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Antropologia e alimentação

Anthropology and eating

Resumos

Analisa-se a produção antropológica referente às práticas, hábitos e concepções de consumo alimentar de segmentos de trabalhadores rurais e urbanos. Dimensiona-se e critica-se a abordagem antropológica contida nos diferentes estudos, apontando caminhos a serem perseguidos por novas pesquisas, de maneira que a área de nutrição, alimentação e saúde não deixe de prescindir das contribuições antropológicas.

Consumo de alimentos; Hábitos alimentares; Antropologia cultural; Trabalhadores; Saúde


The anthropological literature on the practices, habits and conceptions of eating of rural and urban workers in Brazil. Was critically analysed, suggesting theoretical paths to be pursued by further research. In this way, the anthropological method can offer a relevant contribution to the development of the health sciences as far as nutrition and eating are concerned.

Food consumption; Food habits; Anthropology, cultural; Workers; Health


Antropologia e alimentação

Anthropology and eating

Ana Maria Canesqui

Departamento de Medicina Preventiva e Social e Núcleo de Estudos e Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas - Caixa Postal 6111 -13081 - Campinas, SP - Brasil

RESUMO

Analisa-se a produção antropológica referente às práticas, hábitos e concepções de consumo alimentar de segmentos de trabalhadores rurais e urbanos. Dimensiona-se e critica-se a abordagem antropológica contida nos diferentes estudos, apontando caminhos a serem perseguidos por novas pesquisas, de maneira que a área de nutrição, alimentação e saúde não deixe de prescindir das contribuições antropológicas.

Unitermos: Consumo de alimentos. Hábitos alimentares. Antropologia cultural. Trabalhadores. Saúde.

ABSTRACT

The anthropological literature on the practices, habits and conceptions of eating of rural and urban workers in Brazil. Was critically analysed, suggesting theoretical paths to be pursued by further research. In this way, the anthropological method can offer a relevant contribution to the development of the health sciences as far as nutrition and eating are concerned.

Uniterms: Food consumption. Food habits. Anthropology, cultural. Workers. Health.

Não é recente, no Brasil, o esforço antropológico de focalizar elementos culturais e ideológicos que presidem as práticas de consumo alimentar. O presente texto tem o propósito de rever alguns estudos, sem pretender abarcar a totalidade da bibliografia produzida, mas relacionando os mais significativos e apontando a abordagem antropológica que eles incorporaram.

Os estudos de comunidade, realizados principalmente na década dos anos 50, são as mais importantes contribuições empíricas e descritivas que recolheram um elenco de informações sobre a alimentação. Antes deles folcloristas também descreveram a "culinária", enquanto aspecto da cultura local indígena que se mesclava com a do colonizador português e dos escravos7,14

Várias foram as populações urbanas e rurais estudadas na perspectiva da comunidade, ou seja, enquanto agrupamento homogêneoe orgânico da vida social que poderia ou não estar submetido a processos de mudança que o desintegrasse.

Os antropólogos, nos estudos da comunidade, detinham a perspectiva culturalista. A dimensão cultural expressava-se nos padrões, crenças, idéias e pensamentos de que são portadoras as "culturas tradicionais". A presença ou persistência do conjunto destes elementos de corte "tradicional" foi interpretada pelo culturalismo como expressão de "mentalidade atrasada" ou "obstáculo" à mudança. Isto pressupunha que os padrões culturais "tradicionais" eram inadequados e distanciados dos existentes nas "sociedades modernas".

No que se refere ao consumo alimentar aqueles estudos detiveram-se na descrição das fontes de abastecimento alimentar, predominantemente oriundas da economia de subsistência ou extrativa com baixa dependência do mercado; das práticas e crenças associadas à produção alimentar, da composição da dieta e formas de preparo dos alimentos; dos hábitos de consumo e dos tabus e crenças relacionados aos alimentos.

Os estudos mostraram variações no consumo, conforme a oferta alimentar da economia de subsistência ou extrativa e a renda familiar de diferentes estratos, o que resultava numa dieta capaz de preencher níveis calóricos, protéicos e vitamínicos mais elevados apenas nos grupos de posição social mais alta (rendeiros e proprietários), em detrimento dos demais (meeiros, pescadores e alugados), cujo consumo de nutrientes deixava a desejar (Ferrari13, Pierson37 e Wagley39). Mostraram ainda a importância feminina no preparo alimentar, área em que se exercitavam as mulheres desde a infância, no uso dos procedimentos culinários, basicamente o cozido e o frito, juntamente com o emprego de temperos, extraídos da flora local.

Os estudos de comunidade explicaram os tabus e crenças alimentares enquanto regras arraigadas, que se impunham às mulheres nas situações após o parto ou nas situações de doença, prescrevendo o consumo de um conjunto de alimentos qualificados como "carregados", "leves", "quentes" e "frios". Não se detinham a fornecer explicações sobre a origem destas categorias. Considerando-as enquanto "patrimônio da cultura de folk" (Ferrari13,1960).

Ainda nas décadas dos anos 40 e 50, cientistas sociais, associados ou não a nutrólogos, empreenderam, junto à populações urbanas trabalhadoras, inúmeros inquéritos nutricionais36, analisando os níveis de vida, dentre eles a alimentação. Muitos destes inquéritos subsidiavam a política estatal, seja no concernente à política salarial da época, cujo fulcro era a avaliação do salário mínimo urbano recém instituído (decreto lei 399/1938), seja na definição de políticas alimentares de cunho educativo, dirigidas às camadas trabalhadoras urbanas. Resultaram estes inquéritos na identificação das precárias condições alimentares de trabalhadores urbanos.

