Acessibilidade / Reportar erro

Avaliação de risco crônico da ingestão de resíduos de pesticidas na dieta brasileira

Chronic dietary risk assessment for pesticide residues in Brazilian food

Resumos

OBJETIVO: Avaliar o risco crônico da ingestão de pesticidas pela dieta, em compostos registrados no Brasil para uso agrícola até 1999. MÉTODOS: Foi calculada a Ingestão Diária Máxima Teórica (IDMT) para cada pesticida, utilizando limites máximos de resíduos estabelecidos pela legislação brasileira e dados de consumo alimentar. A caracterização do risco foi feita comparando-se a IDMT com as doses diárias aceitáveis (IDA) de vários países e do Codex Alimentarius. RESULTADOS: A IDTM ultrapassou a IDA (%IDA>100) em pelo menos uma região metropolitana brasileira para 23 pesticidas. Dezesseis compostos com maior %IDA são inseticidas organofosforados, sendo o paration metílico o composto cuja ingestão mais excedeu o parâmetro toxicológico (%IDA N=9.300). O arroz, o feijão, as frutas cítricas e o tomate foram os alimentos que mais contribuíram para a ingestão. Dos compostos que apresentaram maior risco, apenas 6 foram registrados de acordo com o Decreto 98.816/90, que dispõe sobre o uso de pesticidas no País. CONCLUSÕES: Os compostos identificados como sendo de potencial risco de exposição crônica para a população brasileira, e os alimentos que mais contribuíram para a sua ingestão, devem ser priorizados pelos órgãos de saúde em programas de monitoramento de resíduos de pesticidas. Adicionalmente, dados sobre resíduos em alimentos prontos para o consumo, fatores de processamento e dados sobre consumo alimentar devem ser gerados para possibilitar o refinamento do estudo.

Resíduos de praguicidas; Contaminação de alimentos; Análise de risco; Inseticidas organofosforados; Praguicidas; Zonas metropolitanas; Consumo de alimentos; Avaliação de risco crônico


OBJECTIVE: To conduct a chronic dietary risk assessment of the pesticides registered in Brazil up until 1999. METHODS: The Theoretical Maximum Daily Intake (TMDI) for each pesticide was calculated using the Brazilian maximum residue limits and food consumption data from IBGE, the Brazilian Statistical Institute. The risk characterization was done comparing the TMDI with the acceptable daily intakes (ADI) from other countries and from the Codex Alimentarius. RESULTS: The TMDI was higher than the ADI (%ADI>100) at least in one Brazilian metropolitan region for 23 pesticides. Sixteen compounds are organophosphate insecticides, with methyl parathion having the TMDI exceeding the most toxicological parameter (%ADI N=9,300). Rice, beans, citrus and tomato were the commodities which most contributed to the ingestion. From the compounds under higher risk, only 6 were registered according to the Law 98.816/90, which concerns the use of pesticides in the country. CONCLUSIONS: The compounds identified in the study as presenting a potential health concern to the Brazilian consumers, and the commodities which most contributed to the ingestion, should be prioritized by the government in pesticide residue monitoring programs and in the re-registration process. In addition, residue data in food as consumed, processing factors and appropriate consumption data should be generated to allow further studies.

Pesticide residues; Food contamination; Risk assessment; Insecticides, organophosphate; Pesticide; Metropolitan zones; Food consumption; Chronic dietary risk assessment


Avaliação de risco crônico da ingestão de resíduos de pesticidas na dieta brasileira

Chronic dietary risk assessment for pesticide residues in Brazilian food

Eloisa Dutra Caldasa e Luiz César Kenupp R de Souzab

aFaculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. Brasília, DF, Brasil. bInstituto de Saúde do Distrito Federal. Brasília, DF, Brasil

DESCRITORES
Resíduos de praguicidas, toxicidade#. Contaminação de alimentos#. Análise de risco, métodos#. Inseticidas organofosforados, toxicidade#. Praguicidas, envenenamento. Zonas metropolitanas. Consumo de alimentos. ¾ Avaliação de risco crônico. RESUMO

OBJETIVO:

Avaliar o risco crônico da ingestão de pesticidas pela dieta, em compostos registrados no Brasil para uso agrícola até 1999.

