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A privatização da universidade e o genoma

The university privatization and the genome

A privatização da universidade e o genoma

The university privatization and the genome

Hoje em dia, assiste-se à ocorrência de vários modismos, os quais, felizmente, são de pouca duração. Um deles vem a ser o do conceito subordinado à palavra "privatização". Ao se tratar de instituição denominada universidade, tem ele o poder de constituir potencial ameaça. E isso porque implica dependência continuada da operacionalização institucional à empresa, seja ela industrial ou filantrópica (Brown,l 2000).

Assim sendo, corre-se o risco de haver cada vez maior dependência ao sistema empresarial, o que implica progressivo incremento de recursos para temas de aplicação imediata, tanto na pesquisa como no ensino. Todavia, esse fato, por si só, não traria maiores inconvenientes, não fosse a necessidade comercial dirigida a finalidades lucrativas, característica inerente à sociedade essencialmente capitalista como a nossa. Isso significa atender, cada vez mais, a clientela e, conforme se diz tradicionalmente, "ela tem sempre razão".

Freqüentemente, pesquisadores são forçados a manter em sigilo valiosas informações para o conhecimento humano. E isso em virtude de cláusulas contratuais impostas pelos fundos de empresas, as quais assim procedem visando preservar os respectivos lucros. Exemplo bem ilustrativo é dado pelos resultados de estudos sobre o seqüenciamento do genoma humano.

Com esse objetivo, houve o engajamento de dois grupos. Um deles, denominado de "Projeto Genoma Humano" (PGH) formou-se mediante consórcio público internacional de pesquisadores, sob a liderança dos EUA. O outro, o qual atende pela denominação de "Celera Genomics" (CG) é constituído por empresa de biotecnologia, congregando várias instituições, porém sob a liderança empresarial norte-americana, em cujo território essa empresa tem sede. Excusado dizer que esta última tem por objetivo, além de outros, obter lucros com a informação genética. Assim sendo, e lançando mão de tecnologia apropriada, espera-se conseguir dados aplicáveis à terapêutica de certas doenças. Nesse sentido, as empresas farmacêuticas estão empenhadas em coletar tais informações genéticas para elaborar drogas dirigidas a genes específicos. Seriam as denominadas drogas "farmacogenômicas" (Brown,2 2000). Dessa maneira, em futuro não muito longínquo, o profissional de farmácia poderia fornecer determinado medicamento para pressão arterial, pode-se supor, de acordo com o perfil gênico de cada cliente. Seria pois, a que poderíamos chamar de terapêutica individual, e não mais coletiva.

Pois bem. Não se concretizou a idéia de unificar os dois grupos envolvidos naquelas mencionadas pesquisas. Até o momento de ser elaborado o presente editorial, continuava a troca de acusações. E tanto assim que ambos enviaram, separadamente, à publicação, os seus respectivos resultados. Para tanto, escolheram duas revistas científicas, a Science ¾ CG ¾ e a Nature ¾ PGH ¾ (Venter et al,6 2001; Lander et al,3 2001). E isso embora tenham anunciado para um futuro próximo, nova declaração conjunta em Washington. De um lado, estariam as supostas circunstâncias de impor condições de acesso aos dados, baseando-se na utilização competitiva de informações obtidas mediante investimentos de capital privado. Tratar-se-ia, portanto, de proteger interesses comerciais legítimos. De outro, a justificativa residiria no fato de o conhecimento do genoma se constituir em "dádiva" para a humanidade e, pois, deveria ser livremente acessível. O fato é que não existe conciliação possível entre os dois, ou seja, o lucro comercial e a outorga de honrarias científicas (Marshall,5 2000). Isso vem muito a propósito sobre o dilema do investimento social e os conhecimentos científicos daí adquiridos.

Tal seqüenciamento genômico, implicando também outros organismos, tão diversos como bactérias, levedos, vermes e insetos, para citar alguns, antepõe à sociedade fatos de consciência pública. Surgem questões de ordem ética, cujos efeitos já se fazem sentir. Trata-se, entre outras circunstâncias, de proteger a privacidade individual que estaria sujeita a ser devassada. E isso embora, ao que pareça, deva ser abandonada a idéia de que todas as características pessoais estejam predeterminadas no genoma. A identidade de pessoas não se subordina à genômica, como bem o atestam os gêmeos monozigóticos. Assim sendo, para merecer o nome de ser humano, não basta possuir um simples genoma, é também necessário ter identidade própria (Mauron,4 2001).

Voltando ao tema em epígrafe, o que necessitam os pesquisadores universitários são apenas salários dignos e recursos suficientes para as suas investigações. Esse é o caminho que se deve trilhar, para ver seus esforços compensados, independente de se procedem a pesquisas passíveis de serem aplicadas ou não. Essa é a real motivação para se obter resultados científicos brilhantes e de inquestionável eficácia.

Oswaldo Paulo Forattini

Editor Científico

REFERÊNCIAS

1. Brown JR. Privatizing the university: the new tragedy of the commons. Science 2000;290:1701-2.

2. Brown K. The human genome business today. Scientific American 2000;283:40-5.

3. Lander ES, Linton LM, Birren B, Nusbaum C, Zody MC, Baldwin J et al. Initial sequencing and analysis of the human genome. Nature 2001;409:860-921.

4. Mauron A. Is the genome the secular equivalent of the soul? Science 2001;291:831-2.

5. Marshall E. Storm erupts over terms for publishing Celera's sequence. Science 2000;290:2042-3.

6. Venter JC, Adams MD, Myers EW, Li PW, Mural RJ, Sutton GG et al. The sequence of the human genome. Science 2001;291:1304-51.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Abr 2001
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