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Trabalho, saúde e gênero: estudo comparativo sobre analistas de sistemas

Work and health: a gender study on systems analysts

Resumos

OBJETIVO: Avaliar as repercussões do trabalho de mulheres e homens analistas de sistemas na saúde. MÉTODOS: Trata-se de estudo exploratório de delineamento transversal, abrangendo 553 analistas de duas empresas de processamento de dados da região metropolitana de São Paulo. Foram realizadas análises ergonômicas do trabalho, entrevistas semi-estruturadas e preenchimento de questionários para auto-aplicação. A análise dos dados baseou-se em tabelas de contingência com qui-quadrado a 5% de significância e razões de prevalência e seus intervalos de confiança segundo gênero. RESULTADOS: As mulheres constituíram 40,7% do grupo estudado, sendo mais jovens que os homens. A presença de filhos foi maior entre os homens, embora o tempo diário dedicado às tarefas domésticas tenha sido maior entre as mulheres. Observou-se predomínio dos homens nas funções de chefia. Fatores de incômodo, com freqüência semelhante entre homens e mulheres, foram: sobrecarga de trabalho devido a prazos curtos; alto grau de responsabilidade; exigência mental do trabalho; e complexidade da tarefa. Fatores de incômodo predominantes em mulheres foram: postura desconfortável; maior exposição ao computador; e presença de equipamento obsoleto. As mulheres relataram maior freqüência de sintomas visuais, musculares e relacionados a estresse; maior insatisfação com o trabalho; maior fadiga física e mental. CONCLUSÕES: O estudo sugere que as repercussões na saúde das analistas de sistemas estão associadas às exigências do trabalho e ao papel da mulher na sociedade. Os resultados destacam a importância de estudos sobre saúde, trabalho e gênero, em analisar a interseção entre a esfera produtiva e a doméstica.

Saúde ocupacional; Estresse; Computadores; Trabalho feminino; Ergonomia (saúde ambiental); Condições de trabalho; Analistas de sistema


OBJECTIVE: To assess the health impact of working conditions among male and female systems analysts. METHODS: In this cross-sectional study, 533 systems analysts of two data analysis companies located in the metropolitan area of São Paulo were studied. Data was collected using work ergonomic assessments, individual and group semi-structured interviews and a self-applied questionnaire. Data analysis was based on contingency tables, Chi-square values at 5% level, prevalence rates and ratios, and their 95% confidence intervals. RESULTS: Of the participants, 40.7% were women who on average were younger that the studied men (59.6% of women and 39% of men were in the age range 25 to 34). Though fatherhood was more frequently seen among men (57.6% x 34.2% for women), women spent more time with household tasks, including children care. There were more men in leading management positions. Work-related discomfort factors were seen in both sexes at similar frequencies. Men most commonly complained of work overload due to tight deadlines, high degree of responsibility, mental strain, and work complexity. Women more frequently complained of postural discomfort, higher exposure to video display terminal, and obsolete equipment. Women reported more visual, musculoskeletal and stress related symptoms, and higher work dissatisfaction and mental fatigue. CONCLUSIONS: The study suggests that the health impact on female systems analysts is associated with the work demands and the women's social role. There is a need of further studies associating health, work and gender and an assessment of the intersection between the domestic and productive roles.

Occupational health; Stress; Computers; Women working; Ergonomics (environmental health); Working conditions; Systems analysts


Trabalho, saúde e gênero: estudo comparativo sobre analistas de sistemas

Work and health: a gender study on systems analysts

Lys Esther Rochaa e Myriam Debert-Ribeirob

aDepartamento de Ética Médica, Medicina Legal e Medicina Social e do Trabalho (LIM-40) Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. bDepartamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

DESCRITORES

Saúde ocupacional#. Estresse#. Computadores, trabalho#. Trabalho feminino. Ergonomia (saúde ambiental). Condições de trabalho. - Analistas de sistema.

RESUMO

OBJETIVO:

Avaliar as repercussões do trabalho de mulheres e homens analistas de sistemas na saúde.

