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A TEOLOGIA POLÍTICA DE GIOVANNI ANTONIO ANDREONI, O ANTONIL

GIULI, Matteo. L’opulenza del Brasile coloniale. Storia di un trattato di economia e del gesuita Antonil. Roma: Carocci Editore, 2021. 316 p.

L’opulenza del Brasile coloniale é um estudo sobre a vida e a principal obra de Giovanni Antonio Andreoni (o Antonil, 1649-1716) sustentado em notável erudição histórica e historiográfica. Em consequência, desemboca inequivocamente numa revisão da memória histórica construída pelos jesuítas desde a virada do século XVI para o XVII (ZERON, 2011MAMIANI DELLA ROVERE, Luigi Vincenzo. Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo oferecido ao Padre Provincial Francisco de Matos para se propor e examinar na consulta da Província e para se apresentar ao N.R.P. Geral [1701]. In: Archivum Romanum Societatis Iesu, Fondo Gesuitico, Colleg, 1588, busta 203/12., p. 426-479), a qual, espantosamente, ainda é repetida pela historiografia (ZERON, 2011MAMIANI DELLA ROVERE, Luigi Vincenzo. Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo oferecido ao Padre Provincial Francisco de Matos para se propor e examinar na consulta da Província e para se apresentar ao N.R.P. Geral [1701]. In: Archivum Romanum Societatis Iesu, Fondo Gesuitico, Colleg, 1588, busta 203/12., p. 23-43): além da “história de um tratado de economia e do jesuíta Antonil”, Matteo Giuli nos oferece uma descrição totalizante da sociedade colonial luso-brasileira que complexifica a oposição “colonos vs. jesuítas” e engloba, ademais, as vicissitudes de suas articulações políticas e econômicas com Portugal. Assim, não apenas aquela oposição aparece fortemente nuançada, em função de divisões internas que clivaram a ordem religiosa jesuíta, como explicita-se claramente a aliança entre a facção liderada por Andreoni e os grandes senhores do açúcar e do tabaco, a qual visava uma nova composição política entre estes últimos e a Coroa portuguesa no que tangia à partilha do poder. Por que Andreoni favoreceu essa composição é uma questão que exporei ao final desta resenha, após apresentar e comentar os caminhos percorridos por Matteo Giuli em seu livro.

Em seu estudo, Matteo Giuli recupera um conceito estratégico no pensamento de Andreoni para situá-lo em um ponto central de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711), a saber, a noção aristotélica de “justa medida”. Isso lhe permite realizar interessantes desenvolvimentos analíticos sobre a obra do jesuíta, que comentarei brevemente.

Para Aristóteles – explica o estudioso de sua obra, Lesley Brown –, “o igual é uma espécie de meson entre o excesso e a deficiência”; “virtude então é uma espécie de mesot?s, pelo menos no sentido de que ela é capaz de atingir um meson”.

Aristóteles acrescenta a qualificação “relativo a nós” para mostrar que ele está invocando uma forma avaliativa de ser meson ou “intermediário” [“in-between”], ou seja, o “justo direito” [“just right”] e não o meio. (…) Portanto, o “meson relativo a nós” é o que é melhor, ou justo, ou apropriado em cada conjunto de circunstâncias e obviamente diferirá de acordo com as circunstâncias; portanto, não é um e o mesmo em todos os casos. (…) o julgamento é essencial, e onde nenhuma fórmula pode ser dada para obter um resultado excelente, e nenhum livro de regras consultado para obter a resposta “certa”. Sua maneira de colocar carne nos ossos da teoria do mesot?s é explicitar os tipos de consideração que fazem uma determinada resposta meson, e ele o faz por uma variedade de meios, normalmente invocando termos avaliativos (…).

(BROWN, 2014BROWN, Lesley. “Why is Aristotle’s virtue of character a mean?”. In: POLANSKY, Ronald (org.). The Cambridge Companion to Aristotle’s Nicomachean Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2014., p. 67-68 e 79)2 2 Na citação, após “para obter a resposta ‘certa’” (“to get the ‘right’ answer”), o próprio autor envia a Brown, Lesley. BROWN, Lesley. “What is the ‘Mean Relative to Us’ in Aristotle’s Ethics?” Phronesis, n. 42, p. 88-89, 1997.

