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Atenção primária em diabetes no Sul do Brasil: estrutura, processo e resultado

Diabetes mellitus at the primary health care level in Southern Brazil: structure, course of action and outcome

Resumos

OBJETIVO: Descrever e avaliar a estrutura, o processo e o resultado do cuidado do paciente diabético atendido em nível primário de atenção à saúde em Pelotas, RS. MÉTODOS: O delineamento foi transversal. Foram estudados todos os 32 postos de saúde e 61 médicos que atendem pacientes diabéticos nesses locais. Foi identificada uma amostra de 378 pacientes que tiveram consulta médica nos postos. Os pacientes foram entrevistados em casa, e sua glicemia capilar, pressão arterial e índice de massa corporal foram avaliados e comparados a padrões. Componentes da estrutura e do processo de atendimento foram comparados a padrões recomendados ao manejo de pacientes diabéticos. RESULTADOS: A maioria dos serviços carece de aproximadamente todos os requerimentos mínimos. A aferição da pressão arterial foi o item do exame físico mais relatado na visita inicial. Como plano de tratamento na consulta inicial, cerca de 85% dos médicos relataram prescrever dieta, e 72% exercício físico. Todos os médicos relataram solicitar glicemia de jejum, e 60% hemoglobina glicosilada na monitorização laboratorial dos pacientes. O controle da doença variou de 6% a 11%, conforme os diferentes parâmetros utilizados. CONCLUSÕES: A rede pública de saúde está deficiente, mas existe potencial de melhoria dos três aspectos (estrutura, processo e resultado) através de treinamento em serviço e seguimento de normas-padrão.

Diabetes mellitus; Cuidados primários de saúde; Avaliação de processos e resultados (cuidados de saúde); Pesquisa sobre serviços de saúde; Qualidade dos cuidados de saúde; Administração de serviços de saúde; Cuidados médicos; Diabetes mellitus; Avaliação de serviços de saúde


OBJECTIVE: To describe and evaluate the structure, course of action, and the outcome of diabetic patient care delivered at primary health care level in Pelotas, Southern Brazil. METHODS: Through a cross-sectional study all of 32 health centers in the region were assessed, along with the 61 doctors who were managing diabetic patients. A sample of 378 diabetic patients who attended these health centers was also included. Patients were interviewed at home and their glucose capillary blood level, blood pressure and body mass index were assessed and compared with standard parameters. Course of action and structure components were compared against the basic recommendations for the care of diabetic patients. RESULTS: Most centers didn't meet the basic recommendations. Blood pressure measurement was the most reported action in the physical examination in the first visit. As part of the management plan set in the first visit, almost 85% of the doctors reported to prescribe a special diet and 72% referred recommending physical exercise. For laboratory monitoring, all doctors reported asking for fasting blood glucose and 60% of them reported checking their patients' glycated hemoglobin. The rate of disease control ranged from 6 to 11%, according to the Latin American Diabetes Association and the Ministry of Health parameters, respectively. CONCLUSIONS: Although currently undersupplied, the primary health sector is potentially able to improve in its three components (structure, course of actions and outcome) by training medical doctors and their compliance with established guidelines.

Diabetes mellitus; Primary health care; Outcome and process assessment (health care); Health services research; Quality of health care; Health services administration; Medical care; Diabetes mellitus; Evaluation, health services


Atenção primária em diabetes no Sul do Brasil: estrutura, processo e resultado* * Baseado na dissertação de mestrado apresentada no Curso de Mestrado em Epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas em 1999.

Diabetes mellitus at the primary health care level in Southern Brazil: structure, course of action and outcome

Maria Cecília F Assunçãoa, Iná da Silva dos Santosb e Denise P Gigantea

aDepartamento de Nutrição da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, RS, Brasil. bDepartamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, RS, Brasil

DESCRITORES
Diabetes mellitus, prevenção e controle.# Cuidados primários de saúde.# Avaliação de processos e resultados (cuidados de saúde).# Pesquisa sobre serviços de saúde.# Qualidade dos cuidados de saúde. Administração de serviços de saúde. Cuidados médicos. Diabetes mellitus, terapêutica. ¾ Avaliação de serviços de saúde. RESUMO

OBJETIVO:

Descrever e avaliar a estrutura, o processo e o resultado do cuidado do paciente diabético atendido em nível primário de atenção à saúde em Pelotas, RS.