MÉTODOS :

Trata-se de estudo exploratório de delineamento transversal, abrangendo 553 analistas de duas empresas de processamento de dados da região metropolitana de São Paulo. Foram realizadas análises ergonômicas do trabalho, entrevistas semi-estruturadas e preenchimento de questionários para auto-aplicação. A análise dos dados baseou-se em tabelas de contingência com qui-quadrado a 5% de significância e razões de prevalência e seus intervalos de confiança segundo gênero.

RESULTADOS:

As mulheres constituíram 40,7% do grupo estudado, sendo mais jovens que os homens. A presença de filhos foi maior entre os homens, embora o tempo diário dedicado às tarefas domésticas tenha sido maior entre as mulheres. Observou-se predomínio dos homens nas funções de chefia. Fatores de incômodo, com freqüência semelhante entre homens e mulheres, foram: sobrecarga de trabalho devido a prazos curtos; alto grau de responsabilidade; exigência mental do trabalho; e complexidade da tarefa. Fatores de incômodo predominantes em mulheres foram: postura desconfortável; maior exposição ao computador; e presença de equipamento obsoleto. As mulheres relataram maior freqüência de sintomas visuais, musculares e relacionados a estresse; maior insatisfação com o trabalho; maior fadiga física e mental.

CONCLUSÕES:

O estudo sugere que as repercussões na saúde das analistas de sistemas estão associadas às exigências do trabalho e ao papel da mulher na sociedade. Os resultados destacam a importância de estudos sobre saúde, trabalho e gênero, em analisar a interseção entre a esfera produtiva e a doméstica.

KEYWORDS

Occupational health#. Stress#. Computers, workers#. Women working. Ergonomics (environmental health). Working conditions. - Systems analysts.

ABSTRACT

OBJECTIVE:

To assess the health impact of working conditions among male and female systems analysts.

METHODS:

In this cross-sectional study, 533 systems analysts of two data analysis companies located in the metropolitan area of São Paulo were studied. Data was collected using work ergonomic assessments, individual and group semi-structured interviews and a self-applied questionnaire. Data analysis was based on contingency tables, Chi-square values at 5% level, prevalence rates and ratios, and their 95% confidence intervals.

RESULTS:

Of the participants, 40.7% were women who on average were younger that the studied men (59.6% of women and 39% of men were in the age range 25 to 34). Though fatherhood was more frequently seen among men (57.6% x 34.2% for women), women spent more time with household tasks, including children care. There were more men in leading management positions. Work-related discomfort factors were seen in both sexes at similar frequencies. Men most commonly complained of work overload due to tight deadlines, high degree of responsibility, mental strain, and work complexity. Women more frequently complained of postural discomfort, higher exposure to video display terminal, and obsolete equipment. Women reported more visual, musculoskeletal and stress related symptoms, and higher work dissatisfaction and mental fatigue.

CONCLUSIONS:

The study suggests that the health impact on female systems analysts is associated with the work demands and the women's social role. There is a need of further studies associating health, work and gender and an assessment of the intersection between the domestic and productive roles.

INTRODUÇÃO

O início da utilização da informática em larga escala no Brasil remonta à década de 70. Desde então, um crescente contingente de trabalhadores vincula-se a essa atividade profissional cujas repercussões sobre a saúde constituem ainda um campo de estudos relativamente inexplorado.

O analista de sistema, objeto do presente estudo, constitui uma das categorias dessa área. O estudo do impacto do trabalho sobre a saúde dessa categoria é um grande desafio, uma vez que a área de informática incorpora novas tecnologias de forma dinâmica e ininterrupta e envolve uma categoria de profissionais que se encontra "pulverizada" entre empresas de diferentes ramos da atividade econômica.

Da mesma forma, a evolução da informática representa constantes desafios aos próprios analistas de sistemas, cujo trabalho consiste em transformar, de forma contínua, linguagens anteriormente desenvolvidas em outras mais modernas e também modificar operações antes realizadas manual ou mecanicamente em sistemas informatizados. Tudo isto sob constantes modificações do processo de organização do trabalho.