MÉTODOS:

Foi calculada a Ingestão Diária Máxima Teórica (IDMT) para cada pesticida, utilizando limites máximos de resíduos estabelecidos pela legislação brasileira e dados de consumo alimentar. A caracterização do risco foi feita comparando-se a IDMT com as doses diárias aceitáveis (IDA) de vários países e do Codex Alimentarius.

RESULTADOS:

A IDTM ultrapassou a IDA (%IDA>100) em pelo menos uma região metropolitana brasileira para 23 pesticidas. Dezesseis compostos com maior %IDA são inseticidas organofosforados, sendo o paration metílico o composto cuja ingestão mais excedeu o parâmetro toxicológico (%IDAN=9.300). O arroz, o feijão, as frutas cítricas e o tomate foram os alimentos que mais contribuíram para a ingestão. Dos compostos que apresentaram maior risco, apenas 6 foram registrados de acordo com o Decreto 98.816/90, que dispõe sobre o uso de pesticidas no País.

CONCLUSÕES:

Os compostos identificados como sendo de potencial risco de exposição crônica para a população brasileira, e os alimentos que mais contribuíram para a sua ingestão, devem ser priorizados pelos órgãos de saúde em programas de monitoramento de resíduos de pesticidas. Adicionalmente, dados sobre resíduos em alimentos prontos para o consumo, fatores de processamento e dados sobre consumo alimentar devem ser gerados para possibilitar o refinamento do estudo.

KEYWORDS
Pesticide residues, toxicity#. Food contamination#. Risk assessment, methods#. Insecticides, organophosphate, toxicity.# Pesticide, poisoning. Metropolitan zones. Food consumption. ¾ Chronic dietary risk assessment. ABSTRACT

OBJECTIVE:

To conduct a chronic dietary risk assessment of the pesticides registered in Brazil up until 1999.

METHODS:

The Theoretical Maximum Daily Intake (TMDI) for each pesticide was calculated using the Brazilian maximum residue limits and food consumption data from IBGE, the Brazilian Statistical Institute. The risk characterization was done comparing the TMDI with the acceptable daily intakes (ADI) from other countries and from the Codex Alimentarius.

RESULTS:

The TMDI was higher than the ADI (%ADI>100) at least in one Brazilian metropolitan region for 23 pesticides. Sixteen compounds are organophosphate insecticides, with methyl parathion having the TMDI exceeding the most toxicological parameter (%ADIN=9,300). Rice, beans, citrus and tomato were the commodities which most contributed to the ingestion. From the compounds under higher risk, only 6 were registered according to the Law 98.816/90, which concerns the use of pesticides in the country.

CONCLUSIONS:

The compounds identified in the study as presenting a potential health concern to the Brazilian consumers, and the commodities which most contributed to the ingestion, should be prioritized by the government in pesticide residue monitoring programs and in the re-registration process. In addition, residue data in food as consumed, processing factors and appropriate consumption data should be generated to allow further studies.

INTRODUÇÃO

O uso de pesticidas é ainda atualmente a principal estratégia no campo para o combate e a prevenção de pragas agrícolas, garantindo alimento suficiente e de qualidade para a população. Esses compostos, porém, são potencialmente tóxicos ao homem, podendo causar efeitos adversos ao sistema nervoso central e periférico, ter ação imunodepressora ou ser cancerígeno,6 entre outros.

O Brasil é o quarto maior mercado de pesticidas no mundo e o oitavo em uso por área cultivada.* * Associação Nacional de Defesa Vegetal ( Andef). Comunicação por Fax; 1999. Até dezembro de 1999, 322 ingredientes ativos tiveram seu uso agrícola aprovado no País, com quase 2.000 produtos registrados, os quais incluem inseticidas, fungicidas, herbicidas, acaricidas, reguladores de crescimento, feromônios, moluscicidas e protetores de sementes. Cerca de 2.300 limites máximos de resíduos foram estabelecidas em 265 culturas.1

O estudo de avaliação de risco crônico da ingestão de pesticidas é o processo no qual a exposição humana a um dado composto por meio de dieta é comparada a um parâmetro toxicologicamente seguro. Risco pode existir quando a exposição ultrapassa o parâmetro toxicológico.20 Em geral, os governos conduzem estudos de avaliação de risco durante o processo de registro do pesticida, e seus resultados podem influir no estabelecimento de limites máximos de resíduos permitidos ou restringir o uso em algumas culturas.7-10 No âmbito internacional, os estudos são conduzidos pela Reunião Conjunta de Peritos em Resíduos de Pesticidas da Organização para Alimentação e Agricultura (FAO) e Organização Mundial de Saúde (OMS), e os resultados são posteriormente encaminhados ao Comitê do Codex Alimentarius para avaliação pelos Governos-membros.2 A legislação brasileira não prevê estudos de avaliação de risco no processo de registro.1 Também é desconhecido no Brasil o risco para a saúde com a ingestão de pesticidas por meio de dieta.

