Acessibilidade / Reportar erro

Inquérito entre migrantes atendidos pela Central de Triagem e Encaminhamento, na Capital do Estado de São Paulo, Brasil: III. Aspectos alimentares

Survey conducted among migrants going through the "Central de Triagem e Encaminhamento (CETREN)" in S. Paulo City, Brazil: III. Nutritional aspects

Resumos

Foi realizado um inquérito alimentar recordatório do tipo qualitativo, sobre o consumo de alimentos ricos em caroteno e vitamina A, e também sobre alimentos consumidos diariamente por migrantes em trânsito pela Central de Triagem e Encaminhamento, na Capital do Estado de São Paulo. O consumo dos alimentos fontes da pró-vitamina ou da vitamina A foi classificado em: nulo, esporádico e freqüente. Os alimentos habitualmente ingeridos foram classificados segundo as Regiões de procedência. Concluiu-se que a alimentação dos migrantes foi julgada insatisfatória no que se refere aos alimentos ricos em caroteno e vitamina A.

Inquérito alimentar; Caroteno. Vitamina A; Central de Triagem e Encaminhamento


The present study is a recall qualitative alimentary survey on consumption of rich sources of vitamin A and carotene as well as foodstuffs consumed daily by migrants in transit through the "Central de Triagem e Encaminhamento", in S. Paulo, SP, Brazil. Consumption of sources of carotene or vitamine A was divided into: null, occasional and frequent. The foodstuffs usually consumed were classified according to the Region from which the migrants came. In conclusion the feeding habits of the migrants were considered unsatisfactory as regards sources of Vitamin A and carotene.

Nutrition survey; Carotene; Vitamin A


ARTIGO ORIGINAL

Inquérito entre migrantes atendidos pela Central de Triagem e Encaminhamento, na Capital do Estado de São Paulo, Brasil. III. Aspectos alimentares

Survey conducted among migrants going through the "Central de Triagem e Encaminhamento (CETREN)" in S. Paulo City, Brazil. III. Nutritional aspects

Maria José Roncada

Do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP – Av. Dr. Arnaldo, 715 – São Paulo, SP – Brasil

RESUMO

Foi realizado um inquérito alimentar recordatório do tipo qualitativo, sobre o consumo de alimentos ricos em caroteno e vitamina A, e também sobre alimentos consumidos diariamente por migrantes em trânsito pela Central de Triagem e Encaminhamento, na Capital do Estado de São Paulo. O consumo dos alimentos fontes da pró-vitamina ou da vitamina A foi classificado em: nulo, esporádico e freqüente. Os alimentos habitualmente ingeridos foram classificados segundo as Regiões de procedência. Concluiu-se que a alimentação dos migrantes foi julgada insatisfatória no que se refere aos alimentos ricos em caroteno e vitamina A.

Unitermos: Inquérito alimentar. Caroteno. Vitamina A. Central de Triagem e Encaminhamento, São Paulo, SP, Brasil.

SUMMARY

The present study is a recall qualitative alimentary survey on consumption of rich sources of vitamin A and carotene as well as foodstuffs consumed daily by migrants in transit through the "Central de Triagem e Encaminhamento", in S. Paulo, SP, Brazil. Consumption of sources of carotene or vitamine A was divided into: null, occasional and frequent. The foodstuffs usually consumed were classified according to the Region from which the migrants came. In conclusion the feeding habits of the migrants were considered unsatisfactory as regards sources of Vitamin A and carotene.

Uniterms: Nutrition survey. Carotene. Vitamin A.

INTRODUÇÃO

Ao realizarmos um estudo bioquímico-nutricional em determinada população, somos sempre levados à tentativa de fazer uma averiguação de sua dieta habitual, para estabelecer uma possível relação entre os sinais laboratoriais de carência e os níveis de consumo alimentar e, quando factível ou necessário, destes últimos com a freqüência de sinais clínicos.

