A Semana de Arte Moderna, no Brasil de 1922, foi uma atividade patrocinada por homens endinheirados, realizada num ambiente de pessoas endinheiradas e assistida por um público de homens e mulheres endinheirados. Seu alcance, todavia, ultrapassou esse universo social, astúcia das Artes, fez-se História também criticamente, às vezes sem o querer, e dialogou com outras modernidades sociais ao indagar o que era aquele Brasil.
Questões de linguagem e problemas que seus principais participantes consolidaram contemplaram presenças populares na cena social e artística, redefiniram a própria concepção de povo brasileiro. E aquele evento não surgiu do nada, dialogou com antecedentes culturais e sociais do Brasil e com vanguardas internacionais.
O mundo que se sucedeu à Revolução Russa de 1917 e ao primeiro pós-guerra não podia mais escamotear a existência dos trabalhadores pobres na cena social e cultural, como se observara na experiência soviética e, depois, no Tratado de Versalhes e na Organização Internacional do Trabalho.
O crítico literário Alfredo Bosi estabeleceu diferenças entre Modernismo e Modernidade, onde escritores de antes e depois, desvinculados da Semana de 1922 e de seus prolongamentos, foram destacados – Lima Barreto, Graciliano Ramos e outros (BOSI, 1997, p. 293-319BOSI, Alfredo. As Letras na Primeira República. In: FAUSTO, Boris (dir.). O Brasil republicano. Sociedade e instituições. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, pp 293/319 (História Geral da Civilização Brasileira, tomo III, volume 2) (1ª ed.: 1976).).
A sutil ironia de Machado de Assis apontou, com alguma acidez, desencontros culturais e sociais brasileiros, deu ênfase a Capital e Ética, Escravidão e Europeísmo deslocado, Mulheres e Direitos: identidade nacional e povo eram problemas (ASSIS, [1908] 2006, p. 1095-1200ASSIS, José Maria Machado de. Memorial de Aires. In: Machado de Assis – Obra Completa. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, pp 1095/1200 (1ª ed.: 1908).).
Sylvio Romero realçou que não existia Brasil sem negros e índios: o país não era uma branca Europa tropical, índios e negros configuravam mais que exotismos locais (ROMERO, [1883], 1985ROMERO, Sylvio. Cantos populares do Brasil. São Paulo/Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1985 (1ª ed.: 1883).).
Euclides da Cunha permitiu ver a grandeza de um povo dotado de força e saberes, ignorado e destruído por governos que se diziam, pateticamente, sua coisa (res publica) (CUNHA, 1984 [1902]CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Três, 1984 (1ª ed.: 1902)..
Lima Barreto escancarou um mundo de violências contra pobres e mulheres, feroz racismo, instituições disciplinares, República contra povo e potencialidades críticas (BARRETO, 1956 [1915]BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Brasiliense, 1956 (Obras de Lima Barreto, II - 1ª ed.: 1915).).
E Monteiro Lobato esboçou um Brasil que prescindia de raças para explicar seu povo, equiparou racialmente Jeca Tatu aos bandeirantes (LOBATO, 1980 [1918]LOBATO, José Bento Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1980 (1ª ed.: 1918).).
O Modernismo brasileiro, ao combater vestígios de passado, agiu como se esses nomes nada lhe dissessem, rejeitou asperamente argumentos de Lima Barreto e Monteiro Lobato4 4 São conhecidas as rejeições modernistas aos textos: BARRETO, Afonso Henriques de Lima. “O Futurismo”. Careta. Rio de Janeiro: XV (735), 22 jul 1922; LOBATO, José Bento Monteiro. “Paranoia ou mistificação?”. O Estado de S. Paulo. São Paulo: 14215, 20 dez 1917. . O principal crítico e esteta do grupo, Mario de Andrade, todavia, fez um posterior acerto de contas em relação a Machado de Assis e Lima Barreto, reconheceu-lhes a fina e inovadora Psicologia narrativa (ANDRADE, 1972 [1939], p. 149-153ANDRADE, Mario de. A Psicologia em ação. In: O empalhador de passarinho. São Paulo/ Brasília: Martins/INL, 1972, p 149/153 (Texto original de 19.11.1939).). E as incursões etnográficas de Mario, que Gilda de Mello e Souza considerou parte de sua Estética (ANDRADE, 1982 [1959]ANDRADE, Mario de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo/Brasília: Martins/INL, 1982 (1ª ed.: 1959).), retomaram faces dos escritos de Sylvio Romero.
Vanguardas europeias se interessaram por linguagens artísticas de povos de fora da Europa5 5 Isso não se confunde com reprodução imitativa, como se observa em (FRANCASTEL, 1990 [1952]). . Para o Brasil, “fora da Europa” era aqui mesmo: indígenas, africanos, múltiplos imigrantes repaginados, “contribuição milionária de todos os erros” (ANDRADE, 1972 [1928]ANDRADE, Mário. Macunaíma – O herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins, 1972 (1ª ed.: 1928).), que, conforme muitos dos Modernistas, eram acertos.