O presente trabalho tem como objetivo avaliar o risco crônico dos pesticidas aprovados no Brasil para uso em culturas de consumo humano, utilizando limites máximos de resíduos estabelecidos pela legislação brasileira, dados de consumo alimentar fornecido pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),15 doses diárias aceitáveis de vários países e do Codex Alimentarius.3 O estudo procura identificar compostos com potencial problema de exposição, e as conclusões poderão orientar as autoridades governamentais no processo de reavaliação dos pesticidas e estabelecimento de limites máximos de resíduos, além de definir prioridades em programas futuros de monitoramento de resíduos em alimentos.

MÉTODOS

O cálculo da exposição crônica foi conduzido de acordo com o procedimento descrito pela Organização Mundial de Saúde.20 Nessa metodologia, a Ingestão Diária Teórica Máxima (IDTM) é definida como o somatório do limite máximo de resíduos (LMR), em mg/kg, multiplicado pelo consumo do alimento (C), em kg/dia. A caracterização do risco (%IDA) é feita comparando-se a IDTM com a dose diária aceitável (IDA), em mg/kg peso corpóreo/dia, do pesticida, assumindo um peso corporal de 60 kg.

IDTM = S(LMRi x Ci)

Os LMR foram obtidos da legislação brasileira, publicados no Diário Oficial da União até dezembro de 1999.1

Dados de consumo de alimentos foram obtidos da Pesquisa de Orçamento Familiar realizada pelo IBGE,15 em 1995-96. A pesquisa foi conduzida em onze regiões metropolitanas do País (Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia e Distrito Federal). O consumo per capita foi obtido baseado na informação de 10 famílias de status econômicos diferentes sobre a quantidade de alimento adquirido em 7 dias consecutivos. O consumo, em kg/ano, foi obtido distribuindo o total de alimento consumido em cada área por sua população. Os dados de consumo obtidos do IBGE foram divididos por 365 e expressos em kg/dia para o cálculo da IDTM. Fatores de correção de 0,65, 0,63, 0,87 e 0,0317 foram aplicados a dados de consumo de laranja, banana, ovo e leite, respectivamente, para obter consumo de polpa de laranja, polpa de banana, ovo sem casca e gordura de leite.

As fontes de IDA utilizadas foram o Codex Alimentarius,3 a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA),7-10 o governo australiano18 e o governo alemão.13 Quando disponíveis, as IDA do governo brasileiro foram utilizadas.** ** Comunicação pessoal de Lídia Nunes Gonçalves. Diretoria de Toxicologia e Alimentos. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Ministério da Saúde, 1999. Para cada composto, a menor IDA obtida entre as fontes foi utilizada para comparação com a IDTM.

RESULTADOS

Dos 320 compostos registrados para uso agrícola no Brasil até dezembro de 1999, 39 não foram utilizados no estudo, incluindo: (a) pesticidas com registro somente para cana de açúcar, para a qual inexiste dado de consumo humano; (b) pesticidas com registro somente para algodão, fumo, ração ou plantas ornamentais; (c) antibióticos; (d) compostos sem dose diária aceitável ou limite máximo de resíduos estabelecido; e (e) izasofós, composto não mais comercializado no País.*** *** Comunicação da Associação Nacional de Defesa Vegetal ( Andef). Comunicação por Fax; 1999.

O estudo de avaliação de risco foi conduzido para 281 compostos.1 A Figura mostra a distribuição dos LMR atualmente vigentes no País para esses compostos. Limites acima de 25 mg/kg foram estabelecidos apenas para brometo de metila (15 culturas) e hidrazida maleica (1 cultura). Limites menores ou iguais a 0,05 mg/kg normalmente representam o limite de quantificação do método de análise.


