Acessibilidade / Reportar erro

Confiabilidade das aferições de estudo sobre violência familiar e desnutrição severa na infância

Measurement reliability in a study on family violence and severe acute malnutrition

Resumos

INTRODUÇÃO: Como parte do programa de investigação sobre violência familiar e desnutrição severa na infância, especificamente um estudo do tipo caso-controle foi avaliada a confiabilidade dos instrumentos utilizados no processo de obtenção de dados. Estudou-se a confiabilidade de quatro componentes do instrumento principal: (a) as Escalas sobre Táticas de Conflitos (Conflicts Tactics Scales - CTS) que medem o grau de conflito/violência familiar; (b) o instrumento CAGE (Cut-down; Annoyed; Guilty & Eye-opener) usado para indicar suspeição de alcoolismo; (c) o NSDUQ (Non-student Drugs Use Questionnaire) que visa aferir o uso de drogas ilícitas; e (d) a medida antropométrica de comprimento. MÉTODO: Para os três primeiros componentes citados foram avaliadas a estabilidade (confiabilidade intra-observador ou teste-reteste) e a equivalência (confiabilidade inter-observador), usando-se os 50 primeiros sujeitos captados no estudo caso-controle de fundo. Para a análise, usou-se o índice Kappa (k) com ajustamento (pseudo-Bayes) para lidar com problemas de estimabilidade. Em relação ao componente "d", foi estudada somente a equivalência (n=73), usando-se o Coeficiente de Correlação Intraclasse (Intra-class Correlation Coefficient - ICC) como estimador. RESULTADOS: Todos os componentes mostraram estabilidade e equivalência aceitáveis. Quanto à estabilidade das CTS, CAGE e NSDUQ, as estimações de k foram em torno de 0,70, 0,78 e 0,85, respectivamente. Em relação à equivalência, encontrou-se os valores de 1,0 para as CTS e NSDUQ e 0,75 para CAGE. A equivalência estimada através do ICC para comprimento foi de 0,99. Algumas situações desviantes foram observadas. Os resultados apontam para uma adequada padronização dos observadores e refletem a boa qualidade do processo de aferição referente ao estudo de fundo, encorajando a equipe de pesquisa a prosseguir com maior segurança.

Violência doméstica; Transtornos nutricionais; Estudos de casos e controles; Reprodutibilidade de resultados


INTRODUCTION: This study is nested within a research program related to family violence and severe childhood malnutrition. Its aim is to evaluate the reliability of the data collection process in a case-control study. Four components of the main instrument are addressed: (a) CTS (Conflict Tactics Scales) used to measure violence at the family level; (b) CAGE (Cut-down; Annoyed; Guilty & Eye-opener) questionnaire used to gnage suspicion of drinking problems; NSDUQ (Non-student Drugs Use Questionnaire) used to indicate illicit drug consumption; and (d) heigth/lenght measurements. METHOD: Stability (intra-observer or test-retest reliability) and equivalence (inter-observer reliability) were evaluated for the cited components (a), (b) and (c). Information was replicated among the first 50 subjects selected for the underlying case-control study. The Kappa index (k) was used in the analysis. A pseudo-Bayes adjustment was carried out in order to handle estimation problems. Regarding (d), only equivalence was evaluated (n=73), using the Intraclass Correlation Coefficient as the estimator. RESULTS: By and large, all components showed acceptable stability and equivalence. Regarding stability, the estimates of k were around 0.70, 0.78 and 0.85, for CTS, CAGE e NSDUQ, respectively. With respect to equivalence, k was 1.0 for CTS and NSDUQ and 0.75 for CAGE. Equivalence for height/length estimated through the ICC was 0.99. Nevertheless, some deviant situations were detected and are further discussed. The results point to an adequate standardization of observers and reflect the good quality of the data collection procedure concerning the main study, encouraging the research team to press forward with greater assurance.

Domestic violence; Nutrition disorders; Case-control studies; Reproducibility of results


Confiabilidade das aferições de estudo sobre violência familiar e desnutrição severa na infância* * Parcialmente subvencionado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processo nº 200 122-82/7).

Measurement reliability in a study on family violence and severe acute malnutrition

Maria Helena Hasselmann, Claudia S. Lopes e Michael E. Reichenheim

Departamento de Nutrição Social do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).Rio de Janeiro, RJ - Brasil (M.H.H.), Departamento de Epidemiologia do Instituto de Medicina Social da UERJ. Rio de Janeiro,RJ - Brasil (C.S.L., M.E.R.)