Não se constituindo em estudos propriamente antropológicos, mas que incorporaram a seu modo parcela do conhecimento procedente daquela área, os inquéritos empreendidos pela Comissão Nacional de Alimentação do Ministério da Saúde28-32, nas décadas dos anos 40, 50 e 60, descreveram o que designaram por elementos culturais nas práticas alimentares. Referiram-se estes aos conceitos (saber) e aos tabus (proibições). Quanto aos primeiros foram descritas noções valorativas, positivas ou negativas atreladas a certos alimentos, resultando ou não no seu consumo, por ocasião da gestação e da amamentação infantil. Quanto aos tabus (proibições), identificaram os referentes a certas misturas alimentares que acompanham o consumo diário, as adequações do consumo a certas horas do dia, a determinadas fases de vida (puberdade e infância) e aos estados da vida reprodutiva feminina (puerpério).

Os mencionados inquéritos28-32 apontaram deficiências calóricas, protéicas e de componentes minerais, vitamínicos e de reboflavina na dieta das populações investigadas. Responsabilizaram-se pelas deficiências o baixo poder aquisitivo, os conhecimentos errôneos e os tabus, procedentes de uma "herança cultural". Detiveram a visão da autonomia dos diferentes aspectos da vida social (infra e supra-estruturais) resultando em baixo poder explicativo, ademais de desconsiderarem o modo de organização econômica da sociedade rural e sua relação com oferta e o consumo alimentar.

Criticando as abordagens dos estudos de comunidade e das pesquisas orçamentárias, Mello e Souza27 (1971) procurou acompanhar, desde a metade dos anos 40 aos meados dos anos 50, diferentes agrupamentos rurais de vários Estados brasileiros, investigando e comparando traços da "cultura caipira" paulista, sua sociabilidade, os meios de vida e aspectos da mudança cultural (tecnológica, crenças e valores) que se impõem às sociedades tradicionais, graças ao desenvolvimento capitalista urbano-industrial.

Ao contrário dos estudos de comunidade que enfocaram todos os aspectos da vida social e cultural, Mello e Souza27 abordou a produção dos meios de sobrevivência e a organização social e cultural decorrente. Assim, para o autor, algumas culturas não conseguiam ultrapassar um equilíbrio mínimo entre o meio físico e as necessidades, mantido graças à exploração dos recursos naturais pelo emprego de técnicas rudimentares, que por sua vez correspondiam a formas elementares de organização social. Outras culturas comportavam níveis mais elevados de complexidade e de organização à medida em que se alterava a relação entre necessidade e meio físico, podendo provocar tais relações situações de acomodação, anomia ou mudança.

A despeito do aparato conceitual, hoje bastante criticado nas ciências sociais no Brasil - o funcionalismo empregado pelo autor -, o estudo foi capaz de mostrar o empobrecimento e a redução do consumo alimentar de sitiantes e parceiros paulistas à medida em que a produção tende a organizar-se sob a forma capitalista, voltada para o mercado e lucro. O fim do regime de auto-suficiência econômica não permitia ao agricultor o provimento de todos os bens alimentares de que necessitava, passando a depender o seu abastecimento e consumo da aquisição de produtos no mercado urbano (café, açúcar, sal, carne, trigo, macarrão, peixe seco e banha).

Neste processo muitos produtos e técnicas tendiam ao desaparecimento sendo substituídas por outros. Restavam ainda outras modalidades de abastecimento alimentar complementares, seja a caça ou a pesca e os sistemas de solidariedade e de reciprocidade: os empréstimos e as trocas alimentares calcados nas relações de vizinhança e parentesco.

As festas públicas tendiam a escassear, mas não deixavam de constituir-se em oportunidades periódicas ao consumo mais abundante de alguns alimentos (pão e carne) e das bebidas alcoólicas. Persistiam atenuadas certas restrições alimentares de cunho religioso católico, a exemplo da abstinência da carne e do jejum durante a quaresma. Porém, as misturas de certos alimentos (aguardente com doce ou fruta, manga com pepino e as frutas que se excluem mutuamente) suscitavam ainda repulsa, impedindo a racionalidade da dieta.

Neste particular, as restrições alimentares de cunho religioso, as referidas ao emprego de misturas alimentares ou as relacionadas a situações de doença ao parto eram interpretadas como irracionalidades comportamentais, presentes na cultura tradicional, constituindo-se em obstáculos à adoção da racionalidade alimentar, calcada no conhecimento médico. Esta irracionalidade, produto da "ignorância" e das "superstições populares" que se faziam presentes nas interpretações de muitos autores dedicados à análise da cultura, comportava um viés cientificista e etnocêntrico. Por outro lado, opunham os autores o saber popular ao saber erudito, valendo-se do critério do nível de cientificidade e da legitimidade deste último, sem questionar as bases sociais e as origens do primeiro.

