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A “QUESTÃO PENITENCIÁRIA” NO RIO GRANDE DO SUL COMO ARMA POLÍTICA CONTRA O IMPÉRIO (1884-1889)1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciados no artigo.

THE “PENITENTIARY QUESTION” IN RIO GRANDE DO SUL AS A POLITICAL WEAPON AGAINST THE EMPIRE (1884-1889)

Resumo

O presente artigo analisa como o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), fundado em 23 de fevereiro de 1882, instrumentalizou politicamente as mazelas e negligências penal-carcerárias no Rio Grande do Sul, entre 1884 e 1889, a partir das páginas do jornal A Federação, contra o Estado imperial. Busca-seesclarecer como a gestão penitenciária da província alimentou ataques não somente aos representantes da coroa, como também ao próprio regime monárquico,a partir derelatórios, denúncias, queixas, memorandos, testemunhos de diferentes instituições e indivíduos acerca das condições higiênicas, de segurança, administração, ordem e moralidade vivenciadas pelasprisões sul-rio-grandenses ou em torno delas. Através de um levantamento exaustivo desses testemunhos, alguns dos quais transcritos de outros jornais interioranos e publicanos no órgão oficial da legenda, foi possível perceber como as lideranças do PRR construíram habilmente um discurso propositivo crítico sobre esse ramo da administração da justiça, em detrimento das (des)atenções recebidas das autoridades responsáveis do executivo provincial.

Palavras-chave
Rio Grande do Sul; Partido Republicano Rio-Grandense (PRR); A Federação; questões penitenciárias; Império

Abstract

This article analyzes how the Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), founded on February 23, 1882, politically instrumentalized the deleterious and negligent penal-prison population in the Rio Grande do Sulfrom 1884 to 1889, according to the pages of the newspaper A Federação, against the Imperial State. It seeks to elucidate how province penitentiary management incited attacks, not only tocrown representatives but also on the monarchic regime itself, based on reports, denunciations, complaints, memoranda, testimonies from different institutions and individuals about hygienic, security conditions, administration, order and morality experienced by theRio Grande do Sul prisons. Through an exhaustive search of these written texts, some transcribed from provincial and publican newspapers from PRR’s official organ, it was possible to notice how PRR leaders skillfully built a critical discourse rather than attention received or not from the provincial executive’s responsible authorities.

Keywords
The Rio Grande do Sul; Partido Republicano Rio-Grandense (PRR); A Federação ; penitentiary question; Empire

Introdução

Ao contrário do que sucedeu nas antigas possessões latino-americanas do império espanhol, em queas péssimas condições carcerárias e os obscuros procedimentos penais foram utilizados como arma política, associados aos “horrores do colonialismo”, no Brasil, a permanência de um bragança no poder, além da manutenção do regime monárquico, dificultou um uso similar do passado colonial português. Enquanto alguns dirigentes políticos, incluíndo o general José de San Martín, tomavam as bizarras imagens carcerárias como reflexo da tirania ou desídia da antiga forma de governo (AGUIRRE, 2009, p. 38-39AGUIRRE, Carlos. Cárcere e sociedade na América Latina, 1800-1940. In: MAIA, Clarisa Nunes; ALBUQUERQUE NETO, Flávio de Sá; COSTA, Marcos; BRETAS, Marcos Luiz. (Orgs.). História das Prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 38-39.), as primeiras medidas reformistas de D. Pedro I, neste ramo,eram apresentadas como um gesto “flantrópico” de sua Majestade Imperial, fruto de suas “Virtudes Innatas”, “Herdadas de Seos Augustos Progenitores” (FRANÇA, 1826, p. 14-15FRANÇA, Clemente Ferreira. Conta, que a sua Magestade O Imperador da o Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios da Justiça, do tempo da sua administração. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Nacional, 1826.).

Como se pode ver, não há rompimento, nem lugar a usos políticos críticos do passado,fosse para atribuir culpas ou justificar qualquer tipo de projeto novo. Pelo contrário, tudo o que se viesse a fazer devia ser visto como uma continuidade, mantendo-se ou modificando-se o que se herdou do período colonial, pois o grito do sete de setembrotambém havia significado a permanência, como se disse, de uma rama legítima da velha dinastia dos braganças.

De fato, oReino Unido e sua dinastia, sempre de olho ao que se passava com seus vizinhos americanos, sobreviveram aos solavancos políticos, guerras, crises econômicas e mazelas sociais, valendo-se de uma experiência a qual se pode atribuir, quando da ruptura brasileira, à própria instituição de um regime monárquico constitucional no país (PIMENTA, 2015PIMENTA, João Paulo. A independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2015.). O que, por certo, acabou afastando, durante muitos anos, a sombra republicana. Mas eis que depois de transcorridos praticamente cinquenta anos, as coisas se inverteriam no último quartel do século XIX, com o surgimento dos partidos republicanos. A partir de então, correligionários e entusiastas, por meio de seus órgãos de imprensa, empreenderiam uma autêntica cruzada contra o regime monárquico, sem poupar nem mesmo o Imperador.

Usufruindo da liberdade de imprensa, os republicanosnão tiveram reparos em usar o que estava ao alcance para criticar e demonstrar quão carunchoso acreditavam se encontrar o sistema de governo vigente.Praticamente tudo aquilo que colocava o governo imperial e seus representantes em evidência se convertia rapidamente em arma política em suas mãos.E isso foi exatamente o que fizeram os republicanos sul-rio-grandenses, em relação às questões penitenciáriasda província, a partir de seu principal órgão de imprensa, criado em 1884.

Fruto da iniciativa de alguns dos principais membros do partido,o A Federação foi aprovado no I Congresso do PRR, em 1883, encabeçado por Venâncio Aires, Ramiro Barcellos, Ernesto Alves, Barros Cassal, Borges de Medeiros, Fernando Abbot, Carlos Barbosa, Germano Hasslocher e Júlio de Castilhos.Com “a missão de divulgar os ideários republicanos”, “combater o regime monárquico” e advogar pelo “término da escravidão” (LEITE, 2016LEITE, Carlos Roberto Saraiva da Costa. “A Federação”, um jornal que fez história. In: Observatório da imprensa, [S. l.], 2016. Disponível em: <https://www.observatoriodaimprensa.com.br/memoria/federacao-um-jornal-que-fez-historia/.>. Acesso em: 21 jan. 2022.
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)3 3 A meados de 1884, segundo Cezar, a província de São Pedro contava com aproximadamente 58 jornais, sendo o A Federação a folha de maior circulação, imprimindo “cerca” de dois mil exemplares. A exceção dela, do A Reforma, e “talvez” do Jornal do Commercio da capital e do Correio Mercantil de Pelotas, nenhuma outra atingia os mil exemplares. Tinha o fomato de 55x35 cm e custava 14 mil réis a assinatura tanto para a capital quanto para o interior/exterior. Sua tipografia ficava na rua dos Andradas, nº 289 e 291, tendo sido Venâncio Aires seu primeiro diretor de redação. As oficinas operavam então com duas máquinas do fabricante Marinoni, a saber: a prensa Universelle e a Utile. Na primeira se imprimia a folha e na segunda se faziam “trabalhos de todo o genero”. Nessa época, a prensa Utile utilizada era a única existente na província: “É de grande perfeição mechanica, elegante e de muita facilidade para o trabalho. Ambas as machinas são movidas por um motor a gaz (invenção allemã) da força de um cavallo – typo Oto: D. W. Beel” (CEZAR, 1884, p. 190-191; 200).Conforme Franco (2018, p. 164), o jornal circulou até 16 de novembro de 1937, devido à instauração do Estado Novo. , passou a circular no dia 1º de janeiro de 1884, tornando-se, rapidamente, uma das principais folhas do Rio Grande do Sul.

A estratégia, conforme ainda se verá, era deixar as autoridades monárquicas presas num fogo cruzado de denúncias que questionavam não somente sua capacidade de governo, como o próprio Estado imperial, enquanto gestor das demandas e obrigações penal-carcerárias.A partir do Ato Adicional de 1834, coube às Assembleias Legislativas Provinciais “a construção de prisões e casas de correção e também sobre o regime nelas a ser adotado”(SALLA, 2006, p. 46SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. 2ª ed. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2006.), mas o cumprimento das disposições legislativas, administração e fiscalizações, logicamente, competia aos ocupantes das principais cadeiras do executivo provincial.

Por isso,os desleixos, negligências, ou inaptidões políticas em assuntos penal-carcerários, não passavam batido para os dirigentes do PRR. Um mapeamento de matérias, notas e outras reportagens acerca deste ramo, publicados ao longo do período em tela, não deixam lugar a dúvidas sobre um uso político inquestionavelmente deliberado. Algo importante a se destacar, nesse sentido, é que além das denúncias envolvendo a Cadeia Civil de Porto Alegre e seus inquilinos, já por então o maior depósito de indesejáveis da província, também se olhava para fora da capital, onde igualmente abundavam os casos de desrespeito às leis penais, aos direitos constitucionais, além de toda uma sorte de abusos praticados por autoridades policiais e carcerárias aos indivíduos privados de liberdade.

Notícias das imperiais cadeias da Província de São Pedro

Conforme mencionado, oA Federação, desde o início de sua atuação, deu muita atenção aos problemas penal-carcerários,e não somente aos da capital. Valendo-se de reportagens publicadas em periódicos interioranos4 4 Conforme Cezar (1884, p. 188), a província do Rio Grande do Sul possuía em 1884 aproximadamente 56 jornais, dos quais apenas 18 eram diários: 5 na capital, 5 no Rio Grande, 5 em Pelotas, e 3 em Jaguarão. A imensa maioria aparecia uma ou duas vezes por semana. Daquele total, 15 eram “declaradamente politicas”, e dentre essas, 6 apresentavam-se como “órgãos de partido”: 3 conservadoras (1 na capital, 1 no Rio Grande, e 1 em Pelotas), 2 liberais (1 na capital e 1 em Jaguarão), e 1 republicana (na capital). Das 15 folhas: 6 eram conservadoras (2 na capital, 1 no Rio Grande, 1 em Pelotas, 1 em Jaguarão e 1 em Santa Vitória do Palmar); 6 liberais (1 na capital, 2 no Rio Grande, 1 em Pelotas, 1 em Jaguarão e 1 em Santa Vitória); e 3 republicanas (2 da capital e 1 em São Gabriel). , lograva-se pintar um quadro dantesco não somente do cotidiano/estado de conservação das imperiais cadeias da província de São Pedro, como também das falhas/irregularidades da administração da justiça e do cumprimento efetivo das penas de privação de liberdade. Esse esforço de compilação e transcrição, como já se advertiu, tinha intenções e objetivos políticos, motivo pelos quais uma incursão mais detida por essas reportagens se faz inicialmente necessária.

Já em 25 de abril de 1884, se informou sobre uma comissão de vereadoresde Pelotas, encarregados de inspecionar a cadeia,a fim de providenciarem “os melhoramentos de que tanto carece aquelle edificio, que é quasi imprestavel” (A FEDER AÇ ÃO, 25/04/1884, p. 1). No final desse mês, “um editorial” transcrito do Precursor5 5 Descrita como uma folha de “pequeno formato”, surgida em 1884, com o material tipográfico “novo”. Publicava-se nos seguintes dias: 1, 5, 9, 13, 17, 21 e 25 de cada mês. Caracterizado como “orgão republicano”, era dirigido por Joaquim Francisco de Assis Brasil, que contava como “auxiliares” Fernando Abbot, Tito Prates da Silva e Manoel Brandão Junior (CEZAR, 1884, p. 198-199). dava conta de “dois infelizes” que se encontravam “atirados” na cadeia de São Gabriel. Apesar de terem ingressado em 10 de julho de 1881, oriundos de São Vicente, ainda permaneciam indiciados pelo crime de tentativa de morte, mas sem a conclusão da formação de culpa. Mesmo após “decorridos trinta e tres mezes”, acrescentava-se que não se havia inquirido uma só testemunha. A matéria também incluía a reclamação do Delegado de Polícia de São Gabriel,dirigida à Câmara Municipal, para que aquela providenciasse uma enfermaria para a cadeia pública (A FEDERAÇÃO, 30/04/1884, p. 2).

De Santana do Livramento, no extremo sul do Rio Grande do Sul, informou-se em 14 de maio que um Juiz de Direito mandara por em liberdade um indivíduo que levava preso seis meses na respectiva cadeia, “sem culpa formada” (A FEDERAÇÃO, 14/05/1884, p. 2). A partir das “linhas” do Cruzeiro do Sul6 6 Também descrita como “de pequeno formato e bi-semanal”, oferecendo a anuidade para a localidade por 16 mil réis e para fora por 18 mil réis. As oficinas tipográficas estavam localizadas na rua Barão do Triumfo, nº 67 e 69. Em 1884, seu redator era Jorge Reis, “que professa idéas republicanas”, embora a folha em si se apresentasse como “commercial e noticiosa” (CEZAR, 1884, p. 198). de Bagé, mantendo sempre o tom de denúncia, a republicana redação reproduziu o caso da prisão de um indivíduo em D. Pedrito, em 5 de julho de 1883, já condenado pelo crime de estelionato, em 10 de dezembro do mesmo ano, a seis meses de prisão com trabalho. Até aí tudo bem, o problema é que o citado sentenciado, devendo cumprir a pena na cadeia de Porto Alegre, havia sido enviado para a de Bagé, onde se achava aguardando traslado desde janeiro de 1884 (A FEDERAÇÃO, 22/07/1884, p. 1).

De uma reclamação realizada pelos presos da cadeia civil, daquela mesma cidade, ao Delegado de Polícia, publicada no Cruzeiro do Sul, extraiu oA Federação a descrição de que a referida prisão era

(…) suja, immunda, humida, pestifera, além de não oferecer as precisas commodidades, est[ando] ali na praça principal reclamando urgentemente composturas e apresentando um triste espectaculo no seu todo, como edificio velho e carunchoso! (A FEDERAÇÃO, 02/08/1884, p. 2).

