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Medicina privada e saúde pública estariam convergindo? I. O problema e argumentos que justificariam o preparo do estudante de medicina em medicina comunitária

Resumos

Tece-se considerações sôbre a aproximação que parece estar havendo entre o ensino médico e o de saúde pública, em virtude da criação de Departamentos de Medicina Comunitária em algumas Escolas de Medicina. São apresentados alguns argumentos que estariam a indicar a evolução da medicina privada no sentido de uma atuação mais efetiva na comunidade, contribuindo assim para a real integralização do campo médico.


The author comments on the approximation that would be happening between medical and public health teaching, in face of the establishment of Departments of Community Medicine in some schools of medicine. After that, he presents some arguments that would indicate the evolution of Private Medicine in sense of a more effective performance in the community, contributing then to a real integration of the medical field.


ARTIGO

Medicina privada e saúde pública estariam convergindo? I. O problema e argumentos que justificariam o preparo do estudante de medicina em medicina comunitária1 1 Da Disciplina Autônoma de Ciências Sociais Aplicadas, da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP 2 Nestas considerações são excluídos os profissionais não-médicos, porquanto o tema está sendo enfocado exclusivamente em relação aos médicos.

Armando Piovesan

RESUMO

Tece-se considerações sôbre a aproximação que parece estar havendo entre o ensino médico e o de saúde pública, em virtude da criação de Departamentos de Medicina Comunitária em algumas Escolas de Medicina. São apresentados alguns argumentos que estariam a indicar a evolução da medicina privada no sentido de uma atuação mais efetiva na comunidade, contribuindo assim para a real integralização do campo médico.

SUMMARY

The author comments on the approximation that would be happening between medical and public health teaching, in face of the establishment of Departments of Community Medicine in some schools of medicine. After that, he presents some arguments that would indicate the evolution of Private Medicine in sense of a more effective performance in the community, contributing then to a real integration of the medical field.

1 – O PROBLEMA

A recente criação de Departamentos de Medicina Comunitária em algumas escolas de medicina dos Estados Unidos e da América Latina suscitou a elaboração dêste trabalho. O fato dos referidos Departamentos virem desenvolvendo programas de treinamento de estudantes em contato direto com a comunidade, poderia estar indicando uma convergência do ensino de medicina e o de saúde pública. Embora o problema não tenha ainda transcendido da esfera de ensino para o âmbito profissional é, contudo, oportuno seu enfoque, dado o particular interesse que pode oferecer aos educadores médicos e sanitários com vistas a uma possível reorientação do ensino.

A afirmação de que vivemos uma época de rápidas transformações é perfeitamente aplicável aos Departamentos de Medicina Preventiva. Estudando-se sua evolução nos Estados Unidos, nestas duas últimas décadas, verifica-se que êles vêm paulatinamente ampliando seus objetivos e se orientando para os trabalhos de saúde comunitária, seja investigando problemas, seja executando projetos de melhoria da saúde através da adoção de métodos de organização de comunidade (BAKST1, 1967).

Esta nova orientação do ensino médico, que mais o aproxima do ministrado nas escolas de saúde pública, está acarretando, evidentemente, repercussões no âmbito profissional, caracterizadas pela maior capacitação do médico em relação à problemática sanitária. Assim, as diferenças entre o ensino médico e o de saúde pública estariam se tornando progressivamente mais tênues à medida que caminham para u'a mútua identificação quanto aos seus objetivos.

Por que estaria ocorrendo a transformação do ensino de medicina preventiva para o de medicina comunitária?

A resposta pode ser encontrada entre as conclusões a que chegou a National Commission on Community Health Services, grupo formado em 1962 pela National Health Council e pela American Public Health Association (ROBERTS6, 1966). Essa comissão declara de forma clara e incisiva:

"Health is essentially a community affair".

Coerente com êsse entendimento, afirma ser necessário o treinamento do estudante na comunidade, mesmo para os que venham a adotar uma especialidade médica:

"The Commission does urge that the education of all physicians, whether or not they enter a speciality, include appropriate courses and experiences in this kind of community practice".