Em Andreoni, essas propostas de Aristóteles foram acolhidas e traduzidas em uma série de comentários bastante detalhados e circunstanciados sobre as condições concretas de produção do açúcar, do tabaco, da extração de minérios e da criação de gado para obter carne e couro, as quais constituíam as principais atividades econômicas no Brasil colonial e estruturam as quatro partes em que seu livro está dividido. Sob a ótica da “justa medida”, isso implicou uma série de recomendações feitas por Andreoni aos senhores de engenho e aos seus feitores, relativas à gestão adequada da estrutura física dos meios de produção e a um “posicionamento adequado entre liberalidade e poupança, ou seja, novamente, a ‘justa medida’, segredo da boa gestão das finanças” (p. 94); já no que concernia à mão de obra, implicou igualmente recomendações sobre “ritmos de trabalho, períodos de descanso e medidas disciplinares de acordo com os requisitos da ‘justa medida’” (p. 15).

Como toda a gestão empresarial do engenho, ao qual Antonil dedica todo o primeiro livro da primeira parte de Cultura e opulência do Brasil, mesmo as relações entre senhores e escravos, portanto, tiveram que ser calibradas de acordo com os princípios da “justa medida”, que para o jesuíta de Lucca constituía o princípio comportamental ideal (p. 233-234).

Quanto ao tabaco, avalia Matteo Giuli, Antonil adotou “uma posição a meio caminho entre a apreciação do ‘grande valor e lucro’ representado por este produto, por um lado, e a desaprovação de sua disseminação social desordenada, por outro” (p. 122). Finalmente, no que concernia ao imposto sobre a extração de minérios, “pagar o quinto, para Antonil, era ‘justo’, como ele tenta demonstrar no nono capítulo da terceira parte de Cultura e opulência do Brasil, o mais longo e articulado de todo o livro” (p. 154).

Todavia, não era uma tarefa simples determinar a “justa medida” em um contexto violento como aquele que caracterizava a sociedade colonial luso-brasileira; especialmente na conjuntura de prolongada crise que marcou o século XVII. Conforme faz notar Matteo Giuli, Andreoni tomou suas posições optando pelos preceitos da economica, ou seja, a doutrina centrada nas dimensões ética e política, e não apenas econômica, do governo de um ente coletivo (GIULI, 2016GIULI, Matteo. L’opulenza del Brasile coloniale. Storia di un trattato di economia e del gesuita Antonil. Roma: Carocci Editore, 2021., p. 11). Entretanto, naquela conjuntura, Andreoni e a sua economica não se opuseram totalmente ao mercantilismo; antes, encontraram muitas áreas de contato e de sobreposição. Assim, conforme sublinha Matteo Giuli, Andreoni exaltou tanto para os senhores de engenho quanto para os administradores reais “o valor simultaneamente mercantilista e cristão da boa-fé [bona fides], ‘alma do comércio’ e, de modo mais geral, das diversas atividades econômicas nas sociedades do Antigo Regime” (p. 160). Andreoni preconizava, em suma:

um modelo patriarcal governado pela pedagogia cristã e destinado a combinar as necessidades materiais do mercantilismo, com especial atenção à produção de açúcar, e as exigências espirituais da conquista religiosa, no âmbito do padroado lusitano; o resultado foi um paternalismo pragmático, concebido como funcional para a sobrevivência dos escravos e, portanto, para as necessidades da economia brasileira e, em geral, portuguesa (p. 234).

Essas combinações e sobreposições também podem ser explicadas pela posição particular da Companhia de Jesus na América ibérica. Dependendo fundamentalmente de suas próprias forças, ou seja, de sua própria capacidade produtiva para financiar a missão, os jesuítas perceberam que “sem dominação material não poderia haver evangelização” (p. 221), e tal dominação material era essencialmente escravista, fosse pela apropriação dos benefícios do trabalho de africanos ou de ameríndios. Acontece que a combinação operada por Andreoni entre os resultados de sua análise da estrutura e da conjuntura crítica da sociedade luso-brasileira no século XVII, por um lado, e, por outro lado, das necessidades materiais da própria Companhia de Jesus o conduziu a incorporar em seu tratado econômico uma clara dimensão política, baseada em um tripé que ainda hoje marca profundamente a sociedade brasileira: aumentar o “número de igrejas espalhadas por todo o território”, “garantir a presença de uma ‘soldadesca’ bem adestrada e remunerada” e a “preeminência política e social da oligarquia rural brasileira”, especialmente “dos colonos nascidos no Brasil, ‘filhos da terra’, doravante definidos cada vez mais como ‘brasileiros’” (p. 262).

