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Comunicação relacionada ao uso de agrotóxicos em região agrícola do Estado do Rio de Janeiro

Pesticide use reporting in a rural area of Rio de Janeiro state, Brazil

Resumos

OBJETIVO: Analisar os aspectos de comunicação relacionados ao procedimento de uso de agrotóxicos em uma região agrícola. MÉTODOS: O estudo foi realizado na região da Microbacia do Córrego de São Lourenço, Estado do Rio de Janeiro. Baseia-se em triangulação metodológica, utilizando: entrevistas semi-estruturadas e observações de uma amostra da população residente na área de estudo (aproximadamente 600 habitantes); questionário elaborado para a caracterização do perfil da comunidade; e registro de palestras proferidas por agrônomos e outros profissionais do comércio e do poder público para a comunidade. RESULTADOS E DISCUSSÃO: Desvelaram-se algumas questões, como: o histórico de desinformação na região; a linguagem técnica empregada em ações educativas e de treinamento, impossibilitando a apropriação do conhecimento por parte do trabalhador rural; e a pressão da indústria/comércio, que cria "necessidades" para legitimar a venda desses produtos, resultando num processo de comunicação que realimenta a inserção desfavorável do homem do campo em uma economia de mercado mais ampla.

Praguicidas; Trabalhadores rurais; Saúde ocupacional; Comunicação; Educação em saúde; Uso de praguicidas; Entrevistas; Comunicação e saúde


OBJECTIVE: To assess communications aspects related to pesticide use in a rural area of the Rio de Janeiro state, Brazil. METHODS: The study was carried out in the area of São Lourenço stream. It was based on methodological triangulation comprising: semi-structured interviews and observation of a local population sample (about 600 inhabitants); structured questionnaire to collect data on the local community; and records of lectures given by agronomic engineers, pesticides traders and other public service professionals. RESULTS AND DISCUSSION: This study pointed out to the historical misinformation on pesticides in rural areas; the emphasis on technical language in educational and training activities available which constitutes a barrier for rural workers knowledge acquisition and empowerment; and the industry/commerce's pressure to legitimate pesticide trading, reinforcing the existing communication process, resulting in unfavorable inclusion of the rural worker into a broader market economy.

Pesticides; Rural workers; Occupational health; Communication; Health education; Pesticide use; Interview; Communication and health


Comunicação relacionada ao uso de agrotóxicos em região agrícola do Estado do Rio de Janeiro

Pesticide use reporting in a rural area of Rio de Janeiro state, Brazil

Frederico Peresa,Brani Rozemberga, Sérgio Rabello Alvesb, Josino Costa Moreirab e Jefferson José Oliveira-Silvab

aCoordenadoria de Epidemiologia e Avaliação do Centro de Pesquisas Hospital Evandro Chagas, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. bCentro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

DESCRITORES

Praguicidas.# Trabalhadores rurais.# Saúde ocupacional.# Comunicação.# Educação em saúde. Uso de praguicidas. Entrevistas. ¾ Comunicação e saúde.

RESUMO

OBJETIVO:

Analisar os aspectos de comunicação relacionados ao procedimento de uso de agrotóxicos em uma região agrícola.

MÉTODOS:

O estudo foi realizado na região da Microbacia do Córrego de São Lourenço, Estado do Rio de Janeiro. Baseia-se em triangulação metodológica, utilizando: entrevistas semi-estruturadas e observações de uma amostra da população residente na área de estudo (aproximadamente 600 habitantes); questionário elaborado para a caracterização do perfil da comunidade; e registro de palestras proferidas por agrônomos e outros profissionais do comércio e do poder público para a comunidade.

RESULTADOS E DISCUSSÃO:

Desvelaram-se algumas questões, como: o histórico de desinformação na região; a linguagem técnica empregada em ações educativas e de treinamento, impossibilitando a apropriação do conhecimento por parte do trabalhador rural; e a pressão da indústria/comércio, que cria "necessidades" para legitimar a venda desses produtos, resultando num processo de comunicação que realimenta a inserção desfavorável do homem do campo em uma economia de mercado mais ampla.