Deve-se ressaltar que a situação mencionada não se limita a uma possibilidade, a um "vir a ser", mas é real, concreta, pois que várias são as escolas que estão operando com programas de medicina comunitária. Entre elas, inclui-se:

– A University of Kentucky Medical College que, em setembro de 1962, iniciou oficialmente as atividades do Departamento de "Community Medicine" (DEUSCHLE & FULMER 3, 1962).

– Por sua vez, JAMES 5 (1967) nos dá notícia de que estão sendo realizados projetos similares em Duke University Medical School, Western Reserve e University of Kansas Medical School.

– Êste ano (1967), o recém-criado Departamento de Medicina Comunitária da Escola de Medicina da Universidade do Chile reformulou integralmente seu programa de ensino e estendeu sua atuação para os 6 anos do curso médico; o aluno é colocado em contato com a comunidade desde o 1.° ano.

JAMES5 (1967), após breve discussão dos projetos acima referidos, acrescenta: "The new Regional Medical Program Mission of the National Institutes of Health will do much to further the teaching of community medicine. Already we see most of the medical schools of this nation getting ready to accept the challenge of spreading their constantly inproving quality medical care to their communities. Truly, a new era, highlighting the importance of community medicine is at hand".

A idéia de medicina comunitária é ainda muito nova para que se possa pretender encontrar uniformidade conceitual. Assim, sob a rubrica de Departamento de Medicina Comunitária existem unidades operando com programas diferentes. De outro lado, há Departamentos que, embora mantenham orientação similar apresentam nomes diferentes: Medicina Preventiva, Medicina Social, "Comprehensive Medicine", Medicina Ambiental, Saúde Comunitária e Saúde Pública.

É por isso que JAMES 5 (1967), com muita razão, declara:

"I am not sure that we would all agree today on what community health is or how it differs from public health".

Neste trabalho, medicina comunitária tem o sentido adotado na Universidade de Kentucky (DEUSCHLE & FULMER 3, 1962):

"Essentially, the major teaching aim of the Department of Community Medicine was to consist of assisting the student in integrating, synthesizing, and applying his medical knowledge to the changing health problems of our society".

Neste caso, a palavra "community" é tomada na sua acepção mais ampla, para designar uma unidade social ou populacional maior que a família; e o termo "medicine" é usado "to include the total knowledge, skills, and application of the art and science within the medical discipline".

Tendo em vista as considerações apresentadas e mais, tomando por base que é um fato a existência de Departamentos de Medicina Comunitária, cuja orientação se faz no sentido de transmitir aos estudantes de medicina alguma experiência no trato de problemas de saúde comunitária, seria o caso de se perguntar se esta nova diretriz não estaria a demonstrar uma convergência da medicina privada e a saúde pública?

Admitida a hipótese de uma resposta afirmativa, outras questões poderiam ser levantadas:

– Será que o movimento ora iniciado estaria fadado ao desaparecimento, uma vez cessado o entusiasmo inicial, ou então, pelo contrário, poderia êle se difundir a outras escolas médicas?

– Neste último caso, as escolas de saúde pública teriam que reformular seus objetivos e os seus programas de ensino?

– Poderia ocorrer, no futuro, conflito de competência entre a medicina clínica e privada, e a saúde pública, de caráter estatal?

– O movimento que se está esboçando no plano de ensino, sem ainda ter provocado repercussões de caráter profissional, apresentaria bases reais para justificar algum tipo de preocupação de educadores médicos e de saúde pública?

O objetivo dêste trabalho é encontrar respostas para essas perguntas, ficando desde já assentado o ponto de vista do autor favorável à existência de Departamento de Medicina Comunitária nas Faculdades de Medicina e, também, de que não percebe nenhuma incompatibilidade entre a nova orientação do ensino médico e a tradicionalmente observada nas escolas de saúde pública; ao contrário do que alguns poderiam supor, deve-se esperar melhor cooperação do trabalho do médico com o sanitarista.

Nas linhas que se seguem, a preocupação do autor é defender a necessidade do ensino de medicina comunitária nas escolas de medicina, em substituição à linha tradicional de medicina preventiva.

2. ARGUMENTOS QUE JUSTIFICARIAM O PREPARO DO ESTUDANTE DE MEDICINA EM MEDICINA COMUNITÁRIA

Segundo entendimento do autor, a transformação dos Departamentos de Medicina Preventiva em Departamentos de Medicina Comunitária não passa de um aspecto de um processo mais amplo e geral, de caráter irreversível, cuja finalidade é alcançar um conceito unificado para a medicina, rompendo com os artificialismos hoje existentes.