A determinação da economica de acordo com os parâmetros de uma “justa medida” circunstancialmente determinada por Andreoni conforme o julgamento de sua prudência, levou-o assim a uma noção historicamente situada de “contrato”. Conforme escreve Matteo Giuli:

era como se na base de tudo houvesse “um contrato entre o rei e os vassalos”, com o primeiro comprometido em governar para o bem comum – de acordo com os ditames cristãos do paternalismo e da caridade pública, típicos da teoria política do Antigo Regime – e os segundos apoiando-o por meio do pagamento de impostos e pensões, a modo de “justo estipêndio”. (p. 159)

Com base nisso, Andreoni se posicionou e se situou politicamente:

(…) pode-se então vislumbrar a tentativa de uma troca política, pela qual Antonil procurou apoiar os argumentos econômicos dos senhores do açúcar e do tabaco, e mais geralmente dos colonos “filhos da terra”, a fim de obter em troca seu apoio para suas principais batalhas, (…) principalmente a que exigia “o emprego da força de trabalho indígena” (p. 266).

A essa posição e aliança se opuseram veementemente alguns de seus correligionários, liderados pelo Padre Antônio Vieira, em uma disputa que dividiu traumaticamente a Província jesuíta do Brasil e culminou com a vitória do grupo liderado pelo próprio Andreoni (ZERON, 2015ZERON, Carlos. From farce to tragedy. António Vieira’s hubris in a war of factions. Journal of Jesuit Studies, Brill, n. 2/3, 2015, p. 387-420., p. 387-420).

Justa medida, economica e contrato, assim articulados por Andreoni, culminaram na definição de uma teologia política – no sentido em que a teologia cumpre um papel organizador da sociedade, conforme e enquanto a política permanece subordinada ao ditame moral e religioso. Todavia, no livro de Andreoni, tal teologia política se precisou e veio a público sobre um fundo de controvérsia, disputada nos seus contornos entre as duas facções antes mencionadas, lideradas por Andreoni e Vieira, as quais alinharam ainda uma oposição entre jesuítas estrangeiros e brasileiros contra jesuítas portugueses, e dos primeiros com os interesses das elites econômicas locais. Conforme sintetiza Matteo Giuli: “Estamos precisamente na esteira de uma concepção patrimonial do poder político, garantida por um sistema jurídico imbuído de valores e princípios religiosos retirados da teologia moral” (p. 157). “Tratava-se, em particular, na linha do que Manuel da Nóbrega havia tentado um século antes, de colocar os jesuítas no centro do projeto imperial lusitano e torná-los portadores de uma espécie de ‘poder indireto’ dentro da sociedade brasileira (…)” (p. 214).

O poder indireto, cujos termos definiam que a Igreja tinha o poder e o dever de intervir nos assuntos seculares sempre que entendesse que a salvação das almas dos homens estivesse em perigo, encontrou uma tradução específica no livro de Andreoni, descrita por Matteo Giuli, nos seguintes termos:

um discurso performativo, não limitado a uma simples descrição da realidade circundante, mas orientado a agir sobre ela de forma concreta; um discurso elaborado por um jesuíta com uma visão política precisa – assim como um homem de ação talvez mais do que de oração, bem inserido no contexto em que viveu e trabalhou, e fortemente atraído por questões que iam além da dimensão puramente religiosa e missionária –, para quem a dominação colonial se combinava com a catequese cristã para legitimar o papel da grande produção agrícola dentro de um quadro econômico ainda concebido em termos de uma racionalidade mercantilista pragmática (…) regulada pelos antigos princípios de uma economica reformulada por ele segundo os parâmetros da doutrina cristã e as necessidades da catequese missionária (p. 268).

Eis aqui, então, um ponto de chegada importante do livro de Matteo Giuli, conforme anunciado no início desta resenha: a aliança entre a facção liderada por Andreoni e os grandes senhores do açúcar e do tabaco.