Em nossa pesquisa sobre níveis séricos de caroteno e vitamina A nos migrantes em trânsito pela Central de Triagem e Encaminhamento (CETREN) 9, 10, em São Paulo, fizemos também, por esse motivo, um inquérito alimentar recordatório, do tipo qualitativo, o qual, embora não podendo traduzir a ingestão de alimentos em termos de quantidade, serviu entretanto para situar o grupo estudado, pondo em evidência erros habituais na alimentação e revelando suspeitas de certas carências nutricionais.

Segundo Linusson e col. 6, o que determina a escolha do tipo de inquérito dietético que se vai realizar é a clara definição dos objetivos, assim como o tamanho da amostra e a factibilidade, entre outros fatores.

A finalidade deste inquérito alimentar foi a necessidade de ampliar os conhecimentos sobre um maior número de aspectos relacionados com o assunto de nossa pesquisa, hipovitaminose A.

Escolhemos como método de inquérito, a determinação da freqüência do consumo de alimentos. Para Abramson e col.1, este método indica somente se os padrões alimentares usuais são semelhantes, mas não indica a natureza das diferenças em termos de nutrientes; pode, entretanto, sugerir hipóteses dietéticas mais detalhadas, para serem testadas por outros métodos. A simplicidade de execução é a maior vantagem deste método. Um trabalho realizado no Instituto Nacional de la Nutrición, no México4, mostrou que o inquérito qualitativo teve alta correlação com os dados oferecidos pelo quantitativo. Assim, do ponto de vista prático, este método oferece não só uma informação direta sobre os alimentos usados, como também, indiretamente, informa sobre o consumo de nutrientes.

Evidentemente pretendemos apenas traçar um perfil da dieta usual dos migrantes, não tentando correlacionar nenhum dado desse inquérito dietético com aqueles encontrados nas análises bioquímicas de sangue 10. Mesmo onde o bom senso sugerir conclusões em termos de nutrientes (no caso, vitamina A), tais conclusões podem ser somente especulativas.

METODOLOGIA

Como já mencionamos em trabalho anterior 9, o formulário que utilizamos, ao lado dos dados pessoais e demográficos, forneceu-nos também aspectos relacionados com o consumo dos principais alimentos ricos em caroteno e vitamina A.

Para selecionar os alimentos que deveriam constar do formulário, adotamos o critério de escolher não somente aqueles que tivessem alto teor em caroteno ou vitamina A3, 13, mas que fossem também conhecidos pelos migrantes, o que verificamos por ocasião dos pré-testes.

A pergunta referente ao consumo dos alimentos ricos na provitamina ou em vitamina A, era: "De janeiro para cá, comeu algum desses alimentos: caruru, cenoura, couve, mostarda, pimentão vermelho, caju, goiaba vermelha, mamão, manga, fígado, ovos, leite, manteiga (margarina), queijo, requeijão, óleo de buriti e azeite de dendê?"

A resposta positiva a qualquer um dos itens implicava nova ou novas perguntas: "Quantas vezes por semana"? ou "Quantas vezes por mês"? (era consumido determinado alimento).

O inquérito alimentar recordatório reportou-se a um período de aproximadamente seis meses por ser a vitamina A uma vitamina de reserva, cujo principal órgão de armazenamento é o fígado; a depleção deste, no homem, se inicia mais ou menos neste prazo.

Dos 1.097 questionários aplicados, afastamos quatro, por se referirem a migrantes em más condições mentais, cujas respostas não foram merecedoras de crédito.

No sentido de melhorar nossos conhecimentos sobre os hábitos alimentares dos entrevistados, no caso em 957 indivíduos, anotamos também os alimentos que eles relataram consumir diariamente.

RESULTADOS E COMENTÁRIOS

Na Tabela 1 os resultados estão distribuídos segundo consumo "nulo", "esporádico" ou "freqüente", de alimentos ricos em vitamina A, valendo o seguinte critério de interpretação: "nulo" – não fez uso do alimento nos últimos seis meses; "esporádico" – fez uso do alimento pelo menos uma vez e no máximo dezoito vezes nos últimos seis meses; "freqüente" – fez uso do alimento pelo menos uma vez por semana nos últimos seis meses.

