Acessibilidade / Reportar erro

Epidemiologia do consumo de medicamentos no primeiro trimestre de vida em centro urbanodo Sul do Brasil

Epidemiology of the use of medicines during the first three months of life in an urban area of Southern Brazil

Resumos

INTRODUÇÃO: Os poucos estudos existentes apontam para o consumo abusivo de medicamentos em crianças, sendo os médicos os principais responsáveis pela indicação. Para conhecer melhor os padrões de consumo de medicamentos, foi feito estudo em crianças no primeiro trimestre de vida, segundo variáveis sociais, biológicas, padrões alimentares e ultilização de serviços de saúde. MÉTODO: Estudou-se uma amostra de 655 crianças nascidas em 1993, residentes na zona urbana de Pelotas, Brasil. Informações sobre o consumo de medicamentos na quinzena precedente à entrevista foram coletadas ao final do primeiro e do terceiro mês. RESULTADOS: Com um mês, 65% das crianças consumiam medicamentos e com três meses, 69%. Três ou mais medicamentos foram consumidos por 17% das crianças em cada acompanhamento. Combinações de três ou mais fármacos (um indicador de má qualidade do medicamento) foram usadas por 14% no primeiro mês e por 19% no terceiro mês. Aos três meses, 20% das crianças consumiam medicamentos cronicamente. Com um mês, os medicamentos mais consumidos foram Cloreto de Benzalcônio + Soro Fisiológico, Dimeticona + Homatropina e Nistatina solução. Aos três meses foram Ácido Acetil Salicílico, Cloreto de Benzalcônio + Soro Fisiológico e Dimeticona + Homatropina. O principal problema referido como motivo de uso foi cólica no primeiro acompanhamento e resfriado, no segundo. Na análise ajustada, o consumo de medicamentos no primeiro mês foi 64% menor para as crianças que tinham três ou mais irmãos menores do que para primogênitos. Crianças não amamentadas ao final do primeiro mês apresentaram um risco 75% maior de haver consumido medicamentos. Resultados semelhantes foram observados para o consumo no terceiro mês. CONCLUSÃO: Desde a mais tenra idade, as crianças são habituadas a conviver com uma medicalização exagerada de sintomas corriqueiros. Não estaria assim sendo preparado o terreno para futuras dependências de medicamentos ou outras drogas?

Uso de medicamentos; Cuidados do lactente


INTRODUCTION: The few studies on the use of medicines in children point to excessive use, and in these studies, physicians are those mainly responsible for the prescription of medicines. In order to get to know the patterns of consumption medicines better, a study was made in children in their first three months of life, according to social biological, food pattern and use of heath services of variables. METHOD: The patterns of the use of medicines during the first three months of life in 655 urban children born in Pelotas, Brazil, in 1993, were discribed. Information on the use of medicines was collected during a two-week period in the first and third month of life. RESULTS: The use of medicines was reported by 65% of mothers at the 1st and 69% at the 3rd month of life. Seventeen per cent of children consumed three or more different medicines during those periods. Fixed combinations of three or more components - which was taken as an indicator of the poor of medicines quality - were consumed by 14% of the children at the 1st and 19% at the 3rd months of life. At the latter age, 20% of children had used a given medicine for one month or more. At the first month follow-up, Benzalkonium Chloride + Normal Saline Solution (nasal drops), Nystatin Mixture and Dimethicone + Homotropine were the most frequently used medicines. At the third month they were, Aspirin, Benzalkonium Chloride + Normal Saline Solution and Dimethicone + Homatropine. The main reasons for taking medicines were cramps at the first month and colds at the third. At the first month follow-up, children with three or more siblings used 64% less medicines than the older ones. Children who were not breast-fed at the end of the first month showed a 75% greater risk of use of medicines. Similar results were observed at the third month follow-up. Some of the medicines used were not recommendable for children. CONCLUSION: Since early age children are submitted to an intense use of medicines for almost every conceivable reason, with the risk of potential side-effects and the possible lead to medicine or other drugs addiction.