Resumo Introdução Como parte do programa de investigação sobre violência familiar e desnutrição severa na infância, especificamente um estudo do tipo caso-controle foi avaliada a confiabilidade dos instrumentos utilizados no processo de obtenção de dados. Estudou-se a confiabilidade de quatro componentes do instrumento principal: (a) as Escalas sobre Táticas de Conflitos (Conflicts Tactics Scales - CTS) que medem o grau de conflito/violência familiar; (b) o instrumento CAGE (Cut-down; Annoyed; Guilty & Eye-opener) usado para indicar suspeição de alcoolismo; (c) o NSDUQ (Non-student Drugs Use Questionnaire) que visa aferir o uso de drogas ilícitas; e (d) a medida antropométrica de comprimento. Método Para os três primeiros componentes citados foram avaliadas a estabilidade (confiabilidade intra-observador ou teste-reteste) e a equivalência (confiabilidade inter-observador), usando-se os 50 primeiros sujeitos captados no estudo caso-controle de fundo. Para a análise, usou-se o índice Kappa (k) com ajustamento (pseudo-Bayes) para lidar com problemas de estimabilidade. Em relação ao componente "d", foi estudada somente a equivalência (n=73), usando-se o Coeficiente de Correlação Intraclasse (Intra-class Correlation Coefficient - ICC) como estimador. Resultados Todos os componentes mostraram estabilidade e equivalência aceitáveis. Quanto à estabilidade das CTS, CAGE e NSDUQ, as estimações de k foram em torno de 0,70, 0,78 e 0,85, respectivamente. Em relação à equivalência, encontrou-se os valores de 1,0 para as CTS e NSDUQ e 0,75 para CAGE. A equivalência estimada através do ICC para comprimento foi de 0,99. Algumas situações desviantes foram observadas. Os resultados apontam para uma adequada padronização dos observadores e refletem a boa qualidade do processo de aferição referente ao estudo de fundo, encorajando a equipe de pesquisa a prosseguir com maior segurança. Violência doméstica. Transtornos nutricionais. Estudos de casos e controles. Reprodutibilidade de resultados. Abstract Introduction This study is nested within a research program related to family violence and severe childhood malnutrition. Its aim is to evaluate the reliability of the data collection process in a case-control study. Four components of the main instrument are addressed: (a) CTS (Conflict Tactics Scales) used to measure violence at the family level; (b) CAGE (Cut-down; Annoyed; Guilty & Eye-opener) questionnaire used to gnage suspicion of drinking problems; NSDUQ (Non-student Drugs Use Questionnaire) used to indicate illicit drug consumption; and (d) heigth/lenght measurements. Method Stability (intra-observer or test-retest reliability) and equivalence (inter-observer reliability) were evaluated for the cited components (a), (b) and (c). Information was replicated among the first 50 subjects selected for the underlying case-control study. The Kappa index (k) was used in the analysis. A pseudo-Bayes adjustment was carried out in order to handle estimation problems. Regarding (d), only equivalence was evaluated (n=73), using the Intraclass Correlation Coefficient as the estimator. Results By and large, all components showed acceptable stability and equivalence. Regarding stability, the estimates of k were around 0.70, 0.78 and 0.85, for CTS, CAGE e NSDUQ, respectively. With respect to equivalence, k was 1.0 for CTS and NSDUQ and 0.75 for CAGE. Equivalence for height/length estimated through the ICC was 0.99. Nevertheless, some deviant situations were detected and are further discussed. The results point to an adequate standardization of observers and reflect the good quality of the data collection procedure concerning the main study, encouraging the research team to press forward with greater assurance. Domestic violence. Nutrition disorders. Case-control studies. Reproducibility of results.

INTRODUÇÃO

O presente estudo reflete a preocupação de avaliar a qualidade das mensurações em investigações epidemiológicas. Avaliações formais da qualidade das aferições, embora essenciais, raramente são conduzidas de forma explícita. Mesmo que um instrumento já tenha sido validado previamente e esteja bem estabelecido no âmbito de um programa de investigação, há a necessidade de um escrutínio do processo de aferição toda vez que este é utilizado num novo contexto. Ao contrário da validade que, uma vez estudada, passa a ser considerada uma propriedade imanente do instrumento, a confiabilidade diz respeito ao processo de aferição específico de um estudo. Pelo seu caráter particular, a confiabilidade necessita ser investigada continuamente e seus resultados são intransferíveis27,35.