Através dessa Tabela, vemos que apenas 4,7% dos migrantes referiram fazer uso do óleo de buriti e 7,1% do azeite de dendê, apesar de 23,5% dos migrantes procederem do Nordeste, Região na qual essas palmáceas se desenvolvem abundantemente. Esses dois óleos naturais são ricas fontes de pró-vitamina A, sendo o buriti portador do mais elevado potencial de caroteno no reino vegetal7. Pudemos, inclusive, constatar a existência de tabus alimentares que restringiam o uso do azeite de dendê.

Dentre as verduras, o uso da couve na alimentação foi o mais citado, seguindo-se-lhe a cenoura. Embora 61,6% dos migrantes referissem não ter consumido cenoura nos últimos seis meses, parece-nos que tal fato resultou mais da escassa disponibilidade do vegetal e do baixo poder aquisitivo dessa população, do que de preferência alimentar simplesmente, pois tivemos oportunidade de observar os migrantes à hora do almoço na CETREN, quando então aceitaram bem a cenoura em sua alimentação.

O mamão foi a fruta cujo consumo foi referido com maior freqüência; das três frutas estacionais – goiaba, manga e caju – esta última foi a menos consumida, chegando muitos indivíduos mesmo a informar que a desconheciam. Esse fato chega a causar estranheza, sabido ser o cajueiro nativo do Nordeste e conhecido desde os primórdios da descoberta do país. Assim, Sousa11, já em 1587, no Tratado Descritivo do Brasil, em capítulo que trata dos frutos naturais da Bahia, dizia: "a natureza dos cajus é fria, e são medicinais para doentes de febres, e para quem tem fastio, os quais fazem bom estômago e muitas pessoas lhes tomam o sumo pelas manhãs em jejum, para conservação do estômago".

Dentre os alimentos de origem animal, os ovos e o leite foram referidos serem consumidos com maior freqüência pelos migrantes, bem como a manteiga ou margarina (esta, principalmente). Apesar disso, mais de metade da amostra não consumiu uma única vez nos seis meses que precederam esta pesquisa, outros alimentos fontes de vitamina A pré-formada, que não leite e ovos.

Julgamos interessante minudenciar o grupo "freqüente" da Tabela 1. Para tal, elaboramos a Tabela 2, na qual distribuímos a freqüência do consumo semanal de alimentos ricos em vitamina A, nos sete dias da semana. Pudemos assim evidenciar resultados interessantes, pois os valores das freqüências decresceram, geralmente, do consumo num só dia para o de seis dias na semana, aumentando então repentinamente no de sete dias na semana, ou seja, todos os dias; apesar disto, houve aqui uma diversificação nestes valores, pois a freqüência do consumo de verduras e legumes e o de mamão foi maior num só dia na semana que em sete, enquanto as frutas de temporada mostraram o resultado oposto, o mesmo acontecendo com os alimentos de origem animal, exceção feita ao fígado e requeijão. Não obstante, somente 30,4% dos migrantes informaram ingerir leite diariamente, 21,3% manteiga ou margarina e 16%, ovos. Pico e col. 8, em inquérito qualitativo na Argentina, encontraram uma assiduidade de ingestão semanal de leite e/ou derivados muito baixa, sugerindo a existência de carência de vitamina A.

Verificamos também o consumo de leite pelas 54 gestantes da amostra; pelo referido, cerca de um terço desse grupo vulnerável não ingeriu leite nos últimos seis meses; 22,2% consumiram-no esporadicamente; 14,8% fizeram uso de uma a seis vezes por semana e 33,3% ingeriram leite todos os dias da semana. Kelner 5, estudando gestantes pobres de Recife, também verificou ser baixo o consumo desse alimento entre elas, pois somente cerca da metade da amostra fez uso de leite na alimentação.

