Acessibilidade / Reportar erro

QUANDO A MEMÓRIA É O POMO DA DISCÓRDIA: O 13 DE MAIO DE 2020 E A FUNDAÇÃO PALMARES1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Os autores participaram das diversas fases da pesquisa e na elaboração do artigo.

WHEN MEMORY IS THE APPLE OF DISCORD: MAY 13, 2020, AND THE PALMARES FOUNDATION

Resumo

Neste artigo, refletimos sobre as disputas políticas pela memória da escravidão e a abolição desta no Brasil por meio da análise de publicações realizadas no site e nas redes sociais oficiais da Fundação Cultural Palmares (FCP) em maio de 2020. Nesses textos, a FCP, sob a presidência de Sérgio Camargo, busca valorizar o legado da Princesa Isabel como artífice da abolição e denunciar o caráter mitológico de Zumbi dos Palmares. A consolidação dos “lugares de memória” (NORA, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.) não é consequência natural ou inexorável dos processos históricos, mas sim o resultado de embates e disputas sociais e simbólicas (LE GOFF, 1990LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi Memória-História. Campinas: Editora Unicamp, 1990.). Assim, este artigo tem como objetivo investigar os elementos simbólicos e históricos mobilizados pela atual gestão da Fundação Cultural Palmares, no sentido de desqualificar e desmontar as políticas públicas de igualdade racial calcadas na reconstrução de símbolos, heróis e efemérides da negritude que surgiram a partir da redemocratização do país na década de 1980.

Palavras-chave
Relações raciais; memória; abolição; Fundação Cultural Palmares; Zumbi dos Palmares

Abstract

This paper reflects on the political disputes around the memory of slavery and its abolition in Brazil, analyzing the publications made on the website and the official social media of the Fundação Cultural Palmares (FCP) in May 2020. In these texts, the FCP, led by Sérgio Camargo, seeks to reiterate the legacy of Princess Isabel as the author of abolition and denounce the mythological character of Zumbi dos Palmares. The consolidation of “places of memory” (NORA, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.) is neither a natural nor an inexorable consequence of historical processes, but the result of social and symbolic conflicts and disputes (LE GOFF, 1990LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi Memória-História. Campinas: Editora Unicamp, 1990.). In this regard, this article investigates the symbolic and historical elements mobilized by the current FCP management to disqualify and dismantle the recent racial equality policies based on the reconstruction of symbols, heroes, and ephemeris of Blackness which emerged following redemocratization in the 1980s.

Keywords
Racial relations; memory; abolition; Fundação Cultural Palmares; Zumbi dos Palmares

A Fundação Cultural Palmares (FCP) vem apresentando um projeto revisionista, capitaneado pelo presidente Sérgio Camargo desde a sua posse. O que parece estar em curso no âmbito desta instituição federal, responsável pela valorização cultural da população negra, é uma tentativa de redefinir os termos oficiais da discussão racial no país. Filho do eminente escritor e militante do movimento social negro Oswaldo de Camargo, o jornalista negro Sérgio Nascimento de Camargo foi nomeado presidente da FCP por Jair Bolsonaro em novembro de 2019, durante a gestão de Roberto Alvim, ex-secretário especial de Cultura, que pouco depois foi afastado do cargo em razão de ter proferido um discurso com referenciais nazistas. No entanto, Sérgio Camargo só pôde assumir efetivamente o cargo em fevereiro de 2020, após embates judiciais envolvendo a sua nomeação. As manifestações contrárias à posse de Camargo se deram por suas declarações ofensivas ao movimento negro, que desqualificaram sua agenda e seus símbolos. Tais declarações, após a posse de Camargo, transformaram-se em ações efetivas, por exemplo, por meio da publicação de artigos no site da entidade em maio de 2020 que desmerecem a figura de Zumbi dos Palmares e promovem a revalorização do papel desempenhado pela Princesa Isabel no processo de Abolição da escravidão.

Abandona-se as narrativas forjadas por intelectuais próximos aos movimentos sociais negros, contempladas, em certa medida, pelos governos brasileiros pós-redemocratização, por uma versão mais afinada com o discurso defendido pelo governo Bolsonaro com relação à nacionalidade, isto é, que nega a existência do racismo estrutural no país, versão que fora, sobretudo durante a vigência da ditadura militar (1964-1985), o discurso oficial do Estado brasileiro. Esse retorno ao passado parece ser mais um capítulo da “guerra ideológica” que membros importantes deste governo desejam promover contra o que eles denominam de “esquerdismos”, que incluem as demandas da luta antirracista.

Neste ar tigo, buscaremos desenvolver a ideia de que, mais que idiossincrasias de personagens grotescos, como por vezes o presidente da FCP é retratado por seus críticos, estamos assistindo a uma estratégia oficial de revisão da história do país com vistas a não apenas desmoralizar segmentos sociais envolvidos com as lutas antirracistas, mas também a recriar uma versão da História e da identidade nacional que se coaduna com os discursos do governo sobre uma suposta harmonia racial no país. Essa versão, como se pretende discutir, desmobiliza e desqualifica a agenda política reparatória dos movimentos sociais de cunho étnico e racial dos últimos quarenta anos, com a qual a Fundação Palmares esteve, até então, historicamente comprometida.

A atuação da Fundação Cultural Palmares perpassa pela consolidação da Nova República, visto que a entidade foi criada pelo governo José Sarney em 1988, no bojo da redemocratização, reforçando e simbolizando os ideais da Constituição recém promulgada. A partir da atuação de intelectuais e militantes negros e negras, com sua concreta aproximação aos partidos políticos e instituições governamentais e não governamentais, observa-se um adensamento das discussões públicas em torno da desigualdade racial e da necessidade de ações afirmativas para a inserção social da população negra (NERIS, 2018NERIS, Natália. A voz e a palavra do movimento negro na Constituinte de 1988. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2018.). São exemplos deste processo: o reconhecimento público da existência do racismo no país por parte do governo Fernando Henrique Cardoso; a participação do Brasil na Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em Durban, em 2001; a implementação de políticas públicas efetivas de promoção da igualdade racial a partir dos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff no início do século XXI.

A chegada ao poder do projeto político conservador representado por Jair Bolsonaro promoveu um corte nesse processo. A ênfase governamental passou a ser de um retorno aos discursos oficiais da época do Regime Militar, em que um patriotismo acrítico e a ideia de uma integração nacional sem conflitos era valorizada. Assim, pretendemos oferecer um panorama dos termos desses discursos e levantar hipóteses em torno das intenções políticas do governo Bolsonaro.

De forma concreta, analisaremos aqui dois corpus documentais. O primeiro deles é constituído de 43 artigos institucionais publicados no sítio eletrônico da FCP entre 2006 e 2019, anteriores à gestão de Sérgio Camargo. Nesses artigos, investigamos em quais termos se apresentam as celebrações do 13 de maio e do 20 de novembro, buscando compreender de que maneira as duas efemérides vinham sendo tratadas pela Fundação no período recortado. No segundo grupo de documentos, analisaremos seis artigos publicados no sítio eletrônico oficial da FCP em torno da comemoração, em 2020, da data da lei de abolição da escravidão no Brasil sob a gestão Camargo-Bolsonaro. Nesses artigos, buscamos também investigar os termos pelos quais se descreve a efeméride do Dia da Consciência Negra.

Tais publicações geraram um intenso debate. Para além da discussão midiática, ações populares foram movidas na Justiça, o que resultou na ordem judicial de retirada de três artigos do ar. Nós preservamos os textos antes de eles serem excluídos do sítio oficial da FCP, bem como consideramos o conteúdo dos processos judiciais para a construção deste artigo. Vale acrescentar, contudo, que dois dos textos excluídos por decisão judicial do site da FCP foram posteriormente publicados em sites de movimentos de extrema-direita, onde permanecem acessíveis ao público sem quaisquer alterações. Um deles, de Mayalu Félix, não se encontra mais disponível na web4 4 Considerando a exclusão deste texto do site após decisão judicial, os autores se colocam à disposição para enviá-lo a quem interessar possa. . Por meio da Tabela 1, descrevemos melhor o escopo desse segundo corpus documental:

Tabela 1
Artigos publicados pela FCP em maio e junho de 2020

Considerando esse escopo documental, nosso objetivo é apresentar uma análise dos mecanismos discursivos adotados pela Fundação Cultural Palmares sob o governo Bolsonaro em torno da questão racial no Brasil, tendo por base a narrativa oficial da abolição da escravidão e da data comemorativa de 13 de maio. A investigação dos termos dessa nova/velha narrativa aponta que este governo se contrapõe ao processo histórico de implementação de direitos sociais da população negra por meio da manipulação da memória histórica oficialmente reconhecida desde a redemocratização.

Inicialmente, discutiremos o papel das memórias coletivas na definição das identidades nacionais e do seu agenciamento nas lutas políticas. Em seguida, tentaremos demonstrar como a FCP teve um papel fundamental na valorização de uma narrativa histórica em que negros e negras eram vistos como sujeitos ativos, copartícipes – ainda que, inicialmente, na condição de escravizados – da construção do país.

Por fim, traremos à tona as modificações no discurso da Fundação Palmares no governo Bolsonaro. Em todo o percurso, realizamos uma análise da documentação próxima à análise de discurso na sua versão crítica (FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2001.), buscando situar as fontes em seus contextos políticos e ideológicos. Neste sentido, embora a interpretação aqui apresentada não tenha a pretensão de ser exaustiva, buscaremos pôr em relevo não apenas as polêmicas levantadas, mas também os significados delas para um debate mais amplo sobre a questão racial no Brasil.

A memória como disputa pelas narrativas legítimas do mundo social

Não é de hoje que o tema da memória é visto como fundamental para a construção das identidades individuais e coletivas. Maurice Halbwachs (1990 [1950])HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990 [1950]. foi um pioneiro ao postular, na esteira da obra do filósofo Henri Bergson, que a memória está mais relacionada com o presente do que com o passado, visto que é um meio de manter vivos certos sentimentos sociais, valores e eventos, a exemplo do sentimento religioso cristão, que Halbwachs estudou em alguns de seus textos. Para o sociólogo, isso significa, ainda, que a memória é um constructo mais coletivo que individual. Fiel a seu mestre, Émile Durkheim, Halbwachs considerava que as memórias individuais eram tributárias do modo como os grupos estabelecem suas prioridades em relação ao passado, reforçando algumas lembranças e apagando outras.

A construção da memória social foi também objeto de reflexão de historiadores como Jacques Le Goff (1990, p. 46)LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi Memória-História. Campinas: Editora Unicamp, 1990., para quem “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva”. Para este autor, “a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um obje-tivo de poder” (LE GOFF, 1990, p. 46LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi Memória-História. Campinas: Editora Unicamp, 1990.). Por isso, é importante termos em mente que diversos setores sociais, governos e grupos mobilizam a memória coletiva, o que revela estratégias de luta por espaços de poder e pela consolidação de objetivos políticos.

Uma das formas pelas quais historicamente se disputa a memória coletiva é a construção de datas comemorativas, nomeação e celebração de logradouros ou de figuras tidas como heroicas ou exemplares. De acordo com Pierre Nora (1993)NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993., essas estratégias revelam a construção dos assim chamados lugares de memória, arquivos criados intencionalmente com a finalidade de consolidar e legitimar certas intenções políticas e práticas sociais.