MÉTODOS:

O delineamento foi transversal. Foram estudados todos os 32 postos de saúde e 61 médicos que atendem pacientes diabéticos nesses locais. Foi identificada uma amostra de 378 pacientes que tiveram consulta médica nos postos. Os pacientes foram entrevistados em casa, e sua glicemia capilar, pressão arterial e índice de massa corporal foram avaliados e comparados a padrões. Componentes da estrutura e do processo de atendimento foram comparados a padrões recomendados ao manejo de pacientes diabéticos.

RESULTADOS:

A maioria dos serviços carece de aproximadamente todos os requerimentos mínimos. A aferição da pressão arterial foi o item do exame físico mais relatado na visita inicial. Como plano de tratamento na consulta inicial, cerca de 85% dos médicos relataram prescrever dieta, e 72% exercício físico. Todos os médicos relataram solicitar glicemia de jejum, e 60% hemoglobina glicosilada na monitorização laboratorial dos pacientes. O controle da doença variou de 6% a 11%, conforme os diferentes parâmetros utilizados.

CONCLUSÕES:

A rede pública de saúde está deficiente, mas existe potencial de melhoria dos três aspectos (estrutura, processo e resultado) através de treinamento em serviço e seguimento de normas-padrão.

KEYWORDS
Diabetes mellitus, prevention and control.# Primary health care.# Outcome and process assessment (health care).# Health services research.# Quality of health care. Health services administration. Medical care. Diabetes mellitus, therapy. ¾ Evaluation, health services. ABSTRACT

OBJECTIVE:

To describe and evaluate the structure, course of action, and the outcome of diabetic patient care delivered at primary health care level in Pelotas, Southern Brazil.

METHODS:

Through a cross-sectional study all of 32 health centers in the region were assessed, along with the 61 doctors who were managing diabetic patients. A sample of 378 diabetic patients who attended these health centers was also included. Patients were interviewed at home and their glucose capillary blood level, blood pressure and body mass index were assessed and compared with standard parameters. Course of action and structure components were compared against the basic recommendations for the care of diabetic patients.

RESULTS:

Most centers didn't meet the basic recommendations. Blood pressure measurement was the most reported action in the physical examination in the first visit. As part of the management plan set in the first visit, almost 85% of the doctors reported to prescribe a special diet and 72% referred recommending physical exercise. For laboratory monitoring, all doctors reported asking for fasting blood glucose and 60% of them reported checking their patients' glycated hemoglobin. The rate of disease control ranged from 6 to 11%, according to the Latin American Diabetes Association and the Ministry of Health parameters, respectively.

CONCLUSIONS:

Although currently undersupplied, the primary health sector is potentially able to improve in its three components (structure, course of actions and outcome) by training medical doctors and their compliance with established guidelines.

INTRODUÇÃO

O diabetes mellitus atinge em todo o mundo grande número de pessoas de qualquer condição social. Essa enfermidade representa um problema pessoal e de saúde pública com grandes proporções quanto à magnitude e à transcendência, apesar dos progressos no campo da investigação e da atenção aos pacientes.16

O diabetes está associado ao aumento da mortalidade e ao alto risco de desenvolvimento de complicações micro e macrovasculares, bem como de neuropatias. É causa de cegueira, insuficiência renal e amputações de membros, sendo responsável por gastos expressivos em saúde, além de substancial redução da capacidade de trabalho e da expectativa de vida.15

Ensaios clínicos randomizados, no entanto, têm demonstrado que pacientes diabéticos mantidos em condições de controle clínico e metabólico apresentam retardo no aparecimento e/ou na progressão de complicações crônicas.12,13

No Brasil, o estudo Multicêntrico sobre Prevalência de Diabetes Mellitus8 encontrou uma prevalência geral da doença de 7,6% em pessoas de 30 a 69 anos. Destas, metade não tinha conhecimento de ser portadora da doença e, das previamente diagnosticadas, 22% não faziam nenhum tratamento.

