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Pesquisa social em saúde pública

Social research in public health

Resumos

Após comentar a inexistência de delimitação clara entre a pesquisa social e a pesquisa em saúde pública, com emprego da metodologia das ciências sociais, o trabalho procura: 1. conceituar a pesquisa social em saúde pública, distinguindo-a da pesquisa social; 2. indicar, de forma sistematizada, as principais linhas de pesquisa social em saúde pública; e 3. estabelecer a área de competência do sanitarista em relação à pesquisa social em saúde pública.


The non-existance of a clear borderline between the social and the public health researches through the application of social sciences methodology, is commented. After this, work intends: 1) to form an opinion about social research in public health showing its difference from social research; 2) to show, in a systematic maner, the main social investigation trends in public health; 3) to establish the area of competence of the public health worker related to social research in public health.


ARTIGO ORIGINAL

Pesquisa social em saúde pública

Social research in public health

Armando Piovesan

Da Disciplina Fundamentos Sociais e Culturais da Saúde Pública do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP – São Paulo, Brasil

RESUMO

Após comentar a inexistência de delimitação clara entre a pesquisa social e a pesquisa em saúde pública, com emprego da metodologia das ciências sociais, o trabalho procura: 1. conceituar a pesquisa social em saúde pública, distinguindo-a da pesquisa social; 2. indicar, de forma sistematizada, as principais linhas de pesquisa social em saúde pública; e 3. estabelecer a área de competência do sanitarista em relação à pesquisa social em saúde pública.

SUMMARY

The non-existance of a clear borderline between the social and the public health researches through the application of social sciences methodology, is commented. After this, work intends: 1) to form an opinion about social research in public health showing its difference from social research; 2) to show, in a systematic maner, the main social investigation trends in public health; 3) to establish the area of competence of the public health worker related to social research in public health.

A despeito do número crescente de pesquisas sociais realizadas no campo da saúde pública, notadamente nos Estados Unidos, não tem havido, de forma correspondente, maior preocupação em se conceituar êsse campo da investigação aplicada; além disso, salvo algumas exceções, poucas tentativas foram feitas de reunir os trabalhos existentes de forma sistemática.

Conseqüentemente, poucos são os que, pelo menos em nosso país, sabem expressar o significado da pesquisa social em saúde pública, bem como indicar as suas aplicações específicas. No primeiro caso – falta de conceito – o problema mais sério que tem surgido diz respeito à inexistência de uma delimitação clara entre os objetivos da pesquisa social e os da pesquisa social em saúde pública; no segundo, a desordenada profusão de trabalhos estaria dificultando o estabelecimento de critérios de prioridade em investigação.

Entre as explicações que podem ser dadas ao fato em aprêço, ocorre-me apontar as seguintes:

EM RELAÇÃO AOS PROFISSIONAIS DO CAMPO DA SAÚDE PÚBLICA

1. Desconhecimento da metodologia científica.

Por mais estranho que pareça, as escolas de medicina, odontologia, veterinária, e outras afins, de nosso país, que são instituições especializadas na transmissão do saber científico, não incluem em seu currículo uma disciplina de metodologia de pesquisa.

Forçoso é convir, então, que os profissionais da saúde se encontram despreparados para o emprêgo correto e preciso do método científico em suas investigações, como despreparados estão, igualmente, na qualidade de "consumidores", de avaliar a confiança e a validade de uma pesquisa à base da metodologia utilizada.

Lamentàvelmente, as pesquisas conduzidas sem observância dos ditames metodológicos soem ficar sèriamente comprometidas quanto ao seu valor, padecendo de vícios que não encontram corretivo mesmo nas mãos dos mais competentes estatísticos.

Esta condição de despreparo, por ser generalizada, é responsável pela falta de qualquer preocupação quanto ao problema; assim, "produtores" e "consumidores" da pesquisa social em saúde pública, carecendo de um espírito crítico quanto a exigências metodológicas, irmanam-se no sentido de aceitar o status quo. Além disso, fatôres agravantes ainda ocorrem:

– falta de pessoal preparado para o ensino de metodologia de pesquisa social em saúde pública; e

– inexistência de textos de metodologia de pesquisa que sejam, a um tempo, aplicados à saúde pública e vasados em linguagem acessível ao não-especialista.

2. Desconhecimento da teoria das ciências sociais.

Outra falha muito freqüente nas universidades brasileiras é a falta de ensino de ciências sociais.

É verdade que já foi despertada a consciência para êsse problema, e várias escolas de medicina, enfermagem e odontologia, principalmente, vêm ministrando noções de ciências sociais, através, geralmente, dos Departamentos de Medicina (ou Odontologia) Preventiva e Social. Outras há que vão um pouco além, apresentando programas individualizados de Sociologia, Antropologia e Psicologia, como ocorre, mais freqüentemente, nas escolas de enfermagem.

No entanto, êste fato, conquanto possa ser alviçareiro, deve ser considerado apenas modesto, ainda mais que não é extensível a tôdas as escolas.

Assim, à falta de formação em ciências sociais, e suas aplicações, os profissionais da saúde têm se ressentido de uma melhor compreensão dos aspectos sociais envolvidos na investigação 10:

"In general, most current social epidemiological studies are deficient in the conceptualization of their social variables and in the development of a theory as to how and why the social factors become engaged in the disease process. Many public health epidemiologists are content to limit their research to the simple discovery of significant differences in the occurrence of disease among different social groups. However, as in the case of the social survey, these observed differences must be taken as only the jumping-off place in a search for underlying factors that will help to explain why the differences occur".

3. Pouca divulgação dos trabalhos de pesquisa.

A maior parte dos trabalhos de investigação social no campo da saúde pública é publicada em periódicos norte-americanos especializados, como, por exemplo, "Human Organization", "Journal of Health and Social Behavior", "Administrative Science Quarterly", "Social Psychiatry" e "Social Science & Medicine".

A pouca penetração dessas revistas entre os profissionais da saúde, aliada à dificuldade que encontram em interpretar eventuais trabalhos que venham a ser lidos, constitui um motivo a mais para impedir que os sanitaristas se familiarizem com a investigação social aplicada.

A reunião dêsses fatôres explica, então, o fato da pouca ou quase nula utilização que os profissionais da saúde fazem da metodologia de pesquisa social, tanto como "produtores" como "consumidores" dessa atividade.