Drug utilization; Infant care


Epidemiologia do consumo de medicamentosno primeiro trimestre de vida em centro urbanodo Sul do Brasil**Apoio financeiro do Centro de Controle de Doenças Diarréicas da Organização Mundial da Saúde (CDD-WHO) e Comunidade Econômica Européia (CEE), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (CNPq), Comissão de Apoio ao Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).Apoio financeiro do Centro de Controle de Doenças Diarréicas da Organização Mundial da Saúde (CDD-WHO) e Comunidade Econômica Européia (CEE), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (CNPq), Comissão de Apoio ao Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).

Epidemiology of the use of medicines during the first three months of life in an urban area of Southern Brazil

Elisabete Weiderpass, Jorge U. Béria,Fernando C. Barros, Cesar G. Victora,

Elaine Tomasi e Ricardo Halpern

Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, RS - Brasil

Resumo Introdução Os poucos estudos existentes apontam para o consumo abusivo de medicamentos em crianças, sendo os médicos os principais responsáveis pela indicação. Para conhecer melhor os padrões de consumo de medicamentos, foi feito estudo em crianças no primeiro trimestre de vida, segundo variáveis sociais, biológicas, padrões alimentares e ultilização de serviços de saúde. Método Estudou-se uma amostra de 655 crianças nascidas em 1993, residentes na zona urbana de Pelotas, Brasil. Informações sobre o consumo de medicamentos na quinzena precedente à entrevista foram coletadas ao final do primeiro e do terceiro mês. Resultados Com um mês, 65% das crianças consumiam medicamentos e com três meses, 69%. Três ou mais medicamentos foram consumidos por 17% das crianças em cada acompanhamento. Combinações de três ou mais fármacos (um indicador de má qualidade do medicamento) foram usadas por 14% no primeiro mês e por 19% no terceiro mês. Aos três meses, 20% das crianças consumiam medicamentos cronicamente. Com um mês, os medicamentos mais consumidos foram Cloreto de Benzalcônio + Soro Fisiológico, Dimeticona + Homatropina e Nistatina solução. Aos três meses foram Ácido Acetil Salicílico, Cloreto de Benzalcônio + Soro Fisiológico e Dimeticona + Homatropina. O principal problema referido como motivo de uso foi cólica no primeiro acompanhamento e resfriado, no segundo. Na análise ajustada, o consumo de medicamentos no primeiro mês foi 64% menor para as crianças que tinham três ou mais irmãos menores do que para primogênitos. Crianças não amamentadas ao final do primeiro mês apresentaram um risco 75% maior de haver consumido medicamentos. Resultados semelhantes foram observados para o consumo no terceiro mês. Conclusão Desde a mais tenra idade, as crianças são habituadas a conviver com uma medicalização exagerada de sintomas corriqueiros. Não estaria assim sendo preparado o terreno para futuras dependências de medicamentos ou outras drogas? Uso de medicamentos. Cuidados do lactente. Abstract Introduction The few studies on the use of medicines in children point to excessive use, and in these studies, physicians are those mainly responsible for the prescription of medicines. In order to get to know the patterns of consumption medicines better, a study was made in children in their first three months of life, according to social biological, food pattern and use of heath services of variables. Method The patterns of the use of medicines during the first three months of life in 655 urban children born in Pelotas, Brazil, in 1993, were discribed. Information on the use of medicines was collected during a two-week period in the first and third month of life. Results The use of medicines was reported by 65% of mothers at the 1st and 69% at the 3rd month of life. Seventeen per cent of children consumed three or more different medicines during those periods. Fixed combinations of three or more components - which was taken as an indicator of the poor of medicines quality - were consumed by 14% of the children at the 1st and 19% at the 3rd months of life. At the latter age, 20% of children had used a given medicine for one month or more. At the first month follow-up, Benzalkonium Chloride + Normal Saline Solution (nasal drops), Nystatin Mixture and Dimethicone + Homotropine were the most frequently used medicines. At the third month they were, Aspirin, Benzalkonium Chloride + Normal Saline Solution and Dimethicone + Homatropine. The main reasons for taking medicines were cramps at the first month and colds at the third. At the first month follow-up, children with three or more siblings used 64% less medicines than the older ones. Children who were not breast-fed at the end of the first month showed a 75% greater risk of use of medicines. Similar results were observed at the third month follow-up. Some of the medicines used were not recommendable for children. Conclusion Since early age children are submitted to an intense use of medicines for almost every conceivable reason, with the risk of potential side-effects and the possible lead to medicine or other drugs addiction. Drug utilization. Infant care.