Dentre os poucos estudos enfocando as repercussões do trabalho sobre a saúde dos analistas de sistemas, merece destaque o realizado pela equipe do NIOSH (National Institute of Occupational Safety and Health), contemplando analistas de sistemas e supervisores de uma empresa federal de processamento de dados dos Estados Unidos.4 Entre os aspectos positivos levantados, destacaram-se: satisfação com o trabalho (os profissionais percebiam a importância do produto de sua atividade), flexibilidade de horário e dinamicidade do trabalho. Entre os aspectos negativos, observaram-se: qualidade do equipamento, indisponibilidade do terminal e tempo de resposta do sistema (dificultando o cumprimento da carga de trabalho dentro dos prazos fixados) e problemas de relacionamento com superiores hierárquicos. Os problemas de saúde referidos incluíram: secura dos olhos, do nariz e da garganta; sinusites, alergias, resfriados e gripes; queimação e lacrimejamento dos olhos; dor de cabeça; irritabilidade; depressão; tensão; fadiga severa e doenças psicossomáticas, como indisposição do estômago.

No Brasil, são escassos os estudos sobre analistas de sistemas. Merlo18 analisou esses profissionais em empresa de Porto Alegre, caracterizando o sofrimento psíquico resultante dessa atividade.

Quantos aos estudos sobre a saúde da mulher, só recentemente no Brasil se tem buscado a abordagem da relação entre saúde, gênero e trabalho, de forma a incorporar a noção de condição de saúde das trabalhadoras como resultante da interseção entre as relações de trabalho e as demais relações sociais.20,22

A presente pesquisa é parte de um projeto mais amplo,21 e tem por objetivo avaliar as repercussões das condições de trabalho sobre a saúde de analistas de sistemas, por considerar que a comparação do perfil de adoecer entre os dois gêneros é relevante para o reconhecimento de correlatos sociodemográficos de trabalhadores pertencentes a um setor dinâmico e moderno da economia.

Optou-se por caracterizar as diferenças de gênero em relação às situações de vida e de trabalho desses profissionais contemplando as interações entre trabalho e vida fora do trabalho. Adotou-se o conceito de estresse tal como definido por autores escandinavos, como Kalimo,12 que o considera "uma relação de desequilíbrio entre o ambiente e o indivíduo; os fatores do ambiente são denominados 'fatores de estresse' ou 'estressores', e a resposta do indivíduo é caracterizada pelo termo geral de 'reação de estresse'". Segundo essa concepção, o estresse não é visto somente como resultado de fatores exógenos e também não só relacionados ao trabalho, mas como um produto da dinâmica, da combinação particular entre a situação do ambiente físico e social e o indivíduo, sua personalidade, seu padrão de comportamento e as circunstâncias de sua vida.

A análise das situações de trabalho incluiu aspectos dos equipamentos, do posto de trabalho e da organização do trabalho. Para o estudo dos fatores psicossociais do trabalho, adotou-se o modelo de Karasek & Theorell.14 Esses autores partem do princípio de que a relação causa-efeito do estresse dá-se por um sistema complexo que envolve a interação de múltiplos fatores. O estresse representaria um desequilíbrio do sistema como um todo, em particular do sistema de controle, que inclui um nível biológico, um nível psicoendócrino e também um nível da função cognitiva e interpessoal. Por essa razão, o modelo proposto pelos autores envolve uma abordagem tridimensional, contemplando os seguintes aspectos: "exigência/controle" (demand/control), "tensão/aprendizagem" (strain/learning) e suporte social.

MÉTODOS

Foi realizada uma abordagem multidisciplinar envolvendo ergonomia, epidemiologia, medicina do trabalho e psicologia, tendo sido investigados analistas de sistemas sadios e em atividade.

Dada a alta concentração de analistas de sistemas em empresas ligadas ao setor de serviços, foram selecionados dois centros de processamento de dados localizados na região Metropolitana de São Paulo: um estatal, onde trabalhavam 347 analistas de sistemas, e um privado, pertencente a um banco com 398 desses profissionais.