Os conceitos de estabilidade e equivalência são importantes ao se abordar a qualidade de informações em investigações epidemiológicas. Ambos estão atrelados à questão da reproducibilidade das aferições e, conseqüentemente, à confiabilidade da informação. A estabilidade é a capacidade do instrumento produzir os mesmos resultados em diferentes momentos2,11. A equivalência é a capacidade de um mesmo instrumento medir uma certa característica quando aplicado concorrentemente por diferentes observadores2,11,36.

O presente estudo insere-se no bojo de um programa de investigação sobre violência familiar e desnutrição aguda severa26. Um dos projetos específicos do programa concerne um estudo de caso-controle que postula a violência no nível da família como fator de risco no processo de desnutrição severa aguda na criança25. Além dos eventos desnutrição e violência, o modelo teórico subjacente contempla, entre outros corolários, o alcoolismo e uso de drogas. Por se tratar de eventos de difícil apreensão, decidiu-se aprofundar estes 4 componentes do instrumento de aferição do estudo de fundo, estudando-se a confiabilidade do processo de mensuração sob a perspectiva da estabilidade e equivalência. A seguir, são apresentados os componentes em questão e os procedimentos relativos à replicação.

MÉTODO

Componentes Replicados

As Escalas sobre Táticas de Conflitos (Conflict Tactics Scales - CTS) foram desenvolvidas por Straus31 objetivando mensurar as estratégias utilizadas pelos membros da família para resolver possíveis conflitos e, indiretamente, captar um estado de violência no domicílio. Com o intuito de "mapear" os níveis de conflito, o instrumento identifica quatro diferentes táticas: (a) de argumentação que consiste no uso de discussão racional; (b) de agressão verbal quando um indivíduo apela para insultos e ameaças com a intenção de, simbolicamente, machucar e agredir o outro; (c) de violência física não abusiva quando o uso de força física é explícita mas de intensidade moderada, possivelmente sem chegar a danos corporais severos; e (d) de violência física abusiva na forma de espancamentos ou atentados podendo levar a danos corporais severos. As CTS têm sido estudadas desde a sua concepção. Vários estudos apontam para uma baixa taxa de recusa32; indicam uma boa confiabilidade, principalmente para as escalas de violência física3,31; e mostram uma validade de tipo concorrente17,32,34, de constructo3,32,33 e de conteúdo31-33.

O instrumento CAGE (Cut-down; Annoyed; Guilty & Eye-opener) é usado para indicar suspeição de alcoolismo. O CAGE é o mais simples dos instrumentos que se baseiam em diagnósticos dicótomos (presença/ausência de alcoolismo). Seu desenvolvimento e uso clínico foram apresentados e descritos por Ewing12 na Conferência Internacional sobre Alcoolismo, em 1970. O instrumento consiste de quatro questões inseridas de forma intermitente no instrumento de coleta. Não se encontrou evidências na literatura sobre a confiabilidade do CAGE em investigações realizadas no Brasil. Quanto à validade, no entanto, existem estudos realizados no País e no exterior. Mayfield e col.23 mostraram que o instrumento possui validade concorrente (f=0,89). Em um estudo realizado em São Paulo, Masur e Monteiro22 mostraram uma sensibilidade e especificidade de 0,88 e 0,83, respectivamente. Ambos estudos definiam um CAGE positivo quando pelo menos dois itens eram positivos.

Desenvolvido por um grupo de especialistas e testados em várias localidades, o Questionário sobre o Uso de Drogas em Não Estudantes (Non-student Drugs Use Questionnaire - NSDUQ) é utilizado para captar o uso de drogas23,30. Estudos teste-reteste aninhados numa investigação patrocinada pela OMS relatam uma boa confiabilidade30. Na Índia foram replicadas 36 aferições e o escore agregando todos os tipos de drogas mostrou concordância quase completa (r=0,97). Resultado similar foi encontrado no Canadá (r=0,95) no qual foram reavalidas 30 pessoas. No Paquistão, o resultado foi um pouco pior, ainda que aceitável (r=0,78).

Dentre várias medidas antropométricas utilizadas na avaliação do estado nutricional de indivíduos e populações, o peso e a altura são referidas como aquelas mais sensíveis e específicas para apreender o processo de crescimento e desenvolvimento24,40. As vantagens da utilização de medidas antropométricas na avaliação do estado nutricional decorrem do fato dos procedimentos requeridos no processo serem de simples execução, não invasivos e de baixo custo14. Ademais, os procedimentos são precisos e acurados, desde que sejam usadas técnicas padronizadas e os antropometristas adequadamente treinados14,37. No sentido de avaliar a qualidade do treinamento, bem como do processo de aferição, ênfase deve ser dada à medição da altura/comprimento por se tratar do procedimento que oferece maiores dificuldades operacionais, especialmente em infantes e pré-escolares1,37. Por isso, decidiu-se replicar preferencialmente a medida de altura/comprimento, uma vez que o estudo caso-controle de fundo contempla o uso do índice antropométrico peso-para-altura para indicar desnutrição severa aguda.