Um exemplo de como a construção da memória coletiva é um eficiente mecanismo de disputa política nos é apresentado por Achille Mbembe (2014)MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014., que menciona as comemorações públicas realizadas no continente africano durante a colonização. Essas celebrações eram, para o autor, momentos de justificativa, perpetuação e celebração da experiência colonial por meio da memória coletiva de heróis, datas e eventos que exaltavam a empreitada colonizadora e suas supostas benesses para os povos colonizados. Em outras palavras, seriam oportunidades coletivas de exaltação da potência dos colonizadores que reafirmavam a impotência e a sub-humanidade dos colonizados, que deveriam se colocar em posição de agradecimento pela dádiva da civilização recebida (MBEMBE, 2014MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014.).

A despeito da consistência das memórias coletivas construídas pelo colonialismo, não somente na África, mas também nas Américas, há registros de uma resistência popular profunda a este processo. Iniciativas populares buscaram, ao longo de toda a história do Brasil, construir outros arquivos e lugares de memória para si por meio de práticas como a celebração de heróis e eventos próprios, ou mesmo inserindo, dentro das ocasiões oficiais, significados subversivos e questionadores da ordem estabelecida. Desse modo, a disputa pela memória também se realiza por setores subalternizados e, a partir deles, afirma outras perspectivas de poder, cultura e sociabilidade (SIMAS; RUFINO, 2018SIMAS, Luiz Antonio & RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.).

Vistas muitas vezes com condescendência pelos poderes estabelecidos, essas manifestações populares representavam – e ainda representam – potentes oportunidades de reafirmação da vida e da humanidade dos corpos até então tidos como mercadoria, invertendo a lógica simbólica da dominação e propondo novos caminhos por meio da reconstrução contínua da memória coletiva. Nesse sentido, ganha corpo a narrativa em torno do herói palmarino Zumbi dos Palmares, que caminha de forma tênue entre o passado colonial histórico e a construção mítica. Flávio Gomes define os contornos da discussão da seguinte forma:

Devemos nos desvencilhar das narrativas romantizadas, sem abrir mão das invenções da memória, que são também processos históricos. É possível reconhecê-las, localizar escolhas e contextos. Para cada Palmares e para cada Zumbi do passado, há muitos outros que foram (e continuam sendo) reconstruídos (GOMES, 2011, p. 8GOMES, Flávio dos Santos. De olho em Zumbi dos Palmares: histórias, símbolos e memória social. São Paulo: Claro Enigma, 2011.).

O processo de construção de discursos nacionais é, em grande medida, o processo de construção de uma memória oficial pelos Estados ou por grupos que reivindicam autonomia em relação a outros Estados, seja como tradição inventada (HOBSBAWM; RANGER, 1997HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1997.), seja como comunidade imaginada (ANDERSON, 2008ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.). Assim, após a independência, era preciso imaginar/inventar o Brasil que emergia após séculos de colonização portuguesa, mantendo intactos os pilares de sua construção: a monarquia e a escravidão africana. A nova nação resultava de um processo conservador de emancipação e demandava sua legitimidade perante outros Estados nacionais e sua própria população: “a semente da ‘nacionalidade’ nada teria de revolucionário: a monarquia, a continuidade da ordem existente eram as grandes preocupações dos homens que forjaram a transição para o império” (DIAS, 1972, p. 180DIAS, Maria Odila Silva. A interiorização da metrópole (1808-1853). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972.).

Podemos, então, compreender a construção de mecanismos efetivos de silenciamento das experiências negras, como o ocultamento das memórias de lutas negras e indígenas na produção dos institutos históricos e geográficos e nos debates intelectuais travados na imprensa e nas academias do Império. Poucas linhas foram gastas pelas elites nacionais para tratar do percurso histórico dessas parcelas indesejadas da população do Império:

Malgrado os constantes e variados registros indicando a presença maciça dos africanos e de seus descendentes na sociedade brasileira e o enorme papel que aí desempenhavam, as elites letradas do Oitocentos não encontraram nada de muito positivo a dizer sobre eles, o que denota a imensa dificuldade que enfrentaram para encaixá-los na dita sociedade civilizada, isto é, na sociedade europeizada que se tentava implantar nos trópicos. (…) Fontes de tantos males, os negros e mulatos naturalmente não figuravam nos mitos fundadores da nação que emergia (FRANÇA; FERREIRA, 2012, p. 61-62FRANÇA, Jean Marcel Carvalho & FERREIRA, Ricardo Alexandre. Três vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro. São Paulo: Três Estrelas, 2012.).

A ideia de que a população não-branca representava uma ameaça ao bom andamento da nação estava amparada, à época, por um conjunto de teorias tidas como científicas. A adesão a este corpo teórico levou à formulação de políticas de branqueamento para tentar minimizar “o caráter racialmente diverso, miscigenado e, portanto, impuro de nosso povo” (CAMPOS et al., 2018, p. 204CAMPOS, Luiz Augusto et al. Os estudos sobre relações raciais no Brasil: uma análise da produção recente (1994-2013). In: MICELI, Sergio & MARTINS, Carlos Benedito (org.). Sociologia brasileira hoje II. Cotia: Ateliê Editorial, 2018, p. 199-234.). A construção da memória nacional pelas elites imperiais se fez de forma consonante a essas teorias: a exaltação de datas, locais e personalidades atreladas à herança europeia foram a tônica da produção intelectual de memória na época oitocentista.

Seguindo os parâmetros do racismo científico, com o avançar do século XIX e a desestruturação paulatina do sistema escravista nas Américas, foram construídas as narrativas nacionais em torno da abolição e do processo geral de libertação dos escravizados no Brasil – desde as primeiras leis contra o tráfico, em 1831 e 1850, até a célebre Lei Áurea. Ganha corpo, aqui, a narrativa cristalizada pelas elites de que a abolição teria sido um ato benevolente e unilateral da Princesa Regente:

A comemoração da Abolição pela elite imperial minimizou a importância do movimento abolicionista e reiterou o mito fundacional do Império, uma comunidade imaginada que expurgou o africano. O herói do 13 de maio não ganhou a cor de Rebouças, Patrocínio, Vicente de Sousa, Luís Gama (…) erigiu-se uma simbologia da Abolição que empurrou o movimento e mais ainda os escravos para o fundo da cena, enquanto a princesa se transfigurava em “Redentora” (ALONSO, 2015, p. 369ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.).

Os contornos do cenário recentemente recuperado pela Fundação Cultural Palmares para celebrar o dia 13 de maio começam, assim, a ser descortinados. Para além de um retorno aos ideais nacionais do período da ditadura militar, como procuraremos demonstrar, estão também presentes elementos próprios da dinâmica política do Brasil Império, período em que foram forjados os ideais primeiros da nacionalidade com base em um ideário francamente racista que, ao contrário dos tempos da princesa, não se ampara mais em um discurso considerado válido cientificamente.

Com a queda do Império – atrelada, em parte significativa, ao desfecho do dilema em torno da escravidão no país –, observamos a formação do ideário nacional republicano, que traz consigo novos lugares de memória e novas disputas em torno desses arquivos (CARVALHO, 1990CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.). Na Primeira República, as elites proprietárias mantiveram o olhar embranquecido e embranquecedor do Estado sobre a nação, formulando políticas eugênicas e de controle, como a supressão dos registros de raça e cor da documentação pública, o encarceramento, a higienização e a criminalização das práticas das comunidades negras (GOMES; DOMINGUES, 2014GOMES, Flávio & DOMINGUES, Petrônio (org.). Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2014.; MATTOS, 2013MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil século XIX. Campinas: Editora Unicamp, 2013.).

Esse processo sofre uma inflexão nas décadas de 1920 e 1930, quando os movimentos modernistas e o governo Vargas procuram dar à nacionalidade brasileira novas características: a inserção da população negra na identidade nacional se dá por medidas como a exaltação do samba, até então considerado uma prática criminosa de vadiagem, e a oficialização da capoeira – até então também criminalizada – como modalidade esportiva nacional. Dessa forma, é importante notar que os elementos culturais de matriz africana são nacionalizados e, de certa forma, apropriados: “tudo leva a crer que, a partir dos anos 1930, no discurso oficial ‘o mestiço vira nacional’, ao lado de um processo de desafricanização de vários elementos culturais, simbolicamente clareados” (SCHWARCZ, 2012, p. 58SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.).

Começa, então, a ser construída uma potente descrição da nação brasileira como uma democracia racial, expressão que vale um olhar mais cuidadoso. Comumente associada à obra de Gilberto Freyre, a expressão tem um complexo processo de composição que transcende a escrita do sociólogo pernambucano. Guimarães (2001)GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 61, p. 147-162, 2001. demonstra que a expressão frequentava também círculos da intelectualidade negra, como a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro (TEN), que defendiam, cada qual à sua época, a integração da população neg ra na sociedade moder na. Esta integração foi, muitas vezes, associada à ideia de uma segunda abolição, ou seja, uma crítica ao modo como foi feita a transição para o trabalho livre no Brasil, que não promoveu a inserção social efetiva dos egressos do cativeiro: “É justamente em torno da utopia de uma segunda Abolição, na qual se realizaria plenamente a democracia racial, que se dá a mobilização política dos negros” (GUIMARÃES, 2001, p. 151GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 61, p. 147-162, 2001.).

Com a redemocratização do Brasil após 1945 e o aporte de organizações multilaterais pós-guerra, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o debate em torno da nacionalidade e da raça se torna mais complexo no Brasil. Estudos pioneiros de Roger Bastide e Florestan Fernandes (1955)BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan (ed.). Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo: Unesco; Anhembi, 1955. apontam o preconceito racial como o organizador das relações sociais no país, como uma espécie de excrescência da experiência colonial escravista. Na intelectualidade negra, autores como Abdias do Nascimento (1982 [1968])NASCIMENTO, Abdias. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982 [1968]. e Guerreiro Ramos (1995 [1955])RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995 [1955]. também apontavam a necessidade de desmascarar o chamado mito da democracia racial brasileira.

Simultaneamente à discussão interna do assunto, ganha ênfase internacional a noção apregoada pela Primeira Declaração sobre Raça da Unesco de que o termo raça deveria ser banido para que a humanidade não voltasse a experimentar os horrores do racismo, como visto nas grandes guerras mundiais (GUIMARÃES, 2016GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Formações nacionais de classe e raça. Tempo Social, São Paulo, v. 28, n. 2, p. 161-182, 2016.). Este é um importante ponto, pois foi absorvido pelo discurso oficial brasileiro, já afeito à noção de que aqui haveria uma suposta democracia racial. Mencionar a categoria raça passava a ser um tabu; bastava, portanto, não se falar mais no assunto.

Essa interdição esteve presente ao longo da ditadura militar (1964-1985), esta francamente avessa ao uso da raça como categoria válida para a nacionalidade brasileira. Nessa lógica, quaisquer reivindicações de identidade racial passam a ser consideradas práticas racistas e antipatrióticas: manifestações culturais afirmativas da cultura negra foram acompanhadas de perto pelas autoridades, tendo por vezes suas atividades censuradas e seus líderes presos (CAMPOS, 2006CAMPOS, Deivison Moacir C. O Grupo Palmares (1971-1978): um movimento negro de subversão e resistência pela construção de um novo espaço social e simbólico. Dissertação de mestrado em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.).