KEYWORDS

Pesticides.# Rural workers.# Occupational health.# Communication.# Health education. Pesticide use. Interview. ¾ Communication and health.

ABSTRACT

OBJECTIVE:

To assess communications aspects related to pesticide use in a rural area of the Rio de Janeiro state, Brazil.

METHODS:

The study was carried out in the area of São Lourenço stream. It was based on methodological triangulation comprising: semi-structured interviews and observation of a local population sample (about 600 inhabitants); structured questionnaire to collect data on the local community; and records of lectures given by agronomic engineers, pesticides traders and other public service professionals.

RESULTS AND DISCUSSION:

This study pointed out to the historical misinformation on pesticides in rural areas; the emphasis on technical language in educational and training activities available which constitutes a barrier for rural workers knowledge acquisition and empowerment; and the industry/commerce's pressure to legitimate pesticide trading, reinforcing the existing communication process, resulting in unfavorable inclusion of the rural worker into a broader market economy.

INTRODUÇÃO

Anualmente, 3 milhões de pessoas são contaminadas por agrotóxicos em todo o mundo, sendo 70% desses casos nos países em desenvolvimento,17 onde o difícil acesso às informações e à educação por parte dos usuários desses produtos, bem como o baixo controle sobre sua produção, distribuição e utilização são alguns dos principais determinantes na constituição dessa situação como um dos principais desafios de saúde pública.12

Os países em desenvolvimento são responsáveis por 20% do mercado mundial de agrotóxicos, entre os quais o Brasil se destaca como o maior mercado individual, representando 35% do montante, o equivalente a um mercado de 1,1 bilhão de dólares americanos (ou 150.000 t/ano).17

Dentro desse quadro, foram notificados no País, em 1997, 7.506 casos de intoxicação por agrotóxicos, sendo 5.198 causados por produtos usados na agropecuária e 2.308 por produtos de uso doméstico (também chamados de pesticidas domésticos, comuns às campanhas de saúde pública), respondendo por aproximadamente 10% de todos os casos de intoxicação registrados no País.15 De acordo com estimativas do Ministério da Saúde, para cada evento de intoxicação por agrotóxicos notificado, há outros 50 não notificados, o que elevaria o número da contaminação/ano para 365.300 casos. Os números impressionam, principalmente quando se considera a forte pressão exercida pela indústria internacional ¾ responsável pela produção e distribuição de agrotóxicos ¾ sobre o mercado consumidor brasileiro. Tal fato, aliado às dificuldades na assistência do homem do campo por parte do poder público ajuda a estabelecer uma situação de risco extremo à saúde desses trabalhadores.13

Observou-se nos últimos anos, na região da Microbacia do Córrego de São Lourenço, um número representativo de casos (suspeitos e confirmados) de intoxicação por agrotóxicos, inclusive com o registro de alguns óbitos. Tal fato motivou a Associação de Pequenos Produtores Rurais de São Lourenço e a Cooperativa de Produtores de Nova Friburgo, ambas com sede na região, a procurar o Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Fundação Oswaldo Cruz, Laboratório de Toxicologia, que relataram os casos mencionados, resultando na construção de um projeto de pesquisa integrado, com participação, além do referido Laboratório, da Empresa Estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio de Janeiro e da Empresa Estadual de Pesquisa Agropecuária do Rio de Janeiro, Nova Friburgo, do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), da Universidade do Rio de Janeiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sobre o "Destino dos agrotóxicos na região da Microbacia do Córrego do São Lourenço, Nova Friburgo, RJ".* * Projeto de pesquisa integrado "O Destino dos agrotóxicos na região da Microbacia do Córrego do São Lourenço" ¾ Papes/CESTEH/Fiocruz, 1997 ¾, coordenado pelo Laboratório de Toxicologia do CESTEH/ENSP, Fundação Oswaldo Cruz. Parte dos resultados desse projeto foi incluída na dissertação de mestrado apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz).

