lord Byron (1788-1824) definia liberalismo como a conduta de um gentleman; quando adulto, referia-se a sua ação política na Carbonária da Itália. A mudança é evidência da própria transformação de sentido da palavra. Sobre tal mudança, ver GROSS, 2001. .

Dito isso, é preciso notar que, no campo das ideias políticas, o surgimento de uma denominação específica pode ser compreendido não exatamente como um ato de fundação, mas como um ganho de consciência (que não deixa de ser, também, uma forma de produção de novos significados e possibilidades de pensamento) a respeito de uma situação que já possui algum grau de cristalização; no caso do liberalismo, tal processo cristalização nas décadas anteriores a 1820 é bem documentada, como mostram estudos recentes27 27 Daniel Klein, com auxílio do big data, mostrou como, em língua inglesa, a palavra “liberal” conhece uma dupla transformação nas publicações de língua inglesa na segunda metade do século XVIII: transformação quantitativa, dado que a palavra aparece com muito mais frequência a partir de 1760; transformação qualitativa, dado que ela começa a aparecer de forma composta (“liberal policy,” “liberal plan”, “liberal system”, “liberal views”, “liberal ideas” e “liberal principles”) e associada a ideia de livre ação, livre comércio e não intervenção. A mudança, claro, não é drástica, e, como se viu na obra de Paine, o termo apresenta flagrante polissemia. Por exemplo, Dugald Stewart, na década de 1790, apresentava Adam Smith como representante do liberal system e como alguém que pensava a “liberdade de comércio” como distinta da “liberdade política” (esta, para ele, típica da Revolução Francesa). Ver ROTHSCHILD, 2003; KLEIN, 2014; e o artigo de ROBERTSON em CLARK, 2003. . Entretanto, é igualmente verdadeiro que, na ausência de tal denominação, corre-se o risco de ver, naquilo que foi disposto anteriormente, um grau de coerência que poderia não existir 28 28 Penso que as observações de Elias Paltí (2020) nos três primeiros capítulos de O Tempo da Política sobre a Espanha e a América Latina sejam válidas também para a presente discussão. De um ponto de vista metodológico, me parece ser uma armadilha pensar o uso dos termos “liberal” e “democracia” a partir de filtros como “tradição” e “modernidade” ou, pior, “ruptura” e “continuidade”. O autor afirma que, no caso da política espanhola, a “anfibiologia da linguagem” (p. 68) relaciona-se a “consciência ou sensação generalizada de se enfrentar a um fenômeno anômalo, para o qual não havia categorias que pudessem designá-lo apropriadamente” (p. 78), de onde o uso de elementos da segunda escolástica para a defesa do que seria, na prática, sua negação. Nesse sentido, é preciso pensar a Era das Revoluções Democráticas como, fundamentalmente, um período de experimentação e acentuada consciência de novidade, quando a linguagem e seus usos eram motivos centrais de preocupação, de modo que os velhos nomes não mais conseguiam adaptar-se às novas realidades - e essa parece a melhor chave para a compreensão das ambiguidades e polissemias inerentes ao debate político do período. .

Nesse sentido - e tendo em vista a enorme variedade de liberalismos na história29 29 Conforme busquei sintetizar, no caso atlântico e na chave da divulgação científica, em CARVALHO, 2020. - ao invés de pensar o liberalismo como uma doutrina, parece mais adequado enxergá-lo como um campo, ou seja, um enorme espaço de pensamentos com algum grau identificável de parentesco30 30 Refiro-me a noção de “família de semelhanças”, Wittgenstein, 2012, §65-71. dentro do qual há lugar para criação e proposição das mais variadas posições. Como espaço de pensamentos, o liberalismo possui limites, o que nos definir a existência objetiva desse campo e, ao mesmo tempo, nos afastar de posições demasiado essencialistas, dogmáticas ou normativas.

Partindo dessas premissas, sustentamos a possibilidade de convencionarmos a existência uma linguagem liberal clássica na segunda metade do século XVIII, anterior ao próprio surgimento do termo liberalismo, mas que possuiria graus de parentesco com as ideias do XIX. Os elementos e limites dessa linguagem seriam, a saber, defesa dos direitos naturais, o contratualismo, a oposição contra privilégios tradicionais e monopólios das corporações, a ideia de um estado de natureza e a defesa de pesos e contrapesos contra os excessos do Estado31 31 Para Smith - um dos poucos autores diretamente elogiados por Paine, em Rights of Man - o Estado sustenta-se a partir de suas funções militares-coercitivas e do provimento de obras fora do interesse da iniciativa privada (SMITH, 1983). Paine, no panfleto Common Sense (1776), expressou com clareza a noção de separação entre governo e sociedade: “a sociedade é produzida pelas nossas necessidades, e o governo, pela nossa maldade” (FONER, 1945, p. 4-5). É preciso notar, contudo, a distância entre a noção de Estado para Smith (que envolvia o governo das paróquias, as corporações de ofício e as igrejas estabelecidas, como analisado em ROTHSCHILD, 2003) e, a noção de Estado em Paine no texto analisado neste artigo, o qual foi escrito em um período posterior à Revolução Francesa. e da sociedade.

É importante notar, contudo, que tais elementos estão frequentemente dispersos (afinal, será apenas o surgimento da palavra “liberalismo” que tentará criar alguma unidade e coerência) e não aparecem de forma inconteste em um único autor. Da mesma maneira, eles são sensíveis a outros discursos, especialmente o republicano32 32 No caso de Paine, o fato de ele muito raramente citar suas fontes cria uma dificuldade grande para os leitores. É possível encontrar em seus textos ecos espinozistas (conforme tratamos com maior precisão em CARVAHO, 2017), elementos associados à tradição liberal, pontos de vista republicanos e uma defesa aguerrida da democracia. Por isso, ninguém menos que Pocock afirmou: “é difícil encaixar Paine em alguma categoria” (1993, p. 279). .

Dito isso, em que medida é plausível dizer que o liberalismo clássico é democrático? Em outras palavras, como os autores da época lidavam com a problemática de a um só tempo limitar o poder e distribuí-lo?

A palavra “democracia”, no século XVIII, raramente foi utilizada em um sentido favorável33 33 O uso da palavra democracia em sentido positivo torna-se hegemônico apenas no século XX (LASSWELL; LERNER; POOL, 1952). . Marquis d’Argenson (1694-1757)34 34 As informações sobre a palavra democracia dos próximos dois parágrafos foram retiradas do estudo de PALMER, 1953. As conclusões do texto de Palmer foram reforçadas - praticamente, aliás, nos mesmos termos - por DUNN, 2005, p. 116. , em Considérations sur le gouvernement de la France (1764), é um dos primeiros a utilizá-la como referente a igualdade política e de direitos (favorecida, portanto, pela monarquia), e não como autogoverno. Contudo, os termos Démocrat e Aristocrate não aparecem na França e na América antes das revoluções - seus primeiros usos datam da Revolução Holandesa (1784-1787) e Belga (1789-1791).