A ditadura militar considerava que quaisquer proposições contrárias aos seus desígnios eram uma tentativa de dividir a nação, pois esta estaria identificada ao regime. O nacionalismo daquele período trazia o culto conservador da bandeira nacional e suas cores associado à manutenção das condições socioeconômicas herdadas do projeto colonial e à celebração acrítica da integração nacional (CHAUÍ, 2001CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.). Assim, ao longo do regime militar, a ideia de que só haveria um povo, um governo e um único propósito nacional foi propagada por todos os meios de que dispôs o Estado, legal ou ilegalmente.

A partir das últimas décadas do século XX, diversos grupos passaram a contestar as histórias oficiais vigentes, reivindicando novas narrativas e memórias. Com efeito, o processo de democratização de diversos países a partir dos anos 1970 possibilitou a emergência na cena política de grupos até então marginalizados do poder – negros, mulheres, gays etc. Esses grupos seriam os vetores de reivindicações que buscaram modificar a memória histórica nacional, recolocando o peso do colonialismo e da repressão dos grupos subalternos no processo de constituição da nação.

Um exemplo disso é a rearticulação de movimentos sociais negros em diversos estados do país – processo que culminaria, em 1978, na fundação do Movimento Negro Unificado (MNU). Aqui, destacamos a ação do Grupo Palmares, do Rio Grande do Sul, que reivindicou, pela primeira vez, a substituição da comemoração do dia 13 de maio pela do dia 20 de novembro, construindo, a partir daí, um novo lugar de memória, cuja disputa prossegue até os dias atuais. A nova data comemorativa significava a tomada de consciência, por parte da população negra, daquilo que a oprimia e não se podia nomear, em lugar da celebração da abolição como uma dádiva da princesa “redentora” (CAMPOS, 2006CAMPOS, Deivison Moacir C. O Grupo Palmares (1971-1978): um movimento negro de subversão e resistência pela construção de um novo espaço social e simbólico. Dissertação de mestrado em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.).

Com o lento processo de abertura da ditadura militar e o desafio da redemocratização ao longo da década de 1980, o que se observa é a oportunidade histórica de disputar, mais uma vez, os valores da nacionalidade brasileira por meio da constituição de diversos arquivos de memória. Desde então, a construção da Nova República se deu pari passu com setores do movimento social negro, o que levou ao atendimento de pautas significativas do MNU, entre elas a promoção de políticas públicas de igualdade racial, como a reserva de vagas para negros e negras em universidades e concursos públicos (RIBEIRO, 2013RIBEIRO, Matilde. Institucionalização das políticas de promoção da igualdade racial no Brasil: percursos e estratégias: 1986 a 2010. Tese de doutorado em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.).

Para além da movimentação social, o final do século XX também apresenta uma importante inflexão no plano teórico com o advento das chamadas teorias decoloniais e pós-coloniais. Nessa linha, importa romper com os modelos e padrões da experiência colonial que historicamente silenciou as vozes negras, indígenas, de mulheres e de demais grupos subalternizados. O assim chamado pensamento de fronteira atua na “restituição da fala e da produção teórica e política de sujeitos que até então foram vistos como destit uídos da condição de fala e da habilidade da produção de teorias e projetos políticos” (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016, p. 7BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e perspectiva negra. Sociedade e Estado. Brasília, v. 31, n. 1, pp. 15-24, 2016. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100002> Acesso em: 06 jul. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0102-6992201600...
).

Esse processo, por não ocorrer em mão única, gerou reações adversas e a rearticulação política de setores que se sentiram atacados e/ou prejudicados por essas novas proposições. Como a emergência das novas direitas em várias latitudes demonstra, da mesma forma que a busca pela revalorização da memória se dá pelos grupos contestadores, alguns setores do establishment reivindicam a manutenção da “história nacional” sob a égide de um patriotismo que não reconhece a legitimidade de demandas particularistas de grupos subalternos.

Para alguns autores (CESARINO, 2019CESARINO, Letícia. Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 62, n. 3, p. 530-557, 2019. Disponível em: <https://bit.ly/3xWY6q2>. Acesso em: 16 abr. 2021. doi: htp://dx.doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2019.165232.
https://bit.ly/3xWY6q2...
; GALLEGO et al., 2017GALLEGO, Esther Solano et al. Guerras culturais e populismo antipetista nas manifestações por apoio à Operação Lava Jato e contra a reforma de previdência. Em Debate, Belo Horizonte, v. 9, n. 2, p. 35-45, 2017. Disponível em: <https://bit.ly/2NleqHX>. Acesso em: 1 mar. 2022.
https://bit.ly/2NleqHX...
; PINHEIRO-MACHADO, 2019PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e as possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta, 2019.; ROCHA, 2021ROCHA, João César Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021.), estamos vivendo uma guerra cultural em que a Nova Direita tenta desmontar os valores e as políticas hegemônicas desde a redemocratização. Nesse sentido, não apenas os princípios democráticos estariam sendo criticados, como também haveria uma busca pela revalorização de valores tradicionais acerca da sexualidade, das relações de gênero, religiosidade, vida familiar etc., além de uma crítica ferrenha às chamadas políticas identitaristas.

Segundo Fraser (2017)FRASER, Nancy. From progressive neoliberalism to Trump – and beyond. American Affairs, Boston, v. 1, n. 4, p. 46-64, 2017. Disponível em: <https://bit.ly/2KxCUxb>. Acesso em: 16 abr. 2021.
https://bit.ly/2KxCUxb...
, a emergência da Nova Direita com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos pode ser vista como resultado de uma crise hegemônica dos discursos neoliberais e identitaristas que prevaleceram durante os governos Clinton, Bush e Obama. Para a autora, setores brancos que não podiam se beneficiar das políticas de ação afirmativa passaram a apoiar o discurso antiglobalista e anti-identitário de Trump. Dessa forma, cremos que a crítica realizada pelos bolsonaristas às ações afirmativas e às políticas de valorização simbólica da população negra no Brasil vão no mesmo sentido: articular as queixas de grupos que avaliam as políticas igualitaristas dos últimos 20 anos como prejudiciais aos seus interesses (CAVALCANTE, 2020CAVALCANTE, Sávio Machado. Classe média e ameaça neofascista no Brasil de Bolsonaro. Crítica Marxista, Campinas, n. 50, p. 121-130, 2020.). Assim, a memória coletiva que esses grupos vão incentivar, sobretudo quando ascendem ao poder no governo de Jair Bolsonaro, é a que enaltece vultos do passado com os quais as classes médias e altas, majoritariamente brancas, possam se identificar, como a Princesa Isabel e a família real luso-brasileira. Esse é o pano de fundo dos artigos publicados pela Fundação Cultural Palmares em maio de 2020.

Palmares na Nova República

O papel da Fundação Cultural Palmares é promover e preservar os valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira, segundo a Lei nº 7.668/1988 (BRASIL, 1988BRASIL. Lei nº 7.668, de 22 de agosto de 1988. Autoriza o Poder Executivo a constituir a Fundação Cultural Palmares – FCP e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 16002, 23 ago. 1988. Disponível em: <https://bit.ly/3Ovi562>. Acesso em: 27 jun. 2022.
https://bit.ly/3Ovi562...
). A partir de 2003, foi acrescentado ao rol de atribuições da FCP a emissão de certidão às comunidades quilombolas e a inscrição destas em cadastro geral, o que confere à entidade o importante papel de asseguradora de direitos das comunidades negras rurais tradicionais. Além disso, a FCP atua, desde 2003, na consolidação das práticas pedagógicas de promoção da igualdade racial (BRASIL, 2003BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 10 jan. 2003. Disponível em: <https://bit.ly/3y1tIL1>. Acesso em: 27 jun. 2022.
https://bit.ly/3y1tIL1...
, 2008BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 11 mar. 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3bCwq1S>. Acesso em: 27 jun. 2022.
https://bit.ly/3bCwq1S...
). Assim, a Fundação Palmares vem contribuindo de forma significativa para a consolidação, em meios oficiais, dos lugares de memória popularmente constituídos e até então pouco valorizados pelo Poder Público.

Desde a sua fundação, em 1988, a FCP vem corroborando a crítica à data comemorativa de 13 de maio, alinhando-se à agenda do movimento social negro estabelecida em finais da década de 1970, como se observa no documento inaugural do então denominado Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCDR), de 1978. Neste manifesto, observamos que a defesa do dia 20 de novembro como data efetiva da população negra no Brasil está diretamente atrelada à consolidação das pautas do movimento social que ali se unificava:

Por isto, negamos o treze de maio de 1888, dia da Abolição da escravatura, como um dia de libertação. Por quê? Porque nesse dia foi assinada uma lei que apenas ficou no papel, encobrindo uma situação de dominação sob a qual até hoje o negro se encontra. (…)

É preciso que o MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL se torne forte, ativo e combatente; mas, para isso é necessária a participação de todos, afirmando o 20 de novembro como o DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA (GONZALES; HASENBALG, 1982, p. 58-59GONZALES, Lélia & HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.).

O que se vê nas atividades e pronunciamentos oficiais da Fundação Cultural Palmares desde a sua criação é um alinhamento profundo com essas reivindicações. No sítio eletrônico da FCP, na aba de artigos institucionais, encontramos 43 artigos publicados entre 2006 e 2019. Somente um deles foi publicado durante o governo Bolsonaro, o que nos permite afirmar que ali existe uma amostra significativa da produção de memória da FCP em anos anteriores à gestão Camargo. Não cabe, neste estudo, uma investigação minuciosa desse material, porém elencamos alguns elementos que surgem nesse material no que tange à efeméride de 13 de maio.

Entre esses artigos institucionais, encontramos apenas duas menções à Princesa Isabel, o que denota a pouca centralidade atribuída à sua figura pelas gestões da FCP nas duas últimas décadas. Uma delas ocorre em um texto de 13 de maio de 2013 – governo Dilma Rousseff –, de autoria do então presidente da instituição:

Este 13 de maio de 2013 marca os 125 anos da Abolição da Escravatura no Brasil. Na contramão da História considerada oficial, esta efeméride não reduz-se à promulgação da Lei Áurea, subscrita pela princesa Isabel, que num ato de extrema “bondade” teria concedido a liberdade aos negros escravizados, mas, fundamentalmente, traz à superfície as múltiplas formas de insurreição negra (quilombos, revoltas, atos de rebeldia, instauração de uma tradição negro africana) como núcleos vitais de resistência coletiva à escravidão no Brasil, o último país das Américas a extingui-la (COBRA, 2013COBRA, Hilton. Treze. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 13 mai. 2013. Disponível em: <https://bit.ly/3NkcpKM>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/3NkcpKM...
).

Neste trecho, notamos que o traço de bondade da princesa se encontra entre aspas, um recurso de escrita que ironiza o termo destacado. O texto evoca, em vez do protagonismo da Regente no ato da abolição, o reconhecimento das lutas coletivas da população negra contra o regime escravista. O presidente da FCP enfatizou, em 2013, os movimentos populares contrários à escravidão, na contramão da assim chamada história oficial, de modo alinhado ao que se vê nos documentos inaugurais do MNU.