A IDTM e a %IDA foram calculadas para os compostos em cada uma das 11 regiões metropolitanas definidas pelo IBGE, conforme descrito na metodologia. A %IDA nacional (%IDAN) foi calculada utilizando a média do consumo nas regiões metropolitanas. Dos compostos avaliados, 263 (93,6%) apresentaram %IDAN£100 (Tabelas 1 e 2). Cento e vinte seis compostos (44,8%) apresentaram %IDAN<1, ou seja, a ingestão desses pesticidas pelo consumo de alimentos tratados representou menos que 1% do valor toxicologicamente seguro (Tabela 1).

Segundo a Organização Mundial de Saúde,20 risco à saúde humana pode existir quando a IDTM de um composto excede o parâmetro toxicológico de segurança (%IDA>100). No presente estudo, 18 compostos enquadraram-se nessa situação quando o consumo médio nacional foi utilizado no cálculo da ingestão (%IDAN>100); para os pesticidas azinfos etílico, malation, mevinfos, dicrotofos e carbofention, a ingestão ultrapassou o parâmetro toxicológico em pelo menos uma região metropolitana, apesar da %IDAN£100 (Tabela 2). Dos 23 compostos identificados como apresentando potencial risco à saúde do consumidor brasileiro, 18 são inseticidas, sendo 16 organofosforados e 5 fungicidas (benomil, dicloran, mancozeb, maneb e ziran).

Em geral, a %IDA nas regiões metropolitanas do Norte e Nordeste do Brasil foram menores que a da região Sul, Centro-Oeste e Sudeste. A média das %IDA para os compostos da Tabela 2 foi de 780% em Belém, 810% em Recife, 870% em Fortaleza, 890% em Salvador e São Paulo, 950% em Porto Alegre, 1.100% no Rio de Janeiro, Curitiba e Goiânia, 1.200% em Belo Horizonte e 1.300% no Distrito Federal. Para os compostos da Tabela 2, que apresentaram %IDAN£100, a ingestão ultrapassou a IDA em Belo Horizonte (5 compostos), Rio de Janeiro (1 composto), Curitiba (2 compostos), Distrito Federal (4 compostos) e Goiânia (1 composto).

Para a maioria dos compostos da Tabela 2, um ou dois alimentos foram identificados como os que mais contribuíram para a IDTM (>50% da ingestão total). Os cereais de alto consumo pela população brasileira (arroz e feijão), as frutas, principalmente as cítricas, e o tomate foram os principais alimentos responsáveis pela ingestão. Em alguns casos observa-se que uma só cultura é responsável por quase toda a ingestão, como as frutas cítricas nos pesticidas metidation e carbofenotion e o tomate em prothiofos.

Para 11 compostos que apresentaram risco de ingestão (Tabela 2), o parâmetro toxicológico utilizado para a caracterização do risco (%IDA), isso é, a menor IDA entre as fontes pesquisadas, foi obtido da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA). Para alguns compostos, as IDA obtidas das fontes pesquisadas variaram em fatores de até 1.000 vezes.3,7-10,13,18

DISCUSSÃO

A caracterização do risco crônico da ingestão de pesticidas pela dieta será tão melhor quanto melhor forem os dados utilizados no estudo, ou seja, quanto mais próximos os dados estiverem de uma situação real de exposição. Muitas vezes, porém, a situação real é difícil de ser obtida devido à ausência ou à deficiência de dados, principalmente quanto à concentração do pesticida e ao padrão do consumo alimentar. Nesse sentido, é essencial avaliar os resultados obtidos, levando-se em conta a limitação dos dados utilizados.

Idealmente, a concentração do pesticida no alimento deve refletir o nível de resíduos presente no momento do consumo. O Brasil não possui atualmente um programa nacional de monitoramento de resíduos de pesticidas em alimentos, e são escassos os dados de resíduos em alimentos prontos para serem consumidos. Dessa maneira, os LMR estabelecidos pela legislação brasileira são os únicos parâmetros disponíveis para todos os pesticidas em todas culturas. O uso de LMR, porém, é altamente conservador e prevê uma situação de exposição máxima, pois assume: (a) o consumo diário de todos os alimentos para os quais existe LMR estabelecido, (b) que 100% da dieta será de alimentos que foram tratados com pesticidas, (c) que 100% da cultura tratada conterá o pesticida em nível máximo de resíduo, e (d) que nenhuma dissipação ou degradação do pesticida ocorrerá durante a estocagem, transporte e preparação do alimento, isso é, o nível de pesticida no momento do consumo será igual ao nível encontrado no momento da colheita no campo.