A influência e interferência de poderosos locais, também aparecem nessas páginas, revelando usos privados das forças e instituições estatais, além de dar mostras evidentes de impunidade no mundo escravocrata das charqueadas. Do Onze de Junho7 7 De propriedade de Antonio da Silva Moncorvo Junior, já contava então com 16 anos de existência. Media 55x38 cm, e a assinatura anual custava 18 mil réis para a localidade e 22 mil réis para fora, localizando-se na rua São Miguel. A tipografia possuía uma máquina Marinoni. Segundo consta, esse jornal surgiu na cidade de Jaguarão, “tirando o titulo da data que glorifica um dos mais heroicos feitos da esquadra brazileira – o combate naval de Riachuelo”. Depois de alguns anos o proprietário o transferiu para Pelotas, colocando-o, como o fez inicialmente em Jaguarão, “ao serviço do partido conservador”. Depois de uma nova estância em Jaguarão, período em que se suspendeu a publicação, voltou à Pelotas e reativou o jornal, “sem porém flial-o a partido algum”. Segundo Cezar, na “propaganda abolicionista nenhuma folha pelotense póde disputar glorias ao Onze de Junho” (CEZAR, 1884, p. 195-196). , periódico de Pelotas, extraiu-se o caso de um escravo de nome Manoel, pertencente a um importante charqueador da região, chamado Felisberto José Gonçalves Braga, que, segundo se informou, havia aparecido morto na cidade de Rio Grande. A morte do “pardo”, escravo de Felisberto, não foi,porém, o verdadeiro mote da notícia, mas sim o fato de o suposto algoz (outro escravo) ter sido entregue ao seu senhor pelo carcereiro de Pelotas, mesmo pesando sobre suas costas a acusação de envolvimento num crime de morte. Para complicar ainda mais as coisas, o Artista8 8 Contava então com 22 anos de existência. De propriedade de Antonio da Cunha Silveira, media 59x41 cm, e custava a anuidade 18 mil réis para a localidade e 20 mil réis para fora. Seu redator se chamava Arthur Rocha e a tipografia se localizava à rua dos Príncipes, nº 54. Segundo Cezar, era um “orgão liberal”, e funcionava com uma máquina de impressão da marca Pierron & Frères, “se não me engano”, e com outra de pedal, “para trabalhos avulsos” (CEZAR, 1884, p. 193-194). , uma folha de Rio Grande, ao transcrever a notícia,afirmou“que não consta haver ali apparecido o cadáver de Manoel” (A FEDERAÇÃO, 04/10/1884, p. 2). Mas não importava a versão, o que interessava denunciar era o sumisso do escravizado que deveria estar devidamente preso para averiguações.

E para fechar com a primeira rodada de notícias-denúncias de sucessos transcritas pelo órgão republicano, sobre questões penal-carceráriasde diferentes municípios sul-rio-grandenses, de Cachoeira, o jornal O Pharol9 9 Fundado em 1882, por João de Araujo e João Maia. Após a saída de Maia da cidade, o primeiro ficou como proprietário e redator. Era publicado nas quintas-feiras e aos domingos, media 45x30 cm, e então custava para a localidade 10 mil réis a anuidade ou 12 mil réis para fora. A oficina tipográfica situava-se na rua Silveira Martins, nº 32. “Não é orgão politico, mas inclina-se à prédica dos principios republicanos” (CEZAR, 1884, p. 197). relatou que, após as acusações vertidas contra o carcereiro da cidade terem aparecido em um “artigo editorial”, o respectivo funcionário teria promovido “um abaixo assignado entre os presos ali encarcerados”. Mas segundo averiguações, “alguns d’eles não têm sciencia d’este facto, porque, não sabendo escrever, foram inscriptos seus nomes por pessoas a quem o dito carcereiro illudio”, e outros o fizeram “com receio de que fossem mais maltratados” (A FEDERAÇÃO, 10/12/1884, p. 1).

A pena beligerante dos republicanos congregados em torno do PRR não arrefeceu durante todo o período em tela (1884-1889). E como já se observou, não se contentava em ressaltar apenas o que se passava na capital, uma vez que as franquias do poder imperial se estendiam capilarmente pelos mais distantes rincões da província, encarnados em suas instituições e autoridades locais, como delegados, policiais, guardas e carcereiros.

Em janeiro de 1885, por exemplo, se disse que o Delegado de Polícia e o Comandante da seção policial de Pelotas continuavam a ser acusados pela imprensa. Porém, antes mesmo de se transcrever a notícia inteira, adiantou-se a quem ia dirigida: “Leia o sr. presidente da provincia o que sobre aquella autoridade diz o Onze de junho de 25”. Copiado dessa folha, o caso dizia respeito a uma surra com requintes de crueldade propinada a alguns presos correcionais. Conforme a reportagem, aproximadamente às nove horas da manhã do dia 24 de janeiro, depois de mandar fechar todas as portas e janelas da cadeia, o delegado de polícia ordenou ao carcereiro que levasse ante ele o pardo livre chamado Mauricio, o escravizado Pedro, marinheiro do hiate Gravatahy, e um ex-praça do 5º Regimento de Cavalaria, “homem de côr”, com mais de 50 anos, além de Julio Pereira da Silva, branco e livre. Após despidos de suas roupas a mando do referido delegado, um soldado da seção policial, de nome Gregorio, desferiu, com exceção de Julio, “algumas chicotadas, em numero maior de 15, com azorrague de quatro pernas[,] iguaes aos que se usam nas nossas xarqueadas!” (A FEDERAÇÃO, 31/01/1885, p. 1).10 10 Conforme ainda a reportagem, Julio Pereira da Silva, homem branco e livre, só escapou ao azorrague graças à intervenção em seu favor realizada pelo Carcereiro, João Ignacio de Souza. Um dos supliciados queixou-se ao Juiz de Direito da Comarca, que por sua vez prometeu averiguar o caso.

Em 18 de maio, deu-se destaque à denúncia de um espancamento produzido na mesma cadeia, em um “súdito portuguez” e, em 2 de junho,se noticiou terem “encerrado o inquerito sobre os crimes da cadêa civil, em que está implicado o carcereiro” de Pelotas (A FEDERAÇÃO, 18/05/1885, p. 1; 02/06/1885, p. 2). No ano seguinte, a finais de janeiro, se transcreveu do Diario do Rio Grande11 11 Naquele ano cumpriria 40 anos em atividade, e era o decano do jornalismo na província. A assinatura anual saía por 18 mil réis para a localidade e 20 mil réis para fora. A redação estava aos cuidados de Zacarias Salcedo, que também redigiu durante algum tempo o Artista. Tinha o formato de 60x39 cm e funcionava na rua dos Príncipes, nº 31, com “boa machina de impressão”. Ainda segundo Cezar, “segue a politica do partido liberal”, mas enquanto fora seu proprietário Antonio Estevão de Bitencourt e Silva, “durante muitos annos, manteve a folha como orgão das idéas conservadoras” (CEZAR, 1884, p. 192). outro caso de espancamento, dessa vez ocorrido na cadeia contra um escravizado.

Além de estremecedor, o sucesso revela claramente os alvos políticos das críticas republicanas tecidas através do órgão oficial do PRR. É explícita a execração do escravismo, mas mais do que isso, se denunciavamos usos particulares das instituições estatais e de suas forças da ordem. As cadeias, teoricamente, não deveriam servir como “simples succursaes das senzalas e dos eitos” (A FEDERAÇÃO, 27/01/1886, p. 2), como se disse,nem muito menos de espaços de barbárie e truculênciasexercidas por uma “autoridade policial”, involucrando a sua guarda e certamente ao carcereiro, todos eles representantes do aparelho repressivo imperial em âmbito local, mas o certo é que a prática vinha de longe.12 12 Devido ao crescente rechaço ante as cenas de sofrimento alheio, geradas pela sensibilidade civilizada, tornou-se comum e institucionalizada desde a primeira metade do século XIX, a prática de castigar cativos no interior das cadeias. Mas nos anos finais do século XIX se desenvolveu um amplo movimento de condenação do ato de castigar escravizados. Pirola (2017), por exemplo, ao analisar as disputas travadas nesse campo, acresce que para se entender a Lei de 15 de outubro de 1886, que aboliu a pena de açoites, há de se observar igualmente os debates ocorridos tanto no âmbito jurídico, como na imprensa das décadas finais da escravidão no Brasil.

Como já vimos em outra reportagem, essas denúncias muitas vezes iam expressamente dirigidas aos governantes, como uma de 11 de maio de 1885, em que se disse que a Gazeta Pedritense13 13 Fundado por Camboim Junior e descrito como de “pequeno formato”, publicado às quintas-feiras e aos domingos, de manhã. Em 1884/1885 custava a assinatura anual 15 mil réis para a localidade e 16 mil réis para fora. A tipografia funcionava na Praça General Osório, nº 31. Por então estava “dirigido e redigido” por Rodolpho Gomes e Gavino Machado da Silveira. “É inclinado ao partido liberal” (CEZAR, 1884, p. 197 e 198). “oferece ao sr. conselheiro José Julio uma interessante noticia sobre a policia n’aquella localidade”. Conforme o jornal: “Não póde haver policia mais desbriada, nem mais immoral do que a [pedritense], salvo honrosissimas excepções”. As praças da seção policial daquela vila “continuam em repetidas borracheiras, desordens e inmoralidades”, e em relação à “guarda da cadêa civil então não se falla...”: “Jogatinas, descomposturas, palavras obscenas, ajuntamento de mulheres de má vida e peior bebida, tudo ali vê-se em largas proporções”. Nada mais incondizente com a função, as “praças, quando lhes parece, abandonam o seu posto, e vão visitar os quintaes visinhos; a sentinella dorme, ou vai à esquina conversar com a sua Dulcinéa: os presos embriagam-se; emfim, um cumulo... de patifarias” (A FEDERAÇÃO, 11/05/1885, p. 3).

Outras vezes se enfatizava o desrespeito aos procedimentos judiciais, ou às leis penais, quando não aos próprios direitos civis básicos garantidos pela Constituição. Indivíduos encarcerados durante meses a fo sem culpa formada, como o sucedido com Berlamino Alganboraz, posto em liberdade por um Juiz de Direito, após longos seis meses na cadeia de Santana do Livramento, é um exemplo bastante ilustrativo(A FEDERAÇÃO, 14/05/1884, p. 2). Mas havia outros, como o caso do preso Guilherme Kofman, de cidadania norte-americana, autor de uma carta enviada à redação do jornal A Reforma14 14 Órgão oficial do Partido Liberal. Media 15x34 cm e já contava então com 18 anos de existência. Localizava-se na rua dos Andradas, nº 345, e sua assinatura anual em 1884/1885 custava12 mil réis para a capital e 16 mil réis para fora. Segundo Cezar (1884, p. 189-190), por essa época, as oficinas funcionavam apenas com uma prensa Alauzet “movida a braço”, que antes havia servido ao Constitucional, órgão conservador. Conforme Franco, foi um “dos mais importantes jornais políticos de Porto Alegre no século XIX. Apareceu seu primeiro número em 16/6/1869, sob o signo do movimento de reforma política preconizado pelo Partido Liberal, cujas posições sempre defendeu” (2018, p. 341). , em abril de 1886, transcrita peloA Federação. Nessa carta Kofman denunciou o tratamento ilegal recebido, afirmando que por ordem do Subdelegado Carvalho, fora recolhido à cadeia de Porto Alegre sob a acusação de ter vendido objetos roubados e ser vagabundo (A FEDERAÇÃO, 29/04/1886, p. 1).

A precariedade dos cárceres em termos de higiene e/ou segurança, também era volta e meia destacada. Em novembro de 1885, por exemplo, se fez na Assembleia Provincial a defesa de um projeto

(…) consignando uma verba para a construcção de um predio destinado à cadêa civil de S. Borja, onde actualmente se acham os presos recolhidos a um casebre que nem para gallinheiro serve, na expressão intensamente realista do orador (A FEDERAÇÃO, 11/11/1885, p. 2).

Apesar da adjetivação da referida cadeia, o então Presidente da Província, Henrique Pereira de Lucena, vetou a “emissão de apólices” que cubririamos gastos de construção do novo cárcere (A FEDERAÇÃO, 28/12/1885, p. 2). Lucena até poderia ter lá suas razões para o veto, mas a imprensa republicana utilizava esse tipo de decisão para construir uma imagem de inoperância, despreparo e desídia dos governantes imperais, não importando o partido ao qual se filiassem.

Vale esclarecer que a aquisição de verba, para a construção de cárceres de nova planta, normalmente atendia a interesses variados, mas outros problemas relacionados a espaços prisionais também afigiam os governantes. A procura por prédios que pudessem servir de cadeia, em substituição àqueles que apresentavam péssimas condições de segurança, ou, simplesmente, pela inexistência de um edifício para tal função, às vezes fazia vir à tona negócios escusos. Em maio de 1887, por exemplo, publicou-se uma matéria dirigida ao “vice-presidente da provincia”, chamando-lhe a atenção para um “acto escandaloso” ocorrido na Câmara Municipal da vila de Soledade. Segundo a denúncia de um “munícipe”, a referida câmara havia aceito a oferta de um vereador, para a compra de uma “casa” de sua propriedade para ser v ir de “quartel e cadêa”, pelo “exorbitante preço de 8:000$000” (A FEDERAÇÃO, 10/05/1887, p. 2).