O presente artigo focaliza, em particular, a maneira como os produtos agrotóxicos foram e continuam a ser apresentados aos pequenos produtores rurais, bem como o discurso que legitima sua massiva utilização.

MÉTODOS

A região da Microbacia do Córrego do São Lourenço é uma das principais regiões produtoras de olerícolas (legumes) do Estado e do País. A intensa produtividade e o fato de na região preponderar os pequenos produtores rurais (sítios de 1 a 12 ha., representando 74% do total de propriedades na região) caracterizam um perfil de produção baseado na policultura, com mão-de-obra 100% familiar ¾ características típicas de comunidades camponesas, fruto da origem européia dos núcleos familiares da região.5

Devido a essa intensa produtividade, à rotação de policulturas e ao fato de o clima e a distribuição sazonal das culturas permitirem um cultivo anual, ininterrupto, pôde-se constatar que os trabalhadores da região estavam expostos continuamente aos efeitos nocivos dos agrotóxicos. O regime anual de uso de agrotóxicos apresenta uma variabilidade que acompanha diretamente a sazonalidade da produção: observa-se maior aporte dessas substâncias nas lavouras de verão, em especial a do tomate, com um consumo total de aproximadamente 5,7 t/safra(ou gasto de R$ 208.650,00** ** Equivalente a US$ 76,150.00. ). As lavouras de inverno, com destaque para a cultura da couve-flor, consomem aproximadamente 2,5 t/safra (ou gasto de R$ 90.000,00*** *** Equivalente a US$ 32,846,00 ).13

O método adotado centrou-se nas observações do processo de trabalho agrícola, nas observações e no registro de eventos acerca da comunicação entre técnicos e agricultores ocorridos na região e entrevistas semi-estruturadas sobre as práticas de uso de agrotóxicos, o processo de trabalho agrícola, o histórico de utilização de agrotóxicos na região e as informações disponíveis sobre esses produtos.

Inicialmente foram entrevistados 23 produtores rurais, tendo como unidade amostral as residências da área de estudo. A escolha das residências de amostra foi feita observando-se um intervalo de três casas, a partir da primeira situada na estrada principal de acesso à região. Assim, o processo de amostragem cobriu todas as regiões da área de estudo. Tal procedimento se fez necessário, uma vez observado que os trabalhadores residentes de áreas mais distantes da estrada principal apresentavam dificuldades em participar de palestras e reuniões comunitárias, onde a questão dos agrotóxicos era freqüentemente abordada.

As entrevistas englobaram questões específicas sobre os seguintes pontos: (a) histórico de utilização (pessoal e regional) de agrotóxicos; (b) regime e práticas de uso; (c) fonte(s) de informação sobre esses produtos; (d) práticas de venda; (e) percepção de risco; (f) relatos sobre eventos de intoxicação experimentados pelos trabalhadores; (g) relatos sobre eventos de intoxicação experimentados por outros trabalhadores (conhecidos); (h) segurança e proteção no trabalho; (i) segurança e proteção no transporte de agrotóxicos; (j) problemas de saúde; (k) e exemplos de contaminação ambiental e sua relação com o uso de agrotóxicos. A essas questões eram adicionadas outras consideradas apropriadas quando havia a necessidade de aprofundamento de alguma questão específica que tenha surgido durante o processo de realização das entrevistas. Tal procedimento possibilitou proporcionar novas categorias de análise e indicou pontos específicos para análises mais aprofundadas e/ou novos estudos.

À totalidade dos trabalhadores rurais que detinham o controle sobre o processo de produção (48 trabalhadores), independente da posse da terra, foi aplicado um questionário. Foram excluídos os meeiros, uma vez verificado que tais trabalhadores obedeciam estritamente às orientações dos proprietários, não participando de eventos e reuniões comunitárias onde a comunicação sobre agrotóxicos era observada e acatando as determinações de seus "patrões" (os proprietários da terra). Esse questionário, além de fornecer dados objetivos sobre práticas, regime de uso e gastos com agrotóxicos, possibilitou a contextualização dos dados obtidos com as entrevistas.