Entre êsses artificialismos são aqui lembradas as clássicas divisões do campo médico: de um lado, medicina privada e saúde pública, de outro medicina curativa e preventiva. De fato, considerando-se a medicina ao longo de sua história mais recente, percebe-se a diferenciação clara de duas linhas de orientação: a partir da única até então existente, de caráter individualista e que dava ênfase à cura das doenças – correspondente à prática privada – destacou-se um ramo, o da saúde pública, que passou a se preocupar com os problemas de doenças que atingiam os aglomerados populacionais; o novo ramo, que logo se tornou atribuição dos governos, deslocou seu interesse primordial da cura para a prevenção da doença. Cada um destes "campos", medicina e saúde pública, desde o início até hoje vêm sendo tratados como se fôssem entidades autônomas e estanques, apenas com a tolerância de uma certa coordenação entre si.

Mais recentemente, contudo, surge um outro departamento científico, que se poderia dizer intermediário aos mencionados, chamado Medicina Preventiva. Prelecionado em Faculdades de Medicina, tinha por objetivo, no início, infundir nos futuros médicos noções de higiene ou de saúde pública; mais tarde, talvez porque se constatasse falta de interesse do aluno pela matéria, mudou-se de orientação, passando-se a dar mais atenção às medidas preventivas e de melhoria da saúde, aplicáveis diretamente ao indivíduo e à sua família. Não obstante a inegável melhoria que o novo enfoque trouxe para o ensino médico, passou a ficar mais evidente agora a existência de fatôres sociais atuantes em todas as fases do ciclo da doença, e que só poderiam ser adequadamente equacionados se o campo de operação se deslocasse do indivíduo e sua família, para a comunidade. Esta teria sido a evolução natural e lógica, da medicina preventiva para a medicina comunitária.

Em resumo, pode-se dizer que é artificial a separação entre medicina privada e saúde pública, e entre medicina curativa e medicina preventiva. A idéia que parece mais funcional e mais adequada à realidade é a que admite serem os mencionados, apenas aspectos ou perspectivas diferentes de um único campo, o da medicina. Não é outra a opinião de SUCHMAN 8 (1963), que reconhece a dificuldade crescente de separar medicina pública e medicina privada:

"Public health, at various stages in its history, has been defined as environmetal sanitation, preventive medical science, and most recently, as the promotion of positive health or the attainment of the highest level of physical, mental, and social well-being. Most current definitions place particular stress upon three factors: (1) the prevention or control of disease, (2) through organized community efforts, (3) aimed at special groups of person. In recent years, because of changes in both the social system and medical practice, these aspects have taken on new meanings which make it increasingly difficult to separate the public from the private sectors of health".

É preciso convir, pois, que medicina privada e saúde pública têm exatamente o mesmo objetivo: melhoria da saúde, prevenção e cura da doença, e reabilitação do paciente. Diferem, contudo, nos seus aspectos aplicativos, de vez que, tanto a profissão médica como a sanitária, sendo variáveis dependentes, estão sujeitas às mesmas forças que operam na dinâmica sócio-cultural, inclusive através de sua dimensão diacrônica. Exemplificando: as atividades de saúde pública, antes essencialmente preventivas, passaram a ser também curativas; a medicina privada, tradicionalmente curativa e individualista, está incorporando cada vez mais as atividades de prevenção e estendendo seu raio de ação à família. Tem-se assim que, entre medicina privada e saúde pública está havendo uma tendência para a convergência, realizada esta sob duplo aspecto: de um lado, no sentido de integrar cura e prevenção, diferindo mais na ênfase que na qualidade, e, de outro, no que respeita ao âmbito de ação, confluindo para a ação na comunidade.

Justo é atribuir-se mérito aos professôres de medicina preventiva na consecução do objetivo de reintegração do campo médico. Tendo surgido como uma força intermediária às linhas tradicionais da medicina pública e da medicina privada, está cumprindo uma função importante de aproximação entre ambas, através da criação dos Departamentos de Medicina Comunitária. Se não ocorrer a interferência de um novo fator, imprevisível no momento, é muito provável que se venha a alcançar, num futuro próximo, a plena integralização do campo médico, hoje tão fracionado sob múltiplos aspectos, com evidentes benefícios para os pacientes, para a sociedade e para a própria classe médica.