Replicação dos Componentes CTS, CAGE e NSDUQ

A estabilidade (confiabilidade intra-observadores) dos componentes CTS, CAGE e NSDUQ foi estudada através da abordagem teste-reteste conduzida por 2 entrevistadores, especialmente treinados, e um dos investigadores principais (MHH). Realizada uma primeira aferição, as respondentes (mães) eram aferidas novamente pelo mesmo observador após um intervalo de 3 dias a 2 semanas. Para a avaliação da equivalência (confiabilidade inter-observadores), MHH acompanhava a primeira entrevista sem dela participar ativamente, registrando em um questionário separado os itens respondidos ao entrevistador.

As primeiras 50 entrevistas do estudo caso-controle de fundo foram replicadas. A divergência dos tamanhos amostrais reportados nos resultados é resultante dos critérios adotados para as respectivas aplicações como, por exemplo, no caso de mães separadas do companheiro há mais de um ano às quais não se aplicou a CTS sobre o relacionamento pai-mãe/mãe-pai e os componentes CAGE e NSDUQ referentes ao companheiro.

Utilizou-se o Kappa (k) como estimador de confiabilidade pela sua adequação para o tipo de dados categóricos encontrados na CTS, CAGE e NSDUQ4,8,13. Detalhes dos procedimentos estatísticos relativos às estimações encontram-se em anexoanexo é dado por . Para efeito de interpretação usou-se a proposta de Coutinho10, uma adaptação dos critérios sugeridos por Landis e Koch20. Coutinho10 propõe cinco categorias para as estimativas de confiabilidade: (a) muito ruim (<0); (b) ruim (0 a 0,40); (c) regular (0,41 a 0,60); (d) boa (0,61 a 0,74) e (e) excelente (>0,75).

As CTS foram analisadas segundo o tipo de relacionamento familiar e escala tática de conflito. Os tipos de relacionamentos estudados foram (a) pai-criança; (b) mãe-criança; (c) pai-mãe e (d) mãe-pai32,34. Para efeitos de concisão, optou-se por não detalhar as escalas de argumentação e agressão verbal e apresentar somente as escalas de violência física abusiva e não abusiva, além da violência doméstica total. Quanto à classificação da última, utilizou-se a proposta de Straus34. Uma família foi considerada violenta quando apresentava pelo menos uma resposta positiva nos itens relativos à agressão física33,39. Tentando refletir um gradiente de gravidade, também se usou uma variável resumo em 3 níveis. Considerou-se violência grave se esta era abusiva; moderada se não abusiva; e não-violência se a tática de resolução de conflito restringia-se apenas a argumentação e agressão verbal.

Conforme recomenda a literatura, o critério de suspeição de alcoolismo através do CAGE é o de duas ou mais respostas positivas7,12,19,22,23.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, o instrumento NSDUQ deve conter perguntas sobre as drogas mais utilizadas na população a ser investigada30. No presente estudo escolheu-se avaliar somente o uso de tranqüilizantes com ou sem recomendações médicas, uso de maconha, cocaína, cola de sapateiro e um item sobre outros tipos de drogas eventualmente consumidas. A classificação dos usuários foi feita com base nos critérios propostos pela OMS, a saber, (a) não usuários: aqueles que nunca usaram qualquer tipo de drogas; (b) usuários leves: aqueles que, apesar de já terem utilizado drogas alguma vez, não as usaram nem semanalmente nem diariamente no mês anterior à entrevista; (c) usuários moderados: aqueles que usaram drogas semanalmente mas não diariamente no mês anterior à entrevista; e (d) usuários pesados: aqueles que usaram uma ou mais drogas diariamente no mês anterior à entrevista.

Replicação Antropométrica

Após uma fase inicial de padronização dos antropometristas (realizada segundo a proposta de Habicht15), as primeiras 73 crianças captadas no estudo caso-controle de fundo foram aferidas por MHH, concorrentemente aos dois outros observadores. A replicação da altura/comprimento ocorreu de forma mascarada e a magnitude estimada pelo Coeficiente de Correlação Intraclasse (Intraclass Correlation Coefficient - ICC)4,5.