Visando sistematizar outras informações relativas às questões penitenciárias da província, pode-se dizer que o PRR explorou bastante as notícias de fugas e tentativas de evasão. E isso porque as causas normalmente acabavam colocando mais do que uma autoridade em evidência. Não importava se o motivo das evasões se devesse à pouca segurança dos xadrezes, à conivência de guardas e carcereiros, ou, simplesmente, à negligência desses últimos, no final das contas, esses sucessos costumavam deixar as autoridades imperiais sempre em maus lençóis. Tenha-se presente que os presidentes, nomeados pelo Imperador, escolhiam seus Chefes de Polícia, e estes os seus subordinados por meio de redes clientelares locais, de forma que a culpa recaía,ao fim e ao cabo,sobre quem indicava e nomeava.15 15 Em 1841, com a reforma do Código de Processo Criminal, os conservadores colocaram “o Judiciário e a polícia nas mãos do governo central. Todos os juízes, exceto os de paz, que eram eleitos, passaram a ser nomeados pelo ministro da Justiça. Mais ainda, boa parte dos poderes dos juízes de paz foi transferida para os chefes de polícia e seus delegados. (…) O ministro da Justiça passou a controlar o Judiciário, a polícia e a Guarda Nacional, isto é, todo o aparato repressivo do governo. Até mesmo os carcereiros eram de sua nomeação por via indireta” (CARVALHO, 2012, p. 97). Ou seja, a organização do sistema carcerário podia ser provincial, mas as autoridades eram imperiais; por meio destas se podia tanto tocar a Coroa, como atacá-la.

Por questão de espaço, não podemos listar aqui as inúmeras cidades onde se produziram desde tentativas frustradas até mesmo evasões comprovadamente exitosas. E pelo mesmo motivo, não haverá como referenciar as recorrentes demissões e nomeações de carcereiros, não menos atentamente acompanhadas pela redação do A Federação. Mas vale salientar que por detrás desse carrossel de trocas se escondiam inúmeras práticas ilegais, algumas delas totalmente criminosas16 16 Também há referências acerca de cobranças de carceragens pelo Carcereiro de Pelotas e denúncias de roubo envolvendo o de Rio Grande (A FEDERAÇÃO, 08/05/1886, p. 2; 17/09/1889, p. 2). Al-Alam analisa os escusos negócios de carceragem realizados entre delegados e carcereiros da cidade de Pelotas no capítulo “A gerência do espaço: carcereiros da prisão” (2013, p. 194-214). , cometidas pelos máximos responsáveis pela ordem e administração dos estabelecimentos prisionais, além, claro, de motivos bem maisparticulares, por exemplo, os baixos salários que tornavam o cargo desinteressante para muitos homens, acarretando em alguns lugares uma substituição crônica de carcereiros.17 17 Durante o processo de regulamentação e criação de novos postos em estabelecimentos prisionais do Império, o maior problema enfrentado segundo os sucessivos ministros e secretários de Estado dos Negócios da Justiça, fora a contínua falta de verbas que impossibilitava não só o oferecimento de salários atrativos aos ocupantes do cargo, como o próprio pagamento de muitos empregados que nada recebiam à espera da devida autorização e estipulação do vencimento correspondente. E muitos dos que já se encontravam em pleno exercício, sofriam com os recorrentes atrasos (CESAR, 2015, p. 229). Em todo caso, essa rotatividade era devidamente instrumentalizada contra o regime monárquico.

As reportagens até aqui arroladas são suficientes para se afirmar que qualquer sucesso que envolvesse ou tocasse em assuntos penitenciários, ou se convertia em arma política, ou, no mínimo, em boa metralha. Ao mostrar as misérias das instituições prisionais, as falhas policiais e os problemas enfrentados pela administração da justiça, se produziam imagens negativas sobre o regime monárquico e seus representantes, ao mesmo tempo que se enaltecia o republicano comoalternativa de governo.

“Usos e abusos”: o problema dos galés na capital da província

Após as elogiadas gestões do Chefe de Polícia pela averiguação de um crime ocorrido na Cadeia Civil de Porto Alegre, a finais de março de 1884, graças à insistência do agredido em “dar parte do occorrido às autoridades superiores”, por meio de um requerimento18 18 Os presos faziam extenso uso do direito constitucional de requerer. Dirigiam-se, individual ou coletivamente, às principais autoridades do executivo provincial, e quando necessário, ao próprio Imperador (CESAR, 2021c). (A FEDERAÇÃO, 20/03/1884, p. 2; 22/03/1884, p. 2), nenhuma outra palavra de reconhecimento voltou a ser dirigida pelo órgão do PRR às máximas autoridades do executivo provincial. Pelo contrário, daí para frente, reservou-se apenas duras críticas.

Já no número de 16 de maio de 1884, precisamente, publicou-se na coluna “Usos e abusos”, assinada por João Antonio, o que consideramos uma das primeiras denúncias acerca de questões penitenciárias concernentes à capital, publicada pelo A Federação. Nesse caso, concretamente, dizia respeito ao uso da mão de obra dos galés que circulavam pelas ruas de Porto Alegre, conforme se assegurava, com a completa conivência das autoridades sul-rio-grandenses.A prática não era nova, nem muito menos uma peculiaridade gaúcha (MONTEIRO, 2021, p. 320MONTEIRO, Francisco Gleison da Costa. Casa de Prisão com Trabalho em Teresina-Piauí (1850-1880). História Unisinos. vol. 25, n. 2, maio-agosto, 2021, p. 312-327.), mas passou a ser apontada como prova do descaso às leis e desacato à ordem estimulado pelaspróprias autoridades imperiais.

A matéria relatava que dois ou mais grupos de sentenciados acorrentados eram vistos diariamente pelas ruas, na maior tranquilidade, “passeando e negociando, entrando nas tabernas e bebendo de parceria com os soldados que os acompanhavam”. Além disso, o autor questionava a falta de policiamento para a proteção da “propriedade e a vida dos cidadãos”, fosse de dia ou de noite, enquanto não faltavam “soldados para acompanhar diariamente os calcetas nos seus diarios passeios” (A FEDERAÇÃO, 16/05/1884, p. 2).

Conforme o articulista, após ter interpelado a autoridade competente (certamente o Chefe de Polícia) sobre a prática, este respondera que ela se dava durante a condução dos medicamentos e dietas fornecidos pela Santa Casa de Misericórdia (SCMPA) para a enfermaria da cadeia, realizada pelos galés. Ainda segundo essa autoridade, o problema surgia do “conchavo” estabelecido entre os presos e a guarda que os escoltava, permitindo que eles arr uassem pela cidade “fazendo o seu negocio”.

Antes de mais nada, essas saídas dos galés às ruas, acompanhados de escoltas, devem ser entendidas como resultado de antigasnegociações tecidas entre aqueles e seus carcereiros, incluídasas máximas autoridades provinciais.19 19 Pode-se ilustrar isso com o caso do preso Jesuino Dias Favas que, em uma petição coletiva dirigida ao Chefe de Polícia, de 17 de agosto de 1867, solicitou autorização para que ele e outros companheiros pudessem seguir saindo às ruas para vender seus artigos. Nessa mesma representação, Favas lembrou à máxima autoridade policial de que, em junho último, já havia pedido licença para sair a vender seus chapéus a cada quinze dias, sendo então atendido. Dessa vez, como resposta ao requerido, se ordenou que se oficiasse ao Comandante do Corpo de Polícia, recomendando-o a não deixar de enviar todos os dias uma escolta de três praças à cadeia, a fim de acompanharem os presos para comprar e outros misteres. Ou seja, uma concessão ainda melhor do que a primeira. Como se observará, de costumeira, a prática acabava se institucionalizando não apenas com o consentimento, mas com o próprio apoio/ estímulo das autoridades (CESAR, 2015, p. 204). Não era, portanto, inusual vê-los negociando pela cidade os produtos manufaturados em suas próprias celas e corredores, ou, comprando matéria-prima e outros artigos.20 20 Ao contrário do que se dizia, nem todos os presos viviam em total ociosidade. Durante uma visita realizada ao estabelecimento em 27 de maio de 1885, os comissionados municipais encontraram “promiscuamente empregados” a sapateiros, tamanqueiros, correeiros, chapeleiros, trançadores e cigarreiros (A FEDERAÇÃO, 30/06/1885, p. 1). Sobre a ocupação de galés e de outros sentenciados em inúmeros serviços e/ou atividades manufatureiras de motu proprio, vejam-se Cesar (2015) e Moreira (2009).

Mais importante, a matéria acrescentava que o uso de galés não se restringia ao transporte citado, pois também eram empregados no serviço da faxina do Palácio do Governo. Vale esclarecer, por fim, que não se colocava em questão a ocupação que se atribuía a esses presidiários sentenciados a penas de galés, mas sim àfalta de controle sobre eles. O autor das críticas advertia não ser difícil dar falta deles, uma vez que se sabia perfeitamente o tempo que normalmente gastavam para o exercício das referidas tarefas. A culpa, portanto, atribuía-se ao Chefe de Polícia, já que era ele quem poderia envidar esforços junto ao carcereiro para “cortar este abuso”. Mas, na verdade, nada era tão simples assim, pois reconheceu igualmente que “os carcereiros bem sabem, mas elles tambem cobram uma porcentagem do negocio dos presos”.21 21 Tenha-se presente que as denúncias “contra os carcereiros podiam ser consideradas sérias afrontas ao Chefe de Polícia, já que era esta autoridade a encarregada direta pela nomeação dos responsáveis pela [Cadeia Civil das capitais], conforme o regulamento nº 120 de 31 de janeiro de 1842, artigo 46” (MOREIRA, 2009, p. 126). Dizendo aproveitar a ocasião por estar com a “mão na massa”, o articulista não parou por aí. Garantindo estar devidamente “informado”, afirmou ainda não se observar na Cadeia Civil de Porto Alegre “a menor disciplina nem ordem (...). Não ha o menor aceio, os presos fazem fogo dentro das celulas22 22 É possível documentar a repercussão dessas denúncias através de algumas medidas baixadas pelas autoridades provinciais. Sabe-se, por exemplo, por meio de um requerimento do preso Germano Wagner, de 19 de dezembro de 1885, que nesse meio tempo se proibiu, por um decreto, o uso de fogareiros nas celas da cadeia da capital. O referido documento, ainda ilustra muito bem como os presos não ficavam de braços cruzados, pois, segundo consta, Germano pediu justamente a abolição da normativa ao Presidente da Província, Henrique Pereira de Lucena, no que foi, aparentemente, prontamente atendido. Wagner representava em nome de toda a população carcerária, alegando que a concessão se fazia indispensável para o exercício dos ofícios de sapateiro e alfaiate desempenhados em seus xadrezes, na falta de oficinas organizadas pelo Estado (MOREIRA, 2009, p. 297). e a propria enfermaria não é mantida com limpeza”, concluindo com a notícia que o Chefe de Polícia, por conta disso tudo, teria demitido o carcereiro (A FEDERAÇÃO, 16/05/1884, p. 2).

Nunca é demais lembrar que os problemas elencados acimanão eram novos ou desconhecidos das autoridades23 23 Nem no Rio Grande do Sul, nem em outras províncias do Império. Em todo caso, como não é nosso objeto aqui aferir essas denúncias, mas analisar como elas foram instrumentalizadas como arma política, para mais informações sobre estas e outras questões para o período em tela, consulte: SILVA, 1997; SZCZEPANIAK, 2004; MARIZ, 2004;ARAÚJO, 2004 e 2009;MAIA et al, 2009; SANT’ANNA, 2010;TRINDADE, 2018; GONÇALVES, 2013 e 2016;BRITTO, 2014; ALBUQUERQUE NETO, 2008 e 2015. , mas sim os usos dessas e outras questões como arma política contra o regime monárquico e seus representantes. O observado fica evidente quando, justo uma semana depois, outra matéria estampada noA Federação, voltaria ao assunto dos galés dizendo ter feito reiterados pedidos de providências “para a cohibição do abuso em que vivem os presos que arrastam grilhetas pelas ruas da capital”. A campanha difamatória daquela prática repercutiu, ganhando até mesmo as páginas do jornal A Reforma, órgão de propaganda do Partido Liberal no Rio Grande do Sul. Essa folha, segundo se disse, posicionara-se deplorando o “pouco edificante costume de andarem continuamente os calcêtas arrastando suas correntes pelas ruas da cidade”(A FEDERAÇÃO, 23/05/1884, p. 1).

É importante sublinhar que a instrumentalização dessa e de outras questões penal-carcerárias, enquanto arma política, acabava por levar à arena pública um discurso que, em outros tempos, dificilmente saía do âmbito privado ou oculto dos detentadores do poder. A explicitação desse discurso, que antes permanecia ocultado ou eufemizado pelas autoridades, se dá agora devido à disputa travada contra o regime monárquico, por um grupo conformado por indivíduos oriundos das elites letradas e provinciais.24 24 Por “elites provinciais”, consideramos a seguinte definição oferecida por Vargas (2010, p. 44): “As elites provinciais englobavam e ultrapassavam o grupo delimitado como “elite política”. Nelas estão elementos da alta burocracia e da política, homens ricos e com atividades econômicas diversas (charqueadores, estancieiros e comerciantes, por exemplo) e profissionais liberais do mundo urbano (médicos, advogados, engenheiros e alguns jornalistas). Muitas vezes, estes indivíduos podiam ocupar diversas funções em diferentes setores ou pentencerem às mesmas famílias ou grupo de relações, o que sedimentava ainda mais esta elite, podendo resultar em uma coesão de interesses políticos e econômicos”.

Aí reside o peso conferido às denúncias, pois elas colocavam em evidência parte do “discurso oculto”25 25 Utilizamos esse conceito no sentido trabalhado por James Scot (2003, p. 40). Este autor concebe o discurso oculto não apenas como “actos de lenguaje sino también una extensa gama de prácticas”. Tanto “grupos subordinados”, quanto “elites dominantes” elaboram/possuem um discurso oculto. Em nossa análise entendemos como práticas desse discurso, promovido pelas elites provinciais, o pouco caso, morosidade, não cumprimento das leis, desídia, descaso, usos privados das forças da ordem e das instituições públicas, abuso de poder, malversação, etc. Todas essas práticas, como se pode supor, contradiziam por sua vez o “discurso público” que as autoridades provinciais costumavam reproduzir aos próprios encarcerados ou à sociedade em geral. Consequentemente, ao escancarar as mazelas penitenciárias através de denúncias veiculadas nos jornais, os republicanos tornavam público o que deveria permanecer oculto, minando assim a legitimidade do Estado Imperial em administrar a justiça e em punir os infratores da lei. É necessário precisar, por outra parte, que por discurso público Scot entende que, ainda que “no se trate sólo de una maraña de mentiras e deformaciones, sí es una construcción discursiva muy partidista y parcial. Está hecha para impresionar, para afirmar y naturalizar el poder de las elites dominantes, y para esconder o eufemizar la ropa sucia del ejercicio de su poder” (2003, p. 44). das elites provinciais monarquistas que, bem olhado, contradiziam os próprios fundamentos do seu exercício de poder. Afinal, o que restava a se pensar quando o Estado se mostrava omisso, faltando com sua obrigação de fazer cumprir a lei e zelar pelos direitos dos cidadãos, como o de não deixar ninguém preso sem culpa formada, ou, morrer de fome, frio ou febre em alguma de suas acanhadas cadeias?A estratégia-ação dos republicanos era justamente tornar visível esse“discurso oculto” das elites provinciais monarquistas em questões penitenciárias; foia sua publicização que o transformou em arma política contra o Império.