Para o autor, a tendência para a convergência da medicina privada com a saúde pública é inelutável, dependendo sua concretização antes do esclarecimento dos que detêm responsabilidade pela docência médica e sanitária, do que de uma melhor fundamentação quanto à sua conveniência ou necessidade. Nas linhas que se seguem são apresentados alguns argumentos que o autor reputa importantes, os quais, no seu conjunto justificariam a necessidade e a conveniência da aproximação entre os dois mencionados campos. Em outras palavras, o que se pretende defender é a importância da criação de Departamentos de Medicina Comunitária nas Escolas de Medicina.

2.1 A prática médica é uma atividade social

É comum ouvir-se que a medicina é uma ciência social. Virchow já havia feito esta afirmação.

Esta referência, contudo, não parece ser exata, pois a medicina, como campo científico, não pode ser considerada uma ciência social, pois conquanto tenha implicações sociais, é uma ciência fundamentalmente biológica.

Mas, se a medicina não pode ser incluída no rol das ciências sociais, o exercício da profissão médica é uma atividade nitidamente social; assim, mesmo a relação que ocorre entre o médico e seu paciente no consultório, considerada um assunto privativo, não subtrai ao ato a necessidade de sua vinculação ao meio sócio-cultural.

Não é pois para estranhar-se a crescente convicção de que a prática médica é uma atividade social, ou, se se preferir, que ela depende de condições sociais, culturais e econômicas.

A êste respeito, assim se pronunciaram peritos da WHO10 (1964).

"It is impossible to consider any one branch of medicine in isolation from others, or in isolation from the social, economic and cultural changes taking place in the community".

Pronunciamento ainda mais incisivo encontra-se na seguinte observação (OMS4, 1963) :

"Desde ambos puntos de vista, la medicina es menos una cuestión de pericia técnica que una parte de la ciencia social, en la que el médico es un sociólogo que estudia la interacción de la enfermedad y de la sociedad. El clínico carente de esa idea y de ese entusiasmo de tipo social puede ser un médico muy bueno, pero sólo ve al enfermo, y a menudo nada más que la lesión y, aun cuando sea consciente de la amplitud de la posible trascendencia, pueden faltarle el interés, los conocimientos y la pericia para explotarlos".

2.2 A socialização da medicina parece ser inevitável

O fato da medicina estar se tornando cada vez mais socializada, robusteceria a idéia da necessidade de se preparar os futuros médicos para esse tipo de atividade.

Como medicina socializada o autor entende a organização e funcionalização da profissão médica, a fim de servir à coletividade. Seu aparecimento não decorre da ação de grupos interessados e nem da intervenção estatal, como talvez possa parecer a alguns, mas sim, surge paulatinamente, como adaptação a condições próprias da medicina e da sociedade modernas. Entre essas condições se alinham:

– o crescente custo dos serviços médicos, decorrente, por sua vez, do aumento da complexidade das técnicas de diagnóstico, do encarecimento da terapêutica e da multiplicação das especialidades médicas;

– o aumento da classe dos que não podem pagar serviços médicos, conseqüência da industrialização e urbanização ;

– a extensão da função social do Estado, intervindo, inclusive, na prestação de atividades de assistência médica a certos grupos profissionais.

A previsão que se pode fazer é a de que esta conjuntura não apenas tenda a se manter, mas também, que os fatores que a alimentam se intensifiquem, produzindo como conseqüência a expansão do processo de socialização médica.

2.3 A medicina evolui para a integralização

É patente o esfôrço que vem se fazendo para a integralização da medicina, pelo menos no que diz respeito à sua conceitualização. O que se espera obter com a integralização do campo médico é u'a melhor compreensão da problemática de saúde e u'a maior eficiência operativa.

Não há, contudo, um conceito uniforme de medicina integral, predominando, talvez, o que se limita a associar os aspectos curativos e preventivos.

Neste trabalho, medicina integral é tomada numa acepção bastante ampla, pois deve atender a pelo menos os seguintes requisitos:

– Associar os aspectos curativos e preventivos da doença com os de promoção da saúde.