Desde os anos 40 até meados dos anos 60 dominou a orientação social da alimentação na política estatal e nos estudos realizados. Esta tendência reverteu-se para orientação técnica, entre 1964-1972 (Coimbra8,1982; L'Abbate21,1982), como decorrência das modificações políticas, econômicas e na estrutura do poder do Estado brasileiro, com repercussões nas contribuições dos cientistas sociais, nutrólogos sociais e da própria antropologia, no que concerne ao tema objeto deste texto.

Ademais, o interesse da antropologia voltava-se para outros assuntos, que não o da alimentação e saúde. Como bem apontou Da Matta9 (1983), referindo-se às décadas precedentes aos anos 70, além dos estudos de comunidade, "a antropologia cultural se resumia em estudos de 'brancos', 'índios' e 'negros' com pouca consistência crítica a respeito da contribuição destas categorias como objeto de estudo".

NOVAS CONTRIBUIÇÕES ANTROPOLÓGICAS

Foi a partir da metade da década dos anos 70 que revigoraram as pesquisas na área das ciências sociais e nutrição. Interferiram neste processo elementos já apontados por Coimbra8, tais como: maior apoio à pesquisa pelas fontes financiadoras governamentais, criação de agências governamentais centralizadoras da política de alimentação pela definição da política na área; e a progressiva institucionalização das ciências da sociedade e seu papel nos órgãos públicos. Além disto, pode-se agregar outros elementos como a implantação e consolidação de programas de pós-graduação em ciências sociais, com resultados positivos na produção acadêmica.

Vale ainda ressaltar a retomada de preocupações dos cientistas sociais com a deterioração das condições de vida e saúde das camadas trabalhadoras, enquanto expressões do modelo capitalista em expansão no país, cujos efeitos "milagrosos" (1967-1973) assentaram-se na monopolização e internacionalização do capital, na expansão industrial de alguns setores, na maior adequação da agricultura ao capital monopolista, afetando o padrão da produção agrícola e a concentração da renda, em detrimento das camadas trabalhadoras. E também a partir da metade dos anos 70 que este modelo entra em crise recessiva.

Estudos orçamentários sobre o consumo alimentar mostraram entre famílias assalariadas urbanas paulistas a relação entre renda e o valor nutricional da dieta (DIEESE10, 1973). Insuficiência de nutrientes (cálcio, vitamina A, tiamina, riboflavina e ácido ascórbico) foram encontradas nas faixas de menores rendimentos, ao contrário dos estratos médios e superiores que conseguiam preencher os requisitos ideais, do ponto de vista nutricional quanto ao consumo de proteínas e ferro. Ressaltou o estudo as baixas proporções do consumo de nutrientes de origem animal e a importância do feijão e não da carne como fontes protéicas entre as camadas de baixa renda. Arroz e feijão consistiam nos alimentos básicos da cesta de consumo, sendo as fontes mais importantes de nutrientes e dos gastos domésticos.

Conclusões similares procederam do Estudo Nacional de Despesas Familiares (FIBGE15,1974/1975) para São Paulo, Rio de Janeiro e Região Sul, onde aqueles produtos participavam com, respectivamente, 27,9%, 21,8% e 26,6% dos gastos totais em alimentação na classe de menor dispêndio de consumo em geral. Ao contrário da classe de maior despesa, nos mesmos Estados e região, as percentagens reduzem-se para, respectivamente, 3,7%; 3,3% e 3,9%. O mesmo comportamento no dispêndio com alimentação por classe de despesa naqueles Estados e região Sul aplica-se para outros produtos como trigo, mandioca, batata, açúcar e derivados, declinando os percentuais gastos conforme ascende-se para as classes de maior despesa. O contrário dá-se para carne, ovos, leite e queijo (Melo26,1983).

Se o produto destas pesquisas mostravam as precárias condições de vida das camadas trabalhadoras e a importância da alimentação nos gastos domésticos, no âmbito da antropologia cresceu o interesse em voltar-se para "dramaticidade social", na expressão de Velho38 (1977), das situações em que se inserem diferentes grupos sociais, bem como entender o seu modo de vida e as representações e práticas dos agentes sociais desprovidos sobre dimensões da vida social. Neste particular e, nem sempre mantendo posturas teóricas similares ou plenamente formuladas, inúmeros estudos de caso empreenderam-se abarcando grupos urbanos e rurais.

Um dos autores que associou a contribuição da antropologia à ciências da nutrição foi Gross17,18 (1971), estudando as transformações no modo de produção da agricultura do sisal e o gasto energético dos trabalhadores e dos seus dependentes (não produtivos). Mostrou, entre os assalariados agrícolas, a insuficiência dos salários auferidos na manutenção de uma dieta que desse conta de preencher o dispêndio dos gastos energéticos no tipo de trabalho manual desenvolvido. Tal insuficiência tinha impacto sobre a distribuição alimentar na família de modo a restar aos filhos daqueles trabalhadores uma dieta de qualidade e quantidade inferiores em relação à consumida pelos chefes das unidades familiares. Isto resultava em baixos níveis de crescimento e de desenvolvimento para os filhos daqueles trabalhadores, não atingindo os recomendados pela ciência nutricional. Este estudo introduziu a importância da família no consumo alimentar, agregando uma preocupação antropológica, até então ausente nos estudos anteriores, a despeito da família na economia de subsistência constituir-se, basicamente, em unidade de produção e consumo.