Tais dados permitem a Antonil concluir seu trabalho reivindicando como era “justo”, no sentido de conveniente do ponto de vista político e meritório do ponto de vista moral, que “este emolumento tão grande e contínuo” assegurado pelo Brasil aos cofres monárquicos, em virtude de sua riqueza “certa e abundantemente lucrativa”, pudesse encontrar “o favor de Sua Majestade e de todos os seus ministros”, especialmente na “aceitação” e na pronta “execução” das “solicitações” e das “recomendações” encaminhadas à corte de Lisboa pelas autoridades municipais e por seus representantes”. (…) Em particular, Antonil defende as demandas dos proprietários de engenhos e dos produtores de açúcar e tabaco, principais artífices de “um tão estimável lucro”, que em sua opinião deveriam ter sido preferidos, “mais do que outros”, na repartição dos privilégios fiscais e jurídicos concedidos pelo soberano e pelo governador-geral, para que pudessem se valer, “em todos os tribunais”, “daquele pronto despacho” tão necessário para a rápida realização de seus negócios (p. 261-262).

Conforme também foi apontado no início desta resenha, tal aliança, evidenciada por Matteo Giuli, contradiz a memória histórica construída pelos próprios jesuítas (e retomada acriticamente pela historiografia e pelos livros didáticos desde o século passado) sobre a sua defesa da liberdade dos indígenas e sobre a sua correlata oposição aos colonos. Ora, para defender aquela aliança, o próprio Andreoni teve que confrontar essa memória histórica, que se pretendia definidora da identidade espiritual e política da Província jesuítica do Brasil, na medida em que a operação ideológica que a constituiu e a publicizou era-lhe anterior e remontava aos escritos dos padres José de Anchieta (1534-1597) e Simão de Vasconcelos (1597-1671); um confronto inevitável, por mais que nunca tivesse havido qualquer elemento histórico concreto que pudesse consubstanciar uma oposição dos jesuítas à escravização dos indígenas – exceto posições isoladas e imediatamente derrotadas ab ovo já dentro da Companhia de Jesus, como as de Luís da Grã, Miguel Garcia e Gonçalo Leite, no século XVI e, de maneira pontual e excepcional, Antônio Vieira, em 1680, a qual, encampada pelo monarca português e transformada em lei, deflagrou a disputa fratricida com o grupo de Andreoni aqui mencionada. De fato, a possibilidade de que a lei pudesse conformar novas formas de reprodução da sociedade colonial – alcançando o que a dita memória histórica obviamente não lograva e, claro, não pretendia lograr mais do que no âmbito discursivo – foi o catalisador da hostilidade entre as duas facções. Cabe, então, o questionamento, igualmente anunciado no início desta resenha: por que Andreoni favoreceu aquela composição política com os senhores do açúcar e do tabaco e com os seus representantes nas câmaras municipais?

Matteo Giuli fornece alguns elementos dispersos para uma resposta em seu livro: por um lado, “Antonil (…) abordou o Padre Geral Tirso González com um pedido [de] emprego de mão de obra indígena, embora remunerada, pelos colégios jesuítas no Brasil” (p. 220); por outro lado, Matteo Giuli contrasta as despesas com “alimentos” e “remédios” no engenho de Sergipe do Conde, que eram respectivamente de 7% e 1,5%, com aquelas empenhadas no engenho de São Bento das Lajes, “localizado na margem oposta do rio Sergipe e pertencente aos missionários beneditinos”, que eram de 30% e 2,5% (p. 235). A realidade da prática da Companhia aparecia contudo sob outras vestes: conforme apontava o relatório redigido em 1701 pelo missionário italiano Luigi Vincenzo Mamiani sobre o colégio de São Paulo, tanto os nativos livres administrados quanto os cativos eram empregados sob as mesmas condições: “trabalham quotidianamente para o Colégio de S. Paulo trezentos Índios entre machos e fêmeas capazes de trabalho, tirando os meninos, velhos, e incapazes”. Ele acrescentava ainda que “os nossos não fazem diferença alguma entre escravos e forros”.