Instrumento de coleta de dados

Optou-se por questionário, e, para sua elaboração, foi feita revisão bibliográfica em que foram identificados instrumentos similares utilizados em estudos sobre: gênero e trabalho;1 trabalho com terminal de vídeo;6,9 e estresse e trabalho.7 Foram também realizadas entrevistas semi-estruturadas com um grupo de analistas de sistemas e com a análise ergonômica do trabalho (envolvendo os equipamentos e o ambiente, posto e organização do trabalho) para a construção do questionário.

Foram elaborados dois questionários. O primeiro incluiu informações sociodemográficas, como idade, sexo, escolaridade, bens de consumo, situação conjugal, presença de filhos, cuidados com filhos, atividades domésticas e de lazer, além de informações sobre saúde, como fadiga e morbidade referida em relação a sintomas visuais, musculares e relacionados ao estresse. Os sintomas foram avaliados em relação à freqüência de aparecimento, incluindo as alternativas 'nunca', 'raramente', 'algumas vezes', 'freqüentemente' e 'sempre'. O segundo compreendeu dados sobre a história ocupacional, os aspectos das condições de trabalho percebidos como geradores de incômodo e fadiga e os relativos à satisfação no trabalho.

A aplicação dos questionários realizou-se em dois dias subseqüentes em cada empresa. No primeiro dia, os locais de trabalho foram visitados pela equipe de pesquisadores, e os profissionais foram informados acerca dos objetivos da pesquisa, do caráter voluntário da participação e da garantia de anonimato quanto às respostas. Nesse dia houve preenchimento do formulário 1. Do total de 745 profissionais, participaram 636 (85,4%), sendo 341 (85,6%) analistas do setor privado, e 295 (85%), da empresa estatal. Os motivos da não-participação foram: ausência por férias, atividade de treinamento em outra instituição (inclusive no exterior), reuniões com clientes fora do local de trabalho, licença-gestante e faltas. Registraram-se nove casos de recusa explícita.

A divisão do questionário em dois garantiu uma melhor qualidade das respostas ¾ exigindo menos tempo, em cada dia, para o preenchimento ¾, mas ocasionou o não-preenchimento de um dos questionários, uma vez que alguns analistas ausentaram-se devido a compromissos com clientes ou atividades de treinamento.

Por se tratar de um questionário auto-aplicado, foram eles conferidos pela equipe após a coleta, para retorno em caso de perguntas em branco ou respostas confusas.

Os dados foram digitados utilizando-se o software Epi Info. O controle do erro de digitação foi feito pela dupla digitação dos dados, com validação da concordância entre os digitadores e checagem das diferenças observadas nos questionários.

Para a análise de dados, foi feita a comparação entre homens e mulheres segundo características sociodemográficas, situação familiar, situação do trabalho e repercussões na saúde dos analistas de sistemas (incluindo-se o conjunto de funções que esses profissionais podem desempenhar). A análise estatística foi feita com as tabelas de contingência com qui-quadrado a 5% de significância, segundo o gênero. Foram calculadas as razões de prevalência (masculino/feminino) e os intervalos de confiança de 95%.

RESULTADOS

Do total de 636 analistas de sistemas que responderam a pelo menos um dos formulários, 553 preencheram adequadamente ambos os formulários. Destes, 225 (40,7%) eram mulheres, sendo 134 (59,6%) na faixa etária de 25 a 34 anos, configurando, portanto, uma população feminina jovem (Tabela 1).

Com referência ao grau de instrução, 89,8% das mulheres analistas de sistemas apresentavam curso superior completo, sendo esse percentual de 80,2% entre os homens. As informações socioeconômicas mostraram que 88% possuíam carro, 67% telefone, 59,1% moravam em casa própria, e 18,6% pagavam financiamento. Não se registrou diferença significativa quanto ao gênero em relação à posse de bens materiais.