Hábitos alimentares foram estudados por vários autores abarcando diversas situações camponesas, articulando-os aos domínios da produção e da comercialização dos alimentos, desvendando concepções e ethos de cada grupo (Velho38; Lins e Silva22,1977; Pacheco34,1977; Marcier23,1977; Bastos1,1977).

As conclusões de Velho sobre estas pesquisas permitem demonstrar o envolvimento de todos os grupos camponeses nas relações de mercado, referidas a relações sociais concretas que definem nos diferentes circuitos de troca, de acordo com o produto, suas propriedades e destino. Os produtos camponeses comportavam alternatividade entre consumo e venda, variável conforme o circuito do mercado e o destino dos produtos. Revelam os pesquisadores a dependência quase integral do mercado de certas categorias de produtores para obtenção de bens alimentares.

Novas situações de mercado podem responder pela modificação dos hábitos alimentares, ao que Velho38 exemplifica com a substituição da farinha seca por fubá. Isto implica que a adoção ou rejeição de novos hábitos será também produto da prática e da experiência dos grupos sociais, bem como do que significam para eles.

Velho38 não descartou a importância do significado da relação natureza/sociedade para explicar os hábitos alimentares. Contudo interroga o que é natureza e sociedade para os grupos pesquisados e qual a experiência destes grupos com o que é natureza e sociedade. Esta colocação permite desvendar distintas atitudes e concepções de cada grupo diante do trabalho e para que serve a comida, com implicações sobre a vida social e os hábitos alimentares. Trata-se de compreender os hábitos no conjunto das práticas dos diferentes grupos sociais que não se encontram diante da mesma natureza.

A despeito destas observações apontarem o risco do reducionismo estruturalista da oposição natureza/cultura, pesquisadores como Peirano35 (1976) atribuiram às classificações alimentares analogias com o totemismo de Lévi-Strauss. Estas proibições entre pescadores referiam-se aos alimentos "reimosos" (certos peixes), interpretadas pela aproximação simbólica entre os domínios da natureza e da cultura: de um lado as espécies de peixes, de outro os seres humanos. As proibições alimentares aplicavam-se a certas pessoas em determinadas situações e a estados fisiológicos de saúde e doença.

Maués e Maués25 (1978) na sua análise sobre representações e tabus alimentares entre pescadores não chegaram a rejeitar as formulações de Lévi-Strauss empregadas por Peirano para entender o modelo que preside a classificação dos alimentos "reimosos". Eles consideram a "reima" como um sistema para-totêmico a despeito de darem-se conta da insuficiência desta explicação. Agregam a contribuição de Douglas11 (1976) sobre a oposição simbólica "puro" e "impuro", considerada, por eles, como universal. Assim, alimentos impuros (reimosos) devem ser afastados de pessoas impuras ou poluídas (em estados liminares), sob pena de agravarem a sua contaminação social, com danosas conseqüências para a saúde. Apesar dos autores estarem atentos para as diferentes situações e contextos em que emergem as proibições e as classificações alimentares, incorreram no risco de reduzi-las a categorias polares do universo cultural, descuidando do sistema religioso, no qual muitas proibições inserem-se, conforme sugerem os seus próprios dados etnográficos - a exemplo da relação entre proibições e os rituais xamanísticos.

Woortmann41 (1978) considera que as classificações alimentares (quente/frio, forte/fraco, reimoso/descarregado) presidem as prescrições, proibições e hábitos alimentares. Embora estas categorias comportem variabilidade regional e individual, o autor aponta a regularidade cognitiva das categorias na teoria popular que incorpora a relação entre o sistema alimentar e o sistema orgânico, extensivos às doenças e a outras categorias cosmológicas (o dia, a noite; o sol, a lua; o racional e o emocional, e outros).

A relação percebida entre o alimento e o organismo constitui-se para o autor41, numa teoria do alimento construída sobre os três pares de oposição mencionados. Ela exprime uma oposição subjacente genérica entre natureza e cultura, inscrita num modelo "etno-científico tradicional". Além disto, o universo alimentar comporta um modelo simbólico da relação alimento-indivíduo (ou categoria social). Assim, o conjunto de saberes e práticas não se constituem uma razão prática. Conformam-se a um modelo cognitivo "holístico" de ordenação do mundo e da natureza. Mais do que a observância dos "tabus", interessa ao antropólogo o fato daquele modelo exprimir uma teoria médico-alimentar (Woortmann41, 1978).

Por sua vez, os padrões alimentares, para Woortmann, "obedecem a uma lógica onde de um lado opera uma estratégia de subsistência em que são maximizados os recursos e fatores dos quais depende a reprodução da força de trabalho e a sobrevivência da família e onde opera, de outro lado, um sistema de conhecimento e de princípios ideológicos pelo qual se procura otimizar a relação alimento /organismo. Da conjunção de ambos esses planos resultam os padrões que caracterizam os hábitos alimentares".