O pior é que, êsses profissionais, embora alertados sôbre a necessidade de se pesquisar para planejar e avaliar certos programas de saúde pública, não estão, via de regra, alertados para o problema metodológico e, assim, de forma ingênua podem pôr a perder uma soma apreciável de tempo e recursos empregados na realização da pesquisa; nessas condições, é preciso se levar em conta, ainda, os prejuízos advindos para os trabalhos calcados em suas conclusões, ao ponto de comprometê-los sèriamente.

EM RELAÇÃO AOS CIENTISTAS SOCIAIS QUE TRABALHAM NO CAMPO DA SAÚDE PÚBLICA

Além de raríssimos no Brasil, os cientistas sociais que trabalham no campo da saúde pública 1 1 Geralmente estão vinculados às escolas de medicina ou de saúde pública, realizando funções de ensino e pesquisa. É pràticamente inexistente êsse profissional prestando serviços junto às organizações de saúde pública. padecem, freqüentemente, de algumas deficiências, o que faz com que sua produção não alcance os níveis desejáveis e nem obtenham a aceitação por parte dos membros das equipes onde atuam.

Entendo que tais falhas ocorram em virtude dos seguintes fatos:

1. Falta de preparo no campo da saúde pública e particular atitude em relação à pesquisa.

A falta de preparo do cientista social em saúde pública é, por si só, muito importante, impedindo-o de alcançar, com a pesquisa, resultados que especialistas mais experimentados poderiam obter.

No entanto, tão importante quanto essa, ou mais ainda, são as falhas que podem ser imputadas à maneira bàsicamente diversa, da do sanitarista, com que o cientista social encara a pesquisa em saúde pública. Alguns depoimentos esclerecem o assunto.

Assim, SUCHMAN 10, em várias passagens do seu livro se reporta ao assunto:

Referindo-se aos cientistas sociais diz: "They tend to be 'thinkers' and not 'doers'".

"The field of public health is largely an applied field with a major emphasis upon the solution of practical problems, while sociology is a basic science with an orientation toward seeking knowledge without particular regard for its practicability".

"Public health itself is an applied science, and when it turns to sociology, it is for help in making its operating programs more effective. It is understandable, therefore, that much of current controversy over the place of sociology in the field of public health concerns the issue of basic versus applied science".

Foster, sôbre o mesmo assunto, diz4:

"Anthropology, sociology, psychology and public health are all sciences. But the way in which they operate are very different. The behavioral sciences are disciplines and not, properly speaking, professions. The underlying assumption that characterizes academic disciplines is that the search for knowledge represents the highest values. The work of this kind of a scientist is exploratory; he wants to find out, to know, he wants to order knowledge in meaningful patterns; be wants to build theory... The practice of public health, on the other hand, is a profession ... it is a directly applied venture. ... Public health personnel feel gratified when they know they have raised the level of health in their jurisdiction through their efforts, and that this success is recognized by their colleagues. Behavioral scientists feel gratified when they feel they have made new contributions to basic science and when these contributions are acknowledged by their colleagues".

2. Falta de preparo em metodologia de pesquisa social.

Embora as escolas de ciências sociais sejam uma das poucas exceções, no Brasil, que preparam os alunos em metodologia de pesquisa, ocorre que, não poucas vêzes, terminam êles os seus cursos ressentindo-se de uma sólida formação nesse campo.

Assim, embora credenciados pelo título que portam, revelam, por vêzes, deficiências – que chegam a ser acentuadas – no seu preparo em pesquisa, o que os impede de assumir responsabilidade nesse sentido ou, uma vez que as assumam, acabam por realizar trabalhos de valor duvidoso e que só servem para comprometer o conceito da classe e desapontar os profissionais da saúde.

***

Se considerarmos em conjunto os fatôres assinalados, fácil se torna perceber a extensão, profundidade e complexidade do referido problema em nosso país, e prever as dificuldades para sua solução.

A escassez de pesquisas sociais no campo da saúde pública, principalmente das realizadas com observância dos preceitos metodológicos, a falta de consciência da necessidade do preparo metodológico do pesquisador, a falta de familiaridade com as ciências sociais, aliadas à insuficiência de publicações e de especialista nas ciências sociais aplicadas ao campo da saúde pública, todos êstes fatores contribuiriam para manter uma situação caracterizada pelo baixo nível de produção e de utilização da pesquisa social em saúde, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo.

***

Após estas considerações preliminares, cuja finalidade foi colocar alguns problemas relacionados com o tema em foco, passo aos objetivos principais do trabalho:

– Apresentar um conceito de pesquisa social em saúde pública.

– Indicar, de forma sistemática, as principais linhas de investigação social no campo da saúde pública.

– Discutir a competência dos profissionais da saúde na realização de pesquisas sociais no campo de suas atividades.

Devo esclarecer, de antemão, que, face à profusão e variedade de trabalhos de investigação social aplicada à saúde pública, elaborados principalmente nos Estados Unidos, torna-se particularmente difícil a sistematização pretendida. Na realidade, um trabalho rigoroso nesse sentido afigura-se impossível. Assim, sem qualquer propósito de esgotar o assunto e, menos ainda de assegurar sua infabilidade, êste trabalho leva a intenção de pôr em foco o problema e suscitar o seu debate.

Cogitando da eventual utilidade da sistematização das principais linhas de investigação social em saúde pública, creio ser possível sugerir que com ela se poderia adotar uma atitude mais crítica em relação aos trabalhos que vêm sendo realizados e, também, estabelecer uma escala de prioridade em pesquisa.

1. CONCEITO DE PESQUISA SOCIAL EM SAÚDE PÚBLICA

É necessário que se esclareça que a expressão pesquisa social em saúde pública não é corrente e nem define qualquer disciplina, mas expressa, tão sòmente, o sentido genérico de aplicação da metodologia da pesquisa social ao campo da saúde pública. Deve-se mencionar, de outro lado, a tendência recente de chamada pesquisa em educação para a saúde, o que se justificaria face à sua finalidade primordial, dirigida para a educação em saúde.

Na pesquisa social, o que se procura conhecer são assuntos que se situam no campo das ciências sociais, como os referentes à cultura ou outros aspectos da vida social: migração, desenvolvimento econômico, delinqüência, mobilidade social, divórcio, problema racial, etc.