RESULTADOS

As Tabelas 1, 2 e 3 sumarizam, respectivamente, os resultados da confiabilidade intra-observador (teste-reteste) dos componentes CTS, CAGE e NSDUQ. Com relação às CTS, exceto a relação pai-mãe na escala de violência abusiva em que o k foi baixo (0,33), encontrou-se um k em torno de 0,75. As duas estimativas de violência total revelam k altos de 0,84 e 0,73. Segundo a classificação de Coutinho10, a estabilidade do CAGE quando a respondente se refere ao companheiro é apenas moderada mas passa a ser excelente quando esta se refere a si mesma. Também para o componente NSDUQ a estabilidade do processo de aferição é classificável como excelente.

A equivalência dos processos de aferição dos entrevistadores em relação componentes CTS, CAGE e NSDUQ encontram-se nas Tabelas 4, 5 e 6. O quadro geral mostra estimações de ponto máximas na grande maioria dos contrastes. As exceções (CTS-MC e CAGE-respondente) podem ser atribuídas às flutuações amostrais, o que é bem captado pelos largos intervalos de credibilidade.

A Figura mostra os detalhes da análise relativa à replicação da aferição de comprimento das crianças. O coeficiente de correlação intraclasse (ICC) foi de 0,99.


DISCUSSÃO

De uma maneira geral, o estudo sugere uma adequação do processo de aferição no âmbito da estabilidade e equivalência das informações colhidas, mesmo levando em conta o tamanho amostral relativamente pequeno e, ocasionalmente, a acentuada assimetria entre eventos positivos e negativos. Estas características e a decorrente indesejável rarefação de dados não são raras em estudos cuja função precípua é avaliar a qualidade do processo de aferição de uma investigação epidemiológica maior. Como apontado na metodologia em anexoanexo é dado por , usou-se o estimador pseudo-Bayes para o ajuste do k no intuito de lidar com situações de inestimabilidade. Todavia, o procedimento pode revelar também algo sobre o efeito da rarefação, sua repercussão sobre as inferências e, principalmente, sobre os processos de decisão operacionais e gerenciais concernentes ao estudo principal. Ao se imputar probablidades a priori informativas na faixa de 0,02 a 0,05 para as caselas das tabelas de contingência contendo zeros - o que pressupõe distribuições subjacentes onde existe alguma discordância, ainda que esta não tenha se manifestado na amostra única em mãos - o decréscimo dos estimadores ajustados do k não passa de 10%. Diante do espectro dos valores encontrados, esta diminuição raramente altera o julgamento qualitativo (segundo a escala de Coutinho), o que é assegurador.

Com poucas exceções (e.g., relacionamento pai-mãe da escala de violência abusiva na Tabela 1), os resultados mostram uma confiabilidade satisfatória das CTS tanto no âmbito da estabilidade quanto da equivalência do processo de aferição. É mister apontar que esta qualificação e outras adiante, tomam como base inferencial os estimadores de ponto. No entanto, não pode ficar sem menção o fato de que praticamente todos os limites inferiores de credibilidade encontrados estão abaixo de 0,5, o que demanda, portanto, uma certa cautela à utilização do estimador de ponto na apreciação dos resultados.

Tanto a estimativa de violência total proveniente da variável dicotomizada quanto a da forma tricótoma revelam uma boa estabilidade (0,84 e 0,73, respectivamente) ou, no mínimo, regular, ao se tomar os valores do limites inferiores dos intervalos de credibilidade (0,54 e 0,48, respectivamente). Esses achados estão de acordo com Straus32 que acena para a pertinência do instrumento quando o objetivo é separar as famílias violentas das não violentas. Em contrapartida, deve ser mencionado que ao se analisar o k referente às escalas de argumentação e agressão verbal (informação não detalhada nos resultados), encontram-se valores em torno de 33%, o que também vem ao encontro aos achados do autor32. No entanto, no âmbito do estudo caso-controle no qual esta avaliação se aninha, são as escalas de melhor confiabilidade (violência total I e II) que realmente importam, uma vez que estas definem a exposição de interesse central (estado de violência intra-familiar)16.

Distinto do processo de aferição sobre consumo de drogas, destaca-se o fato da estabilidade do componente CAGE ser marcadamente menor quando a respondente relata os hábitos etílicos do companheiro do que os seus próprios. Em relação à equivalência o padrão observado é inverso, ainda que se conceda que a evidência peca pela imprecisão, sugerindo que a diferença tenha decorrido de um problema amostral. Este panorama parece refletir a sensibilidade da questão do alcoolismo, o que Masur e col.21 discutem a partir da ótica de uma "invasão de privacidade" no que tange à admissão do problema. É a impressão dos autores que, ao contrário do esperado, é no primeiro contato que a respondente se dispõe a "denunciar" o companheiro, passando a negar o fato no segundo encontro.