O manejo do diabetes deve ser feito dentro de um sistema hierarquizado de saúde, sendo sua base o nível primário. Na prestação de serviços apropriados para os diabéticos, é preciso levar em consideração os principais componentes do sistema de saúde, especialmente a determinação das necessidades e dos recursos locais; o consenso sobre as normas de atenção; os mecanismos para aplicar os últimos avanços das investigações; a educação e a utilização de todos os profissionais de saúde; e a contínua avaliação da efetividade e da qualidade do tratamento dos pacientes.16

As informações a partir das quais pode-se tecer inferências sobre a qualidade do cuidado podem ser classificadas como provenientes de três categorias: estrutura, processo e resultado. A estrutura compreende os recursos materiais e humanos disponíveis no serviço, assim como sua própria estrutura organizacional. O processo engloba o que de fato está sendo feito em termos de manejo dos problemas apresentados pelos pacientes. O resultado significa o efeito dos cuidados no estado de saúde dos pacientes, resultante da interação desses com o serviço.6

Um trabalho de avaliação qualitativa dos cuidados dispensados aos diabéticos na rede de atenção primária à saúde, que permita a identificação das necessidades locais, é um importante subsídio para futuras propostas de intervenções. Este trabalho, portanto, tem como objetivo descrever e avaliar as condições da estrutura, do processo e do resultado do cuidado pelo qual os pacientes diabéticos são atendidos na rede de postos de saúde da cidade de Pelotas, RS.

MÉTODOS

Realizou-se um estudo transversal, de maio de 1998 a janeiro de 1999, sendo coletadas informações relativas ao atendimento dos pacientes diabéticos em todos os 32 postos da rede de atenção primária à saúde, da zona urbana de Pelotas, RS, gerenciados pela Secretaria Municipal de Saúde e Bem Estar (SMSBE). Essas informações referiram-se à estrutura dos serviços de saúde, ao processo e ao resultado do atendimento aos pacientes diabéticos.

Para a caracterização de aspectos da estrutura dos serviços, foi aplicado um questionário aos administradores de cada unidade. O objetivo era identificar os recursos disponíveis nesses locais, em relação ao atendimento dos pacientes diabéticos. A especificação dos recursos mínimos necessários nas unidades de saúde foi baseada em recomendação da Organização Mundial da Saúde.16

Para a caracterização dos recursos humanos existentes e do processo de atendimento, foram entrevistados todos os médicos que poderiam atender pacientes diabéticos nesses serviços (clínicos, pediatras e ginecologistas-obstetras). Foram coletadas, além de características demográficas desses profissionais, informações quanto à formação, à atividade e às características do manejo de pacientes portadores de diabetes mellitus (componentes da consulta médica: exame físico, avaliação laboratorial e plano de tratamento por ocasião da primeira consulta do paciente diabético). Os itens referentes a manejo dos pacientes, nas consultas iniciais, e de acompanhamento foram selecionados com base nas recomendações da Associação Americana de Diabetes (American Diabetes Association ¾ ADA).1

Para a avaliação do resultado do atendimento, foram realizadas entrevistas domiciliares aos diabéticos atendidos nos postos estudados. A cada semana, cinco postos de saúde eram visitados e, por meio das Fichas de Atendimento Ambulatorial (FAA), eram identificados todos os pacientes cujo atendimento médico tenha tido registro de diabetes (Classificação Internacional de Doenças, 10a Revisão ¾ CID-10) e que tinham se submetido a consultas nos últimos sete dias. Cada posto foi rastreado por um período de duas semanas com o objetivo de identificar quinze diabéticos. Em serviços em que não se identificassem quinze pacientes em duas semanas, estendia-se o rastreamento por mais duas, e então interrompia-se com o número de pacientes alcançado. As entrevistas domiciliares eram realizadas, preferencialmente, na semana subseqüente à consulta. Para ser incluído no estudo, além da identificação pela FAA, o diabético não poderia estar hospitalizado no momento da entrevista, teria de residir na cidade e ter conhecimento de ser portador de diabetes mellitus.

A cada indivíduo selecionado, foi aplicado um questionário com o objetivo de obter informações referentes às características demográficas, socioeconômicas, antropométricas, da doença e do tratamento. Além desses itens, ao final da entrevista foram aferidas a pressão arterial e a glicemia capilar. Os esfigmomanômetros utilizados para a aferição da pressão arterial foram calibrados mensalmente, e utilizou-se a média do valor aferido uma vez em cada braço, corrigida para a circunferência do braço.9 Para medição da pressão arterial, utilizou-se o esfigmomanômetro aneróide, definindo-se a diastólica pelo quinto som de Koroktkof, com paciente sentado, em repouso. A glicemia capilar foi medida com glicosímetro da marca Glucotrend (Boehringer Mannheim), que faz a determinação da glicose no sangue capilar fresco pela fotometria de reflectância. Esse aparelho é capaz de detectar glicemias capilares situadas entre 10 mg/dl e 600 mg/dl.