A análise do indicador de quantidade de agrotóxico por trabalhador/ano, usado pelo IBGE6 quando da realização de seus censos agropecuários, deu-se tomando por base os gastos com agrotóxicos referidos pelos produtores autônomos (n=48) da região. O cálculo desse indicador, a partir de dados fornecidos pelos produtores, conferiu ao resultado maior acuidade em relação aos dados do IBGE,6 que se baseia nas informações dadas pelos comerciantes (que muitas vezes submensuram suas vendas, como prática de evasão fiscal).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os cálculos do indicador quantidade de agrotóxico/trabalhador/ano revelaram uma relação de 56,5 kg de agrotóxicos por trabalhador/ano, valor 76% maior do que a média do IBGE para todo o Estado de São Paulo (o maior índice do País) e 1.822% maior que a média do Estado do Rio de Janeiro.6 A incidência de um valor tão elevado pode estar relacionada tanto à intensa produtividade na região quanto à forte pressão exercida pelas empresas que comercializam tais produtos, que visitam semanalmente os trabalhadores tendo sempre à ponta da língua um produto agrotóxico que venha a se caracterizar ¾ literalmente ¾ como a salvação da lavoura. Pode-se também atribuir tal discrepância às diferenças, anteriormente mencionadas, relacionadas às metodologias de construção desse indicador adotadas pelo presente trabalho e pelo IBGE.6

O histórico de utilização dos agrotóxicos na região teve início, segundo os relatos de agricultores e comerciantes registrados nas entrevistas e nos questionários da pesquisa, há aproximadamente 30 anos. De acordo com esses relatos, ao longo do referido período parece ter havido uma história de forte pressão do mercado para a compra desses produtos ¾ materializada no trabalho de agrônomos ligados às casas comerciais ¾ acompanhada de uma tendência, por parte dos técnicos, de negligenciar o fornecimento de informações que levassem em conta os interesses e os conhecimentos prévios da população. Constatava-se também a carência de serviços de extensão rural do poder público.

A entrada dos produtos agrotóxicos na região deu-se sob o discurso de que esses produtos eram a "tábua de salvação" para a "infestação de insetos e pragas" que potencialmente poderiam destruir todas as lavouras. Alguns relatos de produtores dão conta dessa "orientação", recebida geralmente de vendedores, para o uso de tais produtos:

"Eles falava que se não apricasse, ia chegar a um ponto em que eu não conseguia colher, né, porque os bicho ia atacar a lavoura, né, e que tinha que usar agrotóxico senão destruía as lavoura, né." (Agricultor, 49 anos)

"À gente, o que era dito era o seguinte: 'você tem que usar este tipo de produto', quer dizer, 'você deveria, teria que usar porque você corria o risco de perder a lavoura'." (Agricultor, 39 anos)

Enquanto o discurso sobre o "terror das pragas iminentes" era disseminado na região, os agrotóxicos consolidavam o status de ícones da modernidade. Além disso, um dos pré-requisitos para a obtenção de crédito rural na época era o uso de agrotóxicos na lavoura.**** **** Comunicação pessoal do presidente da cooperativa de crédito local.

Com o passar do tempo, a orientação deu lugar à venda por si só, como se pôde observar nos relatos dos trabalhadores entrevistados, confrontando o início da comercialização desses produtos e a forma como ela ocorre atualmente:

"Na ocasião que eles vendia, eles já falava pra tê cuidado com isso, que isso é perigoso, na hora de apricár (...) orientava o povo, né? Na hora que foi começando, né, a sair os produto (...) Mas depois, pro fim, que pegou a aumentagem, né, pro fim (era) só vender mesmo, eles (já) não orienta mais nada." (Agricultor, 49 anos)

Pergunta: E o que esses vendedores costumam falar sobre esses produtos?