É muito provável que o grande desenvolvimento alcançado pela metodologia das ciências sociais, que atingiu a apreciáveis níveis de rigor e sofisticação – não encontrando paralelo nos campos das ciências físicas e biológicas – se explique de um lado, pela complexidade dos estudos sociais (Exemplos ilustrativos de sua complexidade: Quais os fatôres responsáveis pelo abuso de drogas? Qual a relação entre a urbanização e saúde mental? Qual a influência da TV na socialização da criança?) e, de outro, pela relativa precariedade dos seus instrumentos de medida, avaliada em têrmos de precisão, validade e confiança (Compare-se, por exemplo, a precisão, validade e confiança de um questionário com a de um microscópico).

A pesquisa social em saúde pública tem na saúde2 2 Saúde, neste trabalho, é usada na sua acepção mais ampla, compreendendo os aspectos promocionais da saúde, a prevenção e cura da doença, e a reabilitação do doente. o seu ponto de referência, não para estudá-la diretamente, já que êste é o objetivo do chamado "método epidemiológico", mas para conhecer os fatôres psico-sócio-culturais que com ela se relacionam. Além disso, investiga os problemas atinentes à conduta humana em saúde.

A distinção, pois, entre pesquisa social e pesquisa social em saúde pública refere-se ao objeto de investigação, e à natureza essencialmente especulativa da primeira em confronto com a finalidade prática da última. De nenhum modo trata-se de uma diferença metodológica, uma vez que se utilizam do mesmo método e das mesmas técnicas.

Deve-se levar em conta que a distinção apontada, conquanto útil para a maioria dos casos, só é válida para fins práticos, já que uma diferenciação rigorosa entre ambos os campos é quase impossível, dada a íntima conexão entre a problemática de saúde e a social; assim, por exemplo, enquanto o estudo da favela, na sua integridade, é assunto que interessa ao cientista social, os aspectos de saúde do favelado e as condições sanitárias dêsse meio caem no âmbito de trabalho do sanitarista. A pesquisa social em saúde pública deveria ater-se aos aspectos psico-sócio-culturais diretamente relacionados com a saúde, ou teria que abordar êsses problemas dentro do amplo contexto sócio-cultural da favela? Neste caso, talvez fôsse necessário conhecer também a organização social da favela, a família, o seu sistema de valores, os problemas da delinqüência, alcoolismo e uso de drogas, etc. Na realidade, a problemática sanitária seria melhor compreendida se o seu equacionamento se fizesse em função do amplo quadro de referência social, embora, naturalmente, se tivesse dilatado bastante o âmbito da pesquisa e aumentado a sua complexidade.

No exemplo referido, onde se deveria colocar o marco divisório entre os aspectos sociais diretamente relacionados com a saúde – campo da pesquisa social em saúde pública – e os que com ela mantêm ligações mais remotas ou menos aparentes – campo da pesquisa social?

Todavia, para fins práticos, o problema apontado não constitui impecilho significativo pois quase sempre é possível estabelecer os limites do campo da pesquisa social em função dos objetivos definidos para o programa de saúde.

2. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SÔBRE AS PRINCIPAIS LINHAS DE PESQUISA SOCIAL EM SAÚDE PÚBLICA

A compreensão das principais linhas de pesquisa social em saúde pública requer o estabelecimento prévio de base teórica relativa aos aspectos conceituais, estruturais e funcionais da saúde pública e da educação em saúde. Como o estudo pormenorizado dêsses assuntos está fora dos objetivos dêste trabalho, limitar-me-ei a fazer apenas as referências indispensáveis: Para êste fim, usarei a teoria dos sistemas 3 3 Conceito de MILER 6: "Systems are bounded regions in space-time, involving energy interchange among their parts, wich are associated in functional relationships, and with their environment". Conceito de SPRINGER 9: Operationally, systemes theory – whether it is drawn from systems engineering, sociology or biology – is an attempt to develop models or principles which would help to order a wide array of phenomena and would take into account discernible regularities and interrelationships". , bem como adotarei, embora modificado, o esquema de BLOOM 1.

2.1. Tendência da Saúde Pública

A história da saúde pública vem demonstrando que o contrôle progressivo das doenças transmissíveis, com a conseqüente elevação da vida média, tem acarretado o aumento da importância das doenças crônicas, degenerativas e mentais, conforme se pode verificar na Tabela.

Embora os dados focalizados na Tabela não sejam comparáveis 4 4 Conquanto não comparáveis, é provável que a situação real no Brasil, para todo o país, não apresente percentagens maiores que as assinaladas na Tabela pois, para as cidades menores e a zona rural os referidos dados relativos devem ser ainda menores. , é possível concluir-se, com boa dose de segurança, que as estruturas de mortalidade nos Estados Unidos e no Brasil sejam marcantemente diferentes, predominando no primeiro as doenças crônicas, degenerativas e mentais. Veja-se, por exemplo, que, reunindo-se as doenças referidas por B 26, B 22 e B 28, cuja patologia está ìntimamente associada, e que são de evolução nìtidamente crônica, obtém-se a expressiva proporção de 47,4% para os Estados Unidos ,contra apenas 11,8 para o Brasil. Se a êste grupo de causas acrescentarmos as devidas aos neoplasmos malignos, alcançar-se-á para os Estados Unidos 64,2%, e para o Brasil 18,9%.

Êste fato acarreta profundas modificações na orientação dos serviços de saúde pública. Algumas conseqüências da mudança da estrutura da mortalidade, e suas implicações quanto aos aspectos sociais, podem ser aferidas das considerações de SUCHMAN10:

"During the bacteriological era, public health had little need for the behavioral sciences".

"These early efforts were highly successful in the western world and the communicable diseases began to disappear – only to be replaced by a new type of disease that did not respond to immunization or control of sanitary conditions. These so--called diseases of civilization – the chronic, degenerative diseases such as cancer, heart disease, arthrites, diabetes, and mental disorders – rapidly rose to the top of morbility and mortality tables until today we find the major public health programs striving desperately but rather unsuccessfully to control them.

These chronic disease created a whole new set of problems for the field of public health ... People now had to be persuaded, rather than compelled, to take advantage of preventive measures... The health of individual became largely a personnal rather than a public matter".

Referindo-se às doenças crônicas, diz:

"Drugs were of less avail than the motivation and ability of the individual to change his customary behavior and way of life".

Resumindo estas considerações, que põem em relêvo os fatôres sociais ou humanos para o contrôle das doenças, principalmente as de natureza crônica, editorial do periódico American Journal of Publlic Health3 refere:

"Health workers agree generally that we are now in a period when the human factor must be taken into account if public health is to handle its problems successfully".