Ao longo da Era das Revoluções, o termo ganha maior circulação, sendo associado a igualdade de direitos, governo popular ou primazia das assembleias locais. Barnave, por exemplo, aludia a uma “era das revoluções democráticas” para caracterizar o período que vivia. Os usos, assim, indicam uma transformação fundamental: além de uma forma de governo (democracia), é possível a notar empregos que indicam também agência (democrata), adjetivações (democrático) e ações (democratizar). Democracia, assim, significava tanto uma forma de governo quanto uma prática em direção a maior igualdade (DUNN, 2005DUNN, John. Democracy: A history. Atlantic Monthly Press, 2005.) 35 35 Há uma percepção dos próprios protagonistas, portanto, de que a Era das Revoluções favoreceria a ideia de igualdade, esta entendida no sentido Tocquevilleano, isto é, como uma pulsão que arrasta as sociedades modernas e cujo resultado é incerto - não é a toa que Robespierre descrevia a Revolução como uma “torrente”. Nesse sentido, a democracia não se reduz a um tipo de governo, mas comporta um tipo de sociedade em que impera a igualdade cujo sentido, claro, é alvo de disputas. Palmer, considera a democracia como baseada na rejeição da “ideia de que qualquer pessoa possa exercer autoridade coercitiva simplesmente por seu próprio direito, pelo direito advindo de seu status, pelo direito ‘histórico’ ou por qualquer antiga forma de costume ou herança” (2014, p. 6). .

Com efeito, os três usos da palavra democracia mais frequentes e favoráveis no período devem-se a Robespierre (o que, a propósito, será um dos principais argumentos para que a palavra tenha um sentido negativo nas décadas seguintes), ao bispo de Ímola e futuro papa Pio VII e, claro, a Thomas Paine. A primeira vez que Paine o faz explicitamente foi, como se viu, na segunda metade de Rights of Man, referiu-se a “democracia” como uma “forma, assim como um princípio público de governo” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 433) e defendeu a representação como meio de sua efetivação.

De qualquer forma, na passagem do século XVIII para o XIX, o campo que convencionamos chamar de liberalismo clássico e a linguagem democrática, no mundo europeu e norte-americano, estavam desencontrados. A posição dominante excluía do voto empregados, assalariados e mendigos, além de mulheres e crianças, uma vez que estes supostamente dependiam da vontade dos outros. A propriedade era entendida por muitos como o meio de ligação entre o interesse próprio e o interesse da sociedade, o que garantia o acesso ao poder político (ROTHSCHILD, 2003ROTHSCHILD, Emma. Sentimentos econômicos: Adam Smith, Condorcet, e o iluminismo. Record, 2003.). Ainda no século XVII, Locke, autor bastante influente para essa geração, acreditava que os não proprietários estariam destituídos de “pleno interesse” no benefício da sociedade e, por isso, deveriam ser excluídos do voto (MACPHERSON, 1979MACPHERSON, Crawford Brough. A Teoria Política Do Individualismo Possessivo: de Hobbes até Locke. São Paulo: Paz e Terra , 1979.). Jefferson, embora faça uma interessante reflexão crítica sobre as terras e sobre a herança, enxergava que a condição para a existência da democracia era uma sociedade em que todos fossem economicamente independentes; como os federalistas Jay, Madison e Hamilton, ele vinculava voto e propriedade (ARENDT, 1988ARENDT, Hannah. Da Revolução. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988.). Burke entendia que a sociedade não poderia ser regida por um “princípio abstrato” (BURKE, 2014BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. São Paulo: Edipro, 2014, p. 36) como o voto popular. Madame de Stäel, que investiu contra a Dissertation e acusou Paine de “demagogo” (LOUSSINI, 2016, p. 267), defendeu um sufrágio mais limitado que aquele da Constituição de 1795 (STAËL, 2009STAËL, Anne-Louise-Germaine de. Des circonstances actuelles et autres essais politiques sous la Révolution. Paris: Honoré Champion, 2009.). Constant argumentava que “só a propriedade confere aos homens capacidade de exercício dos direitos democráticos” (CONSTANT, 1997CONSTANT, Benjamin. Principes de politique applicables à tous les gouvernements. Paris: Hachette, 1997., p. 113). No mundo germânico, Kant pensava que empregados e mulheres, por dependerem “dos comandos dos outros carecem de personalidade civil” (BOBBIO, 1992BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant. Brasília: Ed. UnB, 1992., p. 141). Após a Revolução Francesa, os chamados liberais doutrinários preocupados com a “tirania da maioria”, argumentarão, como Tocqueville mais tarde, a necessidade de diques firmes para o rio democrático36 36 Sobre os doutrinários, ver CRAIUTU, 2003. .

Macpherson sustentou que os utilitaristas Bentham e o pai de Stuart Mill, James Mill, seriam os primeiros liberais democratas. Contudo, Bentham, em 1817, dizia que determinadas “exclusões deviam ser feitas, pelo menos por certo tempo e para fins de uma experiência paulatina” (MACPHERSON, 1978MACPHERSON, Crawford Brough. A Democracia Liberal - Origens e Evolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978., p. 40). James Mill, por sua vez, argumentava que seria prudente excluir do voto as mulheres, os homens menores de 40 anos e os mais pobres (MACPHERSON, 1978MACPHERSON, Crawford Brough. A Democracia Liberal - Origens e Evolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.). Stuart Mill, defensor do voto feminino no Parlamento, excluiu do sufrágio aqueles que não pagam impostos, que vivem de esmolas e defendia que os mais esclarecidos teriam direito ao voto plural (MILL, 1981MILL, John Stuart. Considerações Sobre o Governo Representativo. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981.).

Mais recentemente, em sua síntese sobra a história do liberalismo, Freeden reafirma que, até o século XIX, liberalismo e democracia estavam desencontrados por dois motivos correlacionados: o medo da “tirania da maioria” e a “ignorância do povo” (temas que, como se viu, foram enfrentados pelo nosso autor). Como Macpherson, Freeden - que não menciona Paine - pensa o encontro entre o liberalismo e a democracia como produto, sobretudo, do século XIX, de maneira que seu destaque recai sobre Mill, Hobson e Hobhouse (2015FREEDEN, Michael. Liberalism: A very short introduction. OUP Oxford, 2015., p. 61-62).