Em relação ao NSDUQ é preciso ser mais cauteloso ao se discutir a sensibilidade da admissão do consumo. A detectada concordância intra- e interobservador pode tanto representar uma disposição à admissão quanto uma relutância sistemática. De toda forma, existe uma consistência. Isto garante uma confiabilidade da aferição, ainda que nada se possa afirmar sobre a validade da informação. Como colocado na introdução, esta é assumida prima facie. Estas questões merecem aprofundamento, pois, sendo de fácil aplicação, os dois instrumentos tendem a ser usados freqüentemente.

Quanto à confiabilidade da mensuração de comprimento, os achados são bastante consistentes com outros estudos1,37,38.

Ainda que um aprofundamento sobre a questão da validade de instrumentos de aferição mereça toda a atenção, é preciso reforçar que os 4 componentes utilizados na presente investigação são assumidos como válidos a priori e que o artigo explicitamente enfoca o processo de aferição em si. É necessário, no entanto, que se distinga entre a validade própria de um instrumento e a da informação gerada. A última depende também da confiabilidade, uma vez que um instrumento aceito como válido (a priori ou estudado anteriormente) pode ter, circunstancialmente, uma precária estabilidade e/ou equivalência. Esta deficiência implicará em má qualidade do processo de captação da informação, podendo comprometer, conseqüentemente, a validade da informação27.

Alguns aspectos metodológicos gerais também merecem comentários quando se examina a confiabilidade de um processo de aferição, principalmente a de tipo interobservador. O primeiro diz respeito aos entrevistadores, que, estando conscientes do processo de avaliação de confiabilidade em curso, tendem a proceder com maior rigor do que em circunstâncias habituais. Isto pode levar a uma superestimação da confiabilidade e, aceitando-se a possibilidade do problema ter ocorrido no presente estudo, deve ser considerado ao se apreciar os resultados18.

O segundo aspecto é a tendência do observador em alterar a sua abordagem com o tempo. A aplicação continuada de um instrumento pode fazer com que o observador paulatinamente aprimore sua maneira de perguntar e de se relacionar com os respondentes. Estas mudanças tendem a ocorrer principalmente no início do período de contato com o instrumento. Assim, desde que se consiga precocemente evitar problemas com os observadores, pode se esperar que a qualidade e consistência da aferição melhorem progressivamente. Nesta perspectiva, implementou-se um ativo treinamento e um pré-teste precedendo o estudo, o que parece ter ajudado.

Os resultados aceitáveis em relação a estabilidade e equivalência indicaram uma adequada padronização dos observadores, permitindo prosseguir com a mesma equipe em segurança. Isto é particularmente relevante em estudos nos quais o processo de aferição é delegado a muitos entrevistadores. Uma outra questão importante é reconhecer que, mesmo tendo-se constatado uma boa confiabilidade em alguma fase da coleta de dados, é sempre possível ocorrer uma queda de qualidade da aferição ao longo do processo. Para garantir uma boa qualidade dos dados é decisivo que jornadas de replicações sejam planejadas e implementadas periodicamente ou, eventualmente, à troca de membros da equipe de aferidores. No caso do extenso estudo caso-controle de fundo, esta foi a primeira; outras estão contempladas no curso da investigação principal.

AGRADECIMENTOS

Aos entrevistadores de campo e aos funcionários do Hospital Municipal Salles Netto, Hospital Municipal Jesus e IPPMG/UFRJ pela colaboração na coleta de dados.

onde e , sendo e .

Os pesos para concordância são:

,

sendo i e j, respectivamente, os índices de linhas e colunas da tabela de contingência e c correspondendo ao número de categorias da variável aferida. Esta ponderação pretende refletir a importância relativa de cada discordância possível.9

Os intervalos de credibilidade reportados são dados por

é o erro padrão e .