A segunda menção à herdeira do Império nos artigos institucionais da FCP se encontra em um texto de março de 2017, escrito pelo presidente da instituição no governo Michel Temer. Nele, defende-se que a abolição da escravidão no país teria sido resultado da ação do capitalismo internacional na sua fase industrial, não de uma suposta bondade da Princesa Isabel, mais uma vez colocada entre aspas:

As raízes do capitalismo industrial estavam invadindo as mais longínquas nações e não foi diferente com nossa pátria amada, que para se adaptar às novas regras do capitalismo tardio, realizou em um gesto simbólico toda a “bondade do coração lusitano” representada no ato pela Princesa Isabel – que oficialmente abolira a escravatura, deixando o povo negro sem uma indenização pelo trabalho, onde nunca receberam salários pelos serviços prestados, sem participar dos lucros da terra, dormindo em pocilgas, comendo restos de alimentos, enfim, foram jogados na sarjeta (OLIVEIRA, 2017OLIVEIRA, Erivaldo. Consciência negra: dor, luta e afirmação. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 1 mar. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/39OEiNk>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/39OEiNk...
).

Vale observar que o sujeito da ação libertadora não é nem o povo negro em movimento nem a “bondade do coração lusitano” da princesa, mas sim a dinâmica própria do sistema capitalista. No entanto, o texto destaca que a abolição da escravidão não significou a inclusão da população negra, cuja situação pós-1888 é descrita de modo trágico. O uso do termo “pátria amada”, bem como a supressão da ideia de que a luta popular seria o motor dos acontecimentos históricos, denota uma importante inflexão conservadora no discurso emitido pela FCP em 2017. Contudo, mesmo nesse campo ideológico, foi mantido o tom de crítica à ausência de políticas públicas de inclusão da população egressa do cativeiro, denunciando suas péssimas condições de vida no pós-abolição.

Se considerarmos as outras menções institucionais ao 13 de maio pela FCP nos três governos anteriores a Bolsonaro, melhor observamos as transformações no discurso da entidade. Em texto da Diretora de Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro (DPA) da FCP, em 13 de maio de 2008 – governo Lula da Silva –, vemos:

Não comemoramos hoje a mera assinatura de um documento tardio que legalizava uma situação que por si mesma se mostrava insustentável e vergonhosa para o próprio país. Após 120 anos da Lei Áurea, temos o que comemorar sim: nossa luta, nossa insatisfação com as desigualdades persistentes, nosso desejo de mudanças, de justiça e de reparação, nossa vontade de sermos brasileiros por completo, cidadãos plenos e dignos em uma sociedade sem racismo e sem distinções de raça, cor, gênero, credo, ou qualquer outro tipo de autodefinição (SILVA, 2008SILVA, Maria Bernadete L. 2008, o ano de grandes reflexões para a população negra. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2008. Disponível em: <https://bit.ly/39Rz4R2>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/39Rz4R2...
).

No texto de Silva (2008)SILVA, Maria Bernadete L. 2008, o ano de grandes reflexões para a população negra. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2008. Disponível em: <https://bit.ly/39Rz4R2>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/39Rz4R2...
, a data não é descartada como oportunidade de comemoração. O sentido a ela atribuído – de luta contra as desigualdades – se aproxima da noção que encontramos na agenda dos movimentos negros, assim como a associação da incompletude da abolição no passado à necessidade de políticas reparatórias para a população negra no presente. A Lei Áurea, em si, é considerada um documento tardio e de pouca efetividade, uma vez que apenas legalizou uma situação já insustentável de escravidão no país. O que teria efetivamente quebrado as correntes dos escravizados teria sido a sua própria luta, não a benevolência da princesa ou a letra da Lei.

Ainda na ocasião dos 120 anos da Lei Áurea em 2008, o então presidente da Fundação Palmares comemorou os avanços na conquista de direitos da população negra no Brasil:

No caso da Abolição da Escravatura, efeméride que completa 120 anos de existência, faz-se mais necessário ainda, identificarmos e avaliarmos o quanto avançamos no combate ao racismo e a discriminação e mais ainda consolidarmos essas conquistas, que não são poucas, pois os bolsões poderosos de resistência à democratização racial do país continuam mais ativos do que nunca (ARAÚJO, 2008ARAÚJO, Zulu. Abolição da escravatura e o intercâmbio afro-latino. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3NkjJGp>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/3NkjJGp...
).

Zulu Araújo (2008)ARAÚJO, Zulu. Abolição da escravatura e o intercâmbio afro-latino. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3NkjJGp>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/3NkjJGp...
apresenta uma contra-argumentação em relação àqueles que se posicionavam contrários às incipientes políticas de ações afirmativas da época: algumas universidades já implementavam a reserva de vagas para negros e indígenas e o Estatuto da Igualdade Racial tramitava no Congresso. Vale observar, contudo, que já se notava a articulação de “bolsões de resistência” a essas políticas, o que veríamos se consolidar na gestão da própria FCP, em 2020.

Em 2012, no governo Dilma Rousseff, o então presidente da FCP afirmou que a Lei de 13 de maio de 1888 foi o primeiro marco legal do fim da escravidão, devendo ser completado por novos artigos:

Desta forma, podemos interpretar que tivemos o fim da escravidão como o artigo primeiro do marco legal. A educação com aprovação das cotas para ingresso no ensino superior como o artigo segundo. Ainda faltam mais dispositivos que assegurem a terra e o trabalho com funções qualificadas. Daí então em poucas décadas, e, com a implementação das ações afirmativas, teremos de fato um Estado verdadeiramente democrático, em que todos, independentemente da cor da sua pele ou da sua etnia, poderão fruir dos bens econômicos e culturais em igualdade de oportunidades (ARAÚJO, 2012ARAÚJO, Eloi Ferreira de. Cotas: continuidade da abolição. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 14 mai. 2012. Disponível em: <https://bit.ly/3yfvREj>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/3yfvREj...
).

No calor da recém aprovada constitucionalidade das cotas para negros(as) nas universidades pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a Fundação Palmares viu uma oportunidade histórica de dar continuidade ao processo de inclusão da população negra na nação brasileira, apenas iniciado pela sanção da Lei Áurea. Havia, ainda, outras conquistas a serem efetivadas, como o acesso à terra e a empregos qualificados, o que, segundo Eloi Araújo (2012)ARAÚJO, Eloi Ferreira de. Cotas: continuidade da abolição. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 14 mai. 2012. Disponível em: <https://bit.ly/3yfvREj>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/3yfvREj...
, se daria em poucas décadas. A partir de então, segundo ele, haveria a verdadeira democracia, com igualdade de oportunidades para todos e todas.

Os governos brasileiros pós-redemocratização tiveram na Fundação Cultural Palmares uma importante aliada para o reconhecimento da desigualdade racial brasileira e a implementação das primeiras políticas públicas de promoção da igualdade racial. Os artigos institucionais publicados pela FCP nas duas primeiras décadas do século XXI, brevemente citados neste artigo, demonstram que a entidade lançou mão da produção de memória em torno de datas comemorativas, como o 13 de maio, para fortalecer a agenda histórica do movimento social negro, atuando na defesa das ações afirmativas reparatórias e reiterando a importância da população negra para a identidade nacional. Pela relevância da atuação da FCP, compreende-se que a disputa pela memória ali produzida/preservada foi considerada central para os setores de extrema-direita que chegaram ao poder em 2018 com a eleição de Jair Bolsonaro como presidente da República.

Direita volver, revisão histórica e nacionalismo

Os pronunciamentos de Sérgio Camargo desde a sua nomeação para presidente da FCP denotam uma intenção clara de retomar as comemorações oficiais do dia 13 de maio, tal qual se observava em anos anteriores à redemocratização. A publicação de seis textos relativos à efeméride no site e nas redes sociais da Fundação Palmares em maio de 2020 evidencia tal esforço. Após determinações judiciais, três desses textos foram retirados do ar.

De imediato, o que chama a atenção nos artigos é a heterogeneidade de seus autores e autoras. Somente dois são acadêmicos com doutorado, porém nenhum deles com pesquisas na área de História ou da cultura afro-brasileira. Há também entre os autores dois políticos – um deputado federal e uma assessora parlamentar de um deputado descendente da família real – e um professor da Educação Básica sem titulação além da graduação. Essa variedade de emissores de discursos sugere que, para a atual gestão da FCP, a discussão sobre a história da população negra pode ser feita independentemente de qualquer acúmulo teórico na temática. Um dos textos, inclusive, menciona que “os ensinamentos por ali [academia] são poucos” (AMATTI, 2020AMAT TI, Vera Helena Pancote. Machado de Assis e Zumbi Noel. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3yfuRQz>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3yfuRQz...
), expondo o anti-intelectualismo que vem caracterizando o governo Bolsonaro. Vale destacar, ainda, a ausência de representantes dos movimentos sociais negros entre os autores e autoras do texto, bem como a ausência de mulheres negras entre as autoras. Dessa forma, os textos publicados pela FCP por ocasião do 13 de maio de 2020 não representam uma discussão abalizada ou significativa do ponto de vista dos que se debruçam sobre a temática negra no Brasil, seja academicamente, seja na atuação dos movimentos sociais. Trata-se de uma escolha institucional de destacar discursos que não provêm desses setores – que, até então, habitavam o senso comum e as redes sociais – e de lhes dar a visibilidade e o peso político que uma instituição do porte da FCP pode alcançar.

O nome da Princesa Regente foi mencionado 23 vezes nos seis textos, o que já demonstra uma importante modificação na forma como o 13 de maio vinha sendo tratado pela Fundação Palmares – somente duas menções a ela nos 43 artigos institucionais de 2006 a 2019. Interessa aos novos desígnios da entidade reabilitar a figura de Dona Isabel e do 13 de maio na mesma medida em que desqualifica a figura de Zumbi dos Palmares e do 20 de novembro. Vejamos em que termos a FCP descreve a Princesa Isabel na gestão de Sérgio Camargo: “mulher, caucasiana e nobre, membro da monarquia que os marxistas sempre odiaram, Isabel e sua família nunca tiveram escravos, de fato, pois remuneravam todos os que trabalhavam em seus domínios e engajaram-se nas lutas abolicionistas da época” (FÉLIX, 2020FÉLIX, Mayalu. A narrativa mítica de Zumbi dos Palmares. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. [S. l.].).

Notamos que o artigo de Félix (2020)FÉLIX, Mayalu. A narrativa mítica de Zumbi dos Palmares. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. [S. l.]., um dos excluídos do site da Fundação por decisão judicial, propõe a retomada da figura heroica da Princesa Isabel, supostamente destituída de seu verdadeiro valor por marxistas. O texto afirma que a família real não se servia de pessoas escravizadas, o que não se confirma pela historiografia da colônia e do Império. Em outro artigo (AMATTI, 2020AMAT TI, Vera Helena Pancote. Machado de Assis e Zumbi Noel. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3yfuRQz>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3yfuRQz...
), subsequente ao título, há uma fotografia da Princesa Isabel cercada de vários homens, entre eles o escritor Machado de Assis, que tem seu rosto circulado em vermelho. Para que não haja dúvidas, ao lado da fotografia há uma outra tradicional do escritor, facilmente encontrada em livros didáticos. Interessa destacar a proximidade entre a princesa “caucasiana e nobre” e o escritor negro de origem popular, uma vez que, com isso, transmite-se a ideia de que Isabel seria amiga da população negra e justifica-se a celebração de sua memória pela Fundação Palmares atualmente.