Pode-se ainda citar outros três manuais recentes sobre a história do liberalismo. O texto de Fawcett (2018FAWCETT, Edmund. Liberalism: the life of an idea. Princeton University Press, 2018.), em primeiro lugar, não faz referências a obra de Paine, ao passo que o de Traub (2019TRAUB, James. What was Liberalism?: The Past, Present, and Promise of a Noble Idea. Basic Books, 2019.) refere-se brevemente a Paine como alguém que “endossou a violência revolucionária da multidão” (p. 18). Após essa caracterização, Traub credita a Madison um “entendimento mais próximo ao nosso sobre o liberalismo” por pensar a solução para a tirania da maioria “dentro, e não fora, da democracia” (p. 23). Mas a democracia em Madison, como se viu, era, no sentido social e político, menos inclusiva que a de Paine. Em O Federalista (n. 10, de 1787), o virginiano, na contramão de Paine, esforçou-se por dissociar república e democracia: as “democracias têm sido sempre palco de distúrbios e controvérsias, têm-se revelado incapazes de garantir a segurança pessoal ou os direitos de propriedade e, em geral, têm sido tão breves em suas vidas quanto violentas em suas mortes” (APUD FLORENZANO, 2015FLORENZANO, Modesto. República (na segunda metade do século XVIII-história) e Republicanismo (na segunda metade do século XX-historiografia). Lisboa, Clio, v. 14, p. 15, 2015., p. 10). Por fim, o livro de Rosenblatt refere-se a Paine no capítulo em que discute as relações entre liberalismo e Revolução Francesa. A autora, nesse ínterim, faz uma observação, a nosso ver, correta sobre Paine, argumentando que, para ele, “o problema não era se um indivíduo ou um grupo eram liberais, mas se os princípios fundamentais de uma nação o eram” (2020ROSENBLATT, Helena. The lost history of liberalism: from ancient rome to the twenty-first century. Princeton University Press, 2020., p. 47). Tal observação fundamenta-se na distinção que entre “pessoas” e “princípios” feita nos Rights of Man, em debate contra Edmund Burke. Contudo, essa é a única referência a Paine presente no livro.

Dessa forma, é possível afirmar que Thomas Paine foi um dos primeiros a expor a fórmula do liberalismo democrático, defendendo uma noção específica de igualdade e um sufrágio mais amplo do que era comum no período, sem, contudo, deixar de lado a chave dos direitos naturais, do contratualismo, do livre comércio e dos pesos e contrapesos - tal combinação, como se viu, só pode ser compreendida à luz da história da Revolução Francesa e o afasta de muitas das posições que eram dominantes entre os federalistas e antifederalistas norte-americanos, os termidorianos e os jacobinos. E a Dissertation, como tentou se provar, foi fundamental nesse aspecto, embora frequentemente seja deixada de lado pelos historiadores. Em Paine, o remédio para os males da democracia e para a proteção das liberdades individuais não reside no sufrágio limitado ou na repressão, mas no refinamento da democracia, entendida como limite ao autoritarismo e maior participação política, aliada a um maior esclarecimento da população. A maneira de evitar a tirania da maioria não é a restrição do voto, mas a incorporação dos menores e das gerações futuras na noção de povo, alargando, assim, a noção de soberania popular. A riqueza dessas discussões nas quais o pensamento de Paine está inserido, por fim, não deixa de ser sintomática em relação ao grande laboratório de experiências e ideias políticas que constituiu a Era das Revoluções.

5. Uma nota sobre o radicalismo e o senso comum

Strauss (1967STRAUSS, Leo. Spinoza’s Critique of Religion. Chicago: University of Chicago Press, 1967.) foi o primeiro conceituar o Iluminismo Radical, associado a uma retomada de Espinosa37 37 São muitas as possíveis aproximações entre as obras religiosas de Paine e uma tradição espinozista; é sabido, aliás, que Paine leu Espinosa no processo de confecção de The Age of Reason (ROBERT, 1983). . May (1976MAY, Henry Farnham. The Enlightment in America. Nova Iorque: Oxford University Press, 1976.) e Meyer (1976MEYER, Donald. The Democratic Enlightment. Nova Iorque: G. P. Putnam’s Sons, 1976.), por sua vez, deram prosseguimento ao conceito, hoje utilizado por diversos historiadores, principalmente, Israel (2009ISRAEL, Jonathan. Iluminismo Radical: A Filosofia e a Construção da Modernidade 1650-1750. São Paulo: Madras, 2009.). Este último advoga pela noção de dois Iluminismos: um Iluminismo Moderado e um Iluminismo Radical, o qual seria transatlântico, tributário de uma apropriação específica do pensamento monista de Espinosa38 38 Para uma excelente crítica às ideias de Israel, em especial a suposta retomada de Espinosa, ver o sétimo capítulo de LILTI, 2019. , que teria ganhado força (sem tornar-se hegemônico) no final do século XVIII e no início do XIX, em estreita conexão com a Era Revolucionária na América do Norte, na França, na Grã-Bretanha, na Alemanha, na Escandinávia e na América Latina.

Os radicais, em fins do século XVIII, teriam tratado de temas como a democracia, a problemática da igualdade racial, a separação entre Igreja e Estado, o deísmo, a crítica aos impérios coloniais e a erradicação da autoridade religiosa no processo legislativo - é o que Israel chamou de “pacote de conceitos e valores básicos”, para ele ancorado em uma cosmovisão imanentista (ISRAEL, 2006ISRAEL, Jonathan. Enlightenment contested: Philosophy, modernity, and the emancipation of man 1670-1752. Oxford University Press, 2006., p. 11). São temas, claro, que aparecem dispersos nas produções dos autores, e não necessariamente cada pensador discute ou defende todas essas questões. De qualquer forma, é por isso que Israel considera Paine (o qual passa por todas as questões acima) um dos principais radicais de língua inglesa no período, o que é corroborado pelo fato de que ele circulava e era admirado, na Grã-Bretanha, por Price, Priestley, Jebb, Macaulay, Godwin e Wollstonecraft, e, na América do Norte, por Rush, Barlow, Palmer, Freneau, Coram e Murray (ISRAEL, 2013ISRAEL, Jonathan. A Revolução das Luzes: O Iluminismo Radical e as origens intelectuais da Democracia Moderna. São Paulo: Edipro , 2013, pp. 7-8.).