"Ah, eles não fala nada não, só dá indicação e o tanto que usa... Só fala `o Sr. usa tanto disso, tanto daquilo'; Se tem um bicho assim, assim', ela já diz `tem que ser esse remédio (agrotóxico)'. Mas precarção, avisando a gente, nada não." (Agricultor, 27 anos)

O estudo de Neill11 sobre o histórico de comunicação acerca das drogas de ação no sistema nervoso central descreve um percurso semelhante e pode permitir um paralelo com o problema da comunicação sobre agrotóxicos. Inicialmente, as bulas e propagandas desses medicamentos de ação sobre o sistema nervoso central recomendavam o uso dessas substâncias como coadjuvantes no tratamento de pacientes com distúrbios psiquiátricos e/ou psicológicos. Tais bulas/propagandas também apresentavam indicação de que, uma vez observada a diminuição dos sintomas, a medicação deveria ser diminuída ou encerrada, e, também, centrava-se a atenção no tratamento das causas da doença e na relação médico/paciente. Com o passar dos anos, tais medicamentos tomam a conotação ¾ nas propagandas de revistas médicas ¾ de imprescindíveis ao tratamento médico, sendo indispensável seu uso agregado às terapias. Segundo Neill, nas últimas décadas, a propaganda sobre esses medicamentos passa a referi-los como sendo o tratamento por si só, caracterizado como "tratamento químico" para os distúrbios psicológicos/psiquiátricos. A reificação do tratamento químico, somada ao abandono das referências em relação à terapêutica e ao uso cada vez mais freqüente de ícones cientificistas nas propagandas, faz com que desapareçam as alternativas a esse tipo de tratamento.

Também no comércio sobre agrotóxicos observa-se o desaparecimento de referências aos cuidados, ao uso seletivo e à existência de alternativas a seu emprego. As empresas produtoras desses produtos competem entre si, lançando mão de recursos de comunicação cada vez mais sofisticados, apoiados no "fetiche" da ciência como solução para todos os problemas humanos. Em vez de instrumento para a busca da verdade, a ciência é usada como "legitimadora" de verdades e, em última análise, a verdade por si só. Sobre a discussão acerca da busca pela verdade, que permeia todas essas relações, Foucault escreve: "O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções, e nele produz efeitos regulamentados de poder".7

A verdade está, para Foucault, nas coerções que regem as relações de poder no mundo. Em seu estudo antropológico sobre a construção das verdades científicas, Latour & Woolgar10 descrevem o embate entre enunciados produzidos por pesquisas de laboratório, demonstrando que um enunciado ganha o estatuto de "fato", uma "realidade", quando sua força de convicção é suficiente para que os outros interlocutores cessem a ação de levantar objeções sobre ele. O enunciado vencedor não poderá mais ser posto em dúvida e se torna um fato científico. A definição dos autores para o real é simples e brilhante: "O que não pode ser mudado à vontade é aquilo que conta como real".10

Atualmente não existem alternativas ao uso dos agrotóxicos na lavoura, afirmação determinista controlada pela indústria química por seus diversos meios de comunicação. Com isso, todos os trabalhadores entrevistados também se referiam à questão de forma determinista, garantindo não haver alternativa ao uso do agrotóxico ("se não usar, não colhe", a frase mais ouvida durante as entrevistas).

O discurso e as práticas evidenciadas na pesquisa de campo, de um modo generalizado, tendem a justificar o uso de agrotóxicos pela necessidade de uma "agricultura produtiva", que seria a única solução para "resolver o problema da fome mundial", uma vez que a "população vem crescendo rápida e exponencialmente" e que "as terras disponíveis para a agricultura estão diminuindo drasticamente". Tal discurso foi registrado nas falas de agrônomos e outros profissionais ligados às casas comerciais e mesmo ao poder público e tem uma origem muito clara: o interesse das grandes indústrias químicas, fabricantes de produtos agrotóxicos, que encontram em associações e entidades ligadas ao comércio um "respaldo legítimo" para a disseminação de tal discurso:

"Digo isso sem medo de errar, porque é muito simples, é matemático: você tem uma população hoje de mais de 5 bilhões de pessoas e uma pequena parte dessa população para produzir alimento para a grande parte da população que está nas cidades. Então é... é numericamente impossível você conseguir isso (sem agrotóxicos)." (Engenheiro Agrônomo ligado ao comércio)