Os critérios que expressam o grau de controle foram baseados nas propostas da Associação Latino Americana de Diabetes (ALAD)3 e do Ministério da Saúde.10 Para as duas referências, foram utilizados os critérios de controle "aceitável". Uma vez que esses critérios são recomendados para pacientes adultos, aqueles com menos de 20 anos foram excluídos nas análises relativas ao controle. Os critérios incluíram a adequação do Índice de Massa Corporal ¾ IMC (calculado a partir do peso em quilos dividido pela altura em metros ao quadrado), da glicemia capilar e da pressão arterial, no momento da entrevista.

Os pontos de corte desses parâmetros, segundo a ALAD são: IMC menor ou igual a 27 kg/m2 em homens e menor ou igual a 26 kg/m2 em mulheres; e pressão arterial menor ou igual a 140 mm Hg x 90 mm Hg. Segundo o Ministério da Saúde, os pontos de corte são: IMC menor ou igual a 27 kg/m2 em homens e mulheres; e pressão arterial menor ou igual a 160 mm Hg x 95 mm Hg. O ponto de corte utilizado para glicemia capilar foi menor ou igual 180 mg/dl.

Além desses, ambas as referências preconizam a utilização dos seguintes parâmetros: hemoglobina glicosilada, glicosúria em amostra isolada, colesterol total, HDL colesterol e triglicerídios. Por motivos logísticos e pelo custo, o presente estudo limitou-se apenas aos três parâmetros citados.

O trabalho de campo foi realizado por alunos das Faculdades de Medicina, Nutrição e Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas, devidamente treinados. O controle de qualidade foi realizado em 10% de todos os instrumentos aplicados pelo supervisor do trabalho de campo. Os pacientes revisitados, os locais e os médicos foram selecionados aleatoriamente. Os dados tiveram dupla digitação por meio do programa Epi Info. As análises descritivas foram efetuadas com o programa SPSS.

RESULTADOS

Avaliação da estrutura

Quinze unidades prestavam atendimento à população em um turno, 13 em dois, e quatro em três turnos. Quinze trabalhavam com agendamento de consultas, e quatro possuíam fichas de registro especial para atendimento aos diabéticos. A presença de grupos de diabéticos foi relatada por 7 unidades, e 11 referiram dispor de material educativo para distribuição a esses pacientes. Em todas havia disponibilidade de balanças. Em nenhuma das unidades havia informações a respeito da demanda de atendimento de diabéticos.

Dois postos de saúde faziam parte de um programa desenvolvido pela SMSBE, denominado "Atendimento Integral ao Paciente Diabético". Nestes, os pacientes contavam com fácil acesso a exame de glicemia capilar, palestras mensais sobre a doença, atendimento por equipe multidisciplinar e fornecimento direto de medicamentos para tratamento do diabetes.

Quanto à disponibilidade de medicamentos e suprimentos mínimos necessários ao atendimento e ao tratamento do paciente diabético,16 observou-se que quatro locais possuíam material para determinação de glicemia capilar, e dois dispunham de tiras reagentes para pesquisa de glicosúria e cetonúria. Três postos (entre eles os dois que tinham programa) dispunham de insulina tanto para fornecimento aos pacientes quanto para utilização no serviço. Os restantes encaminhavam os diabéticos à SMSBE para obtenção de insulina. Seis locais tinham disponibilidade de seringas para aplicação de insulina e as distribuíam aos pacientes. Já a disponibilidade e o fornecimento de hipoglicemiantes orais (sulfoniluréias e biguanidas) foram verificados em 70% das unidades.

Foram identificados, lotados nesses postos, 109 médicos que poderiam dar consultas a pacientes diabéticos. Representavam os profissionais que atendiam na clínica geral, na pediatria e na área de ginecologia e obstetrícia. Com a recusa de um profissional em participar do estudo, 108 foram entrevistados, mas analisaram-se separadamente os médicos que efetivamente atenderam os pacientes diabéticos (n=61). Desses, a maior proporção era de mulheres (69%), trabalhando há menos de um ano no posto de saúde. Somente 3% dos médicos trabalhavam apenas no posto de saúde. Quanto à formação, os médicos, na sua maioria, ou não haviam realizado residência médica (34,4%) ou eram médicos com residência em medicina social (31,1%).