Os LMR dos pesticidas em alimentos devem refletir o nível de resíduos encontrados no produto na época da colheita, após a cultura ter sido tratada de acordo com as boas práticas agrícolas: de acordo com as instruções contidas no rótulo do produto.1,2 Em 1985, a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde publicou as monografias dos pesticidas registrados no País e seus limites máximos de resíduos em alimentos.1 Os dados técnicos exigidos para o registro do produto eram limitados, e os LMR eram fornecidos pela indústrias. Para vários compostos, esses valores foram ratificados posteriormente, sem que novos dados fossem submetidos à avaliação.1

A partir de 1992, os LMR passaram a ser estabelecidos baseados em estudos supervisionados de campo, conduzidos no País de acordo com as boas práticas agrícolas aprovadas, dentro do programa de registro de pesticidas previsto pela Lei Federal de Agrotóxicos e seus decretos regulamentadores.1 Dos compostos mostrados na Tabela 2, somente 6 foram registrados dentro dos novos parâmetros (dicofol, dimetoate, dissulfoton, mancozeb, metidation e prothiofos). Recentemente, a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária proibiu o registro de novos produtos à base de paration metílico e metamidofos e determinou prazo para a reavaliação desses compostos.1

Sabendo-se que os resíduos remanescentes no alimento após o uso do pesticida dependem, entre outros, de fatores regionais, como clima e solo,2 é provável que os LMR estabelecidos em 1985, que não foram necessariamente baseados em estudos conduzidos no País, não reflitam as práticas atuais de uso do pesticida. Quando nenhum resíduo é encontrado no alimento, após o uso do pesticida de acordo com as boas práticas agrícolas, o LMR é estabelecido no limite de quantificação do método analítico. Com o avanço da instrumentação analítica, o limite de quantificação para vários compostos decresceu significativamente nos últimos 15 anos. O uso de LMR estabelecido em 1985 no limite de quantificação pode significar uma superestimativa adicional no cálculo da exposição.

Nos Estados Unidos, a EPA inicia o estudo de avaliação com a metodologia mais conservadora, utilizando limites máximos, incorporando posteriormente dados disponíveis de percentagem da cultura tratada, de monitoramento, de resíduos baseados em estudos de campo e de resíduos em alimentos prontos para o consumo.8,9 Para o paration metílico, por exemplo, a %IDA inicialmente calculada foi >2.000%, mas foi reduzida para <50% quando dados mais realistas de concentração do pesticida foram considerados.9 No caso do pirimifos metílico, porém, a ingestão ultrapassou o parâmetro toxicológico mesmo depois que o refinamento do estudo foi conduzido.8

No âmbito internacional, o Grupo de Peritos em Resíduos de Pesticidas da FAO/OMS conduz estudo de avaliação utilizando LMR e, quando disponível, valores medianos dos estudos supervisionados. Esse último conceito foi introduzido em 1996 de maneira a se ter um valor mais realista da concentração do pesticida em alimentos e representa, em média, de 10% a 50% do limite máximo.2 Em 1998, o estudo foi conduzido em 30 compostos, e a maior %IDA foi encontrada para dissulfoton (160% a 920%). Benomil, dimetoato e dicloran tiveram %IDA<100 para todas as dietas.11

A preparação caseira ou comercial dos alimentos pode levar a uma redução significativa nos níveis de resíduos de pesticidas nos alimentos. Num estudo conduzido em 17 culturas de frutas e vegetais, 243 amostras foram analisadas para 22 compostos, incluindo dissulfoton, dimetoato, diazinon, carbaril, mevinfos, benomil e dicofol.16 O número de amostras contendo resíduos detectáveis caiu de 97 (40%) para 19 (19%) depois que pelo menos um procedimento de preparo, como lavar, descascar ou cozinhar, foi realizado.

Procedimentos comerciais de beneficiamento de grãos, como arroz, café e trigo, podem levar a uma redução de até 95% no nível de resíduos de carbaril, pirimifos metílico e outros pesticidas.11,12,14 Para o arroz e o café, por exemplo, os LMR, na maioria das vezes, são estabelecidas no arroz não beneficiado e no café verde. Como dados de consumo utilizados para o arroz representaram a soma do consumo de arroz polido e integral e, para o café, o consumo do torrado e do moído, é possível que a ingestão de pesticidas pelo consumo desses alimentos tenha sido superestimada no presente estudo.