A busca de um modelo etno-científico tradicional coeso e coerente, cognitivo e simbólico para explicar saberes e práticas referidos à alimentação ou mesmo à saúde e doença, não dá conta de explicar as fontes que os produzem e sua historicidade. Permanece alheio às forças sociais que forjam as estruturas, que não são produtos do acaso. A busca da lógica e coerência de um sistema tradicional dotado de autonomia, em relação a outros domínios do próprio conhecimento e da produção/consumo, quando levada às últimas conseqüências, implica admitir o saber próprio (também autônomo) de certos grupos sociais. Não se dá conta dos fragmentos daquele saber, suas variações e reinterpretações a que está submetido pelas categorias sociais que o empregam. Por despolitizar significados simbólicos e o próprio conhecimento, relega-se a dominação na sociedade, seus mecanismos e a própria produção/consumo que passam a ser instrumentalizados mediante ações ou estratégias individualizadas de cunho adaptativo, maximizando o seu poder de contrariar determinantes conjunturais e da acumulação capitalista que afetam a produção e reprodução da força de trabalho e portanto o consumo.

Velho38 (1977), contrariando este ponto de vista, admite que as estruturas e regras que determinam os hábitos alimentares comportam vários princípios classificatórios a serem verificados em cada caso. São princípios relativos à relação entre alimentos e o binômio natureza/ sociedade, nas suas formas concretizadas. Os que se referem à relação entre alimentos e organismo humano devem reportar a uma estrutura complexa socialmente definida de órgãos e funções em que entram concepções particulares de saúde e doença e finalmente princípios ligados à prática social de cada grupo. Com isto descarta o caráter de um sistema único classificatório determinante dos hábitos alimentares.

É preciso enfatizar que embora possa haver certa margem de manobra individual diante do consumo alimentar, comportando estratégias de sobrevivência entre camadas trabalhadoras, o seu caráter é sempre de subordinação aos determinantes conjunturais e da acumulação de um estilo de desenvolvimento. Tal consideração descarta o caráter de sua autonomia, como se os sujeitos transitassem livremente pela sociedade, como o querem alguns autores.

A pesquisa de Brandão4 (1981) mostra as representações de lavradores expropriados e migrados para a periferia da cidade de Mossâmedes, no Estado de Goiás, sobre as condições de produção de alimentos e a prática de consumo alimentar. Esta prática, para o autor, obedece a padrões sociais que se apresentam sob a forma de hábitos alimentares. A ideologia alimentar, por sua vez, é entendida como parte do conhecimento social da população. Comporta representações das crenças e dos padrões sociais de uso e das restrições alimentares.

A comparação entre o "tempo antigo" e os "dias de hoje" servem para os entrevistados explicarem as relações de trocas sociais (passadas e atuais) das pessoas entre si e com a natureza da região na produção alimentar. O "tempo antigo" é idealizado. As relações entre os homens, por analogia com a relação homem/natureza, tendem à desarmonia, deixando implícita a idéia de desordem.

De uma relação de convivência hostil com a natureza (a terra), que dificultava o provimento alimentar, os lavradores hoje sem terra explicavam um "tempo de fortuna". A vida na fazenda, onde detinham parcela de terra "cedida" para o plantio era idealizada por eles e comportava relações solidárias e harmônicas dos lavradores com os homens (proprietários) e com a própria natureza, definida como "fértil", "forte" e "sadia". Tal situação era valorizada como ideal e foi-se deteriorando à medida em que certos processos sociais alteraram as condições de acesso à terra, impondo ao lavrador novas relações de trabalho e modificações na sua dieta. Esta, ao invés de ser produzida por ele, passa a depender cada vez mais da compra de bens e serviços. Para o lavrador é o empobrecimento da natureza, a dificuldade do acesso à terra, a redução na oferta de empregos, a introdução do mercado e a "ambição" dos patrões que o empurram para a cidade. Considera sua vida na cidade repleta de carências, ao contrário do tempo de "fartura" de antes.

A ideologia alimentar comporta vários domínios: 1) da natureza apropriada e domesticada para uso do homem, opondo-se à natureza não apropriada; 2) do comestível conforme a procedência e produção do alimento e do modo como pode ser consumido; 3) da qualidade do alimento quanto a seus efeitos sobre o corpo e o psiquismo do sujeito. Congregam-se no pensamento dois sistemas: um classificatório incorporando os itens 1 e 2 e outro etiológico, referido no item 3, comportando classificações dos alimentos em "forte ou fraco; quente ou frio; reimoso ou sem-reima; gostoso ou sem gosto". Este último sistema exprime o valor ou qualidade da dieta por referência aos efeitos produzidos sobre o corpo ou ao equilíbrio bio-psíquico. Envolve ainda avaliações sobre os modos como são transformados os alimentos em "comida".

Ao contrário de outros autores Brandão4 não atribui uma uniformidade e coerência à ideologia alimentar, mesmo no que se refere às regras de uso de evitação que, ao invés de obedecerem unicamente a um sistema, incorporam, a seu ver, uma ética de uso que se determina na prática, mais por condições de acesso e de gosto do que pelos atributos alimentares. Brandão4 muito bem adverte o pesquisador do "perigo de uma análise classificatória de domínio restrito, a respeito do universo alimentar de uma sociedade ou de um dos seus segmentos, oferecer a falsa impressão de que a categoria descrita é a determinante na produção de séries classificatórias e de regras de uso e evitação".

A despeito da falta de unanimidade das classificações alimentares e da ética de uso elas respondem, para Brandão4, às finalidades de definição social da área do comestível e da comida e estabelecem bases para os princípios de acesso, modificações e uso de alimentos. Estas bases partem de crenças e convicções sobre as relações de troca entre o homem e a natureza, traduzindo partes de uma visão de mundo que incorpora efeitos sobre o equilíbrio do sujeito à medida em que o homem incorpora parte da natureza para comer, e sobre o habitat, à medida em que o homem transforma e destrói a natureza para comer.