Graças a esse pugilismo político, muito do que aparecia ou se discutia apenas em fóruns reservados, passou a ser tema de debate e domínio público. Por outra parte, ao mesmo tempo que as velhas mazelas carcerárias ganhavam visibilidade, deixando claro quão arraigadas estavam naquela sociedade de fim dos Oitocentos, se reconhecia igualmente a existência longeva de práticas de negociação e resistência por parte dos indivíduos privados de liberdade.Como diria Foucault (2006, p. 22)FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 22ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006., o poder, de fato, nem sempre saía vencedor!

Ainda rolaram duas novas matérias sobre o assunto, uma retomando as denúnciasveiculadas na edição do dia 16 de maio de 1884, e outra sobre um suposto roubo cometido por um desses presos “conhecidos por correntes” (A FEDERAÇÃO, 23/05/1884, p. 1; 13/06/1884). Da primeira, o importante a salientar é a repetição da mesma recriminação de que“o mal continua, porque a autoridade competente, o sr. dr. chefe de policia, não prestou atenção aos factos denunciados”. Com a segunda, pode-se dizer que o assunto dos galés ocupou a redação do órgão oficial do PRR, por praticamente um mês. De fazerem parte do cenário urbano, os galés passaram a ser considerados corpos anacrônicos, tal como os republicanos pintavam o regime de governo em vigor. Esses indivíduos deviam desaparecer do cotidiano porto-alegrense, pois ademais de enfeiarem o ambiente por onde passavam,seus corpos deixavam um rastro de crimes e delitos que ofendiam as leis e a ordem, além das pretensões de modernidade de uma capital em transformação; sua longevapresença, em plena luz do dia pelas ruas da capital, havia se convertido em um problema, e, como tal, em arma política nas mãos do PRR.

Uma “prisão inquisitorial”

No dia 27 de maio de 1885, uma comitiva nomeada pela Câmara Municipal de Porto Alegre inspecionou a cadeia civil, em cumprimento do disposto no art. 56 da Lei de 1º de outubro de 1828, que estabelecia visitas periódicas às prisões e estabelecimentos de caridade da capital. A ilustre comissão estava formada por alguns dos principais homens do PRR: Felicíssimo Manoel de Azevedo (1823-1905)26 26 Nasceu em 1823 em Porto Alegre, onde também faleceu em 02 de julho de 1905. Ourives, dentista, jornalista, político e cronista da cidade, foi o primeiro vereador porto-alegrense ligado ao Partido Republicano, empossando-se na Câmara em janeiro de 1887 (FRANCO, 2018, p. 50). , Júlio de Castilhos(1859-1903)27 27 “Nasceu na fazenda da Reserva, então no município de Cruz Alta, posteriormente no município de Vila Rica, hoje Júlio de Castilhos (RS), no dia 29 de junho de 1859(…). Em 23 de fevereiro de 1882, juntamente com Assis Brasil, Pinheiro Machado, Venâncio Aires, Ernesto Alves, Álvaro Chaves e outros, participou da fundação, em Porto Alegre, do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Naquele mesmo ano bacharelou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo e regressou definitivamente a Porto Alegre, onde intensificou as campanhas republicana e abolicionista. (…) Combatia a monarquia através de seus artigos políticos, além de participar de congressos e conferências republicanas. (…) faleceu em 24 de outubro de 1903, em Porto Alegre, durante uma cirurgia para a retirada de um tumor na garganta. Seu funeral foi uma das maiores procissões cívicas já vistas na capital gaúcha”. Disponível em: < https://cpdoc.figv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CASTILHOS,%20J%C3%BAlio%20de.pdf>. Acesso em jan. 2022. , Achylles Porto Alegre (1848-1926)28 28 “Nasceu em Rio Grande em 1848 e faleceu em Porto Alegre a 21/3/1926. (…) Funcionário público, jornalista, cronista e poeta. (…) Dirigiu durante muitos anos o Jornal do Comércio” (FRANCO, 2018, p. 325). , João Câncio Gomes (1836-1889)29 29 Foi jornalista, inclinando-se para o Partido Conservador, fundador e “redator, em sua segunda fase, do diário O Mercantil, folha de reconhecida influência na capital” (FRANCO, 2018, p. 95 e 270). e Ramiro Barcellos (1851-1916)30 30 “Ramiro Fortes de Barcellos nasceu em Cachoeira do Sul (RS) no dia 23 de agosto 1851 (…). Cursou a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e formou-se em 1873. Entre os anos de 1877 e 1882, foi deputado provincial no Rio Grande do Sul, eleito pelo Partido Liberal. Durante esse período foi, em 1880, secretário da Mesa Diretora da Assembleia. A partir de 1882, foi provedor da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e dedicou-se à medicina e ao jornalismo. (…) Faleceu em Porto Alegre em 29 de janeiro de 1916”. Disponível em: < http://cpdoc.figv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/BARCELOS,%20Ramiro.pdf>. Acesso em jan. 2022. , os quais assinaram um extenso e detalhado relatório em 14 de junho, publicado peloA Federação na íntegra, no número do dia 30 do mesmo mês e ano.

Mas antes de analisarmos o conteúdo das denúncias vertidas pelos comissionados, convém, primeiro, reconstruirmos o cenário que precedeu aquela visita. Três meses antes da data em que os notáveis acima assinaram o referido relatório, fruto da visita de 27 de maio de 1885, apareceu no número de 14 de março um artigo intitulado “cadea civil”,de autoria desconhecida, mas certamente atribuível à redação do A Federação, ocupada por ninguém menos do que Júlio de Castilhos, desde 16 de maio de 1884. Resumidamente,o texto explorava aspectos higiênicos do estabelecimento prisional porto-alegrense e suas dramáticas consequências para a saúde dos encarcerados.

As denúncias começavam já na primeira linha, acerca do serviço de limpeza da cadeia, que não podia “ser mais irregular do que é”, atribuído à “falta quasi absoluta de cubos nas prisões”, e ao mal estado dos “poucos” que existiam nos xadrezes (A FEDERAÇÃO, 14/03/1885, p. 2). Para início de conversa, ao contrário do que se pensava, as enfermidades epidêmicas e contagiosas costumavam entrar muito mais nessa classe de estabelecimento do que delas saíam para desgraçar a população. Contudo, o risco epidêmico era real e não se podia dispensar nenhum cuidado numa prisão que naquele ano superaria as quatro centenas de indivíduos privados de liberdade em condições insalubres.31 31 O estabelecimento penal porto-alegrense vinha experimentando, desde o início do último quartel do século XIX, um significativo aumento de sua população, alcançando, precisamente em 1885, um total de 401 reclusos (CESAR, 2015, p. 105).

Todavia, acrescentou-se que, sem ter muito o que fazer diante desse “estado de cousas”, o carcereiro solicitava “reiteradamente” providências ao Chefe de Polícia, que, por sua vez, o fazia ao Presidente da Província, sem nunca se obter resultados positivos, dado que “até hoje nada se tem feito para melhorar a sorte dos presos e o serviço da cadêa”.Sublinhe-se que a denúncia já era grave por si só, mas a cereja do bolo da matéria foi realmente a transcrição da resposta governamental a respeito, seguida do comentário da redação: “Não ha verba! é o que declara o sr. presidente, e, no entanto, s. ex., mesmo sem verba, ordenou que o palacio do governo fosse luxuosamente preparado para a hospedagem dos principes...”32 32 A princesa Isabel e os flhos Pedro, Luiz e Antonio vieram ao Rio Grande do Sul acompanhando o Conde D’Eu, o qual, na condição de marechal do Exército, participou de manobras militares na região. Eles ficaram na província entre dezembro de 1884 e março de 1885. Em sessão da Assembleia Provincial. de 10 de novembro de 1885, o então deputado Joaquim Francisco de Assis Brasil defendeu um requerimento dirigido à presidência da província, em que se pedia informações relativas às despesas geradas pela hospedagem da família real e um aio dos flhos, compra e transporte de mobílias, reparos no Palácio do Governo, e a remoção da secretaria durante a permanência dos príncipes em Porto Alegre. Segundo estimativas arroladas, ditas despesas teriam ultrapassado os nove mil contos de réis, e o que era pior, “sem [se] dispor de verba” nem “auctorisação de lei” para as mesmas (A FEDERAÇÃO, 11/11/1885, p. 1). (A FEDERAÇÃO, 14/03/1885, p. 2). O ponto de exclamação da resposta governamental, somado à crítica anexa, falam muito do espírito dosrepublicanos sul-rio-grandenses e com quais ânimos empreenderiam a visita à Cadeia Civil de Porto Alegre, pouco mais de dois meses depois.Mas a coisa não ficou por aí. Uma matéria publicada originalmente no A Reforma, transcrita no Jornal do Commercio da Corte, no número de 17 de maio de 1885, parece ter sido a gota d’água. Denunciando a aglomeração, insalubridade e a falta de segurança vivida naquele estabelecimento, chamava ainda a atenção do presidente e chefe de polícia a respeito. Certamente, aproveitando o ensejo, dez dias depois a comissão municipal adentraria os muros da prisão.33 33 Curiosamente, na documentação interna, somente encontraremos o presidente José Julio de Albuquerque Barros solicitando satisfações ao Chefe de Polícia, a respeito da matéria aparecida no Jornal do Commercio (RJ), em uma correspondência de 17 de junho de 1885, ou seja, um mês após essa publicação e vinte e um dias depois da referida visita municipal. AHRS, Fundo Correspondência dos Governantes, Correspondência expedida para o Chefe de Polícia, Maço 119, anos 1880/1882/1885.

Começando pelo conteúdo das observações realizadas na ocasião da inspeçãodo dia 27 de maio, pode-se dizer que aquela apenas confirmou asinúmeras irregularidadesjá denunciadas nas reportagens anteriormente citadas.Mesmo assim, e sem perda de tempo, sefez publicar no A Federação, no mesmo dia, um extrato das averiguações. Uma ação, diga-se de passagem, mais do que esperada em virtude da formação da referida comissão.

Segundo esse extrato, os ilustres visitantes ficaram impactados com o aspecto decadente do edifício, sobretudo em relação à parte interna, descrita como “deplorável”. Paredes com rebocos caindo, forros e assoalhos de madeira apodrecidos devido à existência de goteiras, tanto no primeiro quanto no segundo andar, sem falar da superlotação e das consequências humanas dela decorrentes.Como demonstrado, nada do que se denunciava estava isento de interesse político. Pelo contrário, se desejava realmente colocar os governantes em saia justa, forçando-lhes quaisquer reações ou medidas que, ao fim e ao cabo, chancelassem sua negligência. Daí o fechamento do extrato com um sonoro: “Aguardamos a publicação do relatorio” (A FEDERAÇÃO, 27/05/1885, p. 2).

O citado extrato havia avançado bastante sobre o estado anti-higiênico e desumano vivido na cadeia, mas isso não foi óbice para a ralentização da confecção do referido relatório. De fato, em 14 de junho, sua versão final já estaria devidamente assinada pela comissão, dirigida ao presidente e vereadores da Câmara Municipal de Porto Alegre. E somente dezesseis dias depois,qualquer leitor do A Federação poderia lê-lo na íntegra, estampado na primeira página da edição do dia 30 (A FEDERAÇÃO, 30/06/1885, p. 1).

A estratégia editorial era não deixar as coisas arrefecerem, seguindo a fórmula hoje bastante conhecida de fritar a fogo lento os desafetos e adversários políticos. Apesar disso e de ter saído mais detalhado, conforme se havia dito no extrato de 27 de maio, o relatório não apresentou nada novo. A comissão caracterizou o estabelecimento como uma “prisão inquisitorial” e chamou os presos de “miseraveis creaturas [...] amalgamadas como objectos em uma caixa”. Mas em sua construção discursiva sobre os problemas, diga-se de passagem, instrumentalizados como arma política, interessa destacar uma referência ao Imperador, em meio às soluções propostas para afrontar as misérias carcerárias, que, em boa medida, refetia a própria visão republicana acerca de questões penitenciárias.

Para acabar com a superlotação, defendeu-se a conclusão do edifício, que se arrastava inacabadodesde a sua inauguração, em 1855, “como se não fosse esta a mais urgente das necessidades da provincia”. Com esse longo historial de morosidade, chegou-se a sugerir que metade do contingente humano fosse transferido para outro local, ou, em lugar disso, se providenciasse, via câmara municipal,uma ação para “impetrar de sua magestade o perdão de grande parte d’esses infelizes tão deshumanamente tratados”. No primeiro caso, os remanescentes dessa “humanidade sofredora”se alojariam, se não com maior comodidade, ao menos com mais conveniência sanitária (A FEDERAÇÃO, 30/06/1885, p. 1).