Outros tipos de problemas, também mais acentuados nos países economicamente avançados, são os que derivam da urbanização e da moderna tecnologia, acarretando o aumento, entre outros, da poluição do meio, dos acidentes, das doenças mentais e dos suicídios.

A evolução da saúde pública está, assim, a demonstrar a influência crescente dos fatôres sócio-culturais e da conduta dos indivíduos na determinação da estrutura de morbidade e mortalidade, o que vale dizer que as autoridade sanitárias, nessas condições, passam a poder tomar apenas limitadas medidas em favor da saúde da população. A fim de minimizar a ação dos agentes das doenças crônicas, degenerativas e mentais, essas autoridades têm, agora, que lançar mão, primordialmente, de recursos educativos. Dêsse modo, as atividades educativas passam a assumir um papel de maior destaque que as práticas médico-sanitárias, uma vez que a solução dos problemas de saúde se torna cada vez mais dependente das decisões dos indivíduos. Na medida em que êstes fatos ocorrem, aumenta também, de forma correspondente, a necessidade da investigação social em relação aos problemas de saúde, pois, o planejamento e a avaliação das atividades educativas só podem ser racionalmente orientados se conduzidos através do conhecimento da conduta dos indivíduos e do contexto sócio-cultural onde se desenvolvem os programas de saúde.

2.2. Estrutura do sistema saúde pública

O sistema saúde pública, aqui considerado como um sistema social, apresenta, bàsicamente, uma estrutura bipolar, e as suas funções são exercidas num meio de natureza sócio-cultural, conforme esquema de BLOOM1 adaptado:

No modelo acima devemos ter em vista que:

– todos os elementos integrantes do sistema estão entre si relacionados;

– o sistema saúde pública mantém interação com os outros sistemas sociais, particularmente com os relativos à economia e à educação formal;

– a organização de saúde pública e o público constituem os dois elementos fundamentais do sistema, sendo, por isso, colocados como subsistemas;

– a variável x refere-se exclusivamente à prestação de serviços de saúde e compreende um conjunto de técnicas, e respectivos instrumentos, para diagnóstico, prevenção, tratamento e reabilitação; não apresenta interêsse para êste trabalho;

– a variável y diz respeito ao processo de interação, sofrendo forte influência do meio sócio-cultural;

– o meio sócio-cultural, além de estabelecer os padrões básicos de funcionalidade do sistema, apresenta vários elementos –organizações e pessoas – que se relacionam com os seus subsistemas.

(a) Estrutura do subsistema organização de saúde pública

A saúde pública é exercida por um conjunto de órgãos diversos, que serão aqui chamados, genèricamente, organização de saúde pública.

A organização de saúde pública é a responsável direta pela consecução dos objetivos da saúde pública. Para realizar estas funções dispõe, segundo SUCHMAN 10, modificado, de:

– um corpo de conhecimentos científicos sôbre, por exemplo, saúde, administração, planejamento, educação e ciências sociais;

– um grupo de funcionários, que constitui a equipe de saúde, aos quais é atribuído um conjunto de funções, com papéis e metas bem definidos;

– um conjunto de técnicas, instrumentos e recursos materiais;

– uma ideologia, que constitui a linha fundamental de orientação da organização de saúde pública.

(b) Estrutura do subsistema público

O público, em saúde pública, pode ser entendido como:

– a comunidade, com sua cultura;

– os segmentos da sociedade, compreendendo os seus vários grupos e classes sociais, e respectivas subculturas;

– os indivíduos, considerados sob o ponto de vista bio-psico-social.

Cada uma dessas unidades apresenta estrutura e dinâmica próprias, requerendo distintas técnicas de investigação.

No que se refere aos indivíduos, as pesquisas procuram focalizar, principalmente, a conduta em saúde, tanto no sentido de seus determinantes como de sua dinâmica. Tais estudos se revestem de grande importância para os trabalhos educativos.

(c) Meio sócio-cultural 5 5 O meio físico-biológico não foi considerado neste trabalho.

Embora as fôrças bio-psico-sociais exerçam forte influência na conduta do indivíduo, outras fôrças há, fora dêle, que apresentam grande importância em saúde pública, também atuando como poderosos determinantes da conduta.

A reunião destas fôrças, que são exercidas por organizações, grupos sociais e indivíduos, constitui o meio sócio-cultural do sistema saúde pública.

Êste meio é formado pelo conjunto integrado de padrões culturais, valores e instituições, grupos e camadas sociais. Exerce importante função no sentido de definir os "status" e papéis dos membros da equipe de saúde e dos pacientes, bem como de estabelecer as normas que presidem à interação do profissional com a população.

Alguns elementos do meio sócio-cultural, pelas suas relações mais diretas com os subsistemas do sistema saúde pública, devem ser destacados:

Os relacionados com o subsistema organização de saúde pública:

– As escolas de formação profissional, como as de saúde pública, medicina, veterinária, enfermagem, odontologia, etc.

– As associações de classe.

– As agências voluntárias que cooperam com a saúde pública.

– A classe médica e paramédica.

Os relacionados com o subsistema público:

– A família e outros grupos sociais ou associações;

– o sistema de medicina de "folk", quer o organizado como o não-organizado.

2.3. Interação do sistema saúde pública com outros sistemas sociais.

O sistema saúde pública pode manter relações de interdependência com todos os demais sistemas sociais.

Contudo, pelo imediatismo do relacionamento e por sua maior relevância, devem ser especialmente destacados os sistemas econômico e de educação formal.

Esta interrelação de sistemas conduz à formação de complexos que, por vêzes, se constituem em forte desafio à ação de saúde pública, como o integrado pela doença, miséria e analfabetismo.

3. PRINCIPAIS LINHAS DE PESQUISA SOCIAL EM SAÚDE PÚBLICA

Neste tópico, que considero o fundamental para fins do presente trabalho, vou procurar alcançar os dois seguintes objetivos: identificar as principais linhas de pesquisa social em saúde pública e ordená-las de forma sistemática.

Como linhas de pesquisa entendo as áreas específicas de investigação. O trabalho não pretente identificar tôdas as possíveis linhas de investigação e nem ir além de uma abordagem muito superficial. Em trabalho posterior o assunto será analisado mais detalhadamente.