A obra de Israel contribuiu para pensarmos o Iluminismo para além de supostas fronteiras nacionais (o que é particularmente relevante para pensarmos a obra de Paine) e para dar relevância a uma linguagem oitocentista que não se confunde com o pensamento de Voltaire ou de Rousseau (ISRAEL, 2009ISRAEL, Jonathan. Iluminismo Radical: A Filosofia e a Construção da Modernidade 1650-1750. São Paulo: Madras, 2009.). Mas é nesse ponto também que reside uma das fragilidades de seu argumento: dado que a palavra radical era “inexistente no período” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des lumières-Ambivalences de la modernité. Média Diffusion, 2019., p. 152), não parece útil ou razoável excluir a alcunha de radical de Rousseau, Mably, Robespierre e Babeuf e atribuí-la, como faz Israel, apenas a Condorcet, Brissot ou Paine (dando a esses autores, aliás, uma coerência que é contestável). A confusa solução dada por Israel ao dizer que Rousseau “mistura elementos tanto da corrente principal do Iluminismo quanto do Iluminismo Radical” (2009, p. 790) 39 39 A crítica de Rousseau como o ponto frágil da conceituação de Israel é comum. Sobre isso, ver o debate apresentado em ISRAEL, 2016. , nos parece uma hipostasiação dos próprios conceitos, o que revela um impasse teórico. Se levarmos em conta, além do mais, a própria trajetória da palavra “radical” no século XIX até a formulação clássica de Marx (2010MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Boitempo Editorial, 2010.), veríamos que nada seria mais estranho a eles do que o pensamento de Brissot. O próprio Robespierre, como se viu, enxergava Paine como pior do que um moderado, um “moderantista”.

Sem embargo, embora Israel rejeite o termo liberalismo para o século XVIII40 40 Sobre essa rejeição, ver a introdução de ISRAEL, 2017. , a linguagem do liberalismo clássico é aqui entendida como um dos elementos que separam Paine e Brissot de Robespierre ou Babeuf, dado que esses dois últimos, de uma forma ou de outra, transcendem o que definimos como os limites do campo liberal.

Recentemente, Rosenfeld (2011ROSENFELD, Sophia. Common Sense: A Political History. Cambridge: Harvard University Press, 2011.) deu relevo a outro componente fundamental para a formulação do pensamento democrático moderno: a filosofia do Senso Comum41 41 Em língua portuguesa, é evidente a ambiguidade do termo Common Sense, que pode ser ou não pejorativo, a depender do uso de Bom Senso ou Senso Comum. Tal ambiguidade, contudo, existia também no período em questão. Para essa discussão, ver ROSENFELD, 2008. . A ideia de um bom senso inerente ao homem comum permitia valorizar as pessoas simples como portadores de verdades auto evidentes e, assim, justificar noções democráticas. Para ela, Benjamin Rush foi, ao lado de Paine, pioneiro no uso dessa filosofia como chave interpretativa dos eventos norte-americanos. Vale lembrar que foi Rush - ele próprio, a propósito, ex-aluno da Universidade de Edimburgo - quem convenceu Paine a mudar o nome de seu mais famoso texto de Plain Truth para Common Sense, remetendo à filosofia escocesa e ao Bons Sens francês (ROSENFELD, 2017ROSENFELD, Sophia. Benjamin Rush’s Common Sense. Early American Studies: An Interdisciplinary Journal, Filadélfia, vol. 15, n. 2, pp. 252-273, 2017.). Desse modo, dois componentes ideológicos fundamentais da Era das Revoluções - a noção de que os direitos do homem são autoevidentes e de que o povo é o portador tais direitos (BAYLY, 2004BAYLY, Christopher Alan. The Birth of the Modern World: 1780-1914. Malden: Wiley-Blackwell, 2004.) - poderiam ser unidos pela ideia do Senso Comum.

Importante lembrar como Rush e Paine foram abolicionistas. Rush foi confundador e presidente da Pennsylvania Society for Promoting the Abolition of Slavery and the Relief of Free Negroes Unlawfully Held in Bondage, criada em 1774. No caso de Paine, pode-se destacar o texto African Slavery in America, no qual ele denuncia a contradição de existirem pessoas a um só tempo cristãs e escravocratas (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945.). O uso pioneiro, na América do Norte, da linguagem do senso comum tendo propósitos democráticos reforçam a importância de Paine na construção do ideal democrático moderno.

Contudo Paine, como Rush, afastou-se da filosofia do senso comum ao longo de sua vida, o que foi favorecido pelos próprios conflitos do processo revolucionário. O crescente papel da educação universal e dos freios e contrapesos nas sociedades democráticas, reforçado pelos dois pensadores no final da vida, é indício desse afastamento. Desse modo, em que pese a importância dos textos de Rosenfeld, é preciso relativizá-la: o papel da filosofia do Senso Comum - determinante no período norte-americano de Paine - não nos parece determinante na Dissertation, cujas ênfases nos mostram uma linguagem cada vez mais cética em relação ao poder.

6. Conclusão

Dissertation, portanto, é a um só tempo um texto seminal na compreensão das mudanças que ocorrem no pensamento de Paine ao longo da Revolução Francesa e esclarecedor no que diz respeito aos problemas e debates que estão postos no período termidoriano, e que se tornarão fundamentais na primeira metade do século XIX. Não se justifica, por conseguinte, a pouca atenção que o texto recebeu por parte dos estudiosos do autor.

O texto expressa, assim, duas facetas pouco conhecidas de Paine: por um lado, sua preocupação com os excessos do poder central e as possibilidades da ditadura da maioria, ao contrário do que foi enfatizado na maioria de seus textos anteriores; por outro, uma posição abertamente democrática a qual, embora subjacente a textos como Rights of Man, assume sua forma mais expressiva nesse panfleto - a um só tempo, portanto, um Paine mais democrático e, também, preocupado com os possíveis excessos de tal democracia, uma imagem bastante distinta, por conseguinte, do Paine de Common Sense, partidário do unicameralismo e hesitante quanto ao voto universal. A formulação da propriedade sem dúvida como um direito, mas como um direito menos importante que a vida ou a liberdade, está no coração de sua insubordinação contra as desigualdades. Tais mudanças, como tentou se provar, estão fortemente ligadas ao próprio fenômeno do jacobinismo e às práticas do governo termidoriano, o que revela a relevância dos estudos a respeito de Paine para a compreensão do período.

Não obstante, é claro que Paine não deixa de ter suas próprias contradições. No que é, para uns, uma incoerência ideológica e, para outros, um verdadeiro realismo político (dado que os inimigos não atuavam dentro das regras do jogo democrático e dispunham de conexões internacionais), ele apoiou o chamado golpe de Estado do 18 Frutidor do ano IV, 4 de setembro de 1797, quando o Diretório anulou as eleições de março que haviam dado maioria aos realistas. O golpe do Frutidor reforçou um caminho autoritário que culminou no Golpe do 18 Brumário, em 1799. Embora tenha rejeitado o “princípio das circunstâncias” e “a lógica da Salvação Pública” de Robespierre, Paine não deixou, portanto, de utilizar o mesmo expediente. De qualquer forma, Paine nunca negou a necessidade da violência revolucionária, como expresso em seu conhecido rompimento com os quakers em 1776 - ocorre apenas que, no período jacobino, ele não enxergou tal necessidade. O autor também incentivou o Diretório a invadir a Grã-Bretanha e, junto a Bonaparte, elaborou um plano detalhado para a entrada das tropas francesas na ilha e lançou a ideia de uma vasta subscrição popular destinada a financiar a operação (CARVALHO, 2017CARVALHO, Daniel Gomes de. O pensamento radical de Thomas Paine (1793-1797): artífice e obra da Revolução Francesa. 2017. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. doi: 10.11606/T.8.2018.tde-12062018-135137. Acesso em: 2020-02-15.
https://doi.org/10.11606/T.8.2018.tde-12...
).