Em meio a argumentos humanistas, também aparecia a defesa da concepção correcionalista, baseada na terapia laboral, bastante em voga naqueles anos. O que, para bons entendedores, significava uma crítica rotunda não somente ao descaso/negligência governamental quanto ao que havia sido idealizado originalmente para o equipamento prisional porto-alegrense, mas à própria inoperância do Estado Imperial em relação à implementação de um sistema penal como há anos as modernas teorias penitenciárias assinalavam.34 34 Então até podia parecer mera retórica ou simples pretexto para criticar a monarquia, mas pouco mais de dez anos depois, sob a égide de Júlio de Castilhos, os mandatários do PRR passariam a afrontar muitas dessas questões, dentre as quais a do trabalho penal devidamente organizado pelo Estado. O desenvolvimento de lucrativas oficinas dentro do recinto prisional, na passagem do século XIX para o XX, tornou a Casa de Correção de Porto Alegre num modelo penitenciário para o Brasilrepublicano, pelo menos, até a inauguração da Penitenciária de São Paulo (CESAR, 2021a; 2021b).

Alguns meses após a publicação do relatório, se despediu o Carcereiro Francisco Antonio dos Santos Rosa, sendo, em seu lugar, readmitido o Tenente Paulino de Almeida Lemos. A troca, ao que parece, não adverte intenções de mudanças sérias, mas talvez sinalize uma reação governamental depoisda promoção das inspeções e da pressão jornalística.Rosa, que havia substituído a Paulino “a bem do serviço e da moralidade publica”, em 14 de maio de 1884, agora seria por ele novamente relevado na função (A FEDERAÇÃO, 14/05/1884, p. 2; 28/09/1885, p. 2).

Entre inspetores de higiene e fiscais honorários

Assim como no ano anterior, o mês de maio de 1886 chegou dando dor de cabeça às autoridades provinciais, novamente por conta do descaso penitenciário vivido na Cadeia Civil de Porto Alegre, evidenciado,dessa vez,por meio de uma visita sanitária35 35 A matéria publicada no A Federação se referia a uma “Junta de Higiene”, mas em realidade se tratava da Inspetoria de Higiene criada pelo Decreto n. 9554, de 3 de fevereiro de 1886. Disponível em: < https://legis.senado.leg.br/norma/416694/publicacao/15629738>. Acesso em jan. 2022. realizada ao estabelecimento no dia 8, capitaneada pelos médicos Israel Rodrigues Barcellos Filho e João Adolpho Joseti Filho36 36 Após formar-se em 1884 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e de sua meteórica passagem pela Inspetoria de Higiene da Província de São Pedro, em 1886, viajou para a Europa, onde realizou estudos na Alemanha e França. Na sua volta, passou a atuar na SCMPA e em sua clínica particular (OLIVEIRA, 2012, p. 163). Ainda segundo o autor, antes mesmo de integrar o novo grupo de médicos daquele pio estabelecimento, em 1890, trazido por Victor de Brito e Ramiro Barcellos, estes e o primeiro já eram sócios da Beneficência Portuguesa de Porto Alegre e compunham o corpo de facultativos do seu hospital. . Sabe-se que o primeiro descendia de uma família ocupante de cargos importantes e bastante involucrada na política do Império, pelo partido conservador, exercendo ele próprio o de Inspetor de Higiene, desde 1886 até pelo menos 1888.37 37 Barcellos Filho nasceu em Porto Alegre, em 6 de fevereiro de 1845, e faleceu na mesma cidade em 1º de setembro de 1923. Após formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1870, atuou como médico e cirurgião na SCMPA durante um longo período, entre 1872 e 1889, e, depois, de 1892 a 1893 (OLIVEIRA, 2012, p. 141-142 e 146). Já o segundo galeno, oriundo do Mato-Grosso e recém formado, transitava nos círculos onde se teciam as redes de vínculos “profissionais, políticos, sociais e (muito provavelmente) de amizade” entre aqueles diplomados que acabariam conformando os quadros republicanos das elites provinciais (OLIVEIRA, 2012, p. 155-156, 146 e 158OLIVEIRA, Daniel. Morte e vida feminina: mulheres pobres, condições de saúde e medicina da mulher na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (1880-1900). Dissertação de mestrado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012.).

Não é de se estranhar que a extensa matéria dando conta dos descalabros e riscos epidêmicos atribuídos ao “mais revoltante desleixo da administração da cadêa, pela falta de asseio e de aeração”, tenha aparecido estampada,como de praxe, no número do A Federação, do mesmo dia da visita (A FEDERAÇÃO, 08/05/1886, p. 2).38 38 É importante salientar que Ramiro Barcellos, um dos principais correligionários do PRR e colaborador do A Federação, também trabalhava na SCMPA desde 1882 (OLIVEIRA, 2012, p. 149), coincidindo, portanto, com Barcellos Filho. Lembre-se, ademais, de sua participação integrando a comitiva da Câmara Municipal de Porto Alegre que vistoriara a Cadeia Civil em 27 de maio de 1885.

De resto, os problemas narrados continuavam sendo praticamente os mesmos apontados há,aproximadamente, um ano pela comissão municipal, com a diferença de que agora estavam bastante mais agravados. Desasseio, aglomeração, celas escassamente ventiladas, úmidas, sem luz, e uma absurda fetidez que, no conjunto, conformava o que chamaram de“um espectáculo horroroso!” (A FEDERAÇÃO, 08/05/1886, p. 2). Inclusive as enfermarias, segundo avaliavam, se pareciam “antes enxovias do que casas de enfermos”, abarrotadas e sem separação entre os leitos.

Sobraria dizer que o prato estava servido, novamente, e que o avance das averiguações da Inspeção de Higiene não passaria batido para a redação e simpatizantes do PRR. Felicíssimo Manuel de Azevedo, um antigo membro da comissão municipal, que visitara a cadeia em 27 de maio de 1885, e colaborador de primeira hora do A Federação, no qual mantinha uma coluna desde a sua fundação, intitulada “Cousas municipaes: cidadãos vereadores”, dedicou tempo e tinta ao assunto.

Este (re)conhecido correligionário republicano era dono de uma escritaque jogava entre a queixa e a denúncia, na maioria das vezes polemizando sobre problemas que afetavam a capital da província, razão pela qualassinava suas crônicas, sugestivamente, com o pseudônimo “Fiscal honorário”. Como diria Pesavento (2009, p. 35)PESAVENTO, Sandra Jatahy. Visões do Cárcere. Porto Alegre: Zouk, 2009., ele “exercia a função de vigilante atento da vida urbana”.E como não poderia ser diferente, as mazelas penal-carcerárias tocavam inevitavelmente no escopo de suas críticas. Naquele mês de maio de 1886,Azevedo publicou quatro crônicas no A Federação, discorrendosobre os mais diversos aspectos penitenciários, reportando-se sempre às impressões da recente inspeção, mas também ao verificado pela comissão que ele próprio havia integrado no ano anterior.

Decerto, na primeira delas, evocaria preambularmente a visita de maio de 1885 e seu respectivo relatório, como prova de que nada se tinha feito, de lá para cá, para melhorar a sorte dos presos e o estado de coisas naquela “casa”. Comparando o radiografiado em 1885, com o que a Inspeção de Higiene constatara recentemente, concluía ter encontrado esta última “não só o edificio, como a sua direcção e serviço ainda em peior estado do que então se achavam” (A FEDERAÇÃO, 10/05/1886, p. 1).

Utilizando sua coluna como uma autêntica tribuna, chamou de “aberração de todos os sentimentos de justiça e de humanidade”, a indiferença com a qual os problemas foram tratados. Questionou sem rodeios se já não era hora de se tomar providências “com o fim de obter uma reparação a tão escandaloso procedimento das autoridades que têm a seu cargo uma tal instituição?”.Com a formulação de perguntas desse tipo, Azevedo colocava o leitor na condição de agente-ativodas investidas, tornando-o partícipedo discurso de acusação que se seguiria a continuação. Afinal de contas, como ele mesmo responderia: “Não, não é possivel que acoberteis com o silencio tão deshumano proceder”. A partir daí constrói uma narrativa implacável até voltar-se contra o autêntico alvo: “E isto vê-se em uma das primeiras provincias do imperio bragantino, em cujo throno, dizem, se senta o mais sabio monarca d’este seculo, um monarca que faz ostentação de piedade e devoção”.

Para Azevedo e seu partido, o Imperador e o regime que representava, era o verdadeiro culpado, ainda mais quando a esssa altura,a sua própria pessoa/imagem configurava o tripé ou elo da tríade de elementos que, conforme Schwarcz (2014, p. 393 e 406-414)SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seus belos naturais. Sociologia & Antropologia. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 2, 2014, p. 391-431., conformava a trindade da identidade nacional brasileira.

Não representeis mais, cidadãos vereadores, à presidencia; ide directamente ao sabio monarca, que tudo póde; ponde diante de seus olhos o quadro repelente que acabo de pintar e perguntai-lhe onde estão os seus sentimentos religiosos, onde essa demonstração de humildade christã, quando, de joelhos, de toalha ao hombro, lava os pés dos pobres, imitando a caridade do martyr do Golgotha.

Mas aquelle martyr perdoava aos seus algozes, enquanto que os seus falsos apostolos atormentam cruelmente os desgraçados, a quem a fatalidade, o acaso ou os máos instinctos precipita em taes masmorras.

N’este paiz, cidadãos vereadores, só ha um homem, que tudo póde, cuja vontade omnipotente move todo o organismo da administração, porque governa absolutamente sem dar a menor atenção aos poderes constituidos, que são todos dependentes do seu regio poder, a elle, pois, dirigi-vos, cidadãos vereadores, pedindo um remedio para os males que acabrunham os miseros sentenciados. (A FEDERAÇÃO, 10/05/1886, p. 1).

Como vimos anteriormente, não era a primeira vez que a referência a D. Pedro II surgia em meio às questões penitenciárias tratadas nas páginas do A Federação, mas nesses termos acusatórios, talvez sim.A mensagem não podia ser mais clara, os republicanos, ao contrário dos monarquistas, tinham um projeto para as questões penitenciárias.Por isso escrevia o Fiscal:

Lembrai-lhe [ao Imperador] a necessidade de desbastar o numero dos infelizes presos, não pelo assassinato latente produzido pelo deshumano tratamento que lhes é dado, mas pelo trabalho que é o reparador dos máos instinctos e o protector dos desprotegidos da sorte (A FEDERAÇÃO, 10/05/1886, p. 1).

Após esse bombardeio articulado de denúncias e críticas, os republicanos sul-rio-grandenses conseguiram chamar a atenção para o que se passava na Cadeia Civil de Porto Alegre, gerando inclusive comentários por parte do Jornal do Commercio.39 39 Com 63x45 cm, era dono do maior formato das folhas sul-rio-grandenses,e contava, já por então, com 22 anos de existência. Em 1884 e 1885, a assinatura custava, por ano, 18 mil réis para a capital e 20 mil réis para fora. As oficinas tipográficas ficavam na Praça Senador Florêncio (atual Praça da Alfândega), e Achylles Porto Alegre ocupava naqueles anos a chefa da redação. Segundo ainda Cezar, possuíam uma máquina de impressão dos fabricantes Dawson & Sons, movida à vapor (de Roley & Comp.), e outra prensa Alauzet (CEZAR, 1884, p.188-189).Foi, em palavras de Franco (2018, p. 228), um “dos jornais de mais longa duração, na história da imprensa porto-alegrense”, circulando desde 01/07/1864, até seu desaparecimento em 01/11/1911. Esta folha, segundo uma nota publicada pelo A Federação, em 12 de maio, teria se pronunciado sobre o “pessimo estado em que se acha a nossa cadeia civil”, escrevendo que “crê sinceramente que as cousas não melhorarão emquanto um administrador animado de boa vontade e cumpridor dos seus deveres não fizer um supremo esforço”. Fazendo mofa do comentário, a redação republicana acrescentara que: “Emquanto ficamos esperando esse administrador com o seu supremo esforço, o Jornal aconselha o actual presidente, como um real serviço, a pedir ao governo a transferencia dos sentenciados à prisão perpetua para Fernando Noronha” (A FEDERAÇÃO, 12/05/1886, p. 2).

As trincheiras estavam abertas de parte a parte, e as averiguações da Inspeção de Higiene, publicada peloA Federação no número do dia 8 de maio, alimentaram outras reações. Uma delas veio do próprio fornecedor dos gêneros alimentícios dos presos pobres, Belmiro José da Silva Neto, que, em 13 de maio, escreveu à redação do órgão do PRR alegando que o divulgado em suas páginas incorria em inverdades. Por questão de espaço não é possível destrinchar o imbróglio, mas vale dizer que apesar das tentativas de Silva Neto, a republicana redação não retrocedeu em uma linha em relação ao anteriormente divulgado, e, para piorar a situação, reafirmou que as informações provinham da própria Inspeção de Higiene(A FEDERAÇÃO, 13/05/1886, p. 2).

Toda essa narração merece um momento de refexão, pois não deixa de ser curioso observar que antes de se medicalizar o crime, o saber médico assaltou os muros da prisão através das avaliações higiênicas e epidêmicas, ou, melhor dito, de suas condições no recinto penal. Podendo-se, inclusive, dizer que a inquestionável presença médica republicana jogava um duplo papel. Por um lado,representavam justamente o novo, a ciência, o porvir, configurando uma excelente estratégia publicitária, enquanto que,por outro, alimentavam um discurso utilizado como arma política contra o Império.

Realmente não faltou de nada no número do A Federação de 13 de maio de 1886, nem mesmo uma nova crônica do Fiscal honorário que, por questões de espaço, apenas foram aproveitadas suas críticas/ataques contra o governo imperial. De forma muito aguda, afirmara que “ninguem conhece o interior da nossa cadêa”, e que até as “proprias autoridades policiaes olham para ella com a maior indiferença” (A FEDERAÇÃO, 13/05/1886, p. 1).Este texto está repleto de representações/associações de imagens negativas dos monarquistas comosimples “parladores”, despreparados… enquanto que os republicanos,fazendo uma leitura inversa, seriam os homens de proveito para o governo do país, com ideias e ações para o futuro.

Seus argumentos revelavam, sem sombra de dúvidas, uma extraordinária habilidade retórica, mas, por outra parte,ninguém questionaria o patente descaso acumulado ao longo dosgovernos liberais e conservadores, principalmente em relação ao projeto correcional pensado para o estabelecimentoporto-alegrense.Fruto da lei aprovada pela Assembleia Provincial, em 27 de junho de 1835, que dispôs sobre a criação de uma Casa Correcional na capital e outra em São Francisco de Paula, o fato é que após se ter ensejado a introdução de algumas oficinas na primeira, dita experiência não sobreviveria ao ano dainauguração da instituição, em 1855.