INTRODUÇÃO

Ainda que escassos em nosso meio, estudos sobre padrões de consumo de medicamentos5,8,9,12,14 indicam que crianças são mais sujeitas a um consumo abusivo6,13,15,18,23 e que os médicos são os principais responsáveis pelas indicações. Há relatos de utilização diferenciada de medicamentos segundo o gênero22 e as características socioeconômicas das famílias14,20.

O consumo de medicamentos é um indicador indireto de qualidade dos serviços de saúde19, assim como da propaganda dirigida a médicos e à população11. Seu estudo pode ser utilizado também para identificar a necessidade de intervenções específicas como: esclarecimento à população quanto a seu uso adequado; formação e educação continuada de profissionais de saúde para a prescrição racional25, identificação de populações em risco de consumo crônico de medicamentos inadequados. Além disso, pode subsidiar a elaboração de políticas públicas para conter a venda e o uso de medicamentos desnecessários.

O objetivo do presente estudo é descrever padrões de consumo de medicamentos em crianças moradoras de zona urbana em Pelotas, RS, durante o primeiro trimestre de vida, segundo variáveis sociais, biológicas, padrões alimentares (com ênfase no desmame precoce) e utilização de serviços de saúde.

MÉTODO

Entrevistaram-se todas as mães que tiveram partos hospitalares em Pelotas, em 199326, quando foram obtidas informações socioeconômicas, demográficas, dados do período pré-natal e história reprodutiva. A idade gestacional foi determinada pelo método de Dubowitz e col.10, e o peso ao nascer obtido a partir de revisão dos registros hospitalares. Um sorteio sistemático seguindo a ordem de nascimento selecionou uma amostra de 655 nascidos vivos moradores da zona urbana da cidade (10% do total de nascimentos). Esse número foi suficiente para, com poder de 80% e erro alfa de 0,05, detectar o dobro do risco de consumir medicamentos para crianças não amamentadas exclusivamente ao seio, ao final do primeiro mês de vida, em relação às amamentadas exclusivamente (a principal hipótese do estudo). Em visitas domiciliares ao final do primeiro e terceiro meses de vida obtiveram-se informações sobre o consumo de medicamentos na quinzena anterior às entrevistas. Na entrevista do terceiro mês perguntou-se também se a criança "o usou todos os dias, por um mês ou mais", o que foi considerado consumo crônico de medicamento. Foram coletadas informações sobre os três primeiros medicamentos mencionados6. Este número de medicamentos foi determinado a partir de dados disponíveis de um estudo anterior realizado na mesma área, que constatou que menos de 3% das crianças, entre 3 e 4 anos e meio, haviam consumido mais de 3 medicamentos na quinzena anterior à entrevista. As entrevistadoras solicitavam às mães que mostrassem, quando disponíveis, os medicamentos que estavam sendo consumidos, a fim de anotar corretamente o nome do produto. Medicamentos não disponíveis no momento da entrevista no domicílio, mas referidos pelas mães como tendo sido consumidos, também foram considerados.

Considerou-se medicamento "toda a substância contida em um produto farmacêutico, utilizada para modificar ou investigar sistemas fisiológicos ou estados patológicos, em benefício da pessoa em que se administra"21. Por limitações operacionais, não foram coletadas informações sobre morbidade geral, mas apenas sobre os problemas que motivaram o consumo.