Mas a obra Dissertation, além disso, ocupa um lugar fundamental na história do pensamento liberal, como tentou se provar. Acredito que, hoje, o campo liberal enfrenta três desafios primordiais, a saber: como evitar que a desigualdade, em suas formas mais agudas, seja prejudicial à vida e à liberdade sem que, para tanto, se recorra à soluções autoritárias? Como garantir que o pretenso universalismo da liberdade e dos direitos humanos conviva como a diversidade contraditória de pensamentos, crenças e formas de existência (remeto aqui ao “fato de pluralismo” (RAWLS, 1996RAWLS, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996., p. 36-37))? Como, sem apelar a alguma forma de elitismo dirigista, impedir que os homens, por sua própria disposição, abdiquem da democracia em prol de regimes ditatoriais? As discussões sobre essas questões - as quais, acredito, devem passar pela renúncia a um individualismo hipertrofiado - podem ser enriquecidas se consideradas as perspectivas de Thomas Paine.

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  • ZIZEK, Slavoj. Robespierre: Virtude e Terror. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007
  • 1
    Este artigo foi produzido após uma série de atualizações, revisões e mesmo algumas correções do segundo capítulo de minha tese de doutoramento pelo Programa de pós-graduação em História Social, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, defendida em 2017 e intitulada O pensamento radical de Thomas Paine (1793-1797): artífice e obra da Revolução Francesa. Sou grato aos professores André Gustavo de Melo Araújo, José Miguel Nanni Soares, Marcos Sorrilha e Modesto Florenzano pelas leituras, sugestões e conversas a respeito deste artigo. Agradeço também os membros do Laboratório de História Social (LHS) da Universidade de Brasília, cujas discussões foram fundamentais para o refinamento deste texto. Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referidas no artigo.
  • 3
    A pompa das cortes e o orgulho dos monarcas/ Eu prezo acima de todas as coisas terrenas/ Amo meu país; o monarca/ Acima de todos os homens; seu louvor eu canto/ Desfraldam-se as bandeiras majestosas/ E que o sucesso ampare o estandarte/ De bom grado, eu baniria para longe daqui/ Os “Direitos do Homem” e “Senso Comum”/ Cobriria de vergonha o odioso reino/ Desse antagonista dos príncipes, Thomas Paine!/ Derrota e ruína se abatem sobre a causa/ Da França, sua liberdade e suas leis. Esse poema foi distribuído pelo irlandês Arthur O’Connell, em 1798. Aparentemente, ele era um repúdio a Thomas Paine. Entretanto, se o primeiro verso da primeira estrofe for intercalado com o primeiro verso da segunda estrofe, assim, como o segundo, o terceiro e assim por diante, o resultado seria um panfleto subversivo, que era o real objetivo de O’Connel. Paine, aliás, era sócio honorário da sociedade dos Irlandeses Unidos, que defendia uma reforma parlamentar (HITCHENS, 2007HITCHENS, Christopher. Os Direitos do Homem de Thomas Paine. Rio de Janeiro: Zahar, 2007).
  • 4
    As obras de Paine citadas nesse artigo foram reunidas por FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945.. Trata-se da principal coletânea das obras completas de Paine, conforme discutido em CARVALHO; FLORENZANO, 2019CARVALHO, Daniel Gomes de; FLORENZANO, Modesto. A (des)fortuna de Thomas Paine: um problema histórico e historiográfico. Tempo [online]. 2019, vol.25, n.2, pp.320-341..
  • 5
    Um dos inimigos políticos de Paine, John Adams, disse não conhecer “nenhum outro homem no mundo que tenha exercido maior influência nos últimos trinta anos do que Tom Paine” (HAWKE, 1974HAWKE, David Freeman. Paine. Nova York: Harper & Row, 1974, p. 7).
  • 6
    Em 1794, referindo-se a Paine, disse Robespierre: “o estrangeiro hipócrita, que há cinco anos proclama Paris a capital do globo, não fazia outra coisa senão traduzir, num jargão, os anátemas dos vis federalistas que destinavam Paris à destruição” (ROBESPIERRE, 1999ROBESPIERRE, Maximilien de. Discursos e Relatórios na Convenção. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 1999., p. 135).
  • 7
    A absolvição de oitenta por cento dos acusados seria prova de que “Paine, Antonelle ou Le Peletier padecem das iras da lei não por serem estrangeiros ou nobres, mas por suas opiniões girondinas ou hebertistas” (MARTIN, 2019MARTIN, Jean-Clément. La Revolución Francesa: Una Nueva Historia. Barcelona: Crítica, 2019, p. 386).
  • 8
    Hobsbawm, por conseguinte, não faz justiça ao dizer que “Tom Paine era um extremista na Grã-Bretanha e na América; mas, em Paris, ele estava entre os mais moderados dos girondinos” (HOBSBAWM, 2009HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2009., p. 11). Em contrapartida, Michelet foi mais preciso ao afirmar que Paine, embora próximo aos girondinos, não era ele próprio um deles (MICHELET, 1979MICHELET, Jules. Histoire de la Révolution française. Paris: Robert Laffont, 1979.). A ideia de um Paine jacobino, construída no século XVIII pelos seus adversários na Grã-Bretanha, como se verá, é igualmente equivocada (LEBOVITZ, 2018LEBOVITZ, Adam. An Unknown Manuscript on the Terror, Attributed to Thomas Paine. William & Mary Quarterly, v. 75, n. 4, p. 685-714, 2018.).
  • 9
    Sobre a posição niveladora, ver o clássico MACPHERSON, 1979MACPHERSON, Crawford Brough. A Teoria Política Do Individualismo Possessivo: de Hobbes até Locke. São Paulo: Paz e Terra , 1979., e, mais recentemente, TAYLOR; TAPSELL, 2013.
  • 10
    As obras completas de Foner, mesmo que apresentem lacunas, contém milhares de páginas e podem ser consideradas como bastante representativas. O que se observa, portanto, é que o uso do termo “democracia”, em Paine, é menos frequente do que se costuma supor.
  • 11
    Lounissi o chama de “o mais emblemático revolucionário atlântico do século XVIII” (LOUNISSI, 2018LOUNISSI, Carine. Thomas Paine and the French Revolution. Springer, 2018., p. 235). É notória a importância de Paine, por exemplo, livros recentes como The Expanding Blaze (ISRAEL, 2017ISRAEL, Jonathan. The Expanding Blaze: How the American Revolution Ignited the World, 1775-1848. Princeton: Princeton University Press, 2017.) ou Revolutions Without Borders (POLASKY, 2015POLASKY, Janet. Revolutions Without Borders: The Call for Liberty in the Atlantic Word. Yale University Press, 2015.). Para outros estudos recentes, ver KUKLICK, 2018 e, traduzido para a língua portuguesa, LEVIN, 2017.