O segundo aspecto a ser considerado na avaliação de risco é o parâmetro toxicológico de segurança, a IDA, também referida nos Estados Unidos como RfD (reference dose) ou cPAD (chronic population adjusted dose). Esse valor representa a quantidade de uma substância que pode ser ingerida diariamente, por toda a vida, sem que ocorra risco apreciável ao consumidor com base nos fatos conhecidos quando da avaliação.20 A preocupação com o efeito da exposição crônica de crianças a inseticidas organofosforados levou recentemente o EPA a diminuir as RfDs vigentes em até 10 vezes, dentro do Programa de Proteção à Qualidade dos Alimentos dos Estados Unidos (Food Quality Protection Act).7 Para a maioria dos organofosforados da Tabela 2, o parâmetro toxicológico do EPA foi o menor entre as fontes pesquisadas.3,7-10,13,18

As IDA são estabelecidas após a avaliação de estudos toxicológicos do pesticida, realizados em animais de laboratório e/ou de casos de exposição humana.2,5 Os estudos são conduzidos principalmente pelas indústrias de pesticidas e submetidos aos Governos no processo de registro, ou ao Grupo de Peritos em Resíduos de Pesticidas da FAO/OMS, para avaliação e recomendação ao Codex Alimentarius.2,3

Dentre os vários aspectos que influenciam o valor da IDA, um dos mais importantes é o fator de segurança. Esse fator, que normalmente varia entre 10 e 10.000, é aplicado ao valor da dose do pesticida que não causou nenhum efeito adverso numa população exposta (no-observed-adverse-effect-level, NOAEL), de maneira a estabelecer a dose segura no homem.2,5 Na maioria das vezes, o NOAEL é dividido pelo fator de segurança 100, o qual se refere à extrapolação para a espécie humana (10x) e à variação de susceptibilidade encontrada no homem (10x).5,20 Porém, fatores adicionais podem ser aplicados quando o governo avalia que os estudos são incompletos, de baixa qualidade, ou que há a necessidade de se proteger um grupo especial da população humana.7 Dessa maneira, para um mesmo estudo, diferentes fatores de segurança podem ser aplicados ao NOAEL, levando ao estabelecimento de diferentes IDA. Além disso, para um mesmo pesticida, diferentes estudos podem ser submetidos a diferentes governos ou agências, levando também ao estabelecimento de valores distintos.

O terceiro parâmetro utilizado no estudo de avaliação de risco é o consumo alimentar. Idealmente, dados de consumo devem refletir o hábito alimentar dos vários grupos dentro de uma população, de acordo com a região, idade, status nutricional, status econômico e sexo.19,20 Os dados de consumo alimentar do IBGE,15 utilizados no presente estudo, foram gerados principalmente para refletir a despesa diária com alimentação da família brasileira, de diferentes classes socioeconômicas, nas várias regiões metropolitanas do Brasil.15 Apesar de serem os mais recentes e os únicos dados de consumo disponíveis no País, os mesmos podem não ser os mais apropriados para estimar a exposição de pesticidas por meio de dieta.

Os dados de consumo utilizados pelo Grupo de Peritos em Resíduos de Pesticidas da FAO/OMS, para conduzir o estudo no âmbito internacional, pretendem refletir a dieta de cinco regiões do planeta: Oriente Médio, Ásia, África, América Latina e Europa. Esses dados geralmente são baseados na produção, importação e exportação de alimentos dos países e são provavelmente 15% maiores que o consumo médio real.19 Dados de consumo utilizados pela EPA são originados de dois programas de pesquisa de consumo alimentar e provêm de uma figura representativa dos hábitos alimentares dos vários segmentos da população americana.8,9,21

Como os limites máximos de resíduos são nacionais, as %IDA nas regiões metropolitanas vão depender do perfil de consumo alimentar em cada região. O consumo médio nacional de frutas cítricas, por exemplo, é de 15,3 kg/ano, com o menor consumo em Fortaleza (11,5 kg/ano) e o maior em Belo Horizonte (23,4 kg/ano). Esse alto consumo é responsável pela maior %IDA encontrada em Belo Horizonte no caso de compostos para os quais a ingestão de frutas cítricas é a principal responsável pela ingestão (Tabela 2). Com exceção do dicloran, todos os compostos da Tabela 2 apresentam maior %IDA nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. A maior %IDA para o dicoloran foi encontrada em Fortaleza, Salvador e Rio de Janeiro, devido principalmente ao alto consumo de feijão nessas regiões.16