Coletaram-se também informações sobre padrões alimentares, consultas médicas e hospitalizações no período. Considerou-se amamentada a criança que recebia leite materno, sendo a dieta complementada ou não por outros alimentos sólidos ou líquidos, e amamentada exclusivamente a criança que, sendo amamentada ao seio, não recebera qualquer complemento27 até a ocasião das entrevistas. Cerca de 10% das crianças da amostra foram revisitadas pela supervisora do trabalho de campo no dia seguinte às entrevistas para verificação de algumas informações, assegurando assim a qualidade dos dados coletados.

Duas digitações foram realizadas utilizando-se o banco de dados do programa Epi Info. As digitações foram comparadas e os erros corrigidos 4.

Utilizou-se o teste do qui-quadrado para diferenças entre proporções1 na análise bivariada e regressão logística para determinação dos "odds ratio" de prevalência e análise multivariada. Nesta, o efeito das variáveis socioeconômicas sobre o consumo de medicamentos não foi ajustado para as demais variáveis independentes por terem sido consideradas sobredeterminantes das mesmas. Os "odds" das variáveis biológicas e de padrão alimentar foram ajustados para as variáveis sociais, e os efeitos das variáveis referentes a consultas médicas e hospitalizações foram ajustados para as variáveis socioeconômicas, biológicas e de padrão alimentar6. A variável classe social foi composta utilizando-se a metodologia desenvolvida por Bronfmann e col. 7

RESULTADOS

Obteve-se informação para 649 crianças no primeiro mês e 644 no terceiro mês, representando menos de 2% de perdas, devidas principalmente a mudanças de endereço. A amostra dos acompanhamentos não diferiu quanto às características sociodemográficas e biológicas da população de nascidos vivos da zona urbana da cidade. As famílias foram classificadas, em sua maioria, como pertencentes ao proletariado não típico (43%) e com renda per capita menor de um salário- mínimo (75%)*. As demais características da amostra estão descritas na Tabela 1.

Mais de 60% das crianças consumiram medicamentos no primeiro trimestre. Nos dois acompanhamentos, 17% das crianças consumiram 3 ou mais medicamentos diferentes na quinzena. O consumo de combinações de 3 ou mais fármacos foi relatado em 14% e 19% dos casos, respectivamente, no primeiro e terceiro meses. O consumo diário de medicamentos durante um mês ou mais ocorreu em 20% das crianças no terceiro mês. Os médicos foram os principais responsáveis pela indicação e 91% dos medicamentos relatados na entrevista do primeiro mês e 88% na do terceiro mês foram comprados (Tabela 2).

Os medicamentos consumidos e proporção de indicações médicas encontram-se nas Tabelas 3 e 4. Com um mês, os medicamentos mais consumidos pelas crianças foram Cloreto de Benzalcônio + Soro Fisiológico (16%), Dimeticona + Homatropina (11%) e Nistatina solução (10%). Aos três meses foram Ácido Acetil Salicílico (16%), Cloreto de Benzalcônio + Soro Fisiológico (12%) e Dimeticona + Homatropina (7%). Os principais problemas que levaram ao consumo de medicamentos nos dois acompanhamentos foram "cólica" e "resfriado" (Figuras 1 e 2). Os principais grupos terapêuticos utilizados com um mês de vida foram medicamentos dermatológicos (33,5%), para o sistema digestivo (30,6%) e para o sistema respiratório (19,6%). Aos três meses, os principais grupos terapêuticos utilizados foram medicamentos para o sistema respiratório (23,1%), analgésicos (22,3%), e para o sistema digestivo (17,2%) (Figura 3).

Figura 1
- Principais motivos de consumo de medicamentos no primeiro mês de vida. Pelotas, RS, 1993.
Figura 2
- Principais motivos de consumo de medicamentos no terceiro mês de vida. Pelotas, RS, 1993.
Figura 3
- Grupos terapêuticos consumidos em um período de 15 dias. Pelotas, RS, 1993.