  • 12
    Lanthenas, embora contrário à propriedade como critério para voto, não defendia o voto universal. Já o texto de Souhait (Opinion de Julien Souhait, représentant du peuple français, sur le droit de suffrage dans les assemblées primaires et électorales), embora impresso, nunca foi distribuído. O texto, posterior à Dissertation, surpreende não apenas pela semelhança de ideias com Paine, mas também pelo uso de expressões idênticas e paráfrases. LOUSSINI, 2016., p. 241-242.
  • 13
    Preferimos o termo “liberalismo termidoriano” em vez de “autoritarismo liberal”, utilizado por Brown para o mesmo período. A escolha visa diferenciar este de outros liberalismos também antidemocráticos, como o liberalismo doutrinário (BROWN, 2006BROWN, Howard. Ending the french Revolution: violence, justice and repression from the Terror to Napoleon. Charlosttesville: University of Virginia Press, 2006., p. 235).
  • 14
    Esta caracterização está em consonância com uma historiografia recente que busca ver o período termidoriano como não apenas um interlúdio entre o Terror e Napoleão, mas sobretudo uma época com características e problemáticas específicas. Ver STEINBERG, 2019STEINBERG, Ronen. The Afterlives of the Terror: Facing the Legacies of Mass Violence in Postrevolutionary France. Cornell University Press, 2019..
  • 15
    Sobre os antifederalistas, ver CORNELL, 2012CORNELL, Saul. The other founders: Anti-federalism and the dissenting tradition in America, 1788-1828. UNC Press Books, 2012..
  • 16
    Importante de lembrar que, na ocasião da publicação de Common Sense, John Adams disse que o panfleto de Paine é “tão democrático, sem qualquer controle ou mesmo uma tentativa de qualquer equilíbrio ou contrapeso, que devia produzir confusão e toda espécie de calamidade.” (BAILYN, 2003BAILYN, Bernard. As origens ideológicas da Revolução Americana. São Paulo: EDUSC, 2003., p. 262). Já durante a Revolução Francesa, em texto provavelmente escrito em 1791, Paine escreveu um interessante e pouco conhecido panfleto, organizado em torno de perguntas e respostas, chamado Answer to Four Questions on the Legislative and Executive Powers. A primeira das quatro perguntas (o que por si só é representativo da premência da questão) diz respeito aos possíveis abusos dos poderes executivo e legislativo. Paine, então, é taxativo ao dizer que, “se os poderes legislativos e executivos forem considerados como derivados de uma mesma fonte, a nação (...) é difícil pensar qualquer contingência na qual um poder se sobrepõe ao outro” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 522). Há, portanto, uma importante inflexão no pensamento de Paine que ocorre à luz das práticas jacobinas, qual seja, a maior importância dos pesos e contrapesos nas estruturas políticas.
  • 17
    As palavras de ordem do discurso republicano seriam: “república, autonomia, espírito cívico, recusa dos exércitos mercenários, repúdio da especialização das funções e da representação, elogio da participação ativa de todos os cidadãos na defesa e no exercício do poder, graças à renovação frequente das assembleias eletivas, à rotação das funções, à recusa dos exércitos permanentes, e às precauções multiplicadas para evitar que os governantes cedessem à corrupção” (SPITZ, 1997SPITZ, Jean-Fabien. Preface. In: POCOCK, John Grenville Agard. Le moment machiavélien: La pensée politique florentine et la tradition républicaine atlantique. Paris, PUF, 1997., p. 19). Nesse sentido, Kramnik, apontando para um resgate de Locke em fins do século XVIII diz que “a linguagem de Paine e outros radicais, não obstante todo o seu ataque à corrupção, deviam mais a Locke do que ao vocabulário do humanismo cívico” (KRAMNICK, 1982KRAMNICK, Isaac. Republican Revisionism Revisited. In: The American Historical Review, Vol. 87, No. 3. Oxford: Oxford University Press, Jun. 1982, p. 629-664. Disponível em: Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1864159 . Acesso em: 11 jan. 2020.
    http://www.jstor.org/stable/1864159...
    , pp. 629-664). A afirmação de Kramnik é passível de contestação na medida em que há uma historicidade no pensamento de Paine, conforme sugerido no início desse artigo - seu texto Common Sense, de 1776, por exemplo, retoma muitos argumentos presentes em A Tenência dos Reis e Magistrados (1649) de Milton, autor por quem Paine possui confessa admiração. Da mesma forma, a própria noção de liberdade que Paine apresenta no panfleto aqui analisado - “estar sujeito à vontade de outrem” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 579) - é patentemente republicana (SKINNER, 1999SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1999.).
  • 18
    Em outras passagens de Rights of Man, torna-se ainda mais claro como é inexato atribuir a Paine a abolição de toda a herança a cada geração: “é melhor obedecer a uma lei que má, utilizando ao mesmo tempo todos os argumentos possíveis para demonstrar seus erros e buscar sua revogação, do que a violar pela força (...) não vale a pena fazer transformações ou revoluções a não ser em prol de um grande benefício nacional” FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 351. Para Paine, todo governo hereditário é tirânico uma vez que torna a humanidade uma espécie de propriedade a ser herdade pelo monarca, violando os direitos de eleição das gerações futuras; contudo, uma vez estabelecido o governo livre sobre os princípios da natureza, todas as gerações podem fazer tábua rasa de seus governantes, mas não de suas instituições, como disse Himmelfarb.
  • 19
    No entanto, é notória sua proximidade com Wollstonecraft, a quem incentivou a publicação de A Vindication of the Rights of Woman (sobre a proximidade entre os dois, ver MOTTA, 2009MOTTA, Ivania Pocinho. A Importância de Ser Mary. São Paulo: Annablume, 2009.). Na 2ª parte de Rights of Man e em Agrarian Justice, Paine sempre inclui as mulheres em seus projetos de assistência social, o que nos permite, reproduzindo a análise de BOTTING (2014BOTTING, Elien Hunt. Thomas Paine amidst the Early feminists. Selected Writings of Thomas Paine. Yale University Press, 2014, pp. 630-655. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/20549932/Thomas_Paine_amidst_the_Early_Feminists . Acesso em: 20 jan. 2020.