Sôbre o problema da ordenação sistemática das pesquisas, sua importância e tentativas realizadas, são aqui reproduzidas considerações de ROBERTS 8:

"Each educational problem arising in health programmes is of a complex nature; even brief analysis of any problem reveals its multifaced character and the interrelatedenes of problems. An attempt to develop discrete categories of health education problems or of research may therefore appear to be an academic exercise. However, if a conceptual framework is first developed from the stadpoint of health education, its objectives and processes, health education problems and research efforts can then be viewed in the light of the conceptual scheme and thus placed in perspective, and a system of classifying problems and research may be suggested.

Some attempts have been made in health education to group research and indirectly, educational problems. The World Health Organization, for example, in surveying health education research in 1961 and while recognizing the difficult of ordering research in discret categories, grouped published studies and research under the following headings: studies of programmes in action; studies of people, their knowledge, attitudes, culture, and behavior; studies of educational methods and communication media; evaluative studies; theoretical research models; studies of health workers and their role in health education; and review of research applicable to health education 6 6 "World Health Organization. Studies and research in Health Education. Geneva, 1961. (mimeographed, restricted document)". .

At a later point, Young, in reviewing published research related to health education, organized research under six main headings; viz. what people know, believe and do about health; psycho-social and cultural factors related to health education practice; communication methods and materials; patient education: programme planning and evaluation; school health education 7 7 "Young, M.A.C., Review of research and studies related to health education practice (1961-1966). Health Education Monographs, Society of Public Health Educators Inc., New York, vols. 23-28, 1967-69". ".

A autora também apresenta uma classificação das pesquisas, relacionando 10 itens.

Com êste trabalho pretendo também oferecer uma contribuição nesse sentido. Para a organização das principais linhas de pesquisa, levarei em conta o modêlo apresentado para o sistema saúde pública. Assim sendo, proponho as seguintes principais linhas de investigação social em saúde pública:

– Pesquisa das variáveis sociais associadas aos problemas de saúde.

– Pesquisas sociais referentes ao público.

– Pesquisas sociais referentes à organização de saúde pública.

– Pesquisas sociais referentes às relações entre a organização de saúde pública e o público.

– Pesquisas referentes ao meio sócio-cultural.

– Pesquisas referentes às relações do sistema saúde pública com outros sistemas.

– Pesquisa comparativas inter-culturais.

3.1. Pesquisa das variáveis sociais associadas aos problemas de saúde.

Como já referí anteriormente, a problemática de saúde é geralmente estudada pelo chamado "método epidemiológico".

No entanto, êsses estudos muito se beneficiariam se relacionassem os problemas de saúde com as variáveis sociais. Nesse caso, a problemática de saúde seria tomada como variável dependente e analisada segundo algumas variáveis independentes, que poderiam ser chamadas, em conjunto, demográficas.

Estas últimas compreendem, além de variáveis biológicas, como sexo e idade, também as de natureza sócio-cultural, das quais me parecem mais importantes:

– as classes sociais (ou os seus elementos componentes tomados isoladamente: renda, ocupação e escolaridade);

– a religião;

– os grupos étnicos;

– o estado civil;

– a procedência: urbano-rural geográfica (região ou Estado).

Para melhor elucidação, são mencionados alguns exemplos desta linha de pesquisa :

– Fatôres sócio-econômicos e mortalidade infantil.

– Carie dental segundo a procedência urbano-rural.

– Incidência do enfarte do miocárdio segundo a ocupação.

– Suicídio e nível de instrução.

– Distribuição da prevalência de diabetes segundo o nível de renda.

Nestas pesquisas, que correspondem, geralmente, aos "surveys" 8 8 " Survey research is trat branch of social scientific investigation that studies large and small population (or universe) by selecting and studying samples chosen from the populations to discover the relative incidence, distribution, and interrelations of sociological and psychological variables 5". do tipo analítico, a inclusão de variáveis independentes tem a finalidade precípua de indicar segmentos sociais em que o problema se manifesta mais acentuadamente e, assim, chamar a atenção das autoridades de saúde para a conveniência de dar prioridade a tais grupos. Contudo, estas pesquisas não fornecem mais do que pistas para a realização de pesquisas subseqüentes, com as quais, sim, serão obtidos subsídios que possibilitarão ao órgão de saúde pública elaborar seus programas educativos. Exemplo: Posso verificar, em pesquisa do tipo mencionado, que os grupos sociais inferiores (var. indep.) apresentam maior prevalência de tuberculose (var. dep.). Se, com base nessa pesquisa fôr decidido que o programa educativo deva ser dirigido, principalmente, às pessoas dessa camada social, será conveniente que outras informações sejam obtidas, o que poderá ser alcançado através das investigações referidas nos itens (3.2) e (3.4).

Conforme já foi mencionado, nas pesquisas das variáveis sociais associadas aos problemas de saúde, geralmente são usados os "surveys" do tipo analítico, pois, nesses casos, o que se pretende é conhecer a distribuição do problema segundo as dimensões das variáveis bio-psico-sociais e, também, generalizar os resultados à população da qual provém a amostra estudada.

A propósito, ainda, dos "surveys", creio que a saúde pública de muito se beneficiaria se, através dêsse tipo de pesquisa, procurasse obter dados válidos e confiáveis a respeito, entre outros, da morbidade e dos parâmetros relativos aos vários aspectos da saúde física e mental; com isto, certamente, seria muito melhorada a qualidade de alguns indicadores de saúde.

3.2. Pesquisas sociais referentes ao público

A maior parte das pesquisas sociais em saúde pública se situa neste campo, que é dos de mais difícil sistematização.

Neste caso, a diferença fundamental em relação aos estudos referidos no item (3.1) é que as variáveis psico-culturais ou sócio-culturais constituem o objetivo principal da pesquisa e passam a ser tratadas como variáveis dependentes.

Estas pesquisas, nas quais se emprega geralmente o "survey", tanto do tipo descritivo como analítico, interessam mais particularmente ao educador em saúde, dado que seu objetivo principal é provocar na sociedade, nos grupos ou nos indivíduos as mudanças que se fizerem necessárias para uma utilização mais eficiente dos conhecimentos científicos existentes sôbre saúde e dos serviços oferecidos pelas organizações de saúde pública.

As principais linhas de pesquisa social em relação ao público, são as seguintes:

– Estudo da cultura, principalmente nos aspectos relacionados com a saúde; aqui se incluem os estudos sôbre a medicina de "folk".

– Estudo das subculturas concernentes aos vários segmentos sociais, notadamente nos aspectos relativos à saúde.

– Estudo da conduta em saúde, ou, mais precisamente, da conduta manifesta, que incluiria, também, os hábitos.