Entre os textos publicados pela FCP por ocasião do 13 de maio, em 2020, encontra-se um discurso do deputado federal Hélio Lopes, preparado em 2019 para uma sessão solene da Câmara em homenagem à Princesa Isabel. O evento, proposto por um parlamentar descendente da família real brasileira, foi marcado por protestos de movimentos negros no plenário, que impediram a realização dos discursos previstos (BOLDRINI, 2019BOLDRINI, Angela. Com gritos de ‘Marielle’ e de monarquistas, homenagem à lei Áurea tem tumulto na Câmara. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 mai. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2Vkscyd>. Acesso em: 20 mai. 2019.
https://bit.ly/2Vkscyd...
). A publicação, a posteriori, do discurso do deputado – também conhecido como Hélio Negão ou Hélio Bolsonaro – indica a retomada dos valores daquele evento. A figura de Hélio Lopes pode ser descrita da seguinte forma:

Não tem uma posição no governo, mas seu capital simbólico como deputado federal mais bem votado no Rio de Janeiro é agenciado pelo presidente, que o leva a tiracolo para muitos eventos importantes e viagens oficiais. O deputado funciona, nesse quadro, como uma espécie de “coringa”, com o objetivo de fazer crer que a população negra está próxima do governo, mas também de livrar seus amigos brancos – como o presidente – de acusações de racismo (FRANCISCO; MACEDO, 2020, p. 34FRANCISCO, Flávio & MACEDO, Márcio. A direita negra: onde os conservadores erram na questão racial. Revista Piauí, São Paulo, n. 171, dezembro 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3HYe2wx>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/3HYe2wx...
).

O discurso de Lopes menciona a Lei Áurea como “uma lei natural, era uma lei de Deus, que fez todos os homens iguais e por isso Deus estava do lado dela” (LOPES, 2020, p. 1LOPES, Helio. Discurso do deputado federal Helio Lopes em alusão ao 13 de maio. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3NezEpC>. Acesso em: 29 jan. 2021.
https://bit.ly/3NezEpC...
). Destacamos o caráter messiânico atribuído à Lei: uma emergência natural dos desígnios divinos na sociedade. Com isso, elimina-se plenamente o jogo político, social e institucional do qual adveio a desconstrução do sistema escravista no final do século XIX (ALONSO, 2015ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.).

O deputado Hélio Lopes se coloca como portador da verdadeira história do Brasil e do protagonismo negro, afirmando que a universidade, a escola e os livros vêm trabalhando para falseá-la. Aqui se encontra o anti-intelectualismo e a negação do que se convencionou chamar discurso científico, bem como a sugestão de que a legitimidade do discurso vem de seu próprio enunciador, autoproclamado portador da Verdade, com inicial maiúscula. A primeira “verdade” enunciada no discurso é de que “a princesa Isabel foi a melhor amiga dos negros do Brasil. A melhor, a mais solícita, a que mais ajudou os escravos fugitivos e organizados em Quilombos” (LOPES, 2020, p. 1LOPES, Helio. Discurso do deputado federal Helio Lopes em alusão ao 13 de maio. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3NezEpC>. Acesso em: 29 jan. 2021.
https://bit.ly/3NezEpC...
). Vale destacar que este argumento se repete em outros artigos do corpus documental.

Nesse ponto, o deputado menciona a colaboração da Princesa em relação ao conhecido Quilombo do Leblon, na capital do Império. No entanto, este quilombo tem características bastante sui generis, visto que era um agrupamento organizado pelo comerciante português José de Seixas Magalhães e mantido por movimentos sociais urbanos abolicionistas. O Quilombo do Sei xas não foi, por tanto, um quilombo como frequentemente se imagina: um agrupamento rural negro estabelecido e gerido por escravizados em fuga ou libertos em regiões rurais distantes das grandes cidades: “era, digamos, um quilombo simbólico, feito para produzir objetos simbólicos” (SILVA, 2003, p. 13SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.). As diferenças entre os tipos de quilombo, segundo este autor, são:

No modelo tradicional de resistência à escravidão, o quilombo rompimento, a tendência dominante era a política do esconderijo e do segredo de guerra. Por isso, esforçam-se os quilombolas exatamente em proteger seu dia a dia, sua organização interna e suas lideranças de todo tipo de inimigo ou forasteiro (…). Já no modelo novo, o quilombo abolicionista, as lideranças são muito bem conhecidas, cidadãos prestantes, com documentação civil em dia e, principalmente, muito bem articulados politicamente (SILVA, 2003, p. 11SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.).

Dessa forma, a relação da Princesa Isabel com o Quilombo do Leblon deve ser caracterizada como uma colaboração para um tipo específico de quilombo, a fim de que não seja confundida como um apoio efetivo da Coroa a comunidades negras em luta contra as leis e a classe senhorial nos rincões do Império.

Ao final, o discurso de Hélio Lopes remete a uma bênção espiritual da princesa ao Brasil dos dias atuais. Não há nenhuma menção a Zumbi ou ao 20 de novembro, somente uma breve sugestão de adoração a “falsos ídolos”, que se supõe ser uma crítica velada ao herói proposto pelo movimento negro:

(…) quando vejo a ingratidão de muitos que adoram falsos ídolos, tenho a certeza de que a princesa Isabel continua olhando para o Brasil e nos apontando caminhos para a justiça, o desenvolvimento civilizado e a fraternidade. Ela continua olhando lá do alto, para que sigamos o caminho da liberdade que ela abriu (LOPES, 2020, p. 3LOPES, Helio. Discurso do deputado federal Helio Lopes em alusão ao 13 de maio. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3NezEpC>. Acesso em: 29 jan. 2021.
https://bit.ly/3NezEpC...
).

O caminho da liberdade teria sido, portanto, uma concessão da princesa, e não algo conquistado pela própria iniciativa da população negra. A esta, cabe reconhecer e homenagear sua benfeitora, contando com sua bênção como uma entidade divina até os dias atuais.

Para o diretor do DPA da FCP, em 2020, é importante lembrar não somente a data da abolição, mas o protagonismo da princesa, que teria manifestado a sua nobre intenção de promover a integração da população liberta à sociedade. Esta intenção seria comprovada por uma carta enviada por Dona Isabel, em agosto de 1889, ao Visconde de Santa Vitória. Contudo, a autenticidade do documento não está definitivamente comprovada entre especialistas e pesquisadores(as) do período imperial (BRÁULIO, 2021BRÁULIO, Pablo. Carta prova que princesa Isabel tinha um projeto progressista para o Brasil? Clio: História e Literatura, [S. l.], 19 mai. 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3xQkilm>. Acesso em: 9 dez. 2021.
https://bit.ly/3xQkilm...
). Ainda assim, segundo o artigo publicado pela FCP, a carta “revela uma Princesa que queria não apenas pôr fim ao regime escravista, mas indenizar os escravos libertos e assentá-los em terras capazes de produzir seu sustento após promulgada a Lei Áurea” (DIAS, 2020, p. 2DIAS, Laércio Fidelis. Por que lembrar, em 13 de maio, a Princesa Isabel do Brasil? Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 22 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3y4FrbY>. Acesso em: 27 jun. 2022.
https://bit.ly/3y4FrbY...
). Os trechos citados mencionam o suposto desejo da princesa de indenizar os ex-escravos com a criação de um fundo monetário para o financiamento de terras. Assim, segundo o autor, não seria intenção da Coroa abandonar os ex-cativos à própria sorte.

É com esse argumento que a FCP do governo Bolsonaro pretende invalidar a crítica comumente feita pelos movimentos sociais à abolição: de que ela foi incompleta e insuficiente para a verdadeira emancipação dos ex-escravos e seus descendentes. Entretanto, o artigo de Dias (2020)DIAS, Laércio Fidelis. Por que lembrar, em 13 de maio, a Princesa Isabel do Brasil? Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 22 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3y4FrbY>. Acesso em: 27 jun. 2022.
https://bit.ly/3y4FrbY...
não apresenta elementos que demonstram, para além da carta, que a Coroa teria tomado qualquer atitude do ponto de vista político para colocar em prática tais medidas de reparação. A mera intenção da princesa revelada na carta seria suficiente, segundo se depreende do artigo, para comprovar as suas boas intenções. Nota-se aqui uma visão da monarquia próxima ao absolutismo, sistema em que a vontade do monarca se impõe sem questionamentos. Entretanto, no sistema monárquico constitucional brasileiro, quaisquer intenções da família real deveriam ser discutidas no Parlamento, como foi o caso da própria Lei Áurea. Para Dias (2020)DIAS, Laércio Fidelis. Por que lembrar, em 13 de maio, a Princesa Isabel do Brasil? Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 22 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3y4FrbY>. Acesso em: 27 jun. 2022.
https://bit.ly/3y4FrbY...
, as boas intenções da Regente seriam suficientes para que ela seja considerada, atualmente, como benfeitora da população negra.

A referida carta, contudo, não seria um documento inédito. Em outubro de 2008, ano em que se completou 120 anos da Lei Áurea, circulou pelo Portal Geledés um texto de Sueli Carneiro (2008)CARNEIRO, Sueli. A carta da princesa por Sueli Carneiro. Portal Geledés, São Paulo, 7 out. 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3QTrNRc>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/3QTrNRc...
que discute a repercussão da carta na mídia e aponta que “o documento histórico foi utilizado como oportunidade adicional de crítica velada aos movimentos negros nacionais que ousaram questionar o alcance libertário da lei assinada em 13 de maio”. A autora retoma o intenso debate acerca de ações afirmativas reparatórias e as polêmicas envolvendo a tramitação do Estatuto da Igualdade Racial no Congresso em 2008. Carneiro afirma, nesse sentido, a atualidade das discussões que a carta da princesa ensejava: “parece que aquelas forças políticas que impediram o progresso das ideias generosas da princesa continuam inspirando as classes políticas do presente. Estamos diante do mesmo impasse” (CARNEIRO, 2008CARNEIRO, Sueli. A carta da princesa por Sueli Carneiro. Portal Geledés, São Paulo, 7 out. 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3QTrNRc>. Acesso em: 1 mar. 2021.
https://bit.ly/3QTrNRc...
). Para ela, se a carta revelava uma intenção reparatória da Princesa Isabel, o processo histórico demonstrava que, no século XXI, ainda era difícil implementar tais medidas. O uso da carta como elemento reabilitador da imagem heroica da Regente já estava, portanto, presente em anos anteriores à roupagem que encontramos nos artigos da FCP em 2020. O debate em torno desse documento exemplifica a disputa pelos usos da memória como elemento mobilizador da agenda política de diferentes grupos sociais.

A comemoração do 13 de maio pela gestão bolsonarista da FCP carrega elementos de saudosismo do período monárquico no Brasil. Um dos artigos publicados considera que a ousadia da princesa em promover a abolição foi a razão da queda da monarquia:

A história que se seguiu e o preço pago pela promulgação da Lei Áurea são conhecidos: fim do regime monárquico; proclamação da república; exílio da família imperial; e, o que não raro se esquece, o fato do regime que se seguiu nunca ter entregado o que sua propaganda prometera: a ampliação da participação política. A ausência de governos representativos de seus cidadãos, marca essencial de nossa república, deixou profundas cicatrizes na nação brasileira que podem ser vistas até os dias que correm (DIAS, 2020, p. 4DIAS, Laércio Fidelis. Por que lembrar, em 13 de maio, a Princesa Isabel do Brasil? Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 22 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3y4FrbY>. Acesso em: 27 jun. 2022.
https://bit.ly/3y4FrbY...
).