Aqui, assume-se uma distribuição gaussiana mas necessariamente truncada à direita para respeitar o limite superior dos valores próprios do estimador. Optamos pelo uso de um ajuste baseado no estimador pseudo-Bayes que permite lidar adequadamente com os zeros não-estruturais (amostrais) encontrados.6 Nesta perspectiva, confere-se uma massa (densidade) a qualquer casela de concordância, mesmo que a realização nos dados tenha se expressado por zero em algumas delas. Para obter o estimador pseudo-Bayes é necessário selecionar um conjunto de probabilidades a priori e computar as estimativas (posteriores) para cada casela

,

onde é um fator de ponderação. O novo k e seus limites de credibilidade são, então, calculados à partir de , substituindo . Uma vez que não existe qualquer conhecimento a priori para imputar plausíveis probabilidades a cada casela , preferiu-se usar a priores guiados pelos próprios dados. Esta conduta deixa praticamente inalteradas as estimações obtidas com o k tradicional (não ajustado) mas permite uma estimação em configurações onde este é inestimável (e.g., se todos os indivíduos aferidos são positivos ou negativos).

Nas curvas de distribuição aninhadas nas tabelas mostradas nos resultados, utilizamos a função de Kernel de Epanechnikov28 e uma largura de banda sugerida por Silverman29 dada por b=1,06 min(s,R/1,34)n-1/5 onde s é o desvio padrão e R = [Centil 75 - Centil 25] calculado a partir da distribuição normal.

Correspondência para/Correspondence to: Michael E. Reichenheim - Rua São Francisco Xavier, 524 - 20599-090 Rio de Janeiro, RJ - Brasil. E-mail: michael@ims.uerj.br

Recebido em 21.10.1997. Reapresentado em 15.3.1998. Aprovado em 6.4.1998.

