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Isolamento de cepas de Mycobacterium avium em búfalos abatidos para consumo

Mycobacterium avium complex in water buffaloes slaughtered for consumption

Resumos

Duas cepas micobacterianas, isoladas no parênquima pulmonar e linfonodo apical de búfalos abatidos para consumo, procedentes de criatórios localizados na Ilha de Marajó (PA) e submetidas à identificação segundo ensaios recomendados para o gênero Mycobacterium, foram identificadas como pertencentes ao complexo Mycobacterium avium. Apresentaram-se considerações relativas à associação desses organismos com a Aids -- e o papel dos alimentos nessa associação --, discutindo-se o impacto que a condição de germes oportunistas das espécies desse complexo têm na pandemia do HIV, assim como o risco potencial representado pelas infecções produzidas nos animais.

Complexo Mycobacterium avium; Tuberculose bovina; Infecções oportunistas relacionadas à Aids; Contaminação de alimentos; Síndrome de imunodeficiência adquirida; Búfalos; Bovinos


Two mycobacterium strains isolated from lung tissue and apical lymph nodes of slaughtered water buffaloes were biochemically analyzed and identified as Mycobacterium avium complex strains. Association between these microorganisms and the acquired immunodeficiency syndrome, and the potential risk posed by eating infected animals and their products, was discussed.

Mycobacterium avium complex; Tuberculosis, bovine; AIDS-related opportunistic infections; Food contamination; Acquired immunodeficiency syndrome; Buffaloes; Cattle


Isolamento de cepas de Mycobacterium avium em búfalos abatidos para consumo* * Realizado no Laboratório de Apoio Animal, Belém, Pa, e na Seção de Micobactérias do Instituto Adolfo Lutz. Parte da tese de doutorado apresentada à Faculdade de Saúde Pública da USP, em 1999. Edição subvencionada pela Fapesp (Processo n. 01/01661-3). Recebido em 29/6/2000. Reapresentado em 24/1/2001. Aprovado em 21/2/2001.

Mycobacterium avium complex in water buffaloes slaughtered for consumption

José de Arimatéa Freitasª, José Cezar Panettab, Melissa Curcioc e Sueli Yoko M Uekic

ªFaculdade de Ciências Agrárias do Pará. Belém, PA, Brasil. bFaculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP. São Paulo, SP, Brasil. cInstituto Adolfo Lutz. São Paulo, SP, Brasil

DESCRITORES
Complexo Mycobacterium avium, isolamento e purificação.# Tuberculose bovina.# Infecções oportunistas relacionadas à Aids.# Contaminação de alimentos.# Síndrome de imunodeficiência adquirida. Búfalos, microbiologia. Bovinos. RESUMO
Duas cepas micobacterianas, isoladas no parênquima pulmonar e linfonodo apical de búfalos abatidos para consumo, procedentes de criatórios localizados na Ilha de Marajó (PA) e submetidas à identificação segundo ensaios recomendados para o gênero Mycobacterium, foram identificadas como pertencentes ao complexo Mycobacterium avium. Apresentaram-se considerações relativas à associação desses organismos com a Aids ¾ e o papel dos alimentos nessa associação ¾, discutindo-se o impacto que a condição de germes oportunistas das espécies desse complexo têm na pandemia do HIV, assim como o risco potencial representado pelas infecções produzidas nos animais. KEYWORDS
Mycobacterium avium complex, isolation and purification.# Tuberculosis, bovine.# AIDS-related opportunistic infections.# Food contamination.# Acquired immunodeficiency syndrome. Buffaloes, microbiology. Cattle. ABSTRACT
Two mycobacterium strains isolated from lung tissue and apical lymph nodes of slaughtered water buffaloes were biochemically analyzed and identified as Mycobacterium avium complex strains. Association between these microorganisms and the acquired immunodeficiency syndrome, and the potential risk posed by eating infected animals and their products, was discussed.