No trecho, observa-se a ponte que o autor estabelece entre os anos iniciais da República e a atualidade. A denúncia de uma não representatividade da classe política e do próprio sistema político vem sendo uma constante nos movimentos de extrema-direita no país, ecoando frequentemente nas falas do presidente Bolsonaro e seus apoiadores. Divulga-se a ideia de um sistema republicano viciado desde o princípio, em contraposição a um passado monárquico “áureo” e verdadeiramente comprometido com o povo. Vale lembrar a aproximação do governo Bolsonaro com setores monarquistas: desde a organização da chapa eleitoral, houve a tentativa de trazer um descendente da família real para o cargo de vice-presidente. Entendemos que não se trata de defender este ou aquele sistema político, mas, sobretudo, de legitimar práticas antirrepublicanas, que são a tônica do governo Bolsonaro.

Nos artigos publicados pela FCP, em 2020, afirma-se que o movimento negro substituiu uma data verdadeira e historicamente comprovada – o 13 de maio – por uma data fantasiosa, baseada em um personagem falsamente construído com interesses perversos de grupos esquerdistas. Vale, portanto, observar de que maneira o dia 20 de novembro e o herói Zumbi são descritos como antagonistas ao 13 de maio e à Princesa Isabel, que são defendidos neste momento pela instituição.

Em um dos artigos excluídos do site por ordem judicial, lemos: “Palmares foi real, Zumbi existiu, mas ambos estão distantes das narrativas utópicas e míticas erigidas ao longo das últimas décadas” (FÉLIX, 2020FÉLIX, Mayalu. A narrativa mítica de Zumbi dos Palmares. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. [S. l.].). A construção de uma memória insultuosa para Zumbi dos Palmares é evidente em diversas passagens: “Zumbi dos Palmares matou o próprio tio envenenado a fim de assumir a chefia do Quilombo dos Palmares, tinha escravos, perseguia os fugitivos do Quilombo, punia-os, matava-os, saqueava, pilhava, incendiava engenhos próximos” (FÉLIX, 2020FÉLIX, Mayalu. A narrativa mítica de Zumbi dos Palmares. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. [S. l.].).

A autora opera uma simples inversão do significado do personagem com o intuito de qualificar o movimento negro como irracional e mistificador da verdade. Como se nota, o que está em questão é a legitimidade do movimento social negro como enunciador de sua versão da História, a partir da qual a luta da população negra é considerada como motor das transformações históricas, a desigualdade racial é denunciada e são exigidas políticas públicas reparatórias. Ao invalidar a narrativa histórica do movimento social negro, o que se está visando é a desconstrução de sua pauta reivindicatória.

Nota-se, no próximo excerto, a associação direta entre a proposição do 20 de novembro pelo movimento social negro aos ex-presidentes Lula e Rousseff:

Mas é aqui, hoje, no século XXI, que duas visões de história se confrontam. Dois dias festivos, duas datas comemorativas. Uma, 13 de maio (1888), instituída em 1890, celebra a data da promulgação da Lei que libertou os escravos no Brasil. Outra, 20 de novembro (1695), instituída em 2011, sob a Presidência de Dilma Rousseff, como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, foi idealizada pelo poeta gaúcho Oliveira Silveira (…). Conhecido pela alcunha de “Poeta da Consciência Negra”, Oliveira Silveira fez parte do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial – CNPIR entre 2004 e 2006, durante a Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (FÉLIX, 2020FÉLIX, Mayalu. A narrativa mítica de Zumbi dos Palmares. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. [S. l.].).

Desse modo, a FCP referenda um discurso que afirma que o 20 de novembro foi construído por esquerdistas e consolidado como política pública pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Claro está que desconstruir essa efeméride é também desconstruir o legado de Lula da Silva e Dilma Rousseff para o país. Não se trata, mais uma vez, de uma discussão estéril sobre o passado, mas de uma virada política e ideológica importante para a construção de arranjos políticos no presente.

O artigo de Félix rejeita tudo o que o movimento social negro propõe acerca de Zumbi, pois sua versão seria baseada, segundo Félix (2020)FÉLIX, Mayalu. A narrativa mítica de Zumbi dos Palmares. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. [S. l.]. em obras escritas por meros militantes socialistas que “escreveram livros sem nenhum lastro documental retratando Palmares como uma “república socialista” (…). Isso nunca foi documentado e pode ser reputado como exemplo de ‘mentira histórica’”.

Entretanto, a autora também não apresenta fontes documentais primárias acerca de suas afirmações de que Zumbi era um assassino, ladrão e escravista. Seu texto pretende se colocar no campo da verdade, da ciência e da historiografia, porém se vale igualmente de falas não documentadas em torno de seus argumentos. Assim, podemos dizer que Félix (2020)FÉLIX, Mayalu. A narrativa mítica de Zumbi dos Palmares. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. [S. l.]. se utiliza das mesmas ferramentas discursivas as quais pretende criticar, invertendo apenas o sinal do que representaria o personagem. Se os movimentos negros se amparam na celebração de Zumbi e da Consciência Negra para disputar espaços de representação e políticas reparatórias, cabe a um governo comprometido com o desmonte dos direitos sociais adquiridos desqualificar esta celebração, questionando a legitimidade de seus termos.

Em outro artigo, também excluído, o líder Zumbi – tal qual reivindica o movimento negro – não teria sequer existido. Segundo o texto, a data de 20 de novembro seria somente a data do suicídio do líder de Palmares, não necessariamente um homem chamado Zumbi, mas sim a liderança designada genericamente pelos termos “Nzambi, Zâmbi, Zômbi, Zumbi” (CHRISPINO, 2020aCHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Zumbi e a consciência negra – existem de verdade? Duna Press, [S. l.], 13 mai. 2020a. Disponível em: <https://bit.ly/3zXnu1s>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3zXnu1s...
). Destacamos a substituição da ideia de assassinato pela ideia de suicídio, imprimindo ao personagem uma aura menos corajosa ou heroica do que a ideia de um assassinato em combate poderia trazer.

Para Chrispino (2020a)CHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Zumbi e a consciência negra – existem de verdade? Duna Press, [S. l.], 13 mai. 2020a. Disponível em: <https://bit.ly/3zXnu1s>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3zXnu1s...
, a construção do 20 de novembro é definida como parte da formação do movimento negro na década de 1970. Naquele momento, segundo o autor, o MNU via necessidade em criar um símbolo que representasse os seus valores – supostamente marxistas –, almejando a separação social e a utilização do povo negro para fins escusos. Ressalta-se aqui que a ideia predominante era a de que o povo brasileiro era amistoso, pacato e miscigenado; portanto, o debate racial proposto pelo movimento negro seria algo perverso e desagregador:

(…) há uma ligação muito forte de movimentos ditos sociais, ao esquerdismo, de maneira, como citado acima, a criar cada vez mais a separação social que interessa apenas à política esquerdizante, que busca levar nossa pátria à um viés que difere completamente do verdadeiro pensamento e visão popular do brasileiro, que não é Esquerdista, nem de longe, pois nosso povo tem uma índole, uma visão amistosa, pacata, alegre, festeira dentro deste amalgama que é a nossa gente miscigenada – marca pontual de nosso povo, ser a mistura do Branco, Negro e Índio de forma natural (CHRISPINO, 2020aCHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Zumbi e a consciência negra – existem de verdade? Duna Press, [S. l.], 13 mai. 2020a. Disponível em: <https://bit.ly/3zXnu1s>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3zXnu1s...
).

No trecho, vemos a reabilitação do discurso da mestiçagem como algo natural, não como resultado dos processos violentos de colonização e escravidão do país. Para o autor, Zumbi e Consciência Negra “são duas observações bastante distantes do real brasileiro, mas, muito perto do ideal de divisão social esquerdista, para cada dia mais solapar a população e tentar dominar o poder através dessa população ingênua e ordeira do país” (CHRISPINO, 2020aCHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Zumbi e a consciência negra – existem de verdade? Duna Press, [S. l.], 13 mai. 2020a. Disponível em: <https://bit.ly/3zXnu1s>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3zXnu1s...
).

No mesmo dia da exclusão de dois artigos do site da FCP por ordem judicial, a instituição publicou um artigo em que se pretendeu defender a legitimidade dos textos retirados do ar:

Ademais, ainda não li uma só linha de nenhum autor que contenha provas reais da existência e dos feitos heroicos de Zumbi, muito menos o desmentido de que ele tinha seus próprios escravos, torturava e matava os que queriam fugir do quilombo e mandou assassinar o próprio tio para tomar o poder (AMATTI, 2020, p. 2AMAT TI, Vera Helena Pancote. Machado de Assis e Zumbi Noel. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3yfuRQz>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3yfuRQz...
).

Amati (2020) afirma, inicialmente, que não existem provas de que Zumbi teria efetivamente existido e praticado atos heroicos. No entanto, na mesma frase, menciona que não existe nada que desminta ele ter sido um vilão escravista e assassino. Assim, considerando a dúvida se Zumbi existiu ou não, a autora opta por uma versão depreciativa do líder palmarino, ainda que não tenha sido provada e, evidentemente, por isso mesmo, impossível de ser desmentida.

Assim, não se trata de criticar a adesão do mov imento negro a Zumbi por ele não ter sua existência comprovada, uma vez que a autora considera possível a aderência a um discurso não comprovado de que Zumbi teria sido uma figura reprovável. O problema está, portanto, em qual Zumbi o discurso político deve se amparar, e não na dúvida sobre a sua efetiva existência. À autora interessa reforçar a ideia de que Zumbi não era um herói, antes o seu contrário: um criminoso, assassino de membros da própria família, completamente execrável. Com isso, associa-se ao movimento negro o culto a um personagem relacionado à violência, selvageria, tortura e morte.

O tom dos artigos publicados pela FCP retoma o discurso de unidade nacional da ditadura militar, exaltando a mestiçagem como evidência da democracia racial e denunciando os movimentos sociais negros como promotores da desavença no seio do povo por meio da disseminação do conceito divisionista de raça.

Em outro artigo, também excluído, os autores das principais obras sobre Zumbi – Décio Freitas, Joel Rufino dos Santos e Clóvis Moura – são apresentados como lideranças marxistas imbuídas de intenções propagandistas por construírem uma narrativa em que Palmares é visto como um espaço de vivência igualitária e seu líder como um exemplo de luta de classes. Nesse artigo, Décio Freitas – autor de obra referencial sobre Zumbi na década de 1960 – é descrito como “amigo de Leonel Brizola e do ex-presidente João Goulart” (CHRISPINO, 2020bCHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Então… Zumbi tinha escravos? Ainda bem! Duna Press, [S. l.], 27 mai. 2020b. Disponível em: <https://bit.ly/39M7WDb>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/39M7WDb...
), o que traz à tona uma discussão sobre a memória do regime militar. Chrispino considera importante que o culto à memória de Zumbi seja desconstruído para que as verdadeiras qualidades do povo negro, segundo ele, sejam reconhecidas:

(…) um herói questionável, que no meu entender denigre a real luta do povo negro que busca, fora da política mostrar seu real valor, mas que a massa marxista política ligada ao movimento, quer usar para seus fins politiqueiros e esquerdizantes de uma consciência inconsciente e manipulável (CHRISPINO, 2020bCHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Então… Zumbi tinha escravos? Ainda bem! Duna Press, [S. l.], 27 mai. 2020b. Disponível em: <https://bit.ly/39M7WDb>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/39M7WDb...
).