– Estudo dos determinantes da conduta, bio-psíquicos e sócio-culturais.

Êste último item é bastante complexo, mas é, também, o que oferece maior importância para os trabalhos educativos. Seu estudo exaustivo constituirá objeto de publicação a ser feita em outra oportunidade, pois uma melhor compreensão da conduta está condicionada à elaboração de uma teoria geral da conduta. Por ora, limitar-me-ei a mencionar as principais áreas de investigação:

– Atitudes

– Valores

– Emoções

– Conhecimentos

– Crenças

– Percepções

– Motivações

Alguns exemplos desta linha de pesquisa:

– Consumo de leite e classe social.

– Conhecimentos sôbre difteria e vacina anti-diftérica, e damanda da respectiva vacina.

– Posição da saúde na escala dos valores sociais.

– O mêdo como determinante da conduta em saúde.

3.3. Pesqusias sociais referentes à organização de saúde publica.

Os serviços de saúde podem ser estudados tanto na sua organização formal como informal.

Os estudos referentes à organização formal constituem objeto das pesquisas administrativas, enquanto que os referentes à organização informal caem no campo da referência das ciências sociais, sendo, neste caso, conhecidos geralmente pelo nome de sociologia organizacional.

Alguns exemplos de pesquisa neste setor:

– Contrôle social no hospital.

– Conflito entre a autoridade formal e a informal.

– O sistema de comunicação profissional inter-grupal e inter-institucional.

– O problema da aceitação das decisões emanadas da autoridade formal.

– Aspectos sociológicos da delegação, supervisão, contrôle e avaliação.

– Relações intra e inter-grupais num centro de saúde.

– Relações inter-profissionais nas organizações de saúde.

– Distorções da estrutura formal.

Nestas pesquisas se faz uso, freqüentemente, da técnica da sociometria.

3.4. Pesquisas sociais referentes às relações entre a organização de saúde pública e o público.

Nesta área podem ser realizados importantes trabalhos de investigação, máxime para o bom desempenho das atividades educativas.

As pesquisas podem referir-se à interação da organização de saúde com a comunidade ou do profissional da saúde com o público, tomado êste tanto no sentido grupal como individual.

Para fins práticos, o processo de interação "organização de saúde pública – público" será examinado, isoladamente, segundo o sentido predominante da relação.

Organização

Público :

Neste tipo de relação, o que se tem em vista é focalizar as ações do órgão de saúde pública que o levam a alcançar os seguintes principais objetivos: mudança cultural, educação dos grupos e mudança da conduta. Êsses objetivos podem ser conseguidos por vários meios mas é inegável que sobrelevam em importância as atividades educativas.

Vários assuntos podem ser abordados neste setor de pesquisa:

– Avaliação das atividades educativas, seja sob o aspecto da mudança da conduta (manifesta), seja do conhecimento, das crenças, das atividades, dos valores, das percepções etc. Geralmente, esta avaliação requer investigação de caráter experimental a fim de controlar a influência das variáveis intervenientes.

– Estudo do problema da comunicação entre a organização de saúde e o público, fornecendo ao educador subsídios para transmitir suas mensagens em condições de serem compreendidas, aceitas e convertidas em conduta. É indiscutível o valor destas pesquisas para aumentar a eficiência dos meios de divulgação de massa.

– Avaliação da eficiência das técnicas educativas, dos canais de comunicação do educador com o público e dos meios áudio-visuais.

Público Organização:

Creio que os estudos mais importantes nesta área de investigação são os referentes à demanda de serviços médico-sanitários e dos seus fatôres determinantes.

Para maior eficiência da pesquisa, a demanda poderá ser analisada em função das variáveis demográficas.

3.5.–Pesquisas referentes ao meio sócio-cultural

Tendo em vista que a conduta dos indivíduos é determinada não apenas pelas suas condições psíquicas, mas também pelas pressões que recebe do meio, a investigação social poderá ser orientada no sentido de:

– realizar estudos gerais sôbre os aspectos sócio-culturais diretamente relacionados com a problemática de saúde; e

– estudar certas associações que mantém interação mais íntima com os subsistemas do sistema saúde pública, como, por exemplo:

– O ensino de ciências sociais nas escolas de medicina.

– Modificações da imagem que o estudante de medicina tem de sua futura profissão à medida que progride na formação acadêmica.

– As associações de classe e as pressões que exercem sôbre os profissionais.

– A competição médico – curandeiro nas pequenas comunidades.

3.6. Pesquisas referentes às relações do sistema saúde pública com outros sistemas.

Partindo da observação que a saúde pública é apenas um dos numerosos sistemas existentes em tôdas as sociedades e que os vários sistemas mantém relações de íntima interdependência – com o que, não apenas se preserva a integridade social mas, também, se provê às necessidades biológicas e psíquicas dos indivíduos – as pesquisas podem, tomando como ponto de referência o sistema saúde pública, focalizar suas relações com os demais sistemas. Entre êstes, têm maior importância para a saúde, os sistemas relacionados com a economia e com a educação formal; modernamente, pelo grande desenvolvimento que vem assumindo e pela influência exercida em várias áreas da saúde (Exemplos: alimentação, fumo, consumo de álcool), a propaganda comercial também deve ser incluída nos planos de investigação social em saúde pública.

Outros tipos de pesquisa enfocam a cultura ou a sociedade como um todo, realizando, no primeiro caso, estudos sôbre os vários aspectos da cultura, e no segundo, sôbre os diversos sistemas que a integram. Êstes últimos são chamados, geralmente, estudos de comunidade.

Esta linha de investigação social, usada principalmente por cientistas sociais ou por assistentes sociais, pode ser também utilizada pelos sanitaristas, com a vantagem de permitir colocar a problemática de saúde dentro de amplo contexto sócio-cultural.

Tais pesquisas, embora mais complexas, requerendo, por vêzes, a constituição de equipes multiprofissionais, se revestem de particular interêsse no mundo contemporâneo, em que há intensa preocupação por soluções globais para os problemas sociais.

Outros estudos ainda há, mais limitados, que se referem aos segmentos sociais mais suscetíveis de apresentarem problemas de saúde, ou em que êstes se mostram com maior intensidade: favelas, creches, quartéis, escolas, prisões, zonas de meretrício, etc.

3.7. Pesquisas comparativas inter-culturais.

Vários tipos de pesquisa podem ser realizados, nas quais, tomando-se um ou mais aspectos da saúde ou da conduta em saúde, são êles estudados em diferentes culturas, com a finalidade de fazer comparações e inferir conclusões mais abrangentes que as referidas a uma só comunidade.