Avaliação do processo

A Tabela 1 mostra as características da primeira consulta de pacientes diabéticos no serviço (exame físico e plano terapêutico) segundo relato dos médicos.

Em relação ao exame físico, a aferição da pressão arterial foi o item mais citado, seguido pelo exame dos pés e pela ausculta cardíaca. Apenas um profissional referiu a execução de todos os itens recomendados para a consulta inicial.1 Quanto ao plano terapêutico, 85% dos médicos relataram prescrever dieta, e 72% exercícios físicos aos diabéticos por eles atendidos.

Quando perguntados sobre os exames complementares que costumavam solicitar rotineiramente para acompanhamento dos pacientes diabéticos, nenhum profissional informou solicitar todos os exames preconizados pela ADA:1 glicemia de jejum (opcional), hemoglobina glicosilada, perfil lipídico e proteinúria de 24 horas. Todos citaram glicemia de jejum, 37 (60%) dosagem de hemoglobina glicosilada, e 18 (29,5%) perfil lipídico. Nenhum profissional referiu solicitar proteinúria de 24 horas.

Avaliação do resultado

Dos 396 pacientes diabéticos incluídos no estudo, 8 recusaram-se a participar, e 10 não foram encontrados após quatro visitas em horários e dias diferentes, o que resultou em um total de 4,5% de perdas e recusas. Foram, portanto, entrevistados 378 pacientes diabéticos. As entrevistas domiciliares foram realizadas, em média, quinze dias após a consulta médica.

Os pacientes diabéticos que tiveram consulta médica nos postos eram predominantemente do sexo feminino e de cor branca. A idade variou de 10 a 92 anos, com mediana de 59 anos. Somente 4 pessoas (1,1%) tinham menos de 20 anos. Cerca de 70% tinham renda familiar de até 3 salários-mínimos mensais, e a maioria pertencia às classes sociais D e E, segundo classificação da Associação Brasileira de Pesquisa de Mercado (Abipeme).11 Quanto à escolaridade, 131 pacientes (34,7%) nunca tinham freqüentado a escola, mas destes, 16% informaram saber ler.

Quanto às características da doença, 51,3% sabiam ser diabéticos há no máximo 5 anos, sendo que o tempo de diagnóstico variou de menos de um a 37 anos. A presença de familiar diabético foi mencionada por 63% dos entrevistados, sendo mães e irmãos os parentes mais citados. Em relação aos hábitos, 67 (17,7%) indivíduos eram fumantes, e a ingestão de bebida alcoólica no último mês foi referida por 25 (6,6%) entrevistados.

Os pacientes que informaram freqüentar há mais de seis meses o posto de saúde, em média, tinham tido consulta três vezes no último meio ano. Os homens consultaram, em média, mais vezes do que as mulheres. Dos entrevistados, 88% referiram consultar sempre com o mesmo profissional no posto de saúde, e 41% informaram sair da consulta com retorno marcado. Somente 284 (75%) pacientes receberam prescrição de dieta, exercícios físicos e medicamentos no posto de saúde onde consultaram, sendo que a Tabela 2 mostra a distribuição dos mesmos em relação à execução desses três itens.

Cerca de 53% relataram ter feito dieta nos últimos quinze dias, 10% não estavam fazendo nenhum tipo de tratamento, e mais de um quarto dos pacientes (26,4%) referiram usar apenas medicamentos no tratamento da doença. Dos usuários de insulina, 92,8% referiram obter essa medicação junto à SMSBE.

A Tabela 3 mostra a freqüência de controle clínico e metabólico na população estudada. Observou-se que, quando foram considerados os três desfechos em conjunto (IMC, glicemia ao acaso e pressão arterial), apenas 6,3% e 10,9% dos pacientes foram classificados como portadores de um controle aceitável, segundo os critérios da ALAD3 e do Ministério da Saúde,10 respectivamente. Analisando cada desfecho isoladamente, os percentuais de controle variaram de 32% a 50% pelos parâmetros da ALAD e de 36% a 66% de acordo com o Ministério da Saúde. Cerca de 50% dos pacientes apresentaram controle glicêmico aceitável segundo o ponto de corte adotado.

Consistente com esse achado, considerando-se apenas os pacientes que tiveram a glicemia capilar £ 180 mg% e £ 120 mg%, respectivamente entre 1,5-2 h e 8 h ou mais após a última refeição, observou-se que 41% estavam com glicemia controlada.