Interessante observar, no trecho, a negação da política como um valor, assim como a demonização daqueles que exercem o jogo político como politiqueiros, esquerdizantes e manipuladores da inocência popular. A ideia de que a política deve ser um assunto alheio à população fez parte das justificativas do regime militar para a ausência de eleições diretas. Trata-se, no limite, de negar o processo de redemocratização e o papel de instituições como a própria FCP, que foram construídas no bojo desse processo. O artigo ainda aponta que um dos graves problemas nacionais é a própria Constituição, na qual haveria uma “deturpação do poder democrático”:

(…) quando se lê no art. 3º, IV – “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, cria-se nichos de cor, sexualidade, idade etc., deixando o escopo maior – O POVO BRASILEIRO – de lado (CHRISPINO, 2020bCHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Então… Zumbi tinha escravos? Ainda bem! Duna Press, [S. l.], 27 mai. 2020b. Disponível em: <https://bit.ly/39M7WDb>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/39M7WDb...
).

Nesse trecho, a simples menção dos designativos de raça, sexo, cor e outros já é considerada pelo autor como um divisor da suposta unicidade do povo brasileiro, grafado em letras maiúsculas. Assim, parte-se de um princípio de união nacional que não deve sequer mencionar as características dos grupos populacionais, visando uma uniformidade absolutamente incongruente com a realidade da diversidade humana, presente em qualquer região e país do mundo. A ficção de uma nação una e indivisível, sem o reconhecimento de qualquer diversidade, foi promovida ao longo do regime militar por meio de lemas, canções e propagandas. Assim, a discussão em torno do 20 de novembro vem sendo alocada como uma oportunidade de retomada dos valores da ditadura militar, incluindo a negação franca e direta da Constituição de 1988. Ao final de seu artigo, Chrispino (2020b)CHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Então… Zumbi tinha escravos? Ainda bem! Duna Press, [S. l.], 27 mai. 2020b. Disponível em: <https://bit.ly/39M7WDb>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/39M7WDb...
descreve o que considera ser a verdadeira cultura brasileira:

AINDA BEM, que hoje temos a liberdade de nos expressar e responder à altura, à esses anos de lama, que passamos no amado Brasil, e em dependendo de mim e de muitos outros brasileiros de verdade, a Cultura Brasileira, a verdadeira Cultura Nacional, miscigenada pelas culturas indígena, branca e negra, na sua real proporção e divisão, sem dar mais crédito para A ou B, mas dando a realidade dos fatos, prevalecerá, e a função da Fundação Palmares, irá elevar a parcela da cultura negra a seu real patamar, não para fins politiqueiros e separatistas.

No trecho, observa-se que há a retomada do discurso de valorização da mestiçagem como elemento de causa e efeito da suposta harmonia racial brasileira, tal qual se propõe desde a década de 1930: celebrar a união e mistura entre os grupos negro, indígena e branco, de forma horizontal e sem conflitos, ignorando plenamente as tensões e desigualdades históricas entre eles. Citar esses problemas, segundo Chrispino (2020b)CHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Então… Zumbi tinha escravos? Ainda bem! Duna Press, [S. l.], 27 mai. 2020b. Disponível em: <https://bit.ly/39M7WDb>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/39M7WDb...
, teria uma finalidade separatista e politiqueira, dividindo a população para facilitar o acesso das esquerdas ao poder. Destacamos, ainda, a menção à superação dos “anos de lama”, não diretamente designados pelo autor, mas que, pelas críticas tecidas no artigo desde a Constituição de 1988, pode-se compreender como o período da Nova República como um todo.

Finalmente, os artigos que analisamos trazem, por diversas vezes, a acusação de que o movimento social negro seria promotor de ideologias racistas por defenderem a noção de consciência negra e a celebrarem em 20 de novembro. Em um dos textos excluídos por ação judicial, vemos:

Se existe uma Consciência Negra no Brasil, também deve existir uma branca e outra indigenista, coisas que não existem. A Consciência da importância do negro, do branco e do índio, é que deveria pautar a população como um todo, mas, o propósito de separar a população em nichos pelos políticos e partidários da transformação do Brasil num país comunista, não deixa que tal coisa ocorra, pois, conscientizar toda a população levantaria a questão de que estes que pregam tal coisa, querem apenas o domínio do poder sobre a população, as riquezas e o país como um todo (CHRISPINO, 2020aCHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Zumbi e a consciência negra – existem de verdade? Duna Press, [S. l.], 13 mai. 2020a. Disponível em: <https://bit.ly/3zXnu1s>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3zXnu1s...
).

Com base nesse excerto de Chrispino (2020a)CHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Zumbi e a consciência negra – existem de verdade? Duna Press, [S. l.], 13 mai. 2020a. Disponível em: <https://bit.ly/3zXnu1s>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3zXnu1s...
, para a atual gestão da Fundação Cultural Palmares, a ideia de Consciência Negra seria apenas um artifício de grupos interessados na implementação do comunismo, que, segundo o artigo, se beneficiaria de uma sociedade dividida e internamente rivalizada. O argumento de que a reivindicação racial é algo racista se aproxima do ideário que o regime militar disseminava acerca do movimento social negro na década de 1970 e se encontra, muitas vezes, presente na crítica às políticas de promoção da igualdade racial (FRY et al., 2007FRY, Peter et al. (org.). Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.). Nessa linha, o racismo não existiria enquanto realidade propriamente dita, somente como uma mistificação por parte dos grupos que o denunciam, visando auferir vantagens para si e a destruição da ordem social estabelecida.

A recusa em reconhecer a raça como uma categoria que organiza as relações sociais em nome de uma unicidade biológica da espécie humana se aproxima das noções defendidas pela Unesco desde meados do século XX, mas carrega em si elementos que podem ameaçar não somente a consolidação das políticas públicas de ação afirmativa, como também a própria existência da Fundação Cultural Palmares, conforme expressa a decisão judicial sobre os textos do site da entidade. Na sua argumentação, a juíza federal considera que os artigos publicados desconsideram a raça, a cultura e a consciência negras e que sua publicação pela FCP significaria um endosso desses conteúdos, um desvio de sua finalidade institucional e uma ameaça ao patrimônio histórico-cultural brasileiro. Para além do descumprimento de sua missão institucional, a juíza entendeu que a publicação de tais artigos pela FCP pode representar um risco para as políticas de promoção da igualdade racial. Em sua decisão, a magistrada defende que o conceito social de raça seja mobilizado no sentido de incluir e proteger a população negra, e não suprimido, como defendem os artigos publicados pela FCP:

Ora, desconsideradas as raças, há o risco de que uma categoria social que havia sido utilizada para discriminar, como acima demonstrado, e que continua o sendo na prática, conforme indicam os dados do IBGE pertinente às condições de vida a que submetida a comunidade negra, não possa ser utilizada para proteger as populações desfavorecidas e para aumentar a igualdade de oportunidades (ALMEIDA, 2020ALMEIDA, Maria Cândida C. M. Decisão judicial: processo nº 1028357-89.2020.4.01.3400. Seção Judiciária do Distrito Federal, Brasília, DF, 29 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3buDRsd>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3buDRsd...
).

Finalmente, a decisão judicial considera que a criação da Fundação Cultural Palmares se deu com base na noção de que existe a raça negra e que, portanto, não cabe a ela desconsiderar a sua finalidade institucional:

a existência da raça negra é a premissa que fundamentou a própria criação da FCP. De fato, somente podem ser preservados valores decorrentes da influência negra, se houver uma raça negra. Ao negar dita existência, a Fundação Palmares deixa, portanto, de cumprir suas finalidades institucionais. (…) a atuação da Fundação Palmares se desvirtuou de suas finalidades legais, o que configura abuso de poder sob a forma de desvio de finalidade, e desrespeito ao princípio da legalidade (ALMEIDA, 2020ALMEIDA, Maria Cândida C. M. Decisão judicial: processo nº 1028357-89.2020.4.01.3400. Seção Judiciária do Distrito Federal, Brasília, DF, 29 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3buDRsd>. Acesso em: 2 mar. 2021.
https://bit.ly/3buDRsd...
).

Claro está que a ordem judicial não está assumindo uma noção de raça no sentido biológico, mas sim como um conceito que organiza as relações sociais e pode ser utilizado de forma a reparar as desigualdades históricas impostas à população negra. Vale mencionar que a Justiça determinou a retirada dos artigos do portal eletrônico da FCP, mas não proibiu a sua veiculação em outros espaços virtuais ou impressos não institucionais, preservando, assim, a liberdade de expressão dos(as) autores(as). Por esta razão, dois desses artigos foram republicados em outros sites não oficiais no início de 2021.

Considerações finais

A posição da Fundação Palmares no governo Bolsonaro pode ser compreendida como uma reação a um contexto em que as narrativas nacionais forjadas até os anos 1970 foram contestadas e confrontadas por novas narrativas que surgiram quando os grupos subalternos passaram a ocupar mais espaços de poder. Esse processo é, em certa medida, fruto de uma maior presença desses grupos nos debates públicos, seja por meio de movimentos sociais, de organizações não governamentais (ONG) ou de setores do Estado, trazendo à baila versões contestadoras dos discursos oficiais da nacionalidade brasileira.

Pensar a gestão bolsonarista da FCP nesse contexto significa percebê-la não como a expressão de uma patologia ou excentricidade de seus dirigentes, do presidente da República ou de seu grupo político; significa entender um processo muito mais amplo de lutas simbólicas, econômicas e políticas em torno dos rumos a serem seguidos pelas sociedades nacionais em um período de mudanças profundas ligadas à globalização e à perda relativa de poder pelos Estados. Nessas disputas, procuramos demonstrar como o debate sobre a constituição de efemérides está intimamente associado à legitimidade de ações políticas e de reivindicações coletivas. Esse processo é vivo e se reconstitui continuamente, não se dando nunca por acabado. A ação da FCP no governo Bolsonaro evidencia o processo de construção e disputa dos lugares de memória, atrelados aos valores da nacionalidade.

Trata-se bem de uma disputa pela memória, pois se a ação governamental tem tentado apagar a memória reivindicada pelos movimentos sociais negros e segmentos da intelectualidade acadêmica, há resistências a esse projeto, inclusive, no interior do aparato estatal, como provam as liminares judiciais que impediram a posse do atual presidente da FCP durante meses e as que ordenaram a retirada dos textos considerados como ofensivos à memória de Zumbi do site oficial da entidade. Além disso, diversos segmentos sociais têm se mobilizado para combater as posições ofi-ciais emanadas da FCP, seja por meio de artigos na imprensa e nas redes sociais, de ações na justiça ou de denúncias em fóruns internacionais.

Tal fato demonstra que, ao menos em regimes democráticos, não se muda a memória impunemente, levando em consideração apenas os desejos dos governantes. Os atores envolvidos nesse processo representam diversos interesses e visões de mundo, oriundos de lugares sociais e institucionais os mais díspares possíveis. Isso significa que as versões que se tornarão hegemônicas no futuro dependem de relações de força no campo político, sobretudo no interior do Estado, das posturas adotadas pelo judiciário e do modo como setores da sociedade civil se posicionarão sobre qual passado deve ser cultuado. Os dados estão lançados!