O consumo de medicamentos não diferiu segundo a classe social. Filhos de mães que completaram 5 a 8 anos de escola consumiram menos medicamentos no primeiro mês de vida (Tabelas 1 e 5 ). O gênero, o peso ao nascer, a idade gestacional, o tipo de parto, a presença de marido ou companheiro, a idade materna e o número de consultas pré-natais realiza-das não estiveram associados ao consumo de medica-mentos. O consumo de medicamentos no primeiro mês foi 64% menor para as crianças que tinham 3 ou mais irmãos mais velhos do que para os primogênitos, mesmo após o controle para classe social, renda e escolaridade materna (Tabela 6). Houve tendência linear para um menor consumo de medicamentos com o aumento do número de irmãos (Tabela 6). Crianças não amamentadas ao final do primeiro mês apresentaram um risco 75% maior de haver consumido medicamentos. Para crianças não amamentadas exclusivamente o consumo foi mais de duas vezes maior se comparado com as amamentadas exclusivamente (Tabela 6). Resultados semelhantes foram observados para o consumo no terceiro mês.

Crianças que consultaram 3 ou mais vezes no primeiro mês de vida tiveram um risco de consumir medicamentos três vezes maior do que as que não consultaram. Quanto maior o número de consultas médicas, maior o consumo de medicamentos no trimestre. Esta associação apresentou uma tendência linear significativa e um aumento no risco de cerca de 70% para quem consultou 3 ou mais vezes (Tabela 8). Crianças que haviam sido hospitalizadas no trimestre apresentaram um risco duas vezes maior de consumir medicamentos do que as que não hospitalizaram (Tabela 8). Alguns grupos terapêuticos apresentaram associação com classe social. No primeiro mês, crianças cujas famílias pertenciam ao proletariado não típico consumiram mais medicamentos para o sistema digestivo; as pertencentes ao proletariado típico e subproletariado consumiram mais analgésicos, e filhos de famílias pertencentes à burguesia e nova pequena burguesia consumiram mais vitaminas e ferro. Com três meses, a utilização de grupos terapêuticos não diferiu segundo classe social, havendo, no entanto, tendência ao maior consumo de analgésicos nas classes sociais menos privilegiadas, embora sem significância estatística .

DISCUSSÃO

Os achados do presente estudo podem ter sido limitados pela falta de informações sobre morbidade infantil. Extremamente importantes para a compreensão dos padrões de consumo de medicamentos, não foram coletadas por dificuldades operacionais, utilizando-se apenas a morbidade referida pelas mães.

Alguns autores sugerem um período recordatório ideal de 24 horas24, a fim de evitar um viés de memória. Entretanto, o período utilizado foi de 15 dias, permitindo a comparabilidade com a maioria dos estudos.

O consumo de medicamentos foi bastante alto: 65% das crianças no primeiro e 69% no terceiro mês. Esses níveis de consumo foram superiores aos descritos por Béria6, para crianças entre 3 e 4 anos e meio; aos descritos por Barros5 e por Simões e Farache Filho23 para menores de 5 anos e foram semelhantes aos descritos entre crianças norte-americanas de 3 a 6 anos18. De acordo com a literatura, o consumo é maior entre crianças mais jovens, o que foi confirmado nos presentes resultados. O consumo de 3 ou mais medicamentos, de compostos por 3 ou mais fármacos e o consumo crônico são preocupantes e demonstram a intensa medicalização das crianças desde o início de suas vidas.

Dentre os medicamentos mais consumidos encontram-se alguns deuso contra-indicado para crianças, como o Elixir Paregórico (Tintura Canforada de Ópio) e Ácido Acetil Salicílico, pela possibilidade de graves efeitos colaterais, com destaque para a Síndrome de Reye6 . Foram bastante utilizados também medicamentos que não têm efetividade confirmada em crianças, como é o caso da dimeticona16. A prescrição freqüente desses medicamentos por médicos indica a deficiência no sistema de formação profissional e de educação médica continuada na região.