Ainda que reste na análise do autor certa influência estruturalista, não se prende exclusivamente a ela. Vale-se ainda de outras abordagens que incorporam a necessidade do antropólogo decifrar as teias de relações entre os sujeitos sociais entre si e com os outros, por meio de seus símbolos, poderes e suas instituições (Brandão3, 1987). Particularmente, na análise que se empreendeu da produção e consumo alimentar resta uma concepção desta enquanto núcleo de atividade e de relações, implicando práticas, ações e representações, o que a aproxima da análise de Melo e Souza27 e de algumas idéias funcionalistas. Vale contudo, ressaltar a qualidade etnográfica do estudo, dentre as contribuições do presente tema.

CONSUMO ALIMENTAR QUOTIDIANO

Estudos de caso sobre segmentos da classe trabalhadora urbana analisaram as práticas e representações de consumo alimentar, concretizando a maneira como reproduzem, seu modo de vida e sobrevivência (Canesqui5, 1976; Marin24, 1977; Oliveira33,1977; Guimarães20, 1979; Guimarães19, 1983; Canesqui6,1987).

As pesquisas acima citadas incorporam diferentes enfoques teóricos e interpretações, porém destacamos os seus elos comuns. Elas inscrevem o consumo alimentar nas oportunidades diferenciais de vida, ou seja, de salários e rendimentos auferidos, que expressam inserções diferenciais da força de trabalho familiar no mercado de trabalho, sendo a alimentação elemento básico de recomposição, manutenção e de sobrevivência. É por referência à família que se realiza e organiza o consumo alimentar, ainda que os seus determinantes não se esgotem neste nível.

As pesquisas mostram a família trabalhadora enquanto locus da organização do consumo, enfocando-a primeiramente enquanto unidade de rendimentos. Assim sendo, seus membros compartilham um orçamento doméstico comum, composto da somatória de salários e rendimentos, oriundos de inserções diferenciais no mercado de trabalho e de subordinação, também, diferente às relações capitalistas de produção, que se combinam com relações não capitalistas. O padrão de consumo alimentar depende e varia conforme modos de inserção no mercado de trabalho, as oportunidades de rendimentos, associando-se a certas características do grupo familiar (forma de organização, número de membros aptos ou não para o trabalho, idade dos membros e etapa do ciclo de vida) e eventualmente de fontes adicionais de renda (Exemplo: aluguel entre favelados).

O expectro da fome e do consumo alimentar, reduzido aquém do mínimo socialmente necessário definido pelos diferentes grupos pesquisados, faziam-se presentes nas unidades domésticas nucleares dependentes exclusivamente do salário mínimo do chefe, trabalhador manual, com maior número de dependentes ainda inaptos para o trabalho ou nas situações de desemprego e de aposentadoria. Estas eram mais freqüentemente encontradas na etapa recessiva do que no período de expansão econômica. Ao contrário, maiores possibilidades de realização do consumo detinham as famílias ampliadas ou nucleares do operariado fabril especializado, em que o orçamento doméstico não dependia exclusivamente do chefe, compondo-se pelos salários dos filhos maiores de 18 anos, eventualmente da mulher e de parentes agregados (no caso de famílias extensas).

A importância da família para o trabalhador sobreviver e obter rendimentos foi apontada pelas pesquisas. Diante da insuficiência dos salários ou ganhos do chefe-principal provedor impunha à família trabalhadora a alocação de mais membros no mercado de trabalho, podendo ou não rearranjarem-se os papéis familiares. Além disto, enquanto meios compensatórios aos baixos salários, os chefes aumentavam a sua jornada de trabalho, empregavam o dinheiro das férias para o pagamento de dívidas acumuladas, usavam fontes alternativas de rendimentos, mediante associação entre trabalho assalariado e autônomo no mercado informal ou ainda ampliava-se o grupo familiar. Estes arranjos configuram-se em estratégias de sobrevivência também identificadas por outros pesquisadores que se dedicaram ao estudo de famílias trabalhadoras (Bilac2, 1978; Woortmann40, 1984; Goldemberg16; Fausto Neto12,1982).

O uso de orçamento doméstico implicava a divisão dos papéis familiares, resultando na atribuição do homem colocar comida em casa e da mulher gerenciar e controlar o consumo doméstico. As despesas compartilhavam-se entre os membros da unidade doméstica. Por outro lado, a hierarquia de consumo impõe-se, manifestando-se concepções e avaliações sobre as necessidades ideais e o consumo efetivo, dimensionadas frente à insuficiência dos salários. Se certas prioridades de consumo da família podem sofrer variações conjunturais, as situações investigadas mostram a maior importância da alimentação, seguida pela casa e os gastos com água, luz e gás. Os demais itens, a despeito de valorizados e necessários (transporte, saúde, educação e vestuário) tornam-se secundários no escalonamento de prioridades.

As fontes de abastecimento alimentar, organizadas na economia urbana, pela combinação de formas mercantizadas e não mercantizadas, estão presentes nos modos de aquisição alimentar das unidades domésticas. Não é o supermercado, que comporta formas mais capitalizadas de produção, a principal fonte de abastecimento alimentar, mas o armazém e o pequeno comércio que circundam os bairros periféricos urbanos.