Mas falta ainda um capítulo dessa história. Após o rebuliço causado pela publicação dos resultados da inspeção de higiene, a comitiva convidaria a própria presidência da província, então ocupada por Manuel Deodoro da Fonseca, para visitar novamente a Cadeia Civil no dia 14 de maio (A FEDERAÇÃO, 14/05/1886, p. 2). Conforme a reportagem, Deodoro aceitou o convite e ao meio dia compareceu no estabelecimento acompanhado dos facultativos Israel Rodrigues Barcellos Filho, João Adolpho Joseti Filho e Arthur Benigno Castilho, além do Chefe de Polícia e o Promotor Público. A imprensa,como era de se esperar, se fez presente através do O Mercantil40 40 Jornal fundado por João Câncio Gomes que contava então com 13 anos de circulação. Cezar registrou não ser órgão de partido, mas acreditava “não faltar à verdade dizendo que advoga as idéas do seu proprietário, que está fliado à escola conservadora”. Media 51x32 cm e custava em 1884/1885a assinatura anual 12 mil réis para a capital e 15 mil réis para fora. As oficinas tipográficas estavam localizadas na rua General Câmara, nº 49. (CEZAR, 1884, p. 190). Segundo Franco (2018, p. 270), encerrou sua publicação em 1897, quando se tornara órgão do Partido Federalista. e doA Federação.

Segundo se fez constar, tirando uma tentativa de maquiagem em relação à limpeza do recinto, o comparecimento dessas autoridades à cadeia não revelou nada de novo, além da comprovação de que tudo aquilo que já se tinha observado nas inspeções anteriores, era de fato verdadeiro.

O sr. presidente da provincia observou que era rigorosamente exacto o que a Junta de Hygiene communicou à imprensa em relação à cadêa. Tão impressionado ficou s. ex., que declarou: -Fazia pessimo juizo sobre a cadêa, mas não esperava encontral-a em semelhante estado! (A FEDERAÇÃO, 14/05/1886, p. 2).

Do ponto de vista político, a ida de Deodoro até à cadeia, assim como sua declaração à imprensa, representou a vitória dos republicanos na contenda. Na verdade, uma dupla vitória se incluída a simbólica, já que o representante imperial, poucos anos depois,se tornaria num dos principais personagens do golpe de 15 de novembro de 1889. Mas as gestões não acabariam aqui. Houve uma segunda visita de Deodoro ao estabelecimento penal no dia 17 de maio,acompanhado pelo diretor geral da Diretoria Provincial, do cirurgião-mor do Corpo de Saúde, do provedor da Santa Casa de Misericórdia e de outros funcionários (A FEDERAÇÃO, 17/05/1886, p. 2).

Não obstante, o Fiscal honorário não deixou de arremeter contra o governo provincial.Pois entre que o pedido de transferências de sentenciados para Noronhafora denegado por aviso do Ministro da Justiça, e os esforços de Deodoro para mandar os alienados ao Hospício São Pedro tramitavam, o certo é que sem a conclusão das obras, o estado de superlotaçãoe os problemas causados continuavam se agravando.Por isso, em sua última crônica, o Fiscal voltaria a polemizar sobre o estado da prisão.O edifício que deveria ter abrigado, já em meados do século XIX, a Casa de Correção de Porto Alegre transformou-se num símbolo do descaso público, ou da promessa de reforma adiada para as “kalendas gregas” (A FEDERAÇÃO, 20/05/1886, p. 1).Até mesmo as máximas autoridades imperiais reconheciam os descalabros e a necessidade de reformas, como o presidente Joaquim Galdino Pimentel, já no ocaso do Império (MOREIRA, 2009, p. 140-141MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche e a rapina. Os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre na segunda metade do século XIX. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009.).

“Ambos, carcereiro e alferes, fóra da lei – sob o imperio da lei!”: palavras finais

A citação que dá título a essas palavras finais fora retirada de uma matéria intitulada “scena de bofetadas”, publicada em 2 de outubro de 1889, com o característico tom jocoso que o A Federação costumava tratar determinados sucessos que envolviam autoridades e instituições públicas da província durante o período imperial.

A referida matéria narra um imbróglio causado por um soldado da guarda da Cadeia Civil de Porto Alegre, que, contrariando as normativas, entregara um “embrulho contendo uma garrafa de caxaça” ao preso João Kife, para que este a guardasse “na sua oficina de ferreiro”. O carcereiro Rocha ficou sabendo, e ao interrogar o recluso, este lhe confirmou que o “embrulho” pertencia realmente ao dito soldado. O caso foi mais longe e chegou ao conhecimento do alferes comandante da Guarda, que, por sua vez, mandou chamar o soldado indisciplinado. Este, ao se apresentar ao seu superior, dele recebera “duas bofetadas, fazendo o kepi da praça ir cair longe”. Mas o título da reportagem só acaba fazendo sentido quando o carcereiro, impelido talvez pelo exemplo do Alferes, desferira outras “tres bofetadas” no tal João Kife (A FEDERAÇÃO, 02/10/1889, p. 1).

A mensagem republicana era clara, sem ordem, disciplina, administração, planejamento racional... os problemas penitenciários, sob o império da lei, persistiriam, dando inclusive lugar a cenas burlescas como as anteriormente descritas. Mas eis que a monarquiajá tinha por então seus dias contados. E no The Day After ao 15 de novembro de 1889, como era de se esperar, o A Federação deixou de ser apenas o órgão oficial do Partido Republicano Rio-Grandense, por muito tempo a principal tribuna periódicaopositora da monarquia na província, para se transformar na folha mais importante do regime republicano no Rio Grande do Sul, uma “espécie de órgão oficial do governo, defendendo sua política em todos os terrenos” (FRANCO, 2018, p. 164FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guía histórico. 5ª ed. Porto Alegre: Ed. Edigal, 2018.). Essa passagem de oposição à situaçãofez consequentemente desapareceremas críticas acerca de questões penitenciárias das suas páginas. O que antes podia serutilizado como arma ou propaganda política republicana, passou a fazer parte dos desafos de gestão do partido.

Mas entre janeiro de 1884 e novembro de 1889, o A Federaçãoreservou espaço para todo tipo de reportagens e críticas que mostrassem ou deixassem em evidência a incompetência/negligênciadas autoridades e governantes imperiais em relação à gestão das questões penitenciárias da província. O acompanhamento quase diário das mazelas penal-carcerárias, estampadas através das suas páginas, não deixam dúvidas quanto à sua consciente instrumentalização como arma política contra o regime monárquico. Todas as informações transcritas, somadas aosrelatórios da Câmara Municipal, Inspeção de Higiene, comissão auxiliar da Sociedade Médico-cirúrgica Rio-Grandense41 41 Um memorandum da Inspeção de Higiene e da comissão auxiliar da Sociedade Médico-cirúrgica Rio-Grandense ganhou as páginas do número de 23 de novembro de 1886, sob o título “Hygiene publica” (A FEDERAÇÃO, 23/11/1886, p. 1). O referido documento fora assinado na capital, em 20 de novembro de 1886, por Israel Rodrigues Barcellos Filho, João Adolpho Joseti Filho, Arthur Benigno Castilho, Ramiro Barcellos, Amadeu Prudencio Masson e Henrique Ferreira Santos Reis. Ao que tudo indica, a equipe médica tentava se adiantar ao problema que se avizinhava, já que naquele ano o Cólera Morbus tinha afetado de cheio a República Argentina. , além dos textos de colaboradores42 42 Além das crônicas de Felicíssimo de Azevedo e João Antonio, acrescente-se, como exemplo, que na edição de 6 de setembro de 1889, na seção “Colaboração”, fora publicado um extenso relato sobre o estado higiênico lastimável da enfermaria da Cadeia Civil de Porto Alegre, assinado pelo médico Victor de Brito (A FEDERAÇÃO, 06/09/1889, p. 2). ,deixaram as autoridades, em mais de uma ocasião, em maus lençóis, graças à persistente indiferença com quecostumavam tratar os assuntos penitenciários. Tudo isso permitia a construção de representações de desídia, também projetadas através de imagens de desumanidade e falta de compaixão, em que ninguém escapava, nem mesmo o próprio Imperador que, em palavras mordazes do Fiscal honorário, se espelhava hipocritamente na caridade do mártir do Gólgota.

Não nos cabe duvidar dos sentimentos ou valores que também moviam esses homens em suas ações e produções discursivas, mas é evidente que tudo se transformava em arma ou propaganda política nas mãos dos republicanos rio-grandenses. O que não significa, logicamente, que esse mar de denúncias, relatórios, reportagens, crônicas, etc.,tenham sido produzidas para atender exclusivamente aos interesses políticos do PRR. Mas há, ainda, outra observação a se fazer. Independentemente do uso político dado, essas manifestações certamente ajudaram no processo de sensibilização da sociedade (ou de setores especializados dela) em relação à população carcerária, justamente num momento em que as ideias lombrosianas do criminoso nato começavam a ganhar popularidade. Graças à chamada de atenção em nome da humanidade, ainda que misturada com preceitos cristãos, foi possível embasar ações de censura e orquestrar determinadas melhorias, ainda que provisórias e de curta duração, que permitiam elevar ou manter um certo mínimo vital, quanto às condições básicas de sobrevivência no cárcere. Vale lembrar que os donos das assinaturas lavradas em muitos dos relatórios e denúncias eram, como os membros da comissão da Câmara Municipal de Porto Alegre que vistoriou a Cadeia Civil em 27 de maio de 1885, “pessoas de cultura, ligadas às letras, à política, à medicina e ao jornalismo”, como expressara Pesavento (2009, p. 36)PESAVENTO, Sandra Jatahy. Visões do Cárcere. Porto Alegre: Zouk, 2009., “representativos de uma elite cultural da cidade (...) formadores da opinião pública”.

Nesse ponto, nos associamos às ideias de Hunt (2009)HUNT, Lynn. La invención de los derechos humanos. Barcelona: Tusquets, 2009., para a qual não pode haver direitos sem primeiramente se nomear/expressarlinguisticamente a existên cia de sentido/sentimento em relação ao reconhecimento dos outros, o que, por sua vez, permite gerar identificação. Segundo a autora, quanto maior a identificação, maior a sensibilidade, motor primordial para a luta/criação de direitos chamados humanos. Nossos republicanos não utilizavam expressões como “empatia” ou “sensibilidade”, mas sim outros termos ou representações que, embora não fosse a primeira intenção, estimulavamuma “empatia imaginada”43 43 A autora entende a expressão “no en el sentido de inventada, sino en el de que la empatía requiere un acto de fe, de imaginación, para asumir que otra persona es igual que tú”. Por exemplo, as “crónicas sobre la tortura producían esta empatía imaginada por medio de nuevas visiones del dolor” (HUNT, 2009, p. 31). .Afinal, como diria o próprio Fiscal honorário, até para que as propostas de melhorias fossem levadas a sério, não se poderia deixar de “evocar os sentimentos de caridade e humanidade de quem nos governa” (A FEDERAÇÃO, 17/05/1886, p. 2).

Porfim, há de se reconhecer que os republicanos tinham razão numa coisa, o projeto de emenda pensado pelas autoridades imperiais, em meados do século XIX, realmente não fracassou, uma vez que na prática nunca fora devidamente implementado.