(...) e vivem misturados com os mesmos Índios; de maneira que todos, assim forros, como cativos, têm as mesmas horas de trabalho, o mesmo tempo de descanso, os mesmos castigos, a mesma obrigação, e a mesma farda para vestir. Sustentam-se todos com os mantimentos, que eles plantam à parte no sábado, e nos dias santos, nem mais nem menos, como os escravos. A farda, que a título de pagamento se dá aos Índios forros, é a mesma, que a título de obrigação se costuma dar também aos escravos, assim do dito Colégio, como dos outros; a saber sete varas de pano de algodão para cada casal.3 3 Mamiani della Rovere, Luigi Vincenzo. “Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo oferecido ao Padre Provincial Francisco de Matos para se propor e examinar na consulta da Província e para se apresentar ao N.R.P. Geral” [1701]. Archivum Romanum Societatis Iesu, Fondo Gesuitico, Colleg, 1588, busta 203/12, fl. 36. O texto foi transcrito e publicado em: ZERON, Carlos; VELLOSO, Gustavo. Economia cristã e religiosa política: o ‘Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo’, de Luigi Vicenzo Mamiani. História Unisinos, Porto Alegre, v. 19, n. 2, p. 120-137, maio-agosto 2015.

Quando havia, o minguado salário era de apenas 1 vintém (20 réis) ao dia para cada índio, o que somava, ao final do ano, as tais “sete varas de algodão para cada casal”.

O ponto, aqui, concerne à avaliação dos aspectos mercantis das atividades da Companhia de Jesus, à época da publicação do livro de Andreoni. Quando Matteo Giuli qualifica Andreoni como “um indivíduo mais pré-moderno que moderno, atento em manter os pés firmes no passado ao invés de lançar um olhar reto e aberto para o futuro” (p. 268), ele certamente tem razão no que diz respeito aos fundamentos teológicos e éticos do seu pensamento econômico. Mas o que me parece ao mesmo tempo central, instigante e um elemento fundamental para a inteligibilidade daquela conjuntura em transformação é entender como Andreoni podia ser também “moderno” com base nesses mesmos fundamentos “pré-modernos”; isto é, como ele podia pensar o “moderno”, projetá-lo no futuro e inclusive moldá-lo com o aparato intelectual “pré-moderno” de que dispunha.

Os qualificativos “moderno” e “pré-moderno” são demasiado imprecisos para auxiliar na inteligibilidade precisa dos processos então em curso. Cabe explicitar que o apoio e a aliança dos jesuítas com os senhores de engenho e com os plantadores de tabaco, ao favorecer os interesses mercantilistas destes últimos, favorecia os interesses igualmente mercantilistas da Companhia de Jesus. Era para esse caminho que Andreoni estava empurrando a sua ordem religiosa quando se opôs a Vieira e propôs abandonar o governo temporal das aldeias de índios, após cerca de um século e meio de vigência continuada dessa prática, desde que foi instituída por Manuel da Nóbrega e então consentida, interessadamente, pela monarquia portuguesa.

Para retomar termos extraídos do próprio livro de Matteo Giuli, a “justa medida” estava se deslocando, naquelas circunstâncias críticas do final do século XVII e início do XVIII, em direção a parâmetros e a práticas que ao mesmo tempo alargavam e aprofundavam a mercantilização da terra e do trabalho, inclusive dentro da própria Companhia de Jesus. Nesse sentido, o livro de Matteo Giuli fornece elementos consistentes para uma revisão historiográfica que ainda não deu todos os seus frutos, na medida em que persiste na historiografia brasileira e brasilianista uma visão predominantemente “enclausurada” da história da Companhia de Jesus,4 4 Em meados da década de noventa, Luce Giard (em duas coletâneas por ela organizadas e publicadas respectivamente em 1995 e 1996: Les jésuites à la Renaissance e Les jésuites à l’âge barroque) e, em seguida, Pierre-Antoine Fabre e Antonella Romano (nas revistas Annales e Révue de Synthèse, em 1999) nomearam um “desenclausuramento” da história religiosa, especialmente no que concernia aos estudos sobre a Companhia de Jesus. Essa mesma perspectiva se encontra também no México (revista Historia y grafia, 1996), a partir de proposições de Michel de Certeau. a qual tem como efeito fazer perdurar uma memória histórica por ela determinada, ainda no século XVII, em meio àqueles embates sobre a “justa medida” subjacente a uma determinada teologia política.

O estudo de Matteo Giuli aponta claramente que a aliança entre a facção liderada por Andreoni e os grandes senhores do açúcar e do tabaco contradiz uma suposta oposição visceral entre jesuítas e colonos e nada tem a ver com a defesa da liberdade dos indígenas; ao contrário, ela visava refazer o “contrato” entre o rei e seus principais e mais poderosos vassalos no Brasil sobre bases propriamente mercantilistas e escravistas.