Destaca-se o consumo de medicamentos contra-indicados ou de eficácia não comprovada para o tratamento de "cólicas", responsável por cerca de 27% do consumo no primeiro mês e 15% no terceiro mês. O uso de dipirona, menor que 1% nos dois acompanhamentos, foi menos freqüente do que no estudo realizado por Béria6. O inverso foi observado com o consumo de acetaminofen no terceiro mês de vida. Esses dados devem ser interpretados cuidadosamente, dadas as diferenças etárias entre as populações, mas podem indicar mudança no padrão de uso de analgésicos.

A grande proporção de medicamentos comprados indica um investimento considerável de recursos familiares, uma vez que a renda da população estudada é bastante baixa. Estes gastos muitas vezes não foram justificáveis, pois alguns medicamentos utilizados têm uso pediátrico contra-indicado e qualidade duvidosa (compostos por 3 fármacos ou mais).

O maior consumo de medicamentos entre os não amamentados exclusivamente e entre os desmamados provavelmente reflita uma maior incidência de problemas de saúde entre as crianças, comparativamente aos amamentados - de modo exclusivo ou não2,3. É possível, no entanto, que mães que amamentem exclusivamente seus filhos sejam psicologicamente mais seguras e menos ansiosas, o que poderia levar a uma menor utilização de medicamentos em seus filhos. Sugere-se que estudos futuros explorem melhor esta hipótese.

A pequena proporção de crianças amamentadas exclusivamente17 indica a necessidade de intervenções promotoras do aleitamento natural nesta população. É provável que melhorias nos índices de lactação levem a menor morbidade infantil e, em decorrência, menor necessidade de utilização de medicamentos durante os primeiros meses de vida.

Primogênitos, como já descrito em outro estudo6, consumiram mais medicamentos do que os demais, estando portanto mais expostos a possíveis efeitos colaterais. Este é um grupo populacional que deve receber especial atenção da rede de apoio social e das equipes de saúde, para evitar o consumo desnecessário. Orientações, principalmente para primíparas, sobre o comportamento normal do recém-nascido, podem ser úteis para diminuir o consumo nesse grupo.

Recomenda-se ainda que entidades responsáveis pela formação de profissionais de saúde e sua educação continuada enfatizem a prescrição racional de medicamentos em crianças.

A exemplo de outro estudo6, os presentes resultados reforçam a idéia de que desde a mais tenra idade as crianças são habituadas a conviver com uma medicalização exagerada de sintomas corriqueiros. Pode-se especular se não estaria assim sendo preparado o terreno para futuras dependências de medicamentos ou outras drogas. Um estudo longitudinal poderia nos dar algum indício desta hipótese.

Correspondência para/Correspondence to: Jorge U. Béria - Caixa Postal 464, 960001-970 Pelotas, RS- Brasil. E-mail: jberia@zaz.com.br.

Recebido em 7.10.1997. Aprovado em 27.1.1998.