No que diz respeito à situação familiar, verificou-se maior proporção de mulheres sem filhos (Tabela 1). Os analistas do sexo masculino casados (65,6%) referiram que cabe a suas esposas o papel de cuidar dos filhos (Tabela 1). Para as mulheres analistas de sistemas, o apoio no cuidado dos filhos provém basicamente de creches e escolas mas também de parentes e babás/empregadas domésticas. As mulheres também referiram maior número de horas dedicadas às tarefas domésticas, incluindo o cuidado dos filhos (Tabela 1).

Situação de trabalho

Dos 553 analistas de sistemas, não foram observadas diferenças na distribuição dos gêneros nos dois tipos de empresas estudadas (Tabela 2). De um modo geral, as mulheres referiram estar há menos tempo no mercado de trabalho (Tabela 2), correspondendo a 59,1% o número de mulheres com até 14 anos de trabalho. Entre os analistas do gênero masculino, a maior concentração ocorreu para a faixa de 20 anos e mais de trabalho (41,8%).

O processo de trabalho dos analistas de sistemas envolveu quatro tipos de funções interdependentes: (1) o analista de sistema propriamente dito, que mantém contato constante com o usuário, recebe solicitações e as transforma em produto e que predominou no presente trabalho (67,6%); (2) o analista de suporte ou de software, que organiza e auxilia quanto ao tipo de máquina, tipo de programa, banco de dados, cataloga as modificações do sistema e tem como clientes os analistas de sistema; (3) o analista de metodologia, que define o método de criação e registro dos sistemas; e (4) o analista de produção, que responde pelo planejamento da produção, atuando como elo de ligação entre o analista de sistemas e a operação (Tabela 2).

Comparando-se o perfil das funções do conjunto de analistas de sistemas de acordo com o gênero, observou-se predomínio dos homens (83,3%) nos 30 cargos de chefia existentes (Tabela 2).

Os aspectos do trabalho dos analistas de sistemas referidos como geradores de satisfação no trabalho, com freqüência semelhante para homens e mulheres, foram: reconhecimento profissional, criatividade e não haver rotina. Os fatores geradores de satisfação no trabalho que predominaram para os homens foram: flexibilidade de horário, capacidade tecnológica da empresa e valor do trabalho. Entre as mulheres, registrou-se mais freqüência de insatisfação com o trabalho (Tabela 3).

No que diz respeito a condições de trabalho percebidas como fatores de incômodo e de fadiga, emergiram com freqüências semelhantes para ambos os gêneros: prazos curtos, uso constante da mente e alto grau de responsabilidade. Os fatores de incômodo e fadiga que predominaram em mulheres foram: postura desconfortável, maior número de horas diárias frente ao terminal de vídeo e presença de equipamento e software obsoletos (Tabela 3).

Repercussões sobre a saúde

Quanto às repercussões do trabalho sobre a saúde, observou-se maior prevalência de sintomas de estresse para ambos os gêneros (Tabela 4). Quanto às mulheres, observou-se maior prevalência de sintomas de estresse em relação a irritabilidade, ansiedade, atenção instável e depressão. Observou-se maior prevalência entre as mulheres de sintomas visuais (cansaço nas vistas, redução da acuidade visual, lacrimejamento, dor de cabeça) e musculares (dor no pescoço e ombros e dor nas costas) (Tabela 4).

Também dentre as repercussões do trabalho sobre a saúde, destaca-se o predomínio, entre as mulheres, de referências à fadiga em seus diferentes aspectos: durante e após o trabalho e interferência da fadiga na escolha das atividades de lazer. Também entre as mulheres registrou-se maior prevalência de fadiga mental, física e visual (Tabela 5).

DISCUSSÃO

Os estudos sobre diferenciais de morbidade segundo o gênero têm consistentemente indicado maior freqüência de morbidade referida entre mulheres, padrão que se mantém mesmo na atualidade.13 A incorporação do papel do trabalho às análises dedicadas a morbidade e gênero é um fato recente, sendo, entretanto, escassos os estudos envolvendo sintomas de mulheres analistas de sistemas mesmo na literatura internacional.