    https://www.academia.edu/20549932/Thomas...
    ), pensar em uma crescente adesão de Paine em relação aos direitos da mulher.
  • 20
    Interessante que Burke já notara a contradição entre proclamar os direitos do homem e, em seguida, instituir o voto censitário, embora, ao contrário de Paine, o objetivo da crítica fosse desmerecer a Revolução, e não aprofundá-la: “os senhores o obrigam [o votante] a comprar um direito cujo exercício disseram-lhe ser inerente à natureza (...) Desde logo, forma-se uma aristocracia tirânica contra aqueles que não podem atender às exigências de mercado” (BURKE, 2014BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. São Paulo: Edipro, 2014, p. 188).
  • 21
    Indissociável da ideia de direitos, a democracia não se reduz ao governo da maioria. Trata-se, assim, de uma concepção muito próxima daquela presente em TOURAINE, 1996TOURAINE, Alain. O Que é Democracia? Petrópolis: Vozes, 1996.. Ao longo de seu livro o autor apresenta como condições para uma sociedade democrática moderna a representatividade dos governantes, a prática da cidadania e a existência de limites para o governo. Touraine, contudo, não cita Paine.
  • 22
    Termo utilizado no período revolucionário para referir ao que hoje chamamos reforma agrária. Para uma excelente análise da questão agrária na política revolucionária francesa, ver SAES, 2008SAES, Laurent Azevedo Marques. A propriedade sob a República Jacobina: o impacto da legislação revolucionárias sobre a questão fundiária. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008..
  • 23
    Portanto, embora defensor da propriedade privada e do livre comércio, Paine nunca foi um defensor de um laissez-faire dogmático ou liberista, para referirmo-nos a conhecida distinção de Benedetto Croce. Vale lembrar que a estatofobia, hoje associada ao liberalismo, não é um traço do pensamento clássico. Adam Smith, para citar um exemplo famoso, “apoiava a razão proporcional e maiores impostos sobre supérfluos do que sobre itens básicos” (HIMMELFARB, 2011HIMMELFARB, Gertrude. Os caminhos para a modernidade: os iluminismos britânico, francês e americano. São Paulo: É Realizações, 2011., p. 84). Mesmo Guizot qualificava como perigoso e vago o axioma laissez-faire (ROSANVALLON, 2015ROSANVALLON, Pierre. El momento Guizot: el liberalismo doctrinario entre la Restauración y la Revolución de 1848/Le moment Guizot. Buenos Aires: Biblos, 2015. ). Por isso, a noção de uma renda universal em Paine, embora vista frequentemente como mais “radical” que a posição de outros autores, não o aproxima de Babeuf, por exemplo. Uma evidência disso foi o fato de Spence, em seu Rights of Infants, de 1797, chama de “miseráveis” os 10% de impostos propostos por Paine, pois nada justifica que os outros 90% permaneçam nas mãos dos proprietários. Sobre o debate entre Paine e Spence, ver MARANGOS, 2005MARANGOS, John. Thomas Paine (1737-1809) and Thomas Spence (1750-1814) on Basic Income Guarantee. New York: USBIG Discussion Paper, No. 103, February 2005..
  • 24
    A contraposição entre liberal e servil aparece em um poema de Don Eugenio Taipa, em seus Ensayos Satíricos, sob o título de La muerte de la inquisición. Ver: LLORÉNS,1958LLORÉNS, Vicente. Sobre la aparición de liberal. Nueva Revista de Filología Hispánica. Año 12, No. 1, 1958, p. 53-58., pp. 53-58; GRASES, 1961GRASES, Pedro. Algo más sobre liberal. Nueva Revista de Filología Hispánica. Año 15, No. 3/4, 1961., pp. 539-541. Nos textos acima, os historiadores reconstroem os vários momentos em que os deputados - em especial, Canga-Argüelles - utilizam o termo nas cortes.
  • 25
    Ver MARICHAL, 1955MARICHAL, Juan. The French Revolution background in the Spanish semantic change of liberal. Yearbook of the American Philosophical Society, 1955., 291-293; e, mais recentemente, BUSAALL, 2012BUSAALL, Jean-Baptiste. Le spectre du jacobinisme: l’expérience constitutionnelle française et le premier libéralisme espagnol. Casa de Velázquez, 2012..
  • 26
    Quando jovem, Lord Byron (1788-1824) definia liberalismo como a conduta de um gentleman; quando adulto, referia-se a sua ação política na Carbonária da Itália. A mudança é evidência da própria transformação de sentido da palavra. Sobre tal mudança, ver GROSS, 2001GROSS, Jonathan David. Byron: The Erotic Liberal. Rowman & Littlefield, 2001..
  • 27
    Daniel Klein, com auxílio do big data, mostrou como, em língua inglesa, a palavra “liberal” conhece uma dupla transformação nas publicações de língua inglesa na segunda metade do século XVIII: transformação quantitativa, dado que a palavra aparece com muito mais frequência a partir de 1760; transformação qualitativa, dado que ela começa a aparecer de forma composta (“liberal policy,” “liberal plan”, “liberal system”, “liberal views”, “liberal ideas” e “liberal principles”) e associada a ideia de livre ação, livre comércio e não intervenção. A mudança, claro, não é drástica, e, como se viu na obra de Paine, o termo apresenta flagrante polissemia. Por exemplo, Dugald Stewart, na década de 1790, apresentava Adam Smith como representante do liberal system e como alguém que pensava a “liberdade de comércio” como distinta da “liberdade política” (esta, para ele, típica da Revolução Francesa). Ver ROTHSCHILD, 2003ROTHSCHILD, Emma. Sentimentos econômicos: Adam Smith, Condorcet, e o iluminismo. Record, 2003.; KLEIN, 2014KLEIN, Daniel. The origin of “Liberalism”. The Atlantic, 2014. Disponível em Disponível em https://amp.theatlantic.com/amp/article/283780/ . Acesso em: 18 set. 2020.
    https://amp.theatlantic.com/amp/article/...
    ; e o artigo de ROBERTSON em CLARK, 2003CLARK, Henry. Commerce, culture, and liberty: readings on capitalism before Adam Smith. Liberty Fund Inc., 2003..
  • 28