– Considerar a saúde e a doença segundo uma perspectiva tri-dimensional, ou seja, sob os aspectos somático, psíquico e social. Êste enfoque coaduna-se com o conceito de saúde apresentado pela OMS.

– Admitir a explicação multi-causal para a etiologia da doença, contrariando, pois, a tradição médica que estabelece a regra de que cada doença é determinada por um só agente. De acôrdo com essa concepção, os fatores sócio-culturais também entrariam na gênese das doenças, não apenas como contributórios, mas, igualmente, como determinantes.

Na medida em que as doenças transmissíveis são controladas, passam a assumir importância relativamente maior as que apresentam caráter crônico, como a aterosclerose, hipertensão arterial, diabetes e câncer, que estão em contínua ascensão nas estatísticas de mortalidade. Este fenômeno é, atualmente, típico dos países de maior desenvolvimento econômico, mas deverá sê-lo, igualmente, dos países subdesenvolvidos dentro de algum tempo.

Esta mudança da configuração nosológica está pondo em destaque a importância das variáveis sociais no controle dessas doenças, conforme refere SUCHMAN 8 (1963).

"Social factors are much more important for these latter diseases (chronic degeneratives) in etiology, treatment, and prevention. Specific infectious agents are being replaced by social and psychological processes as "causes" of disease, while changes in one's way of life have become a crucial factor in the treatment of these chronic illnesses".

Tomando-se como exemplo uma das mais graves manifestações da aterosclerose, o enfarte do miocárdio, que é uma das principais causas de mortalidade nos países econômicamente desenvolvidos, pode-se pôr em evidência a importância das variáveis psico-sociais na etiologia dessa doença, pois que ela depende essencialmente de fatores relacionados com o comportamento humano; já existem provas razoavelmente boas a respeito da participação da dieta inadequada, do excesso de peso, de hábitos sedentários e do fumo, na evolução pré-sintomática dessa doença.

2.4 O exercício da medicina comunitária permitirá aumentar o nível da eficiência médica

A tese acima pode ser desdobrada:

– Do ponto de vista administrativo, é lícito afirmar-se que a medicina alcançará seu maior nível de eficiência quando puder ser globalmente planificada.

– O rendimento do sistema planificado, quer se processe numa conjuntura de socialização médica total ou parcial, estará na dependência do preparo dos médicos em medicina comunitária.

Em relação à primeira tese, são inegáveis as vantagens da medicina planificada:

– Apresenta maior rendimento, em virtude do melhor aproveitamento dos recursos humanos e materiais.

– Permite uma distribuição mais justa dos serviços médicos, facilitando o acesso aos de menor capacidade aquisitiva.

– Possibilita ao médico maior amplitude de ação, em razão, principalmente, de um melhor contrôle das variáveis psiso-sociais.

Quanto à segunda tese, a necessidade do preparo dos médicos em medicina comunitária estaria justificada pelos seguintes fatos:

– Encarando-se a medicina como um sistema social, sua eficácia corre paralela com a eficiência dos trabalhos de coordenação dos seus executores médico2 1 Da Disciplina Autônoma de Ciências Sociais Aplicadas, da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP 2 Nestas considerações são excluídos os profissionais não-médicos, porquanto o tema está sendo enfocado exclusivamente em relação aos médicos. . Só se pode coordenar com sucesso quando os indivíduos forem embuídos dos mesmos propósitos e se encontrarem preparados para o trabalho de equipe. Em outras palavras, faz-se necessário uma filosofia comum, que, no caso, será melhor concretizada na prática da medicina comunitária, que serve de alvo tanto à medicina privada como à saúde pública.

– A medicina integral, que inclui, além dos aspectos somático e psíquico, também o social, não pode prescindir do enfoque comunitário para que efetivamente se realize.

Complementando as idéias já expedidas cabe ainda uma outra consideração, cuja importância cresce na medida em que o problema das doenças de caráter crônico passa a apresentar importância relativamente maior.

Refere-se ela à maior responsabilidade que os médicos deverão assumir em relação às atividades de profilaxia, pois muito pouco poderão fazer em benefício de seus pacientes quando a sintomatologia dessas doenças atingir ao limiar clínico.