Nesse sentido, o papel da História, enquanto disciplina acadêmica, é de grande relevância. Não apenas, segundo Pierre Nora (1993)NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993., pelo seu papel de crítica desmistificadora das memórias criadas e recriadas continuamente nos embates sociais5 5 Somos gratos a um dos pareceristas por nos ter chamado a atenção para esse aspecto da reflexão de Pierre Nora, que concebia a história como anteparo aos abusos da memória de grupos empoderados que tendem a invisibilizar as memórias alheias e a mistificar suas próprias memórias. Ou seja, para ele: “Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. (…) A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discursos” (NORA, 1993, p. 9). , mas também pela possibilidade que ela oferece de se buscar as bases no passado para alimentar lutas emancipadoras (BENJAMIN, 1987 [1940]BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987 [1940]. v. 1. (Coleção Obras Escolhidas).). Afinal, “(…) o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer” (BENJAMIN, 1987 [1940], p. 224-225BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987 [1940]. v. 1. (Coleção Obras Escolhidas).).

Essa tensão entre a história que almeja ser objetiva frente às demandas memorialísticas de grupos que querem impor a sua interpretação do passado como a memória oficial e a busca por “centelhas de esperança” que tirem os perdedores da História da invisibilidade marcam de forma indelével o fazer histórico em nossa época. O próprio Nora (1993, p. 9)NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993. se dá conta de que “uma sociedade que vivesse integralmente sob o signo da história não conheceria, afinal, mais do que uma sociedade tradicional, lugares onde ancorar sua memória”. Poderíamos também acrescentar que essa sociedade é, além de tradicional, elitista, traduzindo a história dos vencedores e das classes dominantes. Isso, entretanto, não significa que os historiadores devem simplesmente acatar as demandas revisionistas dos grupos subalternizados tais quais elas aparecem nos seus discursos reivindicadores de uma nova memória histórica. Cabe a eles, pois, defender uma história consistente, do ponto de vista metodológico, e comprometida com a desmistificação da memória dos “vencedores”, citados por Benjamin (1987)BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987 [1940]. v. 1. (Coleção Obras Escolhidas)., e se posicionar de modo crítico e transformador em suas tentativas de restaurar o passado. Oxalá isso possa nos ajudar a resistir aos que buscam retornar às trevas!

  • 1
    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Os autores participaram das diversas fases da pesquisa e na elaboração do artigo.
  • 4
    Considerando a exclusão deste texto do site após decisão judicial, os autores se colocam à disposição para enviá-lo a quem interessar possa.
  • 5
    Somos gratos a um dos pareceristas por nos ter chamado a atenção para esse aspecto da reflexão de Pierre Nora, que concebia a história como anteparo aos abusos da memória de grupos empoderados que tendem a invisibilizar as memórias alheias e a mistificar suas próprias memórias. Ou seja, para ele: “Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. (…) A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discursos” (NORA, 1993, p. 9NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.).

Referências Bibliográficas

Referências Bibliográficas
  • ALMEIDA, Maria Cândida C. M. Decisão judicial: processo nº 1028357-89.2020.4.01.3400. Seção Judiciária do Distrito Federal, Brasília, DF, 29 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3buDRsd>. Acesso em: 2 mar. 2021.
    » https://bit.ly/3buDRsd
  • AMAT TI, Vera Helena Pancote. Machado de Assis e Zumbi Noel. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3yfuRQz>. Acesso em: 2 mar. 2021.
    » https://bit.ly/3yfuRQz
  • ARAÚJO, Eloi Ferreira de. Cotas: continuidade da abolição. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 14 mai. 2012. Disponível em: <https://bit.ly/3yfvREj>. Acesso em: 1 mar. 2021.
    » https://bit.ly/3yfvREj
  • ARAÚJO, Zulu. Abolição da escravatura e o intercâmbio afro-latino. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3NkjJGp>. Acesso em: 1 mar. 2021.
    » https://bit.ly/3NkjJGp
  • CHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Zumbi e a consciência negra – existem de verdade? Duna Press, [S. l], 13 mai. 2020a. Disponível em: <https://bit.ly/3zXnu1s>. Acesso em: 2 mar. 2021.
    » https://bit.ly/3zXnu1s
  • CHRISPINO, Luiz Gustavo dos Santos. Então… Zumbi tinha escravos? Ainda bem! Duna Press, [S. l], 27 mai. 2020b. Disponível em: <https://bit.ly/39M7WDb>. Acesso em: 2 mar. 2021.
    » https://bit.ly/39M7WDb
  • COBRA, Hilton. Treze. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 13 mai. 2013. Disponível em: <https://bit.ly/3NkcpKM>. Acesso em: 1 mar. 2021.
    » https://bit.ly/3NkcpKM
  • DIAS, Laércio Fidelis. Por que lembrar, em 13 de maio, a Princesa Isabel do Brasil? Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 22 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3y4FrbY>. Acesso em: 27 jun. 2022.
    » https://bit.ly/3y4FrbY
  • FÉLIX, Mayalu. A narrativa mítica de Zumbi dos Palmares. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. [S. l].
  • LOPES, Helio. Discurso do deputado federal Helio Lopes em alusão ao 13 de maio. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3NezEpC>. Acesso em: 29 jan. 2021.
    » https://bit.ly/3NezEpC
  • OLIVEIRA, Erivaldo. Consciência negra: dor, luta e afirmação. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 1 mar. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/39OEiNk>. Acesso em: 1 mar. 2021.
    » https://bit.ly/39OEiNk
  • SILVA, Maria Bernadete L. 2008, o ano de grandes reflexões para a população negra. Fundação Cultural Palmares, Brasília, DF, 2008. Disponível em: <https://bit.ly/39Rz4R2>. Acesso em: 1 mar. 2021.
    » https://bit.ly/39Rz4R2
  • ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88) São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan (ed.). Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo São Paulo: Unesco; Anhembi, 1955.
  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura São Paulo: Brasiliense, 1987 [1940]. v. 1. (Coleção Obras Escolhidas).
  • BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e perspectiva negra. Sociedade e Estado. Brasília, v. 31, n. 1, pp. 15-24, 2016. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100002> Acesso em: 06 jul. 2022.
    » https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100002
  • BOLDRINI, Angela. Com gritos de ‘Marielle’ e de monarquistas, homenagem à lei Áurea tem tumulto na Câmara. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 mai. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2Vkscyd>. Acesso em: 20 mai. 2019.
    » https://bit.ly/2Vkscyd
  • BRASIL. Lei nº 7.668, de 22 de agosto de 1988. Autoriza o Poder Executivo a constituir a Fundação Cultural Palmares – FCP e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 16002, 23 ago. 1988. Disponível em: <https://bit.ly/3Ovi562>. Acesso em: 27 jun. 2022.
    » https://bit.ly/3Ovi562
  • BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 10 jan. 2003. Disponível em: <https://bit.ly/3y1tIL1>. Acesso em: 27 jun. 2022.
    » https://bit.ly/3y1tIL1
  • BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 11 mar. 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3bCwq1S>. Acesso em: 27 jun. 2022.
    » https://bit.ly/3bCwq1S
  • BRÁULIO, Pablo. Carta prova que princesa Isabel tinha um projeto progressista para o Brasil? Clio: História e Literatura, [S. l], 19 mai. 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3xQkilm>. Acesso em: 9 dez. 2021.
    » https://bit.ly/3xQkilm
  • CAMPOS, Deivison Moacir C. O Grupo Palmares (1971-1978): um movimento negro de subversão e resistência pela construção de um novo espaço social e simbólico Dissertação de mestrado em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.
  • CAMPOS, Luiz Augusto et al. Os estudos sobre relações raciais no Brasil: uma análise da produção recente (1994-2013). In: MICELI, Sergio & MARTINS, Carlos Benedito (org.). Sociologia brasileira hoje II Cotia: Ateliê Editorial, 2018, p. 199-234.
  • CARNEIRO, Sueli. A carta da princesa por Sueli Carneiro. Portal Geledés, São Paulo, 7 out. 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3QTrNRc>. Acesso em: 1 mar. 2021.
    » https://bit.ly/3QTrNRc
  • CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • CAVALCANTE, Sávio Machado. Classe média e ameaça neofascista no Brasil de Bolsonaro. Crítica Marxista, Campinas, n. 50, p. 121-130, 2020.
  • CESARINO, Letícia. Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia São Paulo, v. 62, n. 3, p. 530-557, 2019. Disponível em: <https://bit.ly/3xWY6q2>. Acesso em: 16 abr. 2021. doi: htp://dx.doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2019.165232
    » https://bit.ly/3xWY6q2» htp://dx.doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2019.165232
  • CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
  • DIAS, Maria Odila Silva. A interiorização da metrópole (1808-1853). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822: dimensões São Paulo: Perspectiva, 1972.
  • FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social Brasília: Editora UnB, 2001.
  • FRANÇA, Jean Marcel Carvalho & FERREIRA, Ricardo Alexandre. Três vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro São Paulo: Três Estrelas, 2012.
  • FRANCISCO, Flávio & MACEDO, Márcio. A direita negra: onde os conservadores erram na questão racial. Revista Piauí, São Paulo, n. 171, dezembro 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3HYe2wx>. Acesso em: 1 mar. 2021.
    » https://bit.ly/3HYe2wx
  • FRASER, Nancy. From progressive neoliberalism to Trump – and beyond. American Affairs, Boston, v. 1, n. 4, p. 46-64, 2017. Disponível em: <https://bit.ly/2KxCUxb>. Acesso em: 16 abr. 2021.
    » https://bit.ly/2KxCUxb
  • FRY, Peter et al. (org.). Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
  • GALLEGO, Esther Solano et al. Guerras culturais e populismo antipetista nas manifestações por apoio à Operação Lava Jato e contra a reforma de previdência. Em Debate, Belo Horizonte, v. 9, n. 2, p. 35-45, 2017. Disponível em: <https://bit.ly/2NleqHX>. Acesso em: 1 mar. 2022.
    » https://bit.ly/2NleqHX
  • LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi Memória-História Campinas: Editora Unicamp, 1990.
  • GOMES, Flávio & DOMINGUES, Petrônio (org.). Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil São Paulo: Selo Negro, 2014.
  • GOMES, Flávio dos Santos. De olho em Zumbi dos Palmares: histórias, símbolos e memória social São Paulo: Claro Enigma, 2011.
  • GONZALES, Lélia & HASENBALG, Carlos. Lugar de negro Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.
  • GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 61, p. 147-162, 2001.
  • GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Formações nacionais de classe e raça. Tempo Social, São Paulo, v. 28, n. 2, p. 161-182, 2016.
  • HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva São Paulo: Vértice, 1990 [1950].
  • HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1997.
  • MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil século XIX Campinas: Editora Unicamp, 2013.
  • MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra Lisboa: Antígona, 2014.
  • NASCIMENTO, Abdias. O negro revoltado Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982 [1968].
  • NERIS, Natália. A voz e a palavra do movimento negro na Constituinte de 1988 Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2018.
  • NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.
  • PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e as possíveis rotas de fuga para a crise atual São Paulo: Planeta, 2019.
  • RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995 [1955].
  • RIBEIRO, Matilde. Institucionalização das políticas de promoção da igualdade racial no Brasil: percursos e estratégias: 1986 a 2010 Tese de doutorado em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
  • ROCHA, João César Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político Goiânia: Caminhos, 2021.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira São Paulo: Claro Enigma, 2012.
  • SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • SIMAS, Luiz Antonio & RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

Editado por

Editores Responsáveis
Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2021
  • Aceito
    23 Fev 2022
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História Av. Prof. Lineu Prestes, 338, 01305-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3091-3701 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@usp.br