O perfil de sintomatologia registrado para as mulheres analistas de sistemas provavelmente está associado a fatores comuns à situação de trabalho enfrentada por ambos os gêneros ¾ p. ex. prazos curtos para a execução de projetos, exigência mental do trabalho e relação com o computador ¾ mas também a fatores verificados como específicos entre as mulheres, como insatisfação com o trabalho, maior número de horas frente ao terminal e postura desconfortável.

Entre os sintomas referidos predominantemente pelas mulheres analistas, encontram-se os sintomas visuais, o que também foi verificado por Knave et al16 em operadores de terminal de vídeo que realizavam tarefas de digitação, aquisição de dados e comunicação interativa. Esses autores mostraram que a maior referência a sintomas visuais entre operadoras de terminal de vídeo estava associada à maior permanência diária no trabalho com o computador.

Estudos sobre o trabalho de mulheres com terminais de vídeo6,16 têm mostrado a presença de sintomas osteomusculares, o que também foi verificado nas analistas de sistemas. Rocha21 verificou a associação entre sintomas osteomusculares e fatores relativos às condições de mobiliário, equipamento, tipo de tarefa, características da organização do trabalho e fatores psicossociais do trabalho entre analistas de sistemas. A associação de sintomas osteomusculares com um conjunto de fatores das condições de trabalho também foi verificada por Bergvist et al.2

Outro importante grupo de distúrbios verificados em operadores de terminal de vídeo são os psicológicos relacionados a estresse. Segundo a Organização Mundial da Saúde,23 entre tais distúrbios incluem-se: irritabilidade, frustração, ansiedade, cansaço, fadiga e depressão. Esses distúrbios evidenciaram-se como muito importantes entre analistas de sistemas de ambos os gêneros no presente estudo, tendo sido também verificados por Kawakami et al15 e Gredilla & Gonzales11 entre pessoas que desenvolvem software.

A alta freqüência desses distúrbios relacionados a estresse entre os analistas de sistemas está associada a prazos curtos e sobrecarga de trabalho, resultante do impacto político/social do trabalho que desenvolvem e também da pressão exercida pelos usuários dos sistemas, conforme verificado por Merlo.18 Além disso, Rocha21 observou que a relação que os analistas de sistemas estabelecem com o computador adquire um caráter específico, associado ao conteúdo do trabalho: a elaboração do programa impõe o exercício de um raciocínio lógico, formal, binário (baseado em alternativas do tipo 'sim/não'), que envolve alto nível de detalhamento. O analista tem de prever todas as possibilidades de utilização do sistema desenvolvido.

No Japão, Fujigaki10 destacou a importância das exigências mentais do trabalho dos engenheiros de software, apontando para a fase de implantação de sistema como um momento em que os profissionais se declaravam "física e mentalmente exaustos".

Analisando os resultados obtidos quanto ao modelo de fatores de estresse e trabalho de Karasek & Theorell,14 pode-se caracterizar para os homens e as mulheres analistas de sistemas a presença de alta demanda no trabalho, seja pela sobrecarga quantitativa (prazos curtos) quanto pela sobrecarga qualitativa (alto grau de responsabilidade e uso constante da mente). Em relação ao controle do processo de trabalho, os homens parecem ter mais controle, pois referiram maior flexibilidade de horário no trabalho, bem como conhecimento do que o resultado do trabalho representa para a população. Em relação aos aspectos da tensão/aprendizagem, percebe-se que para homens e mulheres o trabalho apresenta a característica de ser uma atividade que dá a possibilidade de criar e em que não se fazem as mesmas tarefas todos os dias. O relacionamento com os colegas apareceu como fator protetor para homens e mulheres.

Apesar da importância dos distúrbios psicológicos verificada para o conjunto dos analistas de sistemas, a prevalência da fadiga e dos sintomas de depressão, irritabilidade e ansiedade foi maior entre as mulheres, o que pode estar relacionado a diferenças nas respostas biológicas, nas situações de trabalho, na percepção subjetiva do trabalho em termos de gênero e também na interseção entre os papéis exercidos pelas mulheres no trabalho e no lar.

