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Problemas a enfrentar na criação da terminologia científica

EDITORIAL

Problemas a enfrentar na criação da terminologia científica

José Alberto Neves Candeias

Comissão de Publicações da RSP Departamento de Microbiologia - ICB/USP

Vem este comentário a propósito do esforço que teremos que desenvolver para chegarmos a uma solução racional de problemática que, de há uns tempos a esta parte, vem preocupando a comunidade científica, problemática esta resultante da necessidade de chegarmos a uma nomenclatura nacional, que seja mais fruto de uma análise racional do que de preferências individuais. Relativamente a estas últimas, até elas poderiam ser aceitas, se não implicassem na interferência do capricho ou da doutrina de cada um com o interesse de todos os outros. As considerações que passamos a fazer dizem muito respeito à área da genética, mas, parece-nos, podem muito bem ser generalizáveis. Elas não esgotam, de modo algum, o assunto e realmente pretendem, no seu conjunto, formar um complexo de sugestões de como proceder e uma relação de alguns dos parâmetros que teremos, forçosamente, que utilizar para a tarefa chegar a bom termo.

Desde logo há que concordar com o fato de ser o processo de tradução da linguagem científica complexo e controverso A complexidade pode resultar de certas peculiaridades das línguas consideradas, como, por exemplo, a riqueza de vocábulos ou a eufonia da língua, que podem não ter idêntica representação em cada uma delas. Na área da genética a língua inglesa, à qual estamos tão intimamente ligados, é um bom exemplo daquela abundância, com expressões tão curiosas como: "Adaptative landscape", "Upstream e Downstream", "Cap", "Dot-Blot", "Unidentified reading-frame" e tantos outros. Mas também pode muito bem acontecer que as expressões originais tenham sido de escolha incorreta e neste caso corremos o risco de perpetuar, em nossa língua, um erro grosseiro. É o caso da expressão "Nick translation" que deveria ser substituída por "Nick migration", uma vez que não existe propriamente "tradução" no processo em pauta. Por outro lado, a controvérsia não resulta necessariamente da não concordância objetiva, mas do fato de o tema em questão estar carregado de forte componente emocional, com íntima ligação com a formação científica dos pesquisadores envolvidos ou interessados. Resulta ainda da existência de múltiplos obstáculos advindos da simples resistência pessoal e institucional às mudanças, por comodismo, por um certo grau de vaidade ou exotismo e pelo interesse pouco científico de criar um ambiente hermético ao qual só é permitido o acesso de uma elite. E verdade que este último motivo, a compartimentagem, é muito mais um artifício do profissionalismo e da própria competição para angariar fundos, do que algo que diga respeito a uma obrigatória necessidade da especialização. Estamos falando da verdadeira especialização e não da falsa especialização, que, em nosso entender, não é mais do que amadorismo exibicionista, disfarçado e superficial.

Vencidas as dificuldades inerentes ao processo de tradução, logo nos perguntamos em que medida teremos que aceitar, como ingrediente indispensável certa dose de inspiração. É de toda a evidência que seria inútil a pretensão de analisarmos a exata validade daquela feição psíquica que gera o momento da inspiração fulgurante que se resolve em poder criativo. Mas queremos deixar, desde já, nossa posição formada no sentido de que tal poder criador não é, para nós, o que muitos aceitam como resultado de toque divino, mas o resultado de disciplina na aplicação intelectual e lógica na interpretação dos resultados obtidos num constante labor experimental. Sem ter a intenção, de modo algum, de melindrar os chamados intuicionistas, parece-nos interessante lembrar que Appleton num estudo clássico sobre o comportamento dos chimpanzés verificou que tal comportamento podia ser reduzido às seguintes fases: reconhecimento da existência de fatos anômalos, análise de cada um destes fatos e, finalmente, solução do problema. Ora quando Einstein sentiu a necessidade de elaborar sua teoria, não fez mais que seguir idênticas fases com o reconhecimento da existência de fatos anômalos que não podiam ser explicados pela teoria de Newton, com a análise de cada um destes fatos através de um sistema matemático que se mostrava de grandes possibilidades e que nunca tinha sido aplicado, chegando brilhantemente à solução do problema. De todas estas fases parece ser a segunda a que tem mais o aspecto de sugestão, filha de experiências anteriores, apenas aproximadas no momento próprio, do que de "uma fulguração assombrante produto de um espírito estranho entre os homens", tal como escreveu Sullivan, o filósofo do processo divinatório. Para este e para Appleton, o seguidor da linha intelectualista, a gênese da famosa teoria da relatividade tem origens diferentes, o que parece sugerir que o chamado "poder criador" pode ser consdierado de mais de uma maneira. E é por isto que, respeitada nossa posição intelectualista, ficamos sempre com uma vaga sensação de que talvez uma pequena dose de imaginação seja condimento, senão necessário, pelo menos apropriado para o sucesso da receita. Que outra coisa teria sido usada que não a imaginação nas expressões "Zig-Zag DNA", "Transposon", "Super-coiled", "Relaxed Plasmid", "Phasmid", para só mencionar estas.