A pandemia da síndrome de imunodeficiência adquirida, Aids, está associada a infecções oportunistas, principalmente tuberculose e doenças causadas pelo complexo Mycobacterium avium.2

Segundo Feldman et al (1943), citados por Wood & John5 (1987), as doenças causadas nos animais domésticos pelos microorganismos desse complexo foram descritas há, aproximadamente, um século. Porém, eles não foram reconhecidos como patógenos humanos antes de 1943.

Até 1980, os organismos do complexo M. avium eram considerados agentes de raras infecções humanas, como linfadenites, em crianças, e doença pulmonar, em adultos. De acordo com Horsburg & Selik (1989) e Scoular & French (1991), citados por Daborn & Grange2 (1993), as formas disseminadas das doenças provocadas por esses organismos tornaram-se o maior problema relacionado à Aids.

As complicações da Aids são devidas às micobacterioses, mas, por razões ainda desconhecidas, as espécies do complexo M. avium são os membros mais freqüentes que causam doença associada àquela síndrome.4

O impacto da doença oportunista causada pelo complexo M. avium e o seu significado na síndrome da Aids são variáveis de região para região. Apresentam-se taxas que se situam entre 1,1% e 45% ou mais.3-5

Conforme Horsburg & Selik (1989) e Scoular & French (1991), citados por Daborn & Grange2 (1993), 96% dos casos de micobacterioses disseminadas e associadas à Aids deviam-se aos membros desse complexo.

No Brasil, conforme Ramos et al4 (2000), a associação de infecções causadas por espécies do complexo M. avium com a Aids é muito mais comum do que tem sido sugerido e é quase tão freqüente quanto à associação de infecções causadas pelo M. tuberculosis.

Os organismos do complexo M. avium têm como fonte de infecção o meio ambiente e causam doenças nos animais domésticos (aves, suínos e bovinos) e no homem, mas não se conhece, de fato, o significado das infecções animais produzidas por esses microorganismos e nem o papel desempenhado pelos alimentos de origem animal ¾ notadamente a carne e o leite contaminados ¾ na associação deles com a Aids. Permanecem ainda obscuros os mecanismos de transmissão dos bacilos para o aparelho respiratório das espécies afetadas, inclusive o do homem.

A co-habitação e o criatório misto de bovinos e suínos com aves domésticas ou silvestres, assim como a alimentação de suínos com restos de aviários, podem representar importantes fatores para a ocorrência de micobactérias do complexo M. avium em bovinos e suínos, visto que os suínos e as aves são espécies suscetíveis à tuberculose e a linfadenites tuberculóides causadas por espécies desse complexo.

O estreito contato com animais e suas excreções no criatório e a ingestão de produtos de origem animal contaminados podem representar, de modo idêntico, importantes fatores de risco na ocorrência de micobacterioses do complexo M. avium no homem.

Logo, o esclarecimento da associação das espécies desse complexo com a Aids, especialmente no que diz respeito ao papel dos animais e seus produtos, configura-se como assunto essencial para investigação científica nesta área.

Fragmentos de peças anatômicas, apresentando lesões sugestivas de tuberculose, foram submetidos ao isolamento presuntivo de micobactérias, de acordo com procedimentos rotineiros recomendados. As lesões encontradas caracterizaram-se macroscopicamente como nódulos e, histologicamente, como processo inflamatório granulomatoso e necrose do tipo caseosa, observadas no decorrer do abate de 1.735 bubalinos para consumo, no período de janeiro de 1996 a fevereiro de 1997.

As cepas isoladas foram identificadas fenotipicamente segundo os resultados dos seguintes ensaios conduzidos no Instituto Adolfo Lutz, São Paulo: velocidade de crescimento às temperaturas de 26 ºC, 37 ºC e 45 ºC; pigmentação de colônias; características bioquímicas como produção de niacina, redução do nitrato, hidrólise do tween-80, detecção de b-galactosidase e arilsulfatase de 3 e 15 dias; inibição de crescimento frente aos ácido p-nitrobenzóico, hidrazida do ácido 2-tiofenocarboxílico, cicloserina, etambutol, rifampicina, p-aminosalicilato de sódio, hidroxilamina, cloreto de sódio e ácido pícrico. Baseando-se nos resultados desses ensaios, as micobactérias isoladas foram caracterizadas como cepas do complexo M. avium.