Neste setor, são mais comuns as pesquisas realizadas no campo da psiquiatria social.

4. ÁREA DE COMPETÊNCIA DO SANITARISTA EM RELAÇÃO À PESQUISA SOCIAL EM SAÚDE PÚBLICA

As opiniões dos cientistas sociais têm divergido quanto à capacidade e à competência dos sanitaristas realizarem pesquisas sociais no campo da saúde pública.

Contudo, a realidade em nosso país tem demonstrado que os sanitaristas, embora em proporção muito reduzida, vêm realizando pesquisas sociais na esfera de suas atribuições, sem estarem, via de regra, preparados para essas atividades.

Como já tive oportunidade de dizer, as pesquisas realizadas nessas condições podem se ressentir de falhas metodológicas que chegam a comprometer sèriamente o trabalho, quando não, prejudicá-lo irremediàvelmente.

Entretanto, é preciso que se diga, a bem da verdade, que os sanitaristas têm sido forçados a essa situação, uma vez que necessitam da investigação social no seu trabalho e não contam, para isso, com a colaboração dos cientistas sociais.

No que se refere ao ponto de vista externado por alguns cientistas sociais, reprovando a realização de pesquisas sociais em saúde pública por parte dos sanitaristas, baseados, provàvelmente na falta de preparação teórica e metodológica que êstes apresentam, respondo:

– Realmente, não é recomendável que os sanitaristas desprovidos dêsse preparo realizem trabalhos de investigação social em saúde pública.

– No entanto, negar essa possibilidade aos sanitaristas devidamente treinados é, a meu ver, laborar em êrro. Provàvelmente, a causa do êrro estaria no fato de certos cientistas sociais não saberem distinguir entre a pesquisa social realizada no campo das ciências sociais – de interêsse marcantemente especulativos e dependente de bons conhecimentos teóricos sôbre as referidas disciplinas – da pesquisa social aplicada ao campo da saúde pública, com objetivos práticos e despojadas do rigor metodológico requerido para a primeira. Os próprios cientistas sociais ignoram, freqüentemente, as características da pesquisa social utilizada na saúde pública.

Posso concluir, então, que os sanitaristas preparados em metodologia de pesquisa, não apenas podem mas devem realizar investigações sociais em seu campo de trabalho, pelo menos enquanto não puderem contar com profissionais especializados nessas atividades.

A ser aceita essa conclusão, haveria necessidade, então, de se estabelecer os campos de atribuição dos sanitaristas e dos cientistas sociais no que se refere à investigação social em saúde pública. Sugiro o seguinte:

4.1. Quanto ao sanitarista.

Sem entrar no mérito sôbre qual ou quais profissionais da saúde que poderiam realizar trabalhos de investigação 9 9 Ao que parece, os educadores em saúde são os mais particularmente interessados em realizar pesquisas sociais no campo da saúde pública. Os assistentes sociais também poderiam oferecer excelente contribuição. , é indiscutível que deveriam ser especialmente preparados para essa tarefa. Nesse preparo seriam incluídas noções de ciências sociais e de suas aplicações ao campo da saúde, teoria da metodologia de pesquisa social e realização, orientada, pelo menos de uma pesquisa.

As investigações realizadas por sanitaristas devem ser encaradas como instrumentos de trabalho, sem pretensões de oferecer contribuições de ordem teórica, embora, evidentemente, possam ser muito férteis sugerindo hipóteses.

Seria muito desejável que tais trabalhos pudessem contar com a supervisão de cientistas sociais treinados no campo da saúde pública.

No que se refere às linhas de pesquisa que poderiam realizar, êste assunto estaria a cargo dos cientistas sociais, caso a organização de saúde contasse com êstes profissionais.

No entanto, em caráter aproximativo, creio que se poderia indicar as seguintes:

– pesquisa das variáveis demográficas associadas aos problemas de saúde pública ;

– pesquisa sôbre a conduta, conhecimentos e atitudes referentes à saúde física;

– pesquisas referentes à organização de saúde e suas relações com o público;

– pesquisas relacionadas com a cultura, principalmente no que se refere à medicina de "folk";

– pesquisas de comunidade.

4.2. Quanto aos cientistas sociais.

Creio que se deve distinguir duas classes de cientistas sociais aplicados ao campo da saúde pública: os de primeira linha, de saúde, compartilhando da responsabilidade de sua solução; os de segunda linha, vinculados ou à cúpula dos órgãos normativos das organizações de saúde, ou então, às universidades, fundações ou centros de pesquisa.

(a) Cientistas sociais de primeira linha

Devem ser considerados, bàsicamente, profissionais da saúde, portanto, capazes de integrar as equipes de saúde pública, realizando atividades em harmonia com os demais membros.

Como sanitaristas, devem buscar no seu trabalho finalidades práticas, cooperando para que a organização de saúde pública alcance os seus obejtivos.

Além da possibilidade de sua participação em tôdas as atividades de saúde pública, caber-lhes-iam as seguintes responsabilidades específicas, no que se refere à investigação :

– Treinamento de funcionários para o planejamento e execução de pesquisas, assim como treinamento dos entrevistadores.

– Apresentação do relatório da pesquisa à equipe de saúde, com ela discutindo a aplicação dos resultados, tendo em vista, principalmente, o planejamento e avaliação das atividades educativas.

– Orientação e supervisão das pesquisas realizadas pelos funcionários da organização de saúde pública.

Os cientistas sociais de primeira linha necessitam de preparo intensivo em curso de saúde pública e devem demonstrar aptidão para o trabalho nesse campo; isto equivale a dizer que precisam abdicar, em parte, dos seus interêsses meramente teóricos pelas ciências sociais.

Outro aspecto relevante do problema é o que diz respeito à formação dêsse profissional em relação às ciências sociais. Creio que, à saúde pública interessariam, principalmente, cientistas sociais polivalentes, com conhecimento nos ramos da sociologia, antropologia, psicologia, economia e política. É possível que, no futuro, o cientista da conduta venha a ser o profissional de eleição para essa função.

Muitas são as barreiras que se antepõem à incorporação de cientistas sociais nas equipes de saúde. Não é meu objetivo discutir o assunto. Limitar-me-ei a apresentar algumas sugestões:

– Deveriam ser oferecidos cursos de saúde pública especialmente para cientistas sociais, uma vez que êles inexistem em tôda a América Latina. Em trabalho anterior sugerí que se deveria procurar uma solução de âmbito latino-americano, tendo em vista que as necessidades e os problemas a enfrentar são comuns à maioria dos países que o integram 7.