O discurso dos profissionais no campo pareceu familiar. Procurou-se analisar a parte documental e verificou-se que a Associação Nacional de Defesa Vegetal,1 órgão que reúne os fabricantes de agrotóxicos no Brasil, apresenta a mesma justificativa em texto sobre a necessidade do uso de agrotóxicos:

"A demanda de crescimento da população mundial por alimentos e fibras requer uma agricultura que produza grande quantidade por área cultivada. Alimentar as populações futuras da mesma forma como é realizado hoje em dia não é viável: isto requereria um drástico aumento da área cultivada e a redução de florestas naturais. Em muitas partes do mundo não há mais terras aráveis disponíveis. Em outras, uma expansão da área plantada seria ambientalmente e socialmente inaceitável (...) Para combater as perdas causadas nas colheitas, requer-se uso de produtos fitossanitários e da biotecnologia é um importante princípio sobre os quais a proteção de plantas sustentável pode ser baseada."1

Por sua vez, tal discurso tem suas bases naquele de uma das maiores indústrias químicas do mundo ¾ e uma das principais produtoras de agrotóxicos, com filiais no Brasil ¾, a alemã Bayer. Em texto oficial dessa empresa, pode-se entender a origem da situação de drástico determinismo enfrentada pelos produtores rurais brasileiros. Ele é decorrência direta do discurso dos profissionais de campo e da associação que congrega os fabricantes de agrotóxicos no Brasil e, naturalmente, de uma grande parte dos profissionais que saem das universidades para o enfrentamento da realidade de trabalho:

"A quantidade de terras aráveis é limitada mundialmente, e a população cresce incessantemente. Como resultado, uma agricultura intensiva, ambientalmente adequada, é necessária para garantir o direito básico de todas as pessoas terem alimento suficiente. Nossa responsabilidade para com as gerações futuras significa que nós devemos praticar uma agricultura sustentável, garantir que as lavouras serão protegidas e explorar as terras disponíveis à agricultura de modo intensivo".2 "Este é o único meio de garantir as necessidades de alimento da população, a qual ainda está em crescimento (...) Haverá um crescimento de 80 milhões de pessoas ao ano, até o ano de 2020, levando a população mundial para mais de 8 bilhões".2

O que se pode observar é a reprodução dos mandamentos do capital industrial internacional nos discursos de profissionais que atuam no campo, como forma de justificar (ou legitimar) as práticas de uso de agrotóxicos. Alguns pontos podem ser observados no conteúdo desses discursos:

• legitimação de práticas agrícolas "intensivas" (leia-se químicas, científicas) pela demanda de alimentos de uma população que cresce "incessantemente";

• necessidade de uma agricultura que não interfira com o ambiente. O discurso é paradoxal, pois pressupõe que preservar o ambiente é tão somente proteger as florestas, evitando que elas virem áreas disponíveis à agricultura e esquecendo-se do impacto ambiental causado pelos próprios agrotóxicos, cuja utilização esse discurso estimula. Nesse sentido, não parece verossímil o interesse ambiental dessas indústrias; talvez seja uma forma de sustentar sua imagem apoiando-se no grande interesse da população mundial pelas questões ambientais nas duas últimas décadas;

• responsabilidade imputada à população, de um modo geral, de garantir o alimento para as gerações futuras.

Tais questões, pouco discutidas pela sociedade civil, parecem estar no cerne do problema do uso de agrotóxicos em escala planetária, reproduzidas e legitimadas por profissionais e entidades que prestam a assistência ao trabalhador rural ¾ o lado mais fraco (no sentido de força política e decisória), porém o mais atingido nesse sistema de relações de interesse.4

Outro aspecto fundamental analisado nas palestras de profissionais de campo foi a linguagem eminentemente técnica adotada:

"...o que acontece a nível de sociedade (sic), bom, já que nós temos uma produção muito grande, né, a sociedade começa e questionar esta questão da utilização de agrotóxicos em grande quantidade, por que hoje o modelo da agricultura existente já permite uma produção capaz de suprir a demanda mundial, utilizando uma quantidade menor de produtos agrotóxicos (...) porque o que acontece aí com o lixo, o que acontece com a camada de ozônio, vai chegar um ponto em que nós vamos inviabilizar a vida no planeta, porque a população está aumentando desproporcionalmente, e a Terra tem uma capacidade de suporte de pessoas, e nós já ultrapassamos esta capacidade, então, a gente precisa rever todo o sistema de produção ..." (Engenheiro agrônomo do poder público)

Não levando em questão o conteúdo alarmista de tal fala (uma vez que parece ter sido esta a intenção do palestrante), o nível de abstração presente em todo o discurso foge às possibilidades de compreensão da audiência presente na ocasião,3 composta por trabalhadores rurais cuja forma de pensar o mundo tende a ser concreta, com pouca tendência a generalizações e abstrações.15 Assim, como entender seu papel, no mundo em que vive, quando o tema é tratado por 'demandas sociais' e 'modelos de produção'? Como poderia esse grupo se conceber dentre os possíveis 'agressores' do planeta Terra (pelo uso excessivo e "deliberado" de agrotóxicos) na mesma esfera (e no mesmo fôlego do palestrante) que os emissores de CO2 ou ainda em relação à problemática sobre a diminuição da camada de ozônio que protege a atmosfera?

A formação cada vez mais especializada dos profissionais, bem como o despreparo para lidar com universos de significação de grupos sociais distintos dos de origem,4 determina a insegurança do profissional na confrontação de uma realidade nova ¾ ou com interlocutor desconhecido ¾, contribuindo para uma tendência de aferrar-se aos próprios "conhecimentos", reproduzindo assim sua própria visão de mundo e a impondo como modelo àqueles grupos.

A comunicação cada vez mais aparece como um instrumento de segregação: quem domina os padrões 'mais elaborados', 'formais' ou 'cultos' tem a capacidade de formar 'guetos' em torno desse saber,9 desconsiderando ou negligenciando aqueles que não os dominam, contribuindo para a exclusão social 'smundialmente aceita'.8 Ainda que inconscientemente, o uso de terminologia de difícil acesso atende a muitas "conveniências" da atividade dos profissionais "sobre" a clientela, mantendo o distanciamento e a hierarquização da relação.4,17

AGRADECIMENTOS

Aos Doutores José Américo Canelas, do Escritório da Emater de Nova Friburgo, e Carlos Antônio Barradas, da Estação Experimental da Pesagro de Nova Friburgo, pelo imprescindível auxílio prestado a este trabalho, à comunidade da região da Microbacia do Córrego do São Lourenço, pela acolhida aos pesquisadores.

Correspondência para/Correspondence to:

Frederico Peres

Coordenadoria de Epidemiologia e Avaliação/CPqHEC ¾ Fiocruz

Av. Brasil, 4365, Manguinhos

21045-900 Rio de Janeiro, RJ, Brasil

E-mail: fperes@ensp.fiocruz.br

Subvencionado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq Processo nº 1114/98). Baseado na dissertação de mestrado apresentada na Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz, 1999.

Recebido em 15/12/2000. Reapresentado em 30/7/2001. Aprovado em 19/9/2001.

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  • *
    Projeto de pesquisa integrado "O Destino dos agrotóxicos na região da Microbacia do Córrego do São Lourenço" ¾ Papes/CESTEH/Fiocruz, 1997 ¾, coordenado pelo Laboratório de Toxicologia do CESTEH/ENSP, Fundação Oswaldo Cruz. Parte dos resultados desse projeto foi incluída na dissertação de mestrado apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz).
  • **
    Equivalente a US$ 76,150.00.
  • ***
    Equivalente a US$ 32,846,00
  • ****

    Comunicação pessoal do presidente da cooperativa de crédito local.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2002
    • Data do Fascículo
      Dez 2001

    Histórico

    • Recebido
      15 Dez 2000
    • Revisado
      30 Jul 2000
    • Aceito
      19 Set 2001
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