Dos 23 compostos que apresentaram potencial de risco, 16 são inseticidas organofosforados (Tabela 2). Os organofosforados inibem a ação da acetilcolinesterase, enzima responsável pela inativação do neurotransmissor acetilcolina, e a exposição crônica a esses compostos tem sido relacionada com câncer, efeitos teratogênicos, toxicidade reprodutiva, deficiência cognitiva e alterações comportamentais e funcionais.6

Crianças apresentam o sistema de defesa a vários xenobióticos, não completamente desenvolvido, e possuem a taxa de ingestão de alimentos por peso corpóreo maior que os adultos, o que pode submeter essa faixa da população a um risco maior.6,7 Um estudo recente conduzido nos Estados Unidos,21 utilizando os dados mais recentes dos órgãos oficiais americanos de consumo alimentar, concentração de pesticidas em alimentos e parâmetros toxicológicos, concluiu que mais de um milhão de crianças abaixo de 5 anos, naquele país, estão expostas diariamente a doses não seguras de inseticidas organofosforados. O estudo americano assumiu uma exposição cumulativa dos inseticidas, como recomendado pelo Food Quality Protection Act.7 Nessa metodologia, a ingestão de todos os organofosforados é combinada e comparada com o menor parâmetro toxicológico do grupo. Se a exposição cumulativa fosse aplicada no presente estudo, o valor da %IDA para o grupo dos inseticidas organofosforados seria muito superior aos mostrados na Tabela 2.

Doll & Peto4 estimaram que 35% de todo o câncer na população americana tem origem na dieta, sendo os pesticidas presentes nos alimentos um dos responsáveis. Não há estudos similares no Brasil, porém é essencial que os órgãos de saúde competentes implementem ações para diminuir ao máximo o nível de exposição da população aos pesticidas e eliminar o potencial risco crônico que possa existir devido ao consumo de alimentos tratados. Algumas dessas ações seriam:

• implementar um programa nacional de monitoramento de resíduos de pesticidas que priorize os compostos com maior problema de exposição identificados no presente estudo, e as principais culturas responsáveis pela ingestão;

• priorizar a reavaliação dos compostos identificados nesses estudos dentro dos parâmetros de registro definidos pelo Decreto Lei 98.816;

• gerar dados de consumo alimentar relacionados a estudos de avaliação de risco de pesticidas e contaminantes, de maneira a melhor refletir o hábito alimentar das várias faixas etárias da população brasileira;

• apoiar projetos institucionais que possam gerar dados que possibilitem o refinamento do estudo de avaliação de risco, incluindo níveis de resíduos em alimentos prontos para consumo e fatores de redução de resíduos após o processamento, entre outros;

• implementar o estudo de avaliação de risco, no processo de registro de pesticidas, e disponibilizar para a população geral os seus resultados, bem como o parâmetro toxicológico utilizado no estudo.

Além da avaliação da exposição crônica a resíduos de pesticidas, a exposição aguda já faz parte do processo de registro de vários governos8,9 e, no âmbito internacional, foi iniciada em 1999 pela FAO/OMS.12 O estudo de avaliação do risco agudo avalia os riscos da ingestão de pesticida pelo consumo de uma única porção do alimento. Recentemente, a EPA restringiu o uso de paration metílico baseado no estudo de avaliação de risco agudo, apesar de o estudo de risco crônico não identificar problemas de exposição.9

Alimento seguro significa saúde e qualidade de vida. A garantia de alimento livre de contaminantes é essencial para a prevenção de doenças, principalmente num país como o Brasil, onde uma parte considerável de sua população enfrenta sérios problemas de carência nutricional e de acesso ao sistema público de saúde.

Correspondência para/Correspondence to:

Eloisa Dutra Caldas

Curso de Ciências Farmacêuticas

Campus Darci Ribeiro

70910-900 Brasília, DF, Brasil

E-mail: eloisa@unb.br

Recebido em 18/2/2000. Reapresentado em 19/6/2000. Aprovado em 10/7/2000.