Prevalece nas modalidades de abastecimento das famílias os arranjos econômicos entre consumidores de baixa renda e os comerciantes; a compra a crédito e em pequenas porções; o uso do pequeno comércio mais próximo às residências; a combinação de diferentes fontes de abastecimento (armazém e supermercado) conforme a disponibilidade de dinheiro e do sistema promocional de vendas dos supermercados e avaliações sobre o preço (Canesqui6, Oliveira33). Não se excluem outras fontes complementares e transitórias de abastecimento aumentar calcadas nos padrões de solidariedade dos grupos pesquisados, na produção doméstica dos quintais e na política assistencial (pública ou privada), conforme apontaram todas as pesquisas.

A aquisição de alimentos nos grupos pesquisados comporta o estabelecimento de hierarquias de necessidades, que se expressa na classificação de produtos considerados "mais necessários" — arroz, feijão, sal, açúcar, farinha, leite, pão, óleo e outros "menos necessários" — hortaliças e carnes. Tal hierarquia incorpora critérios econômicos referentes ao preço dos alimentos e a disponibilidade de dinheiro que obriga a restringir ao mínimo as compras alimentares e a substituir produtos mais caros pelos mais baratos, os mais nutritivos pelos menos nutritivos, observando-se a regra básica de controle e economia. Implica ainda critérios que avaliam o costume alimentar, a oferta, a qualidade e atributos dos alimentos do ponto de vista nutricional e suas adequações de consumo, os regionalismos e a preservação ou ruptura das identidades sociais (Marin24, Guimarães20, Oliveira33).

A gerência e o controle da alimentação do grupo familiar são atribuições femininas, como vimos. As pesquisas mostram a divisão dos papéis sexuais na organização e realização do consumo alimentar familiar pela segregação entre sexos na gerência dos gastos e no preparo de alimentação e pela complementação e divisão de responsabilidades entre seus membros, no caso das compras alimentares.

Além disto o trabalho feminino no preparo da alimentação rege-se por regras: de economia e controle, morais, estéticas e de higiene, permeando o próprio trabalho doméstico referido à cozinha, ao uso dos equipamentos domésticos, aos cuidados com os alimentos e à casa e à alimentação da família. Comporta ainda aquele trabalho o dispêndio de tempo, uma organização específica, capacitação e treinamento. Este obtém-se mediante um processo de socialização no âmbito da família, resultando na produção e reprodução de atuais e futuras donas de casa, incorporando-se regras e concepções que presidem o trabalho doméstico e o próprio consumo (Canesqui6). Quanto à inculcação das práticas de consumo na família, Guimarães20 lembra o quanto as crianças são nelas socializadas, não sem resistências. Oliveira33, por sua vez aponta regras de economia e controle, de não comer fora de casa e fora de horário.

Destituídas as pesquisas de preocupações com a contabilidade do consumo, elas analisaram os conteúdos dos cardápios cotidianos e as refeições. Do conteúdo dos cardápios resulta uma dieta monótona, restrita ao arroz e feijão, à "comida" propriamente dita e a algumas "misturas" (ovos, batata, macarrão e verduras) e raramente a carne. Trata-se da "comida que pobre come todos os dias", conforme define-se, detendo a nível ideológico significados referidos por alguns autores, à identidades sociais e à própria sobrevivência e, por outros, aos modos de pensar as condições de vida e a posição que ocupam na sociedade. De qualquer forma a alimentação é sempre concebida como medida de privação dimensionado-se as limitações salariais para sobrevivência e o padrão alimentar possível de ser obtido. Esta avaliação também incorpora ideais de consumo pela incorporação de necessidades renovadas e de ascensão social, numa perspectiva centrada no indivíduo e não nas forças sociais organizadas.

O cardápio comporta variações que se realizam dentro dos limites estreitos financeiros, às quais interpõem-se os componentes referidos a organização do trabalho na sociedade industrial (tempo de trabalho, descanso e lazer), a eventos de natureza religiosa, a comemoração de datas biográficas e sociais, propiciando a diversificação e maximização do consumo. Certas refeições marcam os rituais familiares, o estreitamento de laços de parentesco e amizade, o tempo de lazer e a reunião familiar, embora sejam cada vez mais escassas.

O cardápio pode ainda variar conforme a idade, sexo, a condição diante do mercado de trabalho de certos estados fisiológicos, de saúde e doença. Aqui entram concepções específicas , correlacionando-se propriedades e atributos alimentares expressos através de um raciocínio de oposições entre alimentos "fortes/fracos";"pesados/ leves"; "ofensivos/não ofensivos" e "vitamina" e suas adequações ou não de uso às situações e estados orgânicos apontados.

Alguns destes atributos - "forte/fraco", "pesado/leve", "vitamina", "gostoso/sem gosto" - servem para qualificar a dieta consumida ou idealizada, por referência à concepção de pobreza que comporta desigualdades entre iguais (os pobres) e os outros (os ricos). A desigualdade entre iguais implica, do ponto de vista dos entrevistados, escalonar a condição de trabalhadores pobres mediante critérios que incorporam o quantum de salário, a apropriação de bens de consumo, as formas de inserção e qualificação diante do mercado de trabalho e a construção de identidades sociais. Restam diferentes graus de pobreza, que não chegam a ultrapassar uma condição geral de empobrecimento e a avaliação de uma dieta "fraca", que o pobre dispõe, a despeito da valorização da "comida forte", pesada, "com vitamina" e "sem vitamina".