Mario de Andrade e Paulo Prado publicaram, em 1928, dois livros que desfizeram, em grande parte, a explicação racial do Brasil: Macunaíma e Retrato do Brasil (ANDRADE, 1972[1928]ANDRADE, Mario de. A Psicologia em ação. In: O empalhador de passarinho. São Paulo/ Brasília: Martins/INL, 1972, p 149/153 (Texto original de 19.11.1939). e PRADO, 1997[1928]PRADO, Paulo. Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Cia. das Letras, 1997 (1ª ed.: 1928).).
A rapsódia de Mario trouxe um herói “sem nenhum caráter”, que nasceu negro e se tornou branco pela ação de uma fonte miraculosa; um de seus irmãos se banhou nessa água já encardida por Macunaíma, ficou mulato; e o terceiro, que recebeu a água plenamente tingida pelo negror dos outros dois, permaneceu preto, apenas palmas das mãos e solas dos pés clarearam.
Paulo Prado, em seu belo ensaio literário, construiu quase uma parábola: todas as raças que formaram o Brasil se igualavam na tristeza! As cores de pele diversificadas, portanto, foram imaginariamente niveladas pela equalização psicológica, outra negação agridoce e risível das hierarquias raciais.
Foram conquistas de pensamento e de valores intelectuais e políticos que não se confundiam com as biografias pessoais desses Autores: o mulato Mario continuou a usar pó de arroz para tornar a face aparentemente mais clara; e o branco Paulo, de acordo com fala de Tarsila do Amaral, rompeu com Oswald de Andrade porque este último se referiu publicamente a sua parenta Veridiana Prado como “gloriosa mulata”...6 6 AMARAL, Tarsila do. Entrevista a Leo Gilson Ribeiro para a revista Veja. São Paulo, Abril Cultural, 23 fev1972. Tarsila do Amaral - a última entrevista - Templo Cultural Delfos htp://www.elfikurten.com.br› tarsila.
O riso fiosofante e literário de Mario, Paulo e Oswald, em diferentes gêneros textuais, esteve associado a uma liberdade modernista em relação a hierarquias artísticas: paródias, caricaturas, piadas e ilustrações da Imprensa periódica, junto com música folclórica e música de mercado, Teatro de Revista e o nascente Cinema, foram postos em diálogo com modalidades artísticas consideradas tradicionalmente como eruditas. Mais que suspender padrões de qualidade7 7 Rejeitar tal suspensão é um tema presente em: ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento – Fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 (1ª ed.: 1944). Malgrado a erudição desses Autores e a importância do livro no contexto de seu surgimento (Nazismo, Holocausto, Segunda Guerra Mundial – e, em seguida, Hiroshima/Nagasaki e Guerra Fria), Adorno e Horkheimer omitiram a necessidade de superar tal hierarquia, tão vinculada a privilégios de classe. Certamente, a indústria cultural não era nem é o caminho para essa ultrapassagem. , ele problematizava cânones, convidava artistas e públicos a pensarem sobre categorias que corriam o risco de petrificação.
Embora Modernistas não se confundissem com Regionalismos, o contato entre artistas e intelectuais de diferentes estados brasileiros foi cultivado por muitos deles, especialmente Mario de Andrade. Essas relações são importantes para a compreensão de que nem tudo, no Modernismo brasileiro, se reduziu a São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Isso não diminui o peso da produção modernista naqueles três primeiros núcleos, apenas realça que não vale a pena manter o adjetivo “regional” para os demais nem os considerar enquanto meros seguidores de paulistas, mineiros e cariocas.
E os próprios Modernistas não se confundiam em bloco com o fascínio cego pela técnica: Mario de Andrade nunca aceitou a identidade de Futurista, diferenciou-se desse discurso de louvor a velocidade, guerra e qualquer novidade; e não quis saudar o futurista Filippo Tommaso Marineti, tornado porta-voz do Fascismo, em visita deste a São Paulo.
O Modernismo abrigou múltiplos projetos e não é ocasional que alguns de seus nomes tenham saudado o Fascismo e seus derivados nacionais com extrema simpatia. Outros, todavia, aproximaram-se do Comunismo. Essas buscas levaram a diferentes destinos políticos e estéticos, Brasis até opostos entre si.
Cabe salientar que a Modernidade popular, no Brasil, não dependeu apenas daquela produção artística e intelectual nascida em 1922, em São Paulo & Cia. Movimentos sociais, desde meados do século XIX, evidenciavam lutas por novos direitos, nascidas entre escravos, libertos e imigrantes pobres, a falar sobre Anarquismo, Greves, Educação, Mulheres, Moradia, Estado Laico, Divórcio e outros tópicos.