    Penso que as observações de Elias Paltí (2020PALTI, Elías J. O tempo da política: O século XIX reconsiderado. Autêntica Editora, 2020.) nos três primeiros capítulos de O Tempo da Política sobre a Espanha e a América Latina sejam válidas também para a presente discussão. De um ponto de vista metodológico, me parece ser uma armadilha pensar o uso dos termos “liberal” e “democracia” a partir de filtros como “tradição” e “modernidade” ou, pior, “ruptura” e “continuidade”. O autor afirma que, no caso da política espanhola, a “anfibiologia da linguagem” (p. 68) relaciona-se a “consciência ou sensação generalizada de se enfrentar a um fenômeno anômalo, para o qual não havia categorias que pudessem designá-lo apropriadamente” (p. 78), de onde o uso de elementos da segunda escolástica para a defesa do que seria, na prática, sua negação. Nesse sentido, é preciso pensar a Era das Revoluções Democráticas como, fundamentalmente, um período de experimentação e acentuada consciência de novidade, quando a linguagem e seus usos eram motivos centrais de preocupação, de modo que os velhos nomes não mais conseguiam adaptar-se às novas realidades - e essa parece a melhor chave para a compreensão das ambiguidades e polissemias inerentes ao debate político do período.
  • 29
    Conforme busquei sintetizar, no caso atlântico e na chave da divulgação científica, em CARVALHO, 2020CARVALHO, Daniel Gomes de. O que é o liberalismo? O que significa ser liberal? (Artigo). 2020. In: Café História - história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-que-e-o-liberalismo-o-que-significa-ser-liberal.
    https://www.cafehistoria.com.br/o-que-e-...
    .
  • 30
    Refiro-me a noção de “família de semelhanças”, Wittgenstein, 2012WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Editora Vozes, , 2012., §65-71.
  • 31
    Para Smith - um dos poucos autores diretamente elogiados por Paine, em Rights of Man - o Estado sustenta-se a partir de suas funções militares-coercitivas e do provimento de obras fora do interesse da iniciativa privada (SMITH, 1983SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.). Paine, no panfleto Common Sense (1776), expressou com clareza a noção de separação entre governo e sociedade: “a sociedade é produzida pelas nossas necessidades, e o governo, pela nossa maldade” (FONER, 1945FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine. Nova Iorque: The Citadel Press, 1945., p. 4-5). É preciso notar, contudo, a distância entre a noção de Estado para Smith (que envolvia o governo das paróquias, as corporações de ofício e as igrejas estabelecidas, como analisado em ROTHSCHILD, 2003ROTHSCHILD, Emma. Sentimentos econômicos: Adam Smith, Condorcet, e o iluminismo. Record, 2003.) e, a noção de Estado em Paine no texto analisado neste artigo, o qual foi escrito em um período posterior à Revolução Francesa.
  • 32
    No caso de Paine, o fato de ele muito raramente citar suas fontes cria uma dificuldade grande para os leitores. É possível encontrar em seus textos ecos espinozistas (conforme tratamos com maior precisão em CARVAHO, 2017CARVALHO, Daniel Gomes de. O pensamento radical de Thomas Paine (1793-1797): artífice e obra da Revolução Francesa. 2017. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. doi: 10.11606/T.8.2018.tde-12062018-135137. Acesso em: 2020-02-15.
    https://doi.org/10.11606/T.8.2018.tde-12...
    ), elementos associados à tradição liberal, pontos de vista republicanos e uma defesa aguerrida da democracia. Por isso, ninguém menos que Pocock afirmou: “é difícil encaixar Paine em alguma categoria” (1993POCOCK, John Greenville Agard.The Varieties of British Political Thought, 1500-1800. Cambridge: Cambridge University Press, 1993., p. 279).
  • 33
    O uso da palavra democracia em sentido positivo torna-se hegemônico apenas no século XX (LASSWELL; LERNER; POOL, 1952LASSWELL, Harold, LERNER, Daniel, POOL, Ithiel DeSola. Symbols of democracy. Stanford, 1952.).
  • 34
    As informações sobre a palavra democracia dos próximos dois parágrafos foram retiradas do estudo de PALMER, 1953PALMER, Robert Roswell. Notes on the Use of the Word “Democracy” 1789-1799. Political Science Quarterly, v. 68, n. 2, p. 203-226, 1953.. As conclusões do texto de Palmer foram reforçadas - praticamente, aliás, nos mesmos termos - por DUNN, 2005DUNN, John. Democracy: A history. Atlantic Monthly Press, 2005., p. 116.
  • 35
    Há uma percepção dos próprios protagonistas, portanto, de que a Era das Revoluções favoreceria a ideia de igualdade, esta entendida no sentido Tocquevilleano, isto é, como uma pulsão que arrasta as sociedades modernas e cujo resultado é incerto - não é a toa que Robespierre descrevia a Revolução como uma “torrente”. Nesse sentido, a democracia não se reduz a um tipo de governo, mas comporta um tipo de sociedade em que impera a igualdade cujo sentido, claro, é alvo de disputas. Palmer, considera a democracia como baseada na rejeição da “ideia de que qualquer pessoa possa exercer autoridade coercitiva simplesmente por seu próprio direito, pelo direito advindo de seu status, pelo direito ‘histórico’ ou por qualquer antiga forma de costume ou herança” (2014, p. 6).
  • 36
    Sobre os doutrinários, ver CRAIUTU, 2003CRAIUTU, Aurelian. Liberalism under siege: the political thought of the French doctrinaires. Lexington Books, 2003..
  • 37
    São muitas as possíveis aproximações entre as obras religiosas de Paine e uma tradição espinozista; é sabido, aliás, que Paine leu Espinosa no processo de confecção de The Age of Reason (ROBERT, 1983ROBERT, Carolin. The Lifelong Education of Thomas Paine. PAPS 127, 1983.).
  • 38
    Para uma excelente crítica às ideias de Israel, em especial a suposta retomada de Espinosa, ver o sétimo capítulo de LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des lumières-Ambivalences de la modernité. Média Diffusion, 2019..
  • 39
    A crítica de Rousseau como o ponto frágil da conceituação de Israel é comum. Sobre isso, ver o debate apresentado em ISRAEL, 2016ISRAEL, Jonathan. Rousseau, Diderot, and the Radical Enlightenment: A Reply to Helena Rosenblatt and Joanna Stalnaker. Journal of the History of Ideas, v. 77, n. 4, p. 649-677, 2016..
  • 40
    Sobre essa rejeição, ver a introdução de ISRAEL, 2017ISRAEL, Jonathan. The Expanding Blaze: How the American Revolution Ignited the World, 1775-1848. Princeton: Princeton University Press, 2017..
  • 41
    Em língua portuguesa, é evidente a ambiguidade do termo Common Sense, que pode ser ou não pejorativo, a depender do uso de Bom Senso ou Senso Comum. Tal ambiguidade, contudo, existia também no período em questão. Para essa discussão, ver ROSENFELD, 2008ROSENFELD, Sophia. Tom Paine’s Common Sense and Ours. The William and Mary Quarterly, v. 65, n. 4, p. 633-668, 2008..

Editado por

Editores Responsáveis

Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2020
  • Aceito
    08 Dez 2020
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