Na procura de uma nomenclatura nacional, quando, de todo, não for possível deixar de aceitar certas particularizações, que sejam aceitas. É claro que nossa imediata preocupação é com a terminologia científica no campo da Biologia, que como todos sabem quer significar aquela fase da ciência natural que averigua o que há de comum nos aspectos e nas atividades dos seres vivos, codificando o que neles se revele uniforme. Desde já deve dizer-se que esta particularização do objetivo sobre que a Biologia incide não perde de vista aquilo que possa haver de precário na distinção de seres animados ou inanimados, seres vivos ou inertes. A própria Biologia tem posto a questão da revocabilidade dessa distinção ou não fosse ela uma ciência unificadora. O que nos parece necessário é não partirmos possuídos, desde logo, daquela incômoda impressão de que a Biologia de plantas é diferente da Biologia de animais e esta diferente da Biologia humana, porque "o homem é diferente".

Nos primeiros tempos da pesquisa biológica os objetivos práticos desta, quer fossem a erradicação de uma doença, o aumento da produtividade agrícola, ou a melhoria do modo de vida eram aceitos e compreendidos com facilidade e perfeitamente justificados os seus elevados custos. Mais recentemente a sofisticação e complexidade da pesquisa biológica, que elevaram substancialmente seus custos, não são capazes de despertar o mesmo grau de interesse público e mais do que isto, expressam-se por uma terminologia só acessível aos especialistas, em determinadas áreas. Esta nova linguagem biológica veio sendo enriquecida e mantida, sem grandes preocupações de adaptação, desde os primeiros usos da técnica de criação de "mutants", passando pela "genetic recombination", pela utilização das "restriction endonucleases" até chegar à técnica do "recombinant DNA". A manipulação da molécula de DNA, sede do conjunto total de informações características de cada célula, muito embora teoricamente simples, exige o respeito técnico a um complexo receituário, multifásico. Em primeiro lugar é feita a leitura da seqüência de bases de um dos "strands" do DNA por uma enzima "RNA polymerase", que sintetiza uma molécula de "messenger RNA", cuja seqüência de bases é complementar do "strand" do DNA original. Esta é então "translated" no conjunto de ácidos aminados de uma proteína. É assim que as bases podem ser combinadas em 64 diferentes conjuntos de 3 bases chamados "triplets" ou "codons". Destas, 61 correspondem a um dos 20 ácidos aminados e 3 funcionam como "stop codons", uma espécie de sinalizadores do final da molécula proteica. Transferir informações sobre este tema usando uma linguagem híbrida, que o texto quer deixar bem clara e que não está longe da realidade, é o que nos parece pouco aceitável.

O rápido caminhar do conhecimento biológico e das possíveis aplicações práticas deu origem como já dissemos a uma terminologia nova, quase totalmente ausente dos dicionários, que tem obrigado à publicação de obras capazes de orientar os interessados sobre o significado das palavras típicas do jargão da genética, da genética molecular, ou da engenharia genética. Por outro lado, tamanho tem sido este desenvolvimento que não pode ser hoje considerado como regularmente instruído quem não possuir conhecimentos mais do que rudimentares sobre física e bioquímica, ciências estas igualmente possuidoras de linguagem própria. Mas, ao mesmo tempo, como a linguagem é um fenômeno humano, todos nós nos julgamos com o direito de discutí-la e interpretá-la e muitas vezes cientistas eminentes, que não são especialistas em determinado campo, cometem sérias inexatidões, esquecendo-se, ou nem se apercebendo, de que sem alguns conhecimentos filológicos e etimológicos não mais se consegue do que emitir opiniões que são verdadeiros contra-sensos. Como exemplos não podemos deixar de referir o termo "deletion", tantas vezes aportuguesado para "deleção", palavra que não existe em nossa língua e cujos correspondentes corretos podem ser "obliteração" ou "elisão" e a expressão "replicação do DNA", tão em uso e que é um verdadeiro absurdo, pois ao substantivo "replicação" só podem aplicar-se os significados de "contestação" ou "resposta". E apesar das enormes potencialidades do DNA, estas não lhe conferem a inédita capacidade de contestar ou retorquir. "Duplicação do DNA" é o que deve ser dito, pois é o que ocorre, na realidade.