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    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciados no artigo.
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    A meados de 1884, segundo Cezar, a província de São Pedro contava com aproximadamente 58 jornais, sendo o A Federação a folha de maior circulação, imprimindo “cerca” de dois mil exemplares. A exceção dela, do A Reforma, e “talvez” do Jornal do Commercio da capital e do Correio Mercantil de Pelotas, nenhuma outra atingia os mil exemplares. Tinha o fomato de 55x35 cm e custava 14 mil réis a assinatura tanto para a capital quanto para o interior/exterior. Sua tipografia ficava na rua dos Andradas, nº 289 e 291, tendo sido Venâncio Aires seu primeiro diretor de redação. As oficinas operavam então com duas máquinas do fabricante Marinoni, a saber: a prensa Universelle e a Utile. Na primeira se imprimia a folha e na segunda se faziam “trabalhos de todo o genero”. Nessa época, a prensa Utile utilizada era a única existente na província: “É de grande perfeição mechanica, elegante e de muita facilidade para o trabalho. Ambas as machinas são movidas por um motor a gaz (invenção allemã) da força de um cavallo – typo Oto: D. W. Beel” (CEZAR, 1884, p. 190-191; 200CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200.).Conforme Franco (2018, p. 164)FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guía histórico. 5ª ed. Porto Alegre: Ed. Edigal, 2018., o jornal circulou até 16 de novembro de 1937, devido à instauração do Estado Novo.
  • 4
    Conforme Cezar (1884, p. 188)CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200., a província do Rio Grande do Sul possuía em 1884 aproximadamente 56 jornais, dos quais apenas 18 eram diários: 5 na capital, 5 no Rio Grande, 5 em Pelotas, e 3 em Jaguarão. A imensa maioria aparecia uma ou duas vezes por semana. Daquele total, 15 eram “declaradamente politicas”, e dentre essas, 6 apresentavam-se como “órgãos de partido”: 3 conservadoras (1 na capital, 1 no Rio Grande, e 1 em Pelotas), 2 liberais (1 na capital e 1 em Jaguarão), e 1 republicana (na capital). Das 15 folhas: 6 eram conservadoras (2 na capital, 1 no Rio Grande, 1 em Pelotas, 1 em Jaguarão e 1 em Santa Vitória do Palmar); 6 liberais (1 na capital, 2 no Rio Grande, 1 em Pelotas, 1 em Jaguarão e 1 em Santa Vitória); e 3 republicanas (2 da capital e 1 em São Gabriel).
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    Descrita como uma folha de “pequeno formato”, surgida em 1884, com o material tipográfico “novo”. Publicava-se nos seguintes dias: 1, 5, 9, 13, 17, 21 e 25 de cada mês. Caracterizado como “orgão republicano”, era dirigido por Joaquim Francisco de Assis Brasil, que contava como “auxiliares” Fernando Abbot, Tito Prates da Silva e Manoel Brandão Junior (CEZAR, 1884, p. 198-199CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200.).
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    Também descrita como “de pequeno formato e bi-semanal”, oferecendo a anuidade para a localidade por 16 mil réis e para fora por 18 mil réis. As oficinas tipográficas estavam localizadas na rua Barão do Triumfo, nº 67 e 69. Em 1884, seu redator era Jorge Reis, “que professa idéas republicanas”, embora a folha em si se apresentasse como “commercial e noticiosa” (CEZAR, 1884, p. 198CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200.).
  • 7
    De propriedade de Antonio da Silva Moncorvo Junior, já contava então com 16 anos de existência. Media 55x38 cm, e a assinatura anual custava 18 mil réis para a localidade e 22 mil réis para fora, localizando-se na rua São Miguel. A tipografia possuía uma máquina Marinoni. Segundo consta, esse jornal surgiu na cidade de Jaguarão, “tirando o titulo da data que glorifica um dos mais heroicos feitos da esquadra brazileira – o combate naval de Riachuelo”. Depois de alguns anos o proprietário o transferiu para Pelotas, colocando-o, como o fez inicialmente em Jaguarão, “ao serviço do partido conservador”. Depois de uma nova estância em Jaguarão, período em que se suspendeu a publicação, voltou à Pelotas e reativou o jornal, “sem porém flial-o a partido algum”. Segundo Cezar, na “propaganda abolicionista nenhuma folha pelotense póde disputar glorias ao Onze de Junho” (CEZAR, 1884, p. 195-196CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200.).
  • 8
    Contava então com 22 anos de existência. De propriedade de Antonio da Cunha Silveira, media 59x41 cm, e custava a anuidade 18 mil réis para a localidade e 20 mil réis para fora. Seu redator se chamava Arthur Rocha e a tipografia se localizava à rua dos Príncipes, nº 54. Segundo Cezar, era um “orgão liberal”, e funcionava com uma máquina de impressão da marca Pierron & Frères, “se não me engano”, e com outra de pedal, “para trabalhos avulsos” (CEZAR, 1884, p. 193-194CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200.).
  • 9
    Fundado em 1882, por João de Araujo e João Maia. Após a saída de Maia da cidade, o primeiro ficou como proprietário e redator. Era publicado nas quintas-feiras e aos domingos, media 45x30 cm, e então custava para a localidade 10 mil réis a anuidade ou 12 mil réis para fora. A oficina tipográfica situava-se na rua Silveira Martins, nº 32. “Não é orgão politico, mas inclina-se à prédica dos principios republicanos” (CEZAR, 1884, p. 197CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200.).
  • 10
    Conforme ainda a reportagem, Julio Pereira da Silva, homem branco e livre, só escapou ao azorrague graças à intervenção em seu favor realizada pelo Carcereiro, João Ignacio de Souza. Um dos supliciados queixou-se ao Juiz de Direito da Comarca, que por sua vez prometeu averiguar o caso.
  • 11
    Naquele ano cumpriria 40 anos em atividade, e era o decano do jornalismo na província. A assinatura anual saía por 18 mil réis para a localidade e 20 mil réis para fora. A redação estava aos cuidados de Zacarias Salcedo, que também redigiu durante algum tempo o Artista. Tinha o formato de 60x39 cm e funcionava na rua dos Príncipes, nº 31, com “boa machina de impressão”. Ainda segundo Cezar, “segue a politica do partido liberal”, mas enquanto fora seu proprietário Antonio Estevão de Bitencourt e Silva, “durante muitos annos, manteve a folha como orgão das idéas conservadoras” (CEZAR, 1884, p. 192CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200.).
  • 12
    Devido ao crescente rechaço ante as cenas de sofrimento alheio, geradas pela sensibilidade civilizada, tornou-se comum e institucionalizada desde a primeira metade do século XIX, a prática de castigar cativos no interior das cadeias. Mas nos anos finais do século XIX se desenvolveu um amplo movimento de condenação do ato de castigar escravizados. Pirola (2017)PIROLA, Ricardo Figueiredo. O castigo senhorial e a abolição da pena de açoites no Brasil: Justiça, imprensa e política no século XIX. Revista de História. São Paulo, n. 176, 2017, p. 1-34., por exemplo, ao analisar as disputas travadas nesse campo, acresce que para se entender a Lei de 15 de outubro de 1886, que aboliu a pena de açoites, há de se observar igualmente os debates ocorridos tanto no âmbito jurídico, como na imprensa das décadas finais da escravidão no Brasil.
  • 13
    Fundado por Camboim Junior e descrito como de “pequeno formato”, publicado às quintas-feiras e aos domingos, de manhã. Em 1884/1885 custava a assinatura anual 15 mil réis para a localidade e 16 mil réis para fora. A tipografia funcionava na Praça General Osório, nº 31. Por então estava “dirigido e redigido” por Rodolpho Gomes e Gavino Machado da Silveira. “É inclinado ao partido liberal” (CEZAR, 1884, p. 197 e 198CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200.).
  • 14
    Órgão oficial do Partido Liberal. Media 15x34 cm e já contava então com 18 anos de existência. Localizava-se na rua dos Andradas, nº 345, e sua assinatura anual em 1884/1885 custava12 mil réis para a capital e 16 mil réis para fora. Segundo Cezar (1884, p. 189-190)CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200., por essa época, as oficinas funcionavam apenas com uma prensa Alauzet “movida a braço”, que antes havia servido ao Constitucional, órgão conservador. Conforme Franco, foi um “dos mais importantes jornais políticos de Porto Alegre no século XIX. Apareceu seu primeiro número em 16/6/1869, sob o signo do movimento de reforma política preconizado pelo Partido Liberal, cujas posições sempre defendeu” (2018, p. 341).
  • 15
    Em 1841, com a reforma do Código de Processo Criminal, os conservadores colocaram “o Judiciário e a polícia nas mãos do governo central. Todos os juízes, exceto os de paz, que eram eleitos, passaram a ser nomeados pelo ministro da Justiça. Mais ainda, boa parte dos poderes dos juízes de paz foi transferida para os chefes de polícia e seus delegados. (…) O ministro da Justiça passou a controlar o Judiciário, a polícia e a Guarda Nacional, isto é, todo o aparato repressivo do governo. Até mesmo os carcereiros eram de sua nomeação por via indireta” (CARVALHO, 2012, p. 97CARVALHO, José Murilo de. A vida política. In: CARVALHO, José Murilo. (coord.). A construção nacional, 1830-1889. Rio de Janeiro: Fundación Mapre/Editora Objetiva, 2012, p. 83-129.). Ou seja, a organização do sistema carcerário podia ser provincial, mas as autoridades eram imperiais; por meio destas se podia tanto tocar a Coroa, como atacá-la.
  • 16
    Também há referências acerca de cobranças de carceragens pelo Carcereiro de Pelotas e denúncias de roubo envolvendo o de Rio Grande (A FEDERAÇÃO, 08/05/1886, p. 2; 17/09/1889, p. 2). Al-Alam analisa os escusos negócios de carceragem realizados entre delegados e carcereiros da cidade de Pelotas no capítulo “A gerência do espaço: carcereiros da prisão” (2013, p. 194-214).
  • 17
    Durante o processo de regulamentação e criação de novos postos em estabelecimentos prisionais do Império, o maior problema enfrentado segundo os sucessivos ministros e secretários de Estado dos Negócios da Justiça, fora a contínua falta de verbas que impossibilitava não só o oferecimento de salários atrativos aos ocupantes do cargo, como o próprio pagamento de muitos empregados que nada recebiam à espera da devida autorização e estipulação do vencimento correspondente. E muitos dos que já se encontravam em pleno exercício, sofriam com os recorrentes atrasos (CESAR, 2015, p. 229CESAR, Tiago da Silva. A ilusão panóptica: encarcerar e punir nas imperiais cadeias da Província de São Pedro (1850-1888). São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2015.).
  • 18
    Os presos faziam extenso uso do direito constitucional de requerer. Dirigiam-se, individual ou coletivamente, às principais autoridades do executivo provincial, e quando necessário, ao próprio Imperador (CESAR, 2021cCESAR, Tiago da Silva. A visita de “Sua Magestade o Imperador” e os pedidos de perdão de presos da Cadeia Civil de Porto Alegre. Almanack. Guarulhos, n. 27, 2021c, p. 1-54.).
  • 19
    Pode-se ilustrar isso com o caso do preso Jesuino Dias Favas que, em uma petição coletiva dirigida ao Chefe de Polícia, de 17 de agosto de 1867, solicitou autorização para que ele e outros companheiros pudessem seguir saindo às ruas para vender seus artigos. Nessa mesma representação, Favas lembrou à máxima autoridade policial de que, em junho último, já havia pedido licença para sair a vender seus chapéus a cada quinze dias, sendo então atendido. Dessa vez, como resposta ao requerido, se ordenou que se oficiasse ao Comandante do Corpo de Polícia, recomendando-o a não deixar de enviar todos os dias uma escolta de três praças à cadeia, a fim de acompanharem os presos para comprar e outros misteres. Ou seja, uma concessão ainda melhor do que a primeira. Como se observará, de costumeira, a prática acabava se institucionalizando não apenas com o consentimento, mas com o próprio apoio/ estímulo das autoridades (CESAR, 2015, p. 204CESAR, Tiago da Silva. A ilusão panóptica: encarcerar e punir nas imperiais cadeias da Província de São Pedro (1850-1888). São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2015.).
  • 20
    Ao contrário do que se dizia, nem todos os presos viviam em total ociosidade. Durante uma visita realizada ao estabelecimento em 27 de maio de 1885, os comissionados municipais encontraram “promiscuamente empregados” a sapateiros, tamanqueiros, correeiros, chapeleiros, trançadores e cigarreiros (A FEDERAÇÃO, 30/06/1885, p. 1). Sobre a ocupação de galés e de outros sentenciados em inúmeros serviços e/ou atividades manufatureiras de motu proprio, vejam-se Cesar (2015)CESAR, Tiago da Silva. A ilusão panóptica: encarcerar e punir nas imperiais cadeias da Província de São Pedro (1850-1888). São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2015. e Moreira (2009)MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche e a rapina. Os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre na segunda metade do século XIX. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009..
  • 21
    Tenha-se presente que as denúncias “contra os carcereiros podiam ser consideradas sérias afrontas ao Chefe de Polícia, já que era esta autoridade a encarregada direta pela nomeação dos responsáveis pela [Cadeia Civil das capitais], conforme o regulamento nº 120 de 31 de janeiro de 1842, artigo 46” (MOREIRA, 2009, p. 126MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche e a rapina. Os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre na segunda metade do século XIX. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009.).
  • 22
    É possível documentar a repercussão dessas denúncias através de algumas medidas baixadas pelas autoridades provinciais. Sabe-se, por exemplo, por meio de um requerimento do preso Germano Wagner, de 19 de dezembro de 1885, que nesse meio tempo se proibiu, por um decreto, o uso de fogareiros nas celas da cadeia da capital. O referido documento, ainda ilustra muito bem como os presos não ficavam de braços cruzados, pois, segundo consta, Germano pediu justamente a abolição da normativa ao Presidente da Província, Henrique Pereira de Lucena, no que foi, aparentemente, prontamente atendido. Wagner representava em nome de toda a população carcerária, alegando que a concessão se fazia indispensável para o exercício dos ofícios de sapateiro e alfaiate desempenhados em seus xadrezes, na falta de oficinas organizadas pelo Estado (MOREIRA, 2009, p. 297MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche e a rapina. Os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre na segunda metade do século XIX. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009.).
  • 23