Por sua vez, a desigualdade referida aos outros (os ricos) não incorpora os mecanismos de exploração, mas é estabelecida mediante comparações entre o que os ricos podem adquirir, pelo fato de disporem de dinheiro: "boa comida, muitas bebidas, sobremesa, carne todos os dias e comida variada". Sendo o resultado não apenas uma dieta de melhor qualidade, mas principalmente de uma dieta que representa uma condição de vida melhor em termos de aspiração de um padrão de consumo.

O mesmo raciocínio aplica-se na avaliação da dieta referida à desigualdade entre iguais, recusando o padrão inferior alimentar referido aos "pobrezinhos" e aspirando e valorizando um padrão alimentar superior, possível de ser alcançado pelos estratos superiores, identificados com o operariado fabril não manual. As representações sobre consumo não recusam a condição de trabalhador.

A avaliação da dieta, da maneira como é feita pelos entrevistados, revela uma forma de pensar a alimentação dentro dos parâmetros das condições de vida e trabalho, do próprio consumo, do corpo socialmente posicionado, dos atributos alimentares e da construção de identidades sociais, que contraditoriamente favorecem ou negam a condição de ser pobre.

A comida valorizada, que se dispõe, é aquela "capaz de sustentar o corpo, dar força e energia para trabalhar, a que enche a barriga, deixando a sensação de estar alimentado". Trata-se enfim da "comida de pobre", cuja lógica da insuficiência e da "barriga cheia" preside as práticas de consumo alimentar, sempre conjugadas aos determinantes gerais e especifícos do consumo alimentar, concomitantemente de natureza econômica, ideológica e cultural.

As concepções mostram invariavelmente, entre os trabalhadores urbanos pesquisados, a importância da alimentação para "viver, trabalhar e sobreviver". À similaridade das concepções sobre saúde, detidas por aqueles grupos sociais, comporta a alimentação a mesma instrumentalidade do corpo para o trabalho e a garantia da sobrevivência, vida e crescimento da futura geração (Canesqui6).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudos antropológicos apresentados neste texto mostram a importância das contribuições dessa área de conhecimento na elucidação das práticas, concepções e saberes sobre a produção e consumo alimentar entre setores sociais que representam as forças de trabalho urbana e rural despossuídas, com as quais as pesquisas estiveram comprometidas. Elas remeteram particularmente aos aspectos materiais e não materiais, que envolvem a produção dos meios de sobrevivência e a reprodução da força de trabalho, na sua dimensão concreta e cotidiana, da qual a alimentação é componente fundamental.

Assim, a questão dos hábitos alimentares, noção empregada por alguns autores e as práticas de consumo de acordo com outros autores, devem ser entendidas no conjunto de práticas dos diferentes grupos sociais, com o cuidado de não particularizá- los e isolá-los dos determinantes de ordem sócio-econômica e de natureza ideológica que modulam a própria produção, distribuição e o consumo em nossa sociedade, comportando especificidades e heterogeneidades conforme realiza-se concretamente o modo de produção capitalista.

A respeito da necessidade de não se tomar os hábitos alimentares e as práticas de consumo isoladamente, Velho38 adverte bem: "numa sociedade em que estão presentes formas de produção diferentes e dominâncias de várias ordens que se superpõem e se combinam, seria preciso abrir espaço para considerar adequadamente outras possibilidades relevantes, referentes, também, em última instância, à internalização das condições de ordem sócio-econômica, mas mediadas pelo estabelecimento de hegemonias que podem, inclusive, ser puramente setoriais, diferentes de acordo com o domínio e o contexto, mas que estabelecem sistemas complexos de balanceamento e de compensações".

Esta observação aponta para a dimensão cultural no contexto ideológico e para a dimensão política que se torna expressiva quando se considera práticas de consumo ou mesmo os hábitos que não comportam autonomia dos designos da produção, que por sua vez gera necessidades sempre renovadas que tendem a pressionar por maior valor da força de trabalho, modulando ainda as práticas de consumo.

As contribuições antropológicas analisadas deixaram um alerta aos estudiosos do campo da nutrição quanto aos limites e inadequações das abordagens que circunscrevem a cultura aos tabus e crenças alimentares, conforme criticamos no decorrer do texto. Resta ainda um elenco de estudos nesta área que não pode prescindir do conhecimento antropológico, sempre que se tenha em jogo ultrapassar a dimensão estritamente biológica da questão nutricional e alimentar.

Cabe ainda ao trabalho antropológico nesta área, entre outros temas, contribuir à elucidação do impacto das políticas governamentais alimentares dirigidas a certos grupos da população uma vez que dizem respeito aos meios coletivos de consumo; aprofundar a relação família e consumo e compreender as práticas que se consolidam nos aparelhos produtores de ideologias que, embora constantemente recriadas, imprimem uma certa direção às práticas de consumo das camadas subalternas.

Recebido para publicação em 11/6/1987

Reapresentado em 16/12/1987

Aprovado para publicação em 29/3/1988

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2004
  • Data do Fascículo
    Jun 1988

Histórico

  • Revisado
    16 Dez 1987
  • Recebido
    11 Jun 1987
  • Aceito
    29 Mar 1988
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