Os laços universais que transformam a humanidade numa verdadeira família não impedem a ocorrência de ramos secundários em que as afinidades são sucessivamente mais estreitas. Naturalmente os indivíduos de língua portuguesa terão maior ligação entre si do que com indivíduos de outras nacionalidades, para o que concorre a linguagem comum, os costumes e o chamado interesse prático da vida. Mas as desigualdades evidentes, de um país para outro, no que tange aos avanços da ciência, desigualdades estas com raízes de múltipla origem, quer sejam culturais, quer socioeconômicos, criam atrações e dependências extensivas à própria terminologia científica. É um exemplo flagrante o uso, já implantado em nosso meio científico, do termo "AIDS", em contraposição a "SIDA", quando este último, deveria ter sido aquele a se radicar preferencialmente. Mas as nossas forças atrativas aproximam-nos, por razões geográficas e de outras naturezas, da comunidade científica de língua saxônica, não havendo hoje a mais leve possibilidade de alterar o ocorrido. Este é um novo aspecto que não pode ser esquecido ao tentarmos encontrar uma solução para a implantação de uma terminologia científica própria da nossa língua. Parece-nos que já chegou a hora de nos preocuparmos com este problema, começando a levantar uma barreira, sempre que possível, é claro, contra a invasão constante das línguas saxônicas. Temos de pugnar pela integridade dos diversos elementos da nacionalidade, e dentre estes a língua é elemento importante. É necessário que não continuemos oferecendo um quadro híbrido, mas sim algo genuinamente nacional, repetimos, sempre que possível. Se não há decisão capaz de reverter a generalização do uso do termo "AIDS", também será inútil lutar contra o uso dos termos "DNA" e "RNA", como exemplos mais comezinhos. O que não podemos é aceitar, sob pena de total desrespeito à nossa inteligência e mesmo à nossa dignidade, neologismos de péssimo gosto, que com tanta facilidade se instalam na linguagem dos laboratórios, nos seus afazeres cotidianos: "DNA nicado", "Vortexar", "Peletar", "Estricar", "Linhagem transposada", "Eletroforisar", "Bandear".

Dentro de uma perspectiva operacional para que a tarefa seja bem sucedida é necessário que membros de um grupo de trabalho disposto a assumir as responsabilidades de executá-la encarem a situação sob aspectos que nos parecem importantes: necessidades objetivas da situação e capacidade relativa de cada membro do grupo. Poderá assim ser criado um método mais racional e eficaz de interação, com as vantagens inerentes de permitir que as exigências da situação em causa possam interagir com as capacidades de cada um, independentemente do comportamento resultante de sua especialização. Este esquema de neutralidade comportamental parece-nos mais eficiente. A ação de cada um dos componentes do grupo deve extrair seu sentido das necessidades do momento e não de suas necessidades de profissional especializado. E as necessidades do momento apontam para a consecução de um vocabulário ou glossário técnico em língua nacional, aproveitando terminologia já existente em outra língua e traduzindo-a, ou simplesmente adotando-a. Podemos mesmo criar terminologia própria, fiel ao significado original ou usar termos originais, que descrevam fenômeno estudado pela primeira vez, em nosso meio científico: é um bom exemplo e uma excelente escolha o termo "Para-meiose". Em qualquer caso devemos ter presente a necessidade de respeitar uma comunicação mais ampla e menos eletista, de tal modo que o termo latino "comunicare" descreva exatamente seu significado, isto é, compartilhar. Para isto vai ser preciso pequena dose de imaginação, capacidade de crítica e análise racional, respeito por tradicionais afinidades étnicas e de formação científica, respeito pela nossa língua e muita isenção. Para sentirmos o quanto esta isenção é importante, basta lembrar o longo e atribulado processo que teve de ser desenvolvido para se chegar a um consenso na nomenclatura do vírus da síndrome de imunodeficiência adquirida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 1987
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