No que diz respeito às diferenças das situações de trabalho entre analistas de sistemas segundo o gênero, observou-se predomínio de profissionais do gênero masculino nas funções de chefia, o que também foi verificado por Lundberg et al17 e Moulin.19

Analisando esse conjunto de repercussões na saúde verificado nas mulheres analistas de sistemas, segundo a formulação teórica proposta por Souza-Lobo,22 na qual o papel do gênero é definido como determinante cultural e ao mesmo tempo produto das relações sociais, observa-se que a incorporação da informática manteve a divisão sexual do trabalho. Pesquisa recente sobre esse tema realizada por Brito & Oliveira3 tem mostrado que a discriminação e a exclusão das profissionais do gênero feminino permanece, nos dias atuais, apesar da introdução de novas tecnologias e da intensa reestruturação produtiva em curso, o que traz sofrimentos físicos e psíquicos para as trabalhadoras.

No que diz respeito à inter-relação entre os papéis exercidos pelas mulheres no trabalho e em casa, o primeiro aspecto a ser destacado é a superposição de responsabilidades a que a mulher se submete, permanecendo sob sua responsabilidade o cuidado com a casa e a família, paralelamente à participação no mercado de trabalho. Conforme mostrou o presente estudo, as mulheres analistas de sistemas referem maior número de horas de trabalho doméstico, quando comparadas aos profissionais do gênero masculino, fato que tem sido observado também em outros países.13,17 Tal situação gera altos níveis de sobrecarga de trabalho, estresse e conflitos de magnitude crescente de acordo com o número de filhos de cada uma. Esta pode ser uma das razões pelas quais a ausência de filhos aparece com maior freqüência entre mulheres analistas de sistemas, o que também foi observado em estudo sobre trabalhadoras bancárias.8

A opção pelo modelo teórico do estresse,7,12,14,17 no presente estudo, mostrou-se adequada por adotar um enfoque multidisciplinar voltado para os aspectos psicossociais e emocionais no âmbito de um contexto multifatorial e sistêmico, em que a relação homem-ambiente é abordada de forma ampla, envolvendo trabalho, família e características pessoais.

Com referência à metodologia escolhida para o estudo, considera-se que um dos aspectos que se mostraram relevantes para a qualidade dos resultados foi o preenchimento, pelos profissionais pesquisados, do questionário sobre saúde em dia anterior ao preenchimento do referente às condições de trabalho, o que pode ter contribuído para que as reflexões sobre o trabalho não exercessem influência sobre as referências a sintomas.

Entretanto, entre as limitações presentes no estudo, destaca-se a avaliação apenas de trabalhadores em atividade, pois é reconhecido, em estudos epidemiológicos, o viés introduzido pelo trabalhador sadio.5

Concluindo, este estudo traçou um quadro de saúde dos homens comparando com as mulheres analistas de sistemas, observando que as exigências do trabalho, integradas às responsabilidades atribuídas à mulher no âmbito doméstico, geraram importantes repercussões sobre a saúde. Isto em razão do fato de a inserção crescente das mulheres no mercado de trabalho não ter sido acompanhada de uma distribuição mais balanceada de tarefas entre os gêneros. Além disso, os resultados obtidos ressaltam a importância de que em pesquisas sobre gênero, trabalho e saúde as situações de vida sejam avaliadas como um todo, contemplando as interações que se verificam entre trabalho e vida fora do trabalho.

Correspondência para/Correspondence to:

Lys Esther Rocha

Rua Álvaro Neto, 168

04112-070 São Paulo, SP, Brasil

E-mail: lysrocha@usp.br

Financiado pela Secretaria de Segurança de Saúde dos Trabalhadores do Ministério do Trabalho. Baseado em tese de doutorado apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 1996.

Recebido em 10/4/2000. Reapresentado em 16/6/2001. Aprovado em 13/8/2001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jan 2002
  • Data do Fascículo
    Dez 2001

Histórico

  • Aceito
    13 Ago 2001
  • Revisado
    16 Jun 2001
  • Recebido
    10 Abr 2000
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