Se o ano de 1922, no Brasil, é lembrado pela Semana de Arte Moderna, pelos 18 do Forte/Tenentistas e pela criação do Partido Comunista do Brasil, não é possível esquecer lutas por direitos tão modernas e anteriores quanto Canudos, Contestado, Revolta contra a Chibata, Greve de 1917 e muitas outras, além de Anarquistas e Socialistas em defesa de espaços sociais mais amplos e vozes próprias para os trabalhadores pobres – inclusive Mulheres e Crianças. Isso também é Modernidade! Junto com o Povo dos Modernistas, é preciso pensar a respeito de Modernidade do Povo, suas facetas poliglotas (africanos, indígenas e imigrantes europeus e asiáticos) e de ousadia na invenção de outro país, de outro mundo.
O Brasil se fazia moderno a partir de diferentes sujeitos, artistas ou não. As Artes não apenas falavam (e falam) de pobres e ricos; elas existiam (e existem) num mundo de ricos e pobres, tema, problema e potencial destino de seus produtos. O poder das Artes foi (e vai) além da fala dos que já eram (e são), política, econômica e socialmente, poderosos, em sua gênese e em sua apreensão. Aquele Povo também era portador de outros poderes.
E mais Modernidades continuaram e continuam, apesar do “Pós-Moderno”.
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São conhecidas as rejeições modernistas aos textos: BARRETO, Afonso Henriques de Lima. “O Futurismo”. Careta. Rio de Janeiro: XV (735), 22 jul 1922; LOBATO, José Bento Monteiro. “Paranoia ou mistificação?”. O Estado de S. Paulo. São Paulo: 14215, 20 dez 1917.
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Isso não se confunde com reprodução imitativa, como se observa em (FRANCASTEL, 1990 [1952]FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade – Nascimento e destruição de um espaço plástico. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1990 (1ª ed.: 1952).).
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AMARAL, Tarsila do. Entrevista a Leo Gilson Ribeiro para a revista Veja. São Paulo, Abril Cultural, 23 fev1972. Tarsila do Amaral - a última entrevista - Templo Cultural Delfos htp://www.elfikurten.com.br› tarsila.
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Rejeitar tal suspensão é um tema presente em: ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento – Fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 (1ª ed.: 1944). Malgrado a erudição desses Autores e a importância do livro no contexto de seu surgimento (Nazismo, Holocausto, Segunda Guerra Mundial – e, em seguida, Hiroshima/Nagasaki e Guerra Fria), Adorno e Horkheimer omitiram a necessidade de superar tal hierarquia, tão vinculada a privilégios de classe. Certamente, a indústria cultural não era nem é o caminho para essa ultrapassagem.
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Texto de Apresentação do Dossiê 1922/2022: o século da Semana – balanços e perspectivas OrganizadoresFrancisco Alambert, Marcos Antonio da Silva, Nelson Tomelin Jr.
Referências Bibliográficas
- ANDRADE, Mario de. A Psicologia em ação. In: O empalhador de passarinho São Paulo/ Brasília: Martins/INL, 1972, p 149/153 (Texto original de 19.11.1939).
- ANDRADE, Mario de. Danças dramáticas do Brasil São Paulo/Brasília: Martins/INL, 1982 (1ª ed.: 1959).
- ANDRADE, Mário. Macunaíma – O herói sem nenhum caráter São Paulo: Martins, 1972 (1ª ed.: 1928).
- ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça (Org.). Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro Petrópolis: Vozes, 1997 (1ª ed. do documento: 1928).
- ASSIS, José Maria Machado de. Memorial de Aires. In: Machado de Assis – Obra Completa. I Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, pp 1095/1200 (1ª ed.: 1908).
- BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma São Paulo: Brasiliense, 1956 (Obras de Lima Barreto, II - 1ª ed.: 1915).
- BOSI, Alfredo. As Letras na Primeira República. In: FAUSTO, Boris (dir.). O Brasil republicano. Sociedade e instituições Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, pp 293/319 (História Geral da Civilização Brasileira, tomo III, volume 2) (1ª ed.: 1976).
- CUNHA, Euclides da. Os sertões São Paulo: Três, 1984 (1ª ed.: 1902).
- FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade – Nascimento e destruição de um espaço plástico Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1990 (1ª ed.: 1952).
- LOBATO, José Bento Monteiro. Urupês São Paulo: Brasiliense, 1980 (1ª ed.: 1918).
- PRADO, Paulo. Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira São Paulo: Cia. das Letras, 1997 (1ª ed.: 1928).
- ROMERO, Sylvio. Cantos populares do Brasil São Paulo/Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1985 (1ª ed.: 1883).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
14 Out 2022 -
Aceito
14 Out 2022