Nessas condições, terão eles que imergir na complexa teia dos fenômenos sócio-culturais, em nível comunitário.

Os aspectos aqui ventilados serão ilustrados com algumas citações.

Por exemplo, a OMS 4, (1963) em uma de suas publicações assim se expressa:

"Casi todos los países en vías de desarrollo están procurando cambiar la orientación de sus médicos en la posición curativa de la medicina hacia la preventiva y social. Una razón fundamental de ello es que el enorme costo de la asistencia médica al enfermo ha obligado siempre a los médicos que tienen a su cargo la planificación a pensar en la profilaxis, lo que es perentorio sobre todo en los numerosos países donde está creciendo la población: Durante muchos años la medicina curativa será un lujo individual, y la prevención de la enfermedad no sólo será una extensión lógica de nuestros conocimientos, sino que nos será impuesta por las circunstancias."

Sôbre a maior eficiência da medicina preventiva, muitos depoimentos existem. Um dêles, por exemplo, destaca a contribuição de pessoas leigas para êsse mister (DEUSCHLE & FULMER 5, 1962):

"If our school teachers could convince their children not to smoke, they would probably be ten times as effective in saving lives from lung cancer as the best trained chest surgeon. Are the teachers then practicing medicine? Is the question really as relevant as who is the most effective against this eighth leading cause of death?"

A tão decantada sabedoria chinesa apresenta interessante contribuição neste sentido (SATTER 7, 1965):

"Conta-se que os ricos do antigo império da China conseguiram conservar a saúde através de um método curioso: pagavam honorários fixos a um médico, mas só enquanto não estivessem doentes; se adoecessem, os honorários eram suspensos, até que voltassem a ficar bons. É claro que esses facultativos deveriam procurar, por todos os meios, manter a saúde dos seus clientes, sobretudo com medidas preventivas."

Em conclusão: o médico privado atual, e, mais ainda, o futuro, deve ser treinado, durante a sua formação acadêmica, no que está sendo denominado medicina comunitária, porque, com base em um provérbio chinês, se pode dizer que:

"El médico corriente trata la enfermedad; el buen médico trata al paciente; el mejor médico trata a la comunidad".

Assim procedendo, médicos da medicina privada e médicos da saúde pública se comunicarão com mais facilidade e realizarão um melhor trabalho cooperativo, porque suas atividades se desenvolverão num terreno comum e dentro de uma perspectiva unificada: a comunidade.

Recebido para publicação em 30-10-1967

  • 1. BAKST, H. J. Community health and departments of preventive medicine. Arch. environm. Hlth, 15(1):102-106, Jul. 1967.
  • 2. BATES, Barbara Comprehensive medicine: a conference approach with inpatient emphasis. J. med. Educ., 40(8):778-784, Aug. 1965.
  • 3. DEUSCHLE, K. W. & FULMER, H. S. Community medicine: a "new" department at the University of Kentucky College of Medicine. J. med. Educ., 37(5):434-445, May 1962.
  • 4. FORMACIÓN en medicina preventiva y social. Cron. Org. mund. Salud, 17(9):384-393, sept. 1963.
  • 5. JAMES, G. Teaching community health in schools of medicine. Arch. environm. Hlth, 14(5):713-718, May 1967.
  • 6. ROBERTS, D. W. Health is a commumity affair, J. Amer. med. Ass., 196(4):332-333, Apr. 1966.
  • 7. SATTER, H. O coração precisa de exercício. Int. Scala (10):14-17, out. 1965.
  • 8. SUCHMAN, E. A. Sociology and the field of public health. New York, Russell Sage Found., 1963. 182 p.
  • 9. URZÚA, H. Integración de la medicina preventiva y social en las distintas escuelas de una Universidad. Bol. Ofic. sanit. panamer. 62(3):232-237, mar. 1967.
  • 10. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Expert Committee on General Practice. Report on... Geneva, 1964, 24p. (Techn. Rep. Ser. no. 267).
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    Da Disciplina Autônoma de Ciências Sociais Aplicadas, da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP
    2
    Nestas considerações são excluídos os profissionais não-médicos, porquanto o tema está sendo enfocado exclusivamente em relação aos médicos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 1967

    Histórico

    • Recebido
      30 Out 1967
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