    Nem no Rio Grande do Sul, nem em outras províncias do Império. Em todo caso, como não é nosso objeto aqui aferir essas denúncias, mas analisar como elas foram instrumentalizadas como arma política, para mais informações sobre estas e outras questões para o período em tela, consulte: SILVA, 1997SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.; SZCZEPANIAK, 2004SZCZEPANIAK, Ivone. A busca pelo cárcere perfeito: Casa de Correção de Porto Alegre (1835-1913). Dissertação de mestrado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Maria, 2004.; MARIZ, 2004MARIZ, Silviana Fernandes. Oficina de Satanás: a Cadeia Pública de Fortaleza (1850-1889). Dissertação de mestrado, História, Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará, 2004.;ARAÚJO, 2004ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira. O duplo cativeiro: escravidão urbana e o sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821. Dissertação de mestrado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004. e 2009ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira. Cárceres imperiais: A Casa de Correção do Rio de Janeiro. Seus detentos e o sistema prisional no Império, 1830-1861. Tese de doutorado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, 2009.;MAIA et al, 2009MAIA, Clarisa Nunes; ALBUQUERQUE NETO, Flávio de Sá; COSTA, Marcos; BRETAS, Marcos Luiz. (orgs.). História das Prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, v. I e II, 2009.; SANT’ANNA, 2010SANT’ANNA, Marilene Antunes. A imaginação do castigo: discursos e práticas sobre a Casa de Correção do Rio de Janeiro. Tese de doutorado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010.;TRINDADE, 2018TRINDADE, Cláudia Moraes. Ser preso na Bahia no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.; GONÇALVES, 2013GONÇALVES, Flávia Maíra de Araújo. Cadeia e Correção: sistema prisional e população carcerária na Cidade de São Paulo (1830-1890). São Paulo: Annablume, 2013. e 2016GONÇALVES, Flávia Maíra de Araújo. O sistema prisional no Império brasileiro: estudo sobre as províncias de São Paulo, Pernambuco e Mato Grosso (1835-1890). Tese de doutorado, História, Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2016.;BRITTO, 2014BRITTO, Aurélio de Moura. Fissuras no ordenamento: sociabilidades, fluxos e percalços na Casa de Detenção do Recife (1861-1875). Dissertação de mestrado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, 2014.; ALBUQUERQUE NETO, 2008ALBUQUERQUE NETO, Flávio de Sá Cavalcanti de. A reforma prisional no Recife oitocentista: da Cadeia à Casa de Detenção (1830-1874). Dissertação de mestrado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, 2008. e 2015ALBUQUERQUE NETO, Flávio de Sá Cavalcanti de. Punir, Recuperar, Lucrar: o trabalho penal na Casa de Detenção do Recife (1862-1879). Tese de doutorado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, 2015..
  • 24
    Por “elites provinciais”, consideramos a seguinte definição oferecida por Vargas (2010, p. 44)VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul (1850-1889). Santa Maria: Editora da UFSM, 2010.: “As elites provinciais englobavam e ultrapassavam o grupo delimitado como “elite política”. Nelas estão elementos da alta burocracia e da política, homens ricos e com atividades econômicas diversas (charqueadores, estancieiros e comerciantes, por exemplo) e profissionais liberais do mundo urbano (médicos, advogados, engenheiros e alguns jornalistas). Muitas vezes, estes indivíduos podiam ocupar diversas funções em diferentes setores ou pentencerem às mesmas famílias ou grupo de relações, o que sedimentava ainda mais esta elite, podendo resultar em uma coesão de interesses políticos e econômicos”.
  • 25
    Utilizamos esse conceito no sentido trabalhado por James Scot (2003, p. 40)SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistencia. Tafalla: Editorial Txalaparta/Ediciones Era, 2003.. Este autor concebe o discurso oculto não apenas como “actos de lenguaje sino también una extensa gama de prácticas”. Tanto “grupos subordinados”, quanto “elites dominantes” elaboram/possuem um discurso oculto. Em nossa análise entendemos como práticas desse discurso, promovido pelas elites provinciais, o pouco caso, morosidade, não cumprimento das leis, desídia, descaso, usos privados das forças da ordem e das instituições públicas, abuso de poder, malversação, etc. Todas essas práticas, como se pode supor, contradiziam por sua vez o “discurso público” que as autoridades provinciais costumavam reproduzir aos próprios encarcerados ou à sociedade em geral. Consequentemente, ao escancarar as mazelas penitenciárias através de denúncias veiculadas nos jornais, os republicanos tornavam público o que deveria permanecer oculto, minando assim a legitimidade do Estado Imperial em administrar a justiça e em punir os infratores da lei. É necessário precisar, por outra parte, que por discurso público Scot entende que, ainda que “no se trate sólo de una maraña de mentiras e deformaciones, sí es una construcción discursiva muy partidista y parcial. Está hecha para impresionar, para afirmar y naturalizar el poder de las elites dominantes, y para esconder o eufemizar la ropa sucia del ejercicio de su poder” (2003, p. 44).
  • 26
    Nasceu em 1823 em Porto Alegre, onde também faleceu em 02 de julho de 1905. Ourives, dentista, jornalista, político e cronista da cidade, foi o primeiro vereador porto-alegrense ligado ao Partido Republicano, empossando-se na Câmara em janeiro de 1887 (FRANCO, 2018, p. 50FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guía histórico. 5ª ed. Porto Alegre: Ed. Edigal, 2018.).
  • 27
    “Nasceu na fazenda da Reserva, então no município de Cruz Alta, posteriormente no município de Vila Rica, hoje Júlio de Castilhos (RS), no dia 29 de junho de 1859(…). Em 23 de fevereiro de 1882, juntamente com Assis Brasil, Pinheiro Machado, Venâncio Aires, Ernesto Alves, Álvaro Chaves e outros, participou da fundação, em Porto Alegre, do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Naquele mesmo ano bacharelou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo e regressou definitivamente a Porto Alegre, onde intensificou as campanhas republicana e abolicionista. (…) Combatia a monarquia através de seus artigos políticos, além de participar de congressos e conferências republicanas. (…) faleceu em 24 de outubro de 1903, em Porto Alegre, durante uma cirurgia para a retirada de um tumor na garganta. Seu funeral foi uma das maiores procissões cívicas já vistas na capital gaúcha”. Disponível em: < https://cpdoc.figv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CASTILHOS,%20J%C3%BAlio%20de.pdf>. Acesso em jan. 2022.
  • 28
    “Nasceu em Rio Grande em 1848 e faleceu em Porto Alegre a 21/3/1926. (…) Funcionário público, jornalista, cronista e poeta. (…) Dirigiu durante muitos anos o Jornal do Comércio” (FRANCO, 2018, p. 325FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guía histórico. 5ª ed. Porto Alegre: Ed. Edigal, 2018.).
  • 29
    Foi jornalista, inclinando-se para o Partido Conservador, fundador e “redator, em sua segunda fase, do diário O Mercantil, folha de reconhecida influência na capital” (FRANCO, 2018, p. 95 e 270FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guía histórico. 5ª ed. Porto Alegre: Ed. Edigal, 2018.).
  • 30
    “Ramiro Fortes de Barcellos nasceu em Cachoeira do Sul (RS) no dia 23 de agosto 1851 (…). Cursou a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e formou-se em 1873. Entre os anos de 1877 e 1882, foi deputado provincial no Rio Grande do Sul, eleito pelo Partido Liberal. Durante esse período foi, em 1880, secretário da Mesa Diretora da Assembleia. A partir de 1882, foi provedor da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e dedicou-se à medicina e ao jornalismo. (…) Faleceu em Porto Alegre em 29 de janeiro de 1916”. Disponível em: < http://cpdoc.figv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/BARCELOS,%20Ramiro.pdf>. Acesso em jan. 2022.
  • 31
    O estabelecimento penal porto-alegrense vinha experimentando, desde o início do último quartel do século XIX, um significativo aumento de sua população, alcançando, precisamente em 1885, um total de 401 reclusos (CESAR, 2015, p. 105CESAR, Tiago da Silva. A ilusão panóptica: encarcerar e punir nas imperiais cadeias da Província de São Pedro (1850-1888). São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2015.).
  • 32
    A princesa Isabel e os flhos Pedro, Luiz e Antonio vieram ao Rio Grande do Sul acompanhando o Conde D’Eu, o qual, na condição de marechal do Exército, participou de manobras militares na região. Eles ficaram na província entre dezembro de 1884 e março de 1885. Em sessão da Assembleia Provincial. de 10 de novembro de 1885, o então deputado Joaquim Francisco de Assis Brasil defendeu um requerimento dirigido à presidência da província, em que se pedia informações relativas às despesas geradas pela hospedagem da família real e um aio dos flhos, compra e transporte de mobílias, reparos no Palácio do Governo, e a remoção da secretaria durante a permanência dos príncipes em Porto Alegre. Segundo estimativas arroladas, ditas despesas teriam ultrapassado os nove mil contos de réis, e o que era pior, “sem [se] dispor de verba” nem “auctorisação de lei” para as mesmas (A FEDERAÇÃO, 11/11/1885, p. 1).
  • 33
    Curiosamente, na documentação interna, somente encontraremos o presidente José Julio de Albuquerque Barros solicitando satisfações ao Chefe de Polícia, a respeito da matéria aparecida no Jornal do Commercio (RJ), em uma correspondência de 17 de junho de 1885, ou seja, um mês após essa publicação e vinte e um dias depois da referida visita municipal. AHRS, Fundo Correspondência dos Governantes, Correspondência expedida para o Chefe de Polícia, Maço 119, anos 1880/1882/1885.
  • 34
    Então até podia parecer mera retórica ou simples pretexto para criticar a monarquia, mas pouco mais de dez anos depois, sob a égide de Júlio de Castilhos, os mandatários do PRR passariam a afrontar muitas dessas questões, dentre as quais a do trabalho penal devidamente organizado pelo Estado. O desenvolvimento de lucrativas oficinas dentro do recinto prisional, na passagem do século XIX para o XX, tornou a Casa de Correção de Porto Alegre num modelo penitenciário para o Brasilrepublicano, pelo menos, até a inauguração da Penitenciária de São Paulo (CESAR, 2021aCESAR, Tiago da Silva. As oficinas e o trabalho penal dos condenados da Casa de Correção de Porto Alegre (1895-1930). Tempo. Niterói, vol. 28, n. 3, 2021a.; 2021bCESAR, Tiago da Silva. Trabalho, lucro e regeneração na Casa de Correção de Porto Alegre durante a República Velha. Millars. Espai I Història. [S. l], vol. 2, n. 51, 2021b, p. 135-177.).
  • 35
    A matéria publicada no A Federação se referia a uma “Junta de Higiene”, mas em realidade se tratava da Inspetoria de Higiene criada pelo Decreto n. 9554, de 3 de fevereiro de 1886. Disponível em: < https://legis.senado.leg.br/norma/416694/publicacao/15629738>. Acesso em jan. 2022.
  • 36
    Após formar-se em 1884 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e de sua meteórica passagem pela Inspetoria de Higiene da Província de São Pedro, em 1886, viajou para a Europa, onde realizou estudos na Alemanha e França. Na sua volta, passou a atuar na SCMPA e em sua clínica particular (OLIVEIRA, 2012, p. 163OLIVEIRA, Daniel. Morte e vida feminina: mulheres pobres, condições de saúde e medicina da mulher na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (1880-1900). Dissertação de mestrado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012.). Ainda segundo o autor, antes mesmo de integrar o novo grupo de médicos daquele pio estabelecimento, em 1890, trazido por Victor de Brito e Ramiro Barcellos, estes e o primeiro já eram sócios da Beneficência Portuguesa de Porto Alegre e compunham o corpo de facultativos do seu hospital.
  • 37
    Barcellos Filho nasceu em Porto Alegre, em 6 de fevereiro de 1845, e faleceu na mesma cidade em 1º de setembro de 1923. Após formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1870, atuou como médico e cirurgião na SCMPA durante um longo período, entre 1872 e 1889, e, depois, de 1892 a 1893 (OLIVEIRA, 2012, p. 141-142 e 146OLIVEIRA, Daniel. Morte e vida feminina: mulheres pobres, condições de saúde e medicina da mulher na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (1880-1900). Dissertação de mestrado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012.).
  • 38
    É importante salientar que Ramiro Barcellos, um dos principais correligionários do PRR e colaborador do A Federação, também trabalhava na SCMPA desde 1882 (OLIVEIRA, 2012, p. 149OLIVEIRA, Daniel. Morte e vida feminina: mulheres pobres, condições de saúde e medicina da mulher na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (1880-1900). Dissertação de mestrado, História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012.), coincidindo, portanto, com Barcellos Filho. Lembre-se, ademais, de sua participação integrando a comitiva da Câmara Municipal de Porto Alegre que vistoriara a Cadeia Civil em 27 de maio de 1885.
  • 39
    Com 63x45 cm, era dono do maior formato das folhas sul-rio-grandenses,e contava, já por então, com 22 anos de existência. Em 1884 e 1885, a assinatura custava, por ano, 18 mil réis para a capital e 20 mil réis para fora. As oficinas tipográficas ficavam na Praça Senador Florêncio (atual Praça da Alfândega), e Achylles Porto Alegre ocupava naqueles anos a chefa da redação. Segundo ainda Cezar, possuíam uma máquina de impressão dos fabricantes Dawson & Sons, movida à vapor (de Roley & Comp.), e outra prensa Alauzet (CEZAR, 1884, p.188-189CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200.).Foi, em palavras de Franco (2018, p. 228)FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guía histórico. 5ª ed. Porto Alegre: Ed. Edigal, 2018., um “dos jornais de mais longa duração, na história da imprensa porto-alegrense”, circulando desde 01/07/1864, até seu desaparecimento em 01/11/1911.
  • 40
    Jornal fundado por João Câncio Gomes que contava então com 13 anos de circulação. Cezar registrou não ser órgão de partido, mas acreditava “não faltar à verdade dizendo que advoga as idéas do seu proprietário, que está fliado à escola conservadora”. Media 51x32 cm e custava em 1884/1885a assinatura anual 12 mil réis para a capital e 15 mil réis para fora. As oficinas tipográficas estavam localizadas na rua General Câmara, nº 49. (CEZAR, 1884, p. 190CEZAR, João José. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Editores Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200.). Segundo Franco (2018, p. 270)FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guía histórico. 5ª ed. Porto Alegre: Ed. Edigal, 2018., encerrou sua publicação em 1897, quando se tornara órgão do Partido Federalista.
  • 41
    Um memorandum da Inspeção de Higiene e da comissão auxiliar da Sociedade Médico-cirúrgica Rio-Grandense ganhou as páginas do número de 23 de novembro de 1886, sob o título “Hygiene publica” (A FEDERAÇÃO, 23/11/1886, p. 1). O referido documento fora assinado na capital, em 20 de novembro de 1886, por Israel Rodrigues Barcellos Filho, João Adolpho Joseti Filho, Arthur Benigno Castilho, Ramiro Barcellos, Amadeu Prudencio Masson e Henrique Ferreira Santos Reis. Ao que tudo indica, a equipe médica tentava se adiantar ao problema que se avizinhava, já que naquele ano o Cólera Morbus tinha afetado de cheio a República Argentina.
  • 42
    Além das crônicas de Felicíssimo de Azevedo e João Antonio, acrescente-se, como exemplo, que na edição de 6 de setembro de 1889, na seção “Colaboração”, fora publicado um extenso relato sobre o estado higiênico lastimável da enfermaria da Cadeia Civil de Porto Alegre, assinado pelo médico Victor de Brito (A FEDERAÇÃO, 06/09/1889, p. 2).
  • 43
    A autora entende a expressão “no en el sentido de inventada, sino en el de que la empatía requiere un acto de fe, de imaginación, para asumir que otra persona es igual que tú”. Por exemplo, as “crónicas sobre la tortura producían esta empatía imaginada por medio de nuevas visiones del dolor” (HUNT, 2009, p. 31HUNT, Lynn. La invención de los derechos humanos. Barcelona: Tusquets, 2009.).

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Editado por

Editores Responsáveis
Miriam Dolhnikof e Miguel Palmeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2022
  • Aceito
    08 Jul 2022
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