Considerando a diferença no tempo de captação de diabéticos entre os serviços e a possibilidade de que pacientes atendidos em postos pequenos pudessem ter um pior controle do diabetes, efetuou-se a ponderação dos dados. Mesmo assim, a proporção de controle não sofreu modificação maior do que um ponto percentual em todos os desfechos estudados.

DISCUSSÃO

O presente estudo apresenta algumas limitações. Uma delas deve-se ao fato de não ter sido usada a medida da hemoglobina glicosilada para verificação do controle glicêmico. Em estudo anterior realizado em Pelotas,2 30% dos diabéticos não efetuaram esse exame em outros laboratoriais, quando solicitado, representando uma parcela significativa da população estudada. A mesma perda seria esperada para mensuração da glicemia de jejum. A coleta domiciliar de sangue venoso, embora factível, não foi realizada por motivos logísticos e financeiros.

Uma segunda limitação refere-se ao uso de monitores de glicemia capilar. O teste da glicemia capilar é um método de mensuração simples, rápido e já demonstrou ser bastante útil em estudos de base populacional.8 Alguns fatores podem interferir na validade do resultado, como alterações extremas no hematócrito e variações na temperatura e na umidade ambientais,4 que não foram controladas no presente estudo. Como o sangue capilar é uma mistura do sangue venoso e arterial, a concentração de glicose medida pode ser um pouco mais alta do que a que se verificaria no sangue venoso.4 Como este estudo não pretendia identificar novos casos de diabetes, e os resultados das aferições não seriam usados para ajuste de medicação, acredita-se que a medida da glicemia capilar ao acaso (no mínimo uma hora e meia após a última refeição) refletiu o controle do paciente no momento da entrevista. Por outro lado, o aparelho utilizado era de fácil manejo, o que minimiza a possibilidade de erro devido à sua manipulação, tendo se mostrado bastante acurado na leitura de glicemias altas e baixas quando comparado a monitores similares.14

Uma limitação adicional refere-se à baixa precisão das balanças (1 kg) utilizadas na avaliação do peso corporal.

Avaliação da estrutura

Em Pelotas, a rede pública de atenção primária, constituída basicamente de postos de saúde na periferia urbana é quantitativamente razoável.5 O acesso geográfico e universal também são satisfatórios uma vez que mais da metade dos postos funciona dois ou mais turnos por dia. A avaliação qualitativa desses serviços, no entanto, mostrou que, quanto ao atendimento dos diabéticos, os postos diferem marcadamente em relação a aspectos de estrutura, sendo a maioria bastante deficitária.

Em Pelotas, nenhum dos postos atendeu integralmente os requisitos preconizados pela OMS. Exceto quanto às balanças, os demais suprimentos que subsidiam a tomada de decisão clínica (material para dosagem de glicemia, glicosúria e cetonúria) foram encontrados em apenas uma minoria de postos. Embora a distribuição de insulina no município atenda à demanda dos pacientes, apenas três postos as faziam diretamente. Estudo realizado em serviço de atenção primária demonstrou que a disponibilidade de medicamentos é um dos principais fatores preditores de resolutividade.7

Curiosamente não se observou uma maior concentração de consultas nos postos que têm programa de diabetes, indicando que os pacientes geralmente procuram os serviços mais próximos às suas moradias. A identificação de pacientes que residiam fora da área de abrangência de cada um dos postos não chegou a 20%.

Avaliação do processo

Foi muito variável a freqüência com que os médicos relataram a execução dos procedimentos do exame físico e dos planos terapêuticos adotados. No presente estudo, por não terem sido realizadas observações de consultas, pode ter ocorrido sub ou superestimação dos componentes de uma consulta por diabetes. No entanto, a revisão dos prontuários médicos dos pacientes entrevistados revelou substancial ausência de informações quanto aos procedimentos da consulta, sugerindo que tenha havido sub-registro ou que estes, de fato, não tenham sido realizados.

Mesmo sendo a dieta o item fundamental no tratamento de qualquer tipo de diabetes,3,10 no presente estudo, 15% dos médicos não mencionaram a prescrição de dieta como um procedimento de manejo da consulta inicial.

Dos entrevistados, 10% afirmaram não estar fazendo nenhum tipo de tratamento, e 27% usaram apenas medicamentos para tratar a doença, o que aponta para a baixa adesão à dieta e ao exercício. A média de três consultas dos pacientes diabéticos nos últimos seis meses foi superior à recomendação.1,10 Esse achado pode ter sido devido à idade avançada dos pacientes e à comorbidade por outras doenças crônicas prevalentes nessa faixa etária.