  • 1. AHMED, M.L.; YUDKIN, P.L.; MACFARLANE, J.A.; MCPHERSON, K.; DUNGER, D.B. Are measurement of height made by health visitors sufficiently accurate for routine screening of growth? Arch. Dis. Child., 65:1345-8, 1990.
  • 2. ALMEIDA FILHO, N. Epidemiologia sem números: uma introduçăo crítica ŕ cięncia epidemiológica Rio de Janeiro, Campus, 1989.
  • 3. ASSIS, S.G. Crianças, violęncias e comportamentos: um estudo em grupos sociais distintos Rio de Janeiro, Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ, 1992.
  • 4. BARTKO, J.J. On various intraclass correlation reliability coefficients. Psychol. Bull., 83:7625, 1976.
  • 5. BARTKO, J.J. General methodology II. Measures of agreement: a single procedure. Stat. Med., 13:73745, 1994.
  • 6. BISHOP, Y.M.M.; FIENBERG, S.E.; HOLLAND, P.W. Discrete multivariate analysis: theory and practice Cambridge, The MIT Press, 1975.
  • 7. CAPRIGLIONE, M.J.; MONTERIRO, M.G.; MASUR, J. Aplicaçăo do questionário CAGE para detecçăo da síndrome de dependęncia do álcool em 700 adultos na cidade de Săo Paulo. Rev. Ass. Bras. Psiq., 7:503, 1985.
  • 8. COHEN, J. A coefficient of agreement for nominal scales. Educ. Psychol. Meas., 20:3746, 1960.
  • 9. COHEN, J. Weighted kappa: nominal scale agreement with provision for scaled disagreement or partial credit. Psychol. Bull., 70:21320, 1968.
  • 10. COUTINHO, E. Confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico em hospitais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1987. [Dissertaçăo de Mestrado Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ].
  • 11. CRONBACH, L.J. Coefficient alpha and the internal structure of tests. Psychometrika, 16:297334, 1951.
  • 12. EWING, J.A. Detecting alcoholism: the CAGE questionnaire. JAMA., 252:19057, 1984.
  • 13. FLEISS, J.L. Statistical methods for rates and proportions. 2nd ed. New York, John Wiley & Sons, 1981.
  • 14. GIBSON, R.S. Principles of nutritional assessment New York, Oxford University Press, 1990.
  • 15. HABICHT, J.P. Estandardización de métodos epidemiologicos quantitativos sobre el terreno. Bol.Ofic. Sanit. Panam, 76:37584, 1974.
  • 16. HASSELMANN, M.H. Violęncia familiar e desnutriçăo severa na infância: modelo teórico e estudo de confiabilidade dos instrumentos. Rio de Janeiro, 1996. [Dissertaçăo de Mestrado Instituto de Medicina Social, UERJ].
  • 17. JOURILES, E.N.& O'LEARY, K.D. Interspousal reliability of reports of marital violence. J. Consul. Clin. Psychol., 53:41921, 1985.
  • 18. KAZDIN, A.E. Artifact, bias and complexity of assessment: the ABCs of reliability. J. Appl. Behav. Anal., 10:14150, 1977.
  • 19. KING, M. At risk drinking among general practice attenders: validation of the CAGE questionnaire. Psychol. Med., 16:2137, 1986.
  • 20. LANDIS, J.R.& KOCH, G.G. The measurement of observer agreement for categorical data. Biometrics, 33:15974, 1977.
  • 21. MASUR, J.; CAPRIGLIONE, M.J.; MONTEIRO, M.G.; JORGE, M.R. Detecçăo precoce do alcoolismo em clínica médica através do questionário CAGE. J. Bras. Psiq., 34:314, 1985.
  • 22. MASUR, J.& MONTEIRO, M.G. Validation of the "CAGE" alcoholism screening test in a Brazilian psychiatric inpatient hospital setting. Brazilian J. Med. Biol. Res., 16:2158, 1983.
  • 23. MAYFIELD, D.; MCLEOD, G.; HALL, P. The CAGE questionnaire: Validation of a new alcoholism screening instrument. Am. J. Psychiatry, 131:11213, 1974.
  • 24. MONTEIRO, C.A. Critérios antropoméricos no diagnóstico da desnutriçăo em programas de assistęncia ŕ criança. Rev. Saúde Pública, 18:56 - 63, 1974.
  • 25. REICHENHEIM, M.E.& HASSELMANN, M.H. Violęncia doméstica: uma questăo no processo de determinaçăo da desnutriçăo na infância? Rio de Janeiro,1994 [Projeto de Pesquisa, Instituto de Medicina Social e Instituto de Nutriçăo da UERJ].
  • 26. REICHENHEIM, M.E.& HASSELMANN, M.H. Um novo perfil da criança desnutrida. A violęncia doméstica pode estar por trás de casos residuais de desnutriçăo. Folha de Săo Paulo, 18 de maio de 1997.
  • 27. REICHENHEIM, M.E.& MORAES, C.L. Alguns pilares para a apreciaçăo da validade de estudos epidemiológicos. Rev. Bras. Epidemiol., 1(2) 1998.
  • 28. SALGADOUGARTE, I.H.; SHIMITZU, M; TANIUCHI, T. Exploring the shape of univariate data using kernel density estimators. Stata Tech. Bull., 16:819, 1993.
  • 29. SILVERMAN, B.W. Density estimation for statistics and data analysis London, Chapman and Hall, 1986.
  • 30. SMART, R.G.; ARIF, A.; HUGHES, P.; MEDINA MORA, M.E.; NAVARATNAM, V.; VARMA, V.K.; WADUD, K.A. Drugs use among nonstudent youth. Geneva, World Health Organization, 1981.( WHO Offset Publication, No. 60).
  • 31. STRAUS, M.A. Measuring intrafamiliar conflict and violence: the conflict tactics (CT) scale. J. Marriage Fam., (41):75 - 88, 1979.
  • 32. STRAUS, M.A. Physical violence in american families: risk factors and adaption to violence in 8145 families New Brunswick, Transaction Publisher, 1990.
  • 33. STRAUS, M.A. Beating the devil out of them: corporal punishment in american families. New York, Cambridge University Press, 1994.
  • 34. STRAUS, M.A.; GELLES, R.J.; STEINMETZ, S.K. Behind closed doors: violence in the american family New York, Anchor Press, 1981.
  • 35. STREINER, D.L.& NORMAN, G.R. Health measurement scales: a practical guide to their developmebnt and use Oxford, Oxford University Press, 1989.
  • 36. VERAS, R.P. País jovem de cabelos brancos: a saúde do idoso no Brasil Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994.
  • 37. VOSS, L.D.& BAILEY, B.J.R. Equipping the community to maesure children's height: the reliability of portable instruments. Arch. Dis. Child., 70:46971, 1994.
  • 38. VOSS, L.D.; BAILEY, B.J.R.; CUMMING, K.; WILKIN, T.J.; BETTS, P.R. The reliability of height measurement (the Wessex Growth Study). Arch. Dis. Child., 65:13404, 1990.
  • 39. WISSOW, L.S.; WILSON, M.E.H.; ROTER, D.; LARSON, S.; BERMAN, H.I. Family violence and the evaluation of behavioral concerns in a pediatric primary health clinic. Med. Care, 30 (Suppl.):15065, 1992.
  • 40. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Physical status: the use and interpretation of anthropometry Geneva, 1995. ( WHO Technical Report Series, No. 854).

anexo

é dado por
  • *
    Parcialmente subvencionado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processo nº 200 122-82/7).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Out 1998

    Histórico

    • Aceito
      06 Abr 1998
    • Revisado
      15 Mar 1998
    • Recebido
      21 Out 1997
    Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revsp@usp.br