Na Tabela 3 apresentamos os alimentos de maior consumo, distribuídos segundo as Regiões das quais procederam os trabalhadores. O feijão, o arroz, a carne de vaca e a farinha de mandioca foram os alimentos mencionados com mais freqüência. É interessante notar que os produtos derivados do milho (farinha de milho e preparações culinárias de fubá) ocuparam o 9.° lugar na relação dos alimentos mais consumidos, enquanto que a farinha de mandioca ocupou o 4.° lugar. Os migrantes que mais referiram a ingestão de produtos à base de milho foram os procedentes do Estado de Pernambuco; mas, enquanto 23,1% utilizaram produtos de milho, 71,1% deles consumiram farinha de mandioca. Cabe lembrar que neste Estado o milho é cultivado em quase todos os municípios, enquanto que a produção de mandioca se dá em apenas 23 deles2. Talvez a diferença de preço entre os dois produtos influencie na escolha da farinha de mandioca, que custa cerca da metade do preço do fubá, tal como já foi apontado por Souza 12.

Os migrantes que procederam do Nordeste foram os que referiram menor consumo de vegetais folhudos, tomate e batata, e maior de carne seca. Além dessa Região não ser habitualmente explorada para a cultura de hortaliças, os entrevistados ainda relataram ter havido um período de seca muito prolongado naquela época.

Finalizando, desejamos ressaltar que qualquer tentativa no sentido de relacionar os diferentes resultados de nossa pesquisa9,10 não seria válida, uma vez que o método usado foi do tipo qualitativo e o consumo de alimentos constitui apenas um dos inúmeros fatores que podem influir na etiologia de um estado de desnutrição.

CONCLUSÃO

Pelo exposto, acreditamos ser insatisfatória a alimentação dos migrantes, no que se refere aos alimentos ricos em caroteno e vitamina A.

Recebido para publicação em 08/09/1975

Aprovado para publicação em 22/09/1975

Trabalho baseado na tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Saúde Pública da USP, em 1973

  • 1. ABRAMSON, J. H. et al. Food frequency interview as an epidemiological tool. Amer. J. publ. Hlth., 53: 1093-101, 1963.
  • 2. ANDRADE, M. C. Considerações sobre a produção de mandioca, milho e feijão no Estado de Pernambuco. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO, 2.°, Recife, 1968. Anais. Recife, Instituto de Nutrição, 1968.
  • 3. FRANCO, G. Tabela de teor vitamínico dos alimentos. Rio de Janeiro, SAPS, 1951.
  • 4. INSTITUTO NACIONAL DE LA NUTRICIÓN. División de Nutrición Hábitos de alimentación en una región fronteriza: informe preliminar del estudio en Agua Prieta y Esqueda, Sonora. Salud publ. Méx., 11:357-80, 1969.
  • 5. KELNER, M. Vitamina A e caroteno no ciclo grávido-puerperal. Estudo de alguns aspectos em pacientes pobres do Recife. Recife, 1966. (Tese Faculdade de Medicina da UFP).
  • 6. LINUSSON, E. E. I. et al. Validating the 24 hour recall method as a dietary survey tool. Arch. latinoamer. Nutr., 24:277-94, 1974.
  • 7. PECHNIK, E. & GUIMARÃES, L. R. Alguns representantes do reino vegetal portadores do elevado potencial provitamínico A. Arq. bras. Nutr., 12:9-19, 1957.
  • 8. PICO, M. et al. Estudio del estado nutricional en los ciudadanos de 20 años de edad de la Provincia de Misiones. Rev. Sanid. milit. argent., 69:227-40, 1970.
  • 9. RONCADA, M. J. Inquérito entre migrantes atendidos pela Central de Triagem e Encaminhamento, na Capital do Estado de São Paulo, Brasil. I. Aspectos demográficos. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 9:303-12, 1975.
  • 10. RONCADA, M. J. Inquérito entre migrantes atendidos pela Central de Triagem e Encaminhamento, na Capital do Estado de São Paulo, Brasil. II. Aspectos bioquímicos da hipovitaminose A. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 9:313-29, 1975.
  • 11. SOUSA, G. S. de Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo, Ed. Nacional/Ed. USP, 1971.
  • 12. SOUZA, J. N. B. Pelagra no agreste de Pernambuco: aspectos clínicos e tratamento. Rev. bras. Med., 10: 730-2, 1953.
  • 13
    TABLA de composición de alimentos para uso en America Latina. Guatemala, Instituto de Nutrición de Centro America y Panamá, 1966.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 1975

Histórico

  • Aceito
    22 Set 1975
  • Recebido
    08 Set 1975
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@usp.br