  • 1. Agęncia Nacional de Vigilância Sanitária. Toxicologia [citado 1999] Disponível em URL: http://www.anvisa.saude.gov.br
  • 2. Caldas ED. Resíduos de pesticidas em alimentos e o Codex Alimentarius. Bol SBCTA 1999;33:50-6.
  • 3. Codex Alimentarius. Pesticide residues in food: maximum residue limits. Roma: Food and Agriculture Organization of the United Nations/ World Health Organization; 2000. v. 2B. In press.
  • 4. Doll R, Peto R. The causes of cancer: quantitative estimates of avoidable risks of cancer in the United States today. J Natl Cancer Inst 1981;66:1191-308.
  • 5. Dourson ML, Teuschler LK, Durkin PR, Stiteler WM. Categorical regresion of toxicity data: a case study using aldicarb. Regul Toxicol Pharmacol 1997;25:121-9.
  • 6. Ecobichon DJ. Toxic effects of pesticides. In: Amdur MO, Doull J, Klaassen CD, editors. Casarett and Doll's toxicology: the basic science of poisons 4th ed. New York: Mc Graw Hill; 1993. p. 565-622.
  • 7. [EPA] United States Environmental Protection Agency. FQPA safety factor recommendations for the organophosphates. Disponível em URL: http://www.epa.gov [1998 August 6].
  • 8. [EPA] United States Environmental Protection Agency. Pirimiphos methyl. Acute and Chronic Dietary Risk Analysis. Disponível em URL: http://www.epa.gov [1998 July 21].
  • 9. [EPA] United States Environmental Protection Agency. Overview of methyl parathion refined risk assessment. Disponível em URL: http://www.epa.gov [1999 August 2].
  • 10. [EPA] United States Environmental Protection Agency. IRIS - Integrated Risk Information System [cited 2000] Available from:URL: http://www.epa.gov
  • 11
    [FAO] Food and Agriculture Organization. Joint Meeting of the FAO Panel of Experts on Pesticide Residues in Food and the Environment and the WHO Expert Group on Pesticide Residues. Pesticide residues in food: 1998 Report Roma; 1999. (FAO Plant Production and Protection Paper).
  • 12
    [FAO] Food and Agriculture Organization. Joint Meeting of the FAO Panel of Experts on Pesticide Residues in Food and the Environment and the WHO Expert Group on Pesticide Residues. Pesticide residues in food: 1999 Report Roma: Food and Agriculture Organization;1999. (FAO Plant Production and Protection Paper).
  • 13. Federal Institute for Health Protection of Consumers and Veterinary Medicine. ADI-Werte und DTA-Werte für Pflanzenschutzmittel-Wirkstoffe Ausgabe. Berlin; 1997.
  • 14. Holland PT, Hamilton D, Ohlin B, Skidmore MW. Effects of storage and processing on pesticide residues in plant products. Pure Appl Chem 1994; 66:335-56.
  • 15
    [IBGE]. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares 1995-1996. Consumo alimentar domiciliar "per capita" anual. Rio de Janeiro; 1999.
  • 16. Schattenberg HJ 3rd, Geno PW, Hsu JP, Fry WE, Parker RP. Effect of household preparation on levels of pesticide residues in produce. J AOAC Int 1996;79:1447-53.
  • 17. Teixeira AB, Luna NMM. Técnica dietética: fator de correçăo de alimentos de origem animal e vegetal. Cuiabá: Studio Press; 1996. p.21-30.
  • 18. Therapeutic Goods Administration. Commonwealth Department of Health and Family Services. ADI List: acceptable daily intakes for agricultural and veterinary chemicals Canberra, Australian Government Publishing Service. 1997.
  • 19. [WHO] World Health Organization. Global Environmental Monitoring System. Food regional diets: regional per capita consumption of raw and semi-processes agricultural commodities. Geneva; 1998. (Food Safety Issues).
  • 20. [WHO] World Health Organization. Global Environment Monitoring System/Codex Alimentarius Commission. Guidelines for predicting dietary intake of pesticides residues. Geneva; 1997.
  • 21. Wiles R, Davies K, Campbell C. Overexposed organophosphate insecticides in children's food Washington (DC): Environmental Working Group; 1998. p. 1-48.
  • *
    Associação Nacional de Defesa Vegetal ( Andef). Comunicação por Fax; 1999.
  • **
    Comunicação pessoal de Lídia Nunes Gonçalves. Diretoria de Toxicologia e Alimentos. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Ministério da Saúde, 1999.
  • ***
    Comunicação da Associação Nacional de Defesa Vegetal ( Andef). Comunicação por Fax; 1999.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Out 2000

    Histórico

    • Recebido
      18 Fev 2000
    • Revisado
      19 Jun 2000
    • Aceito
      10 Jul 2000
    Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revsp@usp.br