Assim, duas cepas do complexo M. avium foram isoladas no aparelho respiratório de dois animais, respectivamente, no parênquima pulmonar e linfonodo apical, não tendo sido isoladas outras espécies micobacterianas nas respectivas alterações estudadas.

A experiência reafirma o papel que as espécies do complexo M. avium têm como patógeno primário no pulmão e em outros órgãos de animais domésticos1 e coloca em evidência o risco potencial para o homem no contato direto com animais doentes, no manuseio de carcaça e órgãos no abate e na ingestão de seus produtos contaminados.

A respeito das infecções causadas pelo complexo M. avium, Smith (1958) e Karlson (1962), citados por Cassiddy et al1 (1968), afirmaram que o bovino pode adquirir o bacilo tuberculoso aviário de outro bovino ou suíno, assim como de aves infectadas.

A série de 103 casos de infecção por espécies do complexo M. avium em bovinos, descrita por Cassidy et al1 (1968), indicou que esses organismos podem assumir papel de patógeno primário nesta espécie, e que a associação deles com fatores predisponentes, como neoplasias, inflamações purulentas e actinobacilose, permite que assumam a condição de germes oportunistas. Nos humanos, fatores predisponentes, como dano pulmonar prévio, também facilitam a infecção por esses microrganismos.3

No entanto, o modo como a doença causada pelo complexo M. avium se instala no organismo ainda é muito pouco compreendido devendo-se, no parecer de alguns estudiosos, à infecção pulmonar, embora tenha sido postulado também que a doença emerge de focos de infecção localizados no tecido linfático do trato alimentar ou respiratório quiescentes, adquiridos muito antes.2

Tanto nos animais domésticos quanto no homem, o mecanismo de transmissão do complexo M. avium da fonte ambiental para o trato respiratório e outros órgãos continua desconhecido, desempenhando, naqueles e no homem, importante papel as doenças predisponentes.

Neste contexto, o papel dos alimentos continua sendo obscuro, ainda que o contato direto do homem com os animais doentes e a ingestão de seus produtos signifiquem, certamente, um risco potencial na associação das espécies desse complexo com a Aids, o que justifica e recomenda a vigilância sanitária e epidemiológica das atividades de risco e de alimentos.

Correspondência para/Correspondence to:

José de Arimatéa Freitas

Travessa Humaitá, 1130, apto. 103

66085-220 Belém, PA, Brasil

E-mail: jaf@interconect.com.br

  • 1. Cassidy DR, Morehouse LG, Mc Daniel HA. Mycobacterium avium infection in cattle: a case series. Am Vet Res 1968;29:405-10.
  • 2. Daborn CJ, Grange JM. HIV/AIDS and its implications for the control of animal tuberculosis. Br Vet J 1993;149:405-17.
  • 3. Dupon M, Ragnaud JM. Tuberculosis in patients infected with human immunodeficiency virus. 1. A retrospective multicentre study of 123 cases in France. Q J Med New Series 1992;85(306):719-30.
  • 4. Ramos MC, Moraes MJ, Calisni AL, Roscani GN, Picolli EA. A retrospective bacteriological study of mycobacterial infections in patients with acquired immune deficience syndrome (AIDS). Br J Infect Dis 2000;4:86-90.
  • 5. Woods GL, Washington JA. Mycobacteria other than Mycobacterium tuberculosis: review of mycrobiologic and clinical aspects. Rev Infect Dis 1987;9:275-94.
  • *
    Realizado no Laboratório de Apoio Animal, Belém, Pa, e na Seção de Micobactérias do Instituto Adolfo Lutz. Parte da tese de doutorado apresentada à Faculdade de Saúde Pública da USP, em 1999.
    Edição subvencionada pela Fapesp (Processo n. 01/01661-3).
    Recebido em 29/6/2000. Reapresentado em 24/1/2001. Aprovado em 21/2/2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Jun 2001

    Histórico

    • Aceito
      21 Fev 2001
    • Revisado
      24 Jan 2001
    • Recebido
      29 Jun 2000
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