O presente estudo mostrou que nenhum médico entrevistado costumava solicitar todos os exames preconizados1 no acompanhamento dos pacientes diabéticos. Deve-se ressaltar que não há na rede pública restrição quanto à sua realização.

Avaliação do resultado

Quanto ao controle clínico e metabólico, mesmo sem utilizar todos os critérios preconizados pela ALAD,3 encontrou-se uma prevalência de controle de apenas 6,3%. De acordo com os critérios do Ministério da Saúde,10 10,9% dos pacientes encontravam-se controlados no momento da entrevista. O critério do Ministério da Saúde é menos rigoroso em relação à pressão arterial, o que é responsável pelo maior percentual de controle quando comparado ao que foi encontrado segundo a recomendação da ALAD. Da população estudada, 50% encontravam-se com glicemia capilar dentro dos limites adotados. Esse resultado está de acordo com outro estudo que encontrou freqüência de controle glicêmico de 65,9%,2 embora utilizando outro método de aferição.

As medidas de controle de peso estão indicadas a todos os diabéticos.1,3,10,15,16 No presente estudo, encontrou-se uma baixa proporção de indivíduos com IMC dentro dos valores considerados aceitáveis para diabéticos.

Os achados do presente estudo mostraram que a estrutura dos postos de saúde é precária no que tange à disponibilidade recomendada de suprimentos mínimos necessários para o atendimento de pacientes diabéticos. O processo do cuidado, aqui baseado exclusivamente no atendimento médico, deixa lacunas quanto a procedimentos do exame físico e critérios clínicos de monitorização do controle da doença. O resultado de 50% dos pacientes com controle glicêmico chega a ser surpreendentemente alto, tendo em vista a baixa adesão à dieta e aos exercícios físicos e o deficiente mecanismo de monitorização.

De acordo com os dados apresentados, conclui-se que um primeiro passo para que fosse possível o planejamento de ações relativas ao atendimento de diabéticos seria a criação de instrumentos que permitissem saber quantos diabéticos estão realmente tendo consultas nos postos da rede de atenção primária. Uma melhor distribuição dos recursos disponíveis entre os postos também seria benéfica, passando inclusive pelo fornecimento direto de insulina.

Em virtude da variação em relação à execução de diversos componentes do exame físico, do plano de tratamento e da baixa freqüência de solicitação dos exames laboratoriais adequados para avaliação de pacientes diabéticos, acredita-se que treinamentos periódicos em serviço e a existência de um protocolo padronizado para atendimento aos diabéticos poderiam qualificar a atenção dos profissionais.

A importância que o controle clínico e metabólico têm na progressão do diabetes poderia ser mais reforçada aos pacientes, e uma maior ênfase deveria ser dada aos aspectos não medicamentosos do tratamento, que comprovadamente desempenham papel fundamental no controle, sem acarretar maiores custos.

Uma estrutura adequada aumenta a probabilidade de um processo adequado, e este aumenta a probabilidade de um bom resultado.6

Em conclusão, o presente estudo avaliou o atendimento a diabéticos sob três aspectos: estrutura, processo e resultado, tendo como referências recomendações de órgãos oficiais; foi realizado em todos os serviços existentes na zona urbana do município, sendo amplamente representativo; avaliou, a um baixo custo, o manejo do diabetes realizado por 99% dos médicos que atendem nesses serviços; e identificou alguns pontos que facilmente podem ser melhorados, visto que dependem basicamente de treinamento em serviço e padronização de condutas.

Estudos descritivos, que permitem o conhecimento da realidade local, podem subsidiar o planejamento de ações efetivas, bem como servir de base para avaliar o impacto de futuras intervenções.

Correspondência para/Correspondence to:

Maria Cecília F. Assunção

Universidade Federal de Pelotas

Faculdade de Nutrição Campus Universitário

96010-900 Cx. P. 354 Pelotas, RS, Brasil

E-mail: cecilia@ufpel.tche.br

Recebido em 23/8/1999. Reapresentado em 5/2/2000. Aprovado em 22/3/2000.

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    Baseado na dissertação de mestrado apresentada no Curso de Mestrado em Epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas em 1999.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Fev 2001

    Histórico

    • Aceito
      22 Mar 2000
    • Revisado
      05 Fev 2000
    • Recebido
      23 Ago 1999
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