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    Na citação, após “para obter a resposta ‘certa’” (“to get the ‘right’ answer”), o próprio autor envia a Brown, Lesley. BROWN, Lesley. “What is the ‘Mean Relative to Us’ in Aristotle’s Ethics?” Phronesis, n. 42, p. 88-89, 1997BROWN, Lesley. “What is the ‘Mean Relative to Us’ in Aristotle’s Ethics?” Phronesis, n. 42, 1997, p. 88-89..
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    Mamiani della Rovere, Luigi VincenzoMAMIANI DELLA ROVERE, Luigi Vincenzo. Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo oferecido ao Padre Provincial Francisco de Matos para se propor e examinar na consulta da Província e para se apresentar ao N.R.P. Geral [1701]. In: Archivum Romanum Societatis Iesu, Fondo Gesuitico, Colleg, 1588, busta 203/12.. “Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo oferecido ao Padre Provincial Francisco de Matos para se propor e examinar na consulta da Província e para se apresentar ao N.R.P. Geral” [1701]. Archivum Romanum Societatis Iesu, Fondo Gesuitico, Colleg, 1588, busta 203/12, fl. 36. O texto foi transcrito e publicado em: ZERON, Carlos; VELLOSO, Gustavo. Economia cristã e religiosa política: o ‘Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo’, de Luigi Vicenzo Mamiani. História Unisinos, Porto Alegre, v. 19, n. 2, p. 120-137, maio-agosto 2015.
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    Em meados da década de noventa, Luce GiardGIARD, Luce (dir.). Les jésuites à la Renaissance. Système éducatif et production du savoir. Paris : Presses Universitaires de France, 1995. (em duas coletâneas por ela organizadas e publicadas respectivamente em 1995 e 1996: Les jésuites à la Renaissance e Les jésuites à l’âge barroque) e, em seguida, Pierre-Antoine Fabre e Antonella Romano (nas revistas Annales e Révue de Synthèse, em 1999)FABRE, Pierre-Antoine. Présentation. Annales. Histoire, Sciences Sociales, v. 54, n. 4, 1999, p. 805-812. nomearam um “desenclausuramento” da história religiosa, especialmente no que concernia aos estudos sobre a Companhia de Jesus. Essa mesma perspectiva se encontra também no México (revista Historia y grafia, 1996), a partir de proposições de Michel de Certeau.

Referências bibliográficas

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  • BROWN, Lesley. What Is the ‘Mean Relative to Us’ in Aristotle’s Ethics? In: Phronesis, no. 42, 1997, p. 88-89.
  • FABRE, Pierre-Antoine. Présentation. Annales. Histoire, Sciences Sociales, v. 54, n. 4, 1999, p. 805-812.
  • FABRE, Pierre-Antoine; ROMANO, Antonella. Présentation. Revue de synthèse, n. 120, 1999, p. 247-260.
  • GIARD, Luce (dir.). Les jésuites à la Renaissance. Système éducatif et production du savoir. Paris : Presses Universitaires de France, 1995.
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  • GIULI, Matteo. L’opulenza del Brasile coloniale. Storia di un trattato di economia e del gesuita Antonil. Roma: Carocci Editore, 2021.
  • GIULI, Matteo. A doutrina da ‘economica’ na concepção escravista de Antonil. Uma leitura de Cultura e Opulência do Brasil História, histórias, Brasília, v. 4, n. 8, 2016, p. 9-22.
  • MAMIANI DELLA ROVERE, Luigi Vincenzo. Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo oferecido ao Padre Provincial Francisco de Matos para se propor e examinar na consulta da Província e para se apresentar ao N.R.P. Geral [1701]. In: Archivum Romanum Societatis Iesu, Fondo Gesuitico, Colleg, 1588, busta 203/12.
  • ZERON, Carlos. Linha de fé. A Companhia de Jesus e a escravidão no processo de formação da sociedade colonial (Brasil, séculos XVI e XVII) São Paulo: Edusp, 2011.
  • ZERON, Carlos. From farce to tragedy. António Vieira’s hubris in a war of factions. Journal of Jesuit Studies, Brill, n. 2/3, 2015, p. 387-420.
  • ZERON, Carlos; VELLOSO, Gustavo. Economia cristã e religiosa política: o ‘Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo’, de Luigi Vicenzo Mamiani. História Unisinos, Porto Alegre, v. 19, n. 2, maio-agosto 2015, p. 120-137.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2023
  • Aceito
    08 Ago 2023
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