  • 1
    ARMITAGE, P. & BERRY, G. Statistical methods in medical research. 2nd ed. Oxford, Blackwell, 1987.
  • 2
    AWASTHI, S. et al. Mortality patterns in breast versus artificially fed term babies in early infancy: a longitudinal study. Ind. Pediat., 28:243-8, 1991.
  • 3
    BARROS, F.C. & VICTORA, C.G. Breastfeeding and diarrhea in Brazilian children Demographic and Health Surveys, The Population Council, 1990.
  • 4
    BARROS, F.C. & VICTORA, C.G. Epidemiologia da saúde infantil: um manual para diagnósticos comunitários. São Paulo, HUCITEC-UNICEF, 1991.
  • 5
    BARROS, M.B.A. Saúde e classe social: um estudo sobre morbidade e consumo de medicamentos. Ribeirão Preto, 1983. [Tese de Doutorado - Universidade de São Paulo].
  • 6
    Béria, J.U. et al. Epidemiologia do consumo de medicamentos em crianças de centro urbano da região Sul do Brasil. Rev. Saúde Pública, 27:95-104, 1993.
  • 7
    Bronfmann, M. et al. Operacionalização do conceito de classe social em estudos epidemiológicos. Rev. Saúde Pública, 22:253-65, 1988.
  • 8
    Cabral de Barros, J.A. Medicamentos: uso ou abuso? Cad. Saúde Coletiva Nutr., 2:1-15, 1985.
  • 9
    Cordeiro, H. A indústria da saúde no Brasil Rio de Janeiro, Graal, 1980.
  • 10
    Dubowitz, L.M.S. et al. Clinical assessment of gestacional age in the newborn infant. J. Pediatr., 77:1-10,1970.
  • 11
    Dupuy, J.P. & Karsenty, S. A invasão farmacêutica. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
  • 12
    Falcão, A.C.M.G. et al.Consumo de medicamentos pela população da zona norte da cidade de Londrina. Saúde em Debate, 22:85-9, 1988.
  • 13
    Franco, R.C.S.et al.Consumo de medicamentos em um grupo populacional da área urbana de Salvador. Rev. Bahia. Saúde Pública, 4: 113-21,1986/87.
  • 14
    Giovanni, G. A questão dos remédios no Brasil (produção e consumo) São Paulo, Polis, 1980.
  • 15
    Haak, H. Padrões de consumo de medicamentos em dois povoados da Bahia (Brasil). Rev. Saúde Púbica, 23:143-51, 1989.
  • 16
    Hoelkeman, R.a. et al Primary pediatric care 2nd ed. St. Louis, Mosby Year Book, 1987.
  • 17
    Innocenti Declaration on the Protection, Promotion and Support of Breast-Feeding; adopted by participants in the WHO/UNICEF policymaker's meeting (co-sponsored by USAID and SIDA). Florence, Italy, 1990.
  • 18
    Kovar, M.G. Use of medication and vitamin-mineral suplements by children and youths. Public Health Rep., 100:470-3, 1985.
  • 19
    Laporte, J.R. & Tognoni, G. Principios de epidemiologia del medicamento. Barcelona, Salvat, 1983.
  • 20
    Laurell, A.C. Social analysis of collective health in Latin America. Soc. Sci. Med., 28:1183-91, 1989.
  • 21
    Organización Mundial de la Salud. Comite de Expertos en Uso de Medicamentos Essenciales. genebra, 1984. Report.Genebra, 1985. (Ser. Inf. Tec., 722).
  • 22
    Rylance, G.W. et al. Use of drugs by children. Br. Med. J., 297:445-7, 1988.
  • 23
    Simões, M.J.S. & Farache Filho, A. Consumo de medicamentos em região do Estado de São Paulo (Brasil). Rev. Saúde Pública, 22:494-9, 1988.
  • 24
    Van der Geest, S. & Hardon, A. Drugs use: methodological suggestions for field research in developing countries. Health Policy Plan., 2:152-8, 1988.
  • 25
    Victora, C.G. Statistical malpractice in drug promotion: a case study from Brazil. Soc. Sci. Med., 16:707-9, 1982.
  • 26
    Victora, C.G. et al. Estudo longitudinal da população materno-infantil da região urbana do Sul do Brasil, 1993: aspectos metodológicos e resultados preliminares. Rev. Saúde Pública, 30: 34-45, 1996.
  • 27
    World Health Organization. Division of Diarrhoeal and Acute Respiratory Disease Control. Indicators for assessing breast feeeding practices; report of an Informal Meeting 11-12 June, 1991. Geneva, 1991.
  • *Apoio financeiro do Centro de Controle de Doenças Diarréicas da Organização Mundial da Saúde (CDD-WHO) e Comunidade Econômica Européia (CEE), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (CNPq), Comissão de Apoio ao Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
    Apoio financeiro do Centro de Controle de Doenças Diarréicas da Organização Mundial da Saúde (CDD-WHO) e Comunidade Econômica Européia (CEE), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (CNPq), Comissão de Apoio ao Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Ago 1998

    Histórico

    • Aceito
      27 Jan 1998
    • Recebido
      07 Out 1997
    Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revsp@usp.br