– Dever-se-ia procurar interessar as autoridades de saúde para lotar em seus quadros o cargo de cientista social.

– Os elementos das equipes de saúde devem ser preparados em ciências sociais aplicadas e orientados quanto à aplicação e importância da pesquisa científica, a fim de que aceitem o cientista social como um dos seus membros e valorizem a investigação como instrumento de trabalho.

– Dever-se-ia divulgar, principalmente, nas escolas de ciências sociais, as aplicações dessas ciências à saúde pública, bem como as possibilidades que os futuros profissionais poderiam encontrar nesse campo.

(b) Cientistas sociais de segunda linha

Contràriamente aos primeiros, que seriam, na verdade, sanitaristas com ênfase em ciências sociais, os de segunda linha devem se manter dentro dos limites da sua formação básica: seriam cientistas sociais realizando trabalhos no interêsse da saúde pública.

Para ressaltar as diferenças entre as duas mencionadas classes de cientistas sociais, poder-se-ia atribuir-lhes as seguintes características:

Cumpre observar que esta distinção é apenas esquemática, uma vez que há uma gama de situações intermediárias, assim como vários casos especiais.

Os cientistas sociais de segunda linha, aplicados ao campo da saúde pública, não difeririam essencialmente dos demais cientistas sociais, a não ser no fato de que as suas atividades, total ou parcialmente, estarem voltadas para a saúde.

Estando colocados em órgãos que os libertam de tarefas executivas ou de rotina, poderiam se dedicar mais a fundo ao estudo e aos trabalhos de investigação.

A êsses profissionais poderiam estar afetas as seguintes funções:

– Assessoria para os cientistas sociais de primeira linha.

– Colaboração na formulação das atividades normativas centrais de saúde pública.

– Realização de pesquisas sociais, de valor teórico, aplicadas ao campo da saúde pública.

– Aperfeiçoamento e simplificação da metodologia de pesquisa aplicada à saúde pública, o que poderia ser obtido, por exemplo, em relação às variáveis sociais, aos instrumentos de pesquisa e ao processo de amostragem, principalmente da amostragem por quotas.

Em se tratando de profissionais altamente especializados, seria interessante que cada um se ativesse ao seu campo específico, sem procurar alcançar um maior grau de generalidade. Dêsse modo, a saúde pública poderia contar, preferentemente em seus órgãos centrais, com especialistas nos seguintes campos: sociologia, antropologia cultural, psicologia, psicologia social, economia, política, demografia e estatística.

Como a comunicação dêstes especialistas com os sanitaristas é, via de regra, difícil, máxime no que se refere à execução das atividades de saúde pública, os cientistas sociais de primeira linha poderiam realizar a importante função de homens-ponte, contribuindo, assim, para estabelecer a união, há muito almejada, de dois importantes setores da atividade humana: saúde pública e ciências sociais.

Recebido para publicação em 15-9-1970

  • 1. BLOOM, S. W. The doctor and his patient. New York, Russell Sage Foundation, 1963.
  • 2. DEMOGRAPHIC YEARBOOK, 1968. New York, United Nations, 1969.
  • 3. EDITORIAL Why do they behave like human beings. Amer. J. publ. Hlth, 49: 536, Apr. 1959.
  • 4. FOSTER, G. Public health and behavioral science: the problems of teamwork. Amer. J. publ. Hlth., 51:1286-93, Sept. 1961.
  • 5. KERLINGER, F. N. Foundations of behavioral research. New York, Holt, Rinehart and Winston, 1964.
  • 6. MILLER, J. G. Toward a general theory for the behavioral sciences. Amer. Psychol., 10:513-31, Sept. 1955.
  • 7. PIOVESAN, A. O desenvolvimento das ciências da conduta aplicadas à saúde na América Latina. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 1:92-107, 1967.
  • 8. ROBERTS, B. Research in educational aspects of health programmes. Its relationship with professional education and practice. Int. J. Hlth. Educ. 13 (Suppl. 1): 1-33, Jan./Mar. 1970.
  • 9. SPRINGER, M. Social indicators, reports, and accounts: toward the management of society. Ann. Amer. Aacd. pol. soc. Sci., 388:1-13, Mar. 1970.
  • 10. SUCHMAN, E. A. Sociology and the field of public. health. New York, Russell Sage Foundation, 1963.
  • 1
    Geralmente estão vinculados às escolas de medicina ou de saúde pública, realizando funções de
    ensino e pesquisa. É pràticamente inexistente êsse profissional prestando
    serviços junto às organizações de saúde pública.
  • 2
    Saúde, neste trabalho, é usada na sua acepção mais ampla, compreendendo os aspectos promocionais da saúde, a prevenção e cura da doença, e a reabilitação do doente.
  • 3
    Conceito de MILER
    6: "Systems are bounded regions in space-time, involving energy interchange among their parts, wich are associated in functional relationships, and with their environment".
    Conceito de SPRINGER
    9: Operationally, systemes theory – whether it is drawn from systems engineering, sociology or biology – is an attempt to develop models or principles which would help to order a wide array of phenomena and would take into account discernible regularities and interrelationships".
  • 4
    Conquanto não comparáveis, é provável que a situação real no Brasil, para todo o país, não apresente percentagens maiores que as assinaladas na
    Tabela pois, para as cidades menores e a zona rural os referidos dados relativos devem ser ainda menores.
  • 5
    O meio físico-biológico não foi considerado neste trabalho.
  • 6
    "World Health Organization.
    Studies and research in Health Education. Geneva, 1961. (mimeographed, restricted document)".
  • 7
    "Young, M.A.C., Review of research and studies related to health education practice (1961-1966).
    Health Education Monographs, Society of Public Health Educators Inc., New York, vols. 23-28, 1967-69".
  • 8
    "
    Survey research is trat branch of social scientific investigation that studies large and small population (or universe) by selecting and studying samples chosen from the populations to discover the relative incidence, distribution, and interrelations of sociological and psychological variables
    5".
  • 9
    Ao que parece, os educadores em saúde são os mais particularmente interessados em realizar pesquisas sociais no campo da saúde pública. Os assistentes sociais também poderiam oferecer excelente contribuição.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 1970

    Histórico

    • Recebido
      15 Set 1970
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