Acessibilidade / Reportar erro

Sinais clínicos no diagnóstico de anemia: uma ação tardia e ineficiente no combate à deficiência de ferro

Clinical signs to diagnose anaemia: a late and inefficient action against iron deficiency

CARTAS AO EDITOR

Sinais clínicos no diagnóstico de anemia: uma ação tardia e ineficiente no combate à deficiência de ferro

Clinical signs to diagnose anaemia: a late and inefficient action against iron deficiency

Mauro Batista de Morais; Vera Lucia Sdepanian

Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina

São Paulo, 22 de setembro de 2003.

Prezado Professor Forattini,

Foi com grande interesse que lemos o artigo de Spinelli et al5 na Revista de Saúde Pública. Na década de 1990, preocupados com a conduta de muitos pediatras indicarem a dosagem de hemoglobina e/ou outros exames laboratoriais para confirmar o diagnóstico de anemia apenas quando o exame físico revelava a presença de sinais clínicos sugestivos, desenvolvemos tese de mestrado. Publicada em 1996,3 ela avaliava a reprodutibilidade e a precisão dos sinais clínicos de anemia pesquisados por médicos. Os resultados mostraram que a precisão (sensibilidade e especificidade) e a reprodutibilidade (coeficiente Kappa) da pesquisa de sinais clínicos de anemia ficavam aquém do desejável. Concluiu-se, então, que o diagnóstico de anemia a partir do exame físico é um procedimento inadequado.3

Levando em consideração a inexistência de estudos realizados no Brasil a respeito do papel do exame físico no diagnóstico de anemia e a dificuldade e o custo da realização de exames de sangue, Spinelli et al5 avaliaram a confiabilidade e a validade da pesquisa de palidez palmar e de conjuntivas no diagnóstico de anemia em lactentes e pré-escolares. A pesquisa foi realizada por diferentes profissionais (nutricionista, auxiliar de enfermagem, coordenadora de creche e diretora de creche), que constataram que esses sinais clínicos apresentavam baixa sensibilidade, o que desqualificaria o método para fins de triagem. Mesmo assim, os autores discutem que, para a implantação dessa técnica como rotina de triagem de anemia, haveria a necessidade de um "treinamento intensivo a ser realizado em várias etapas, com ônus de tempo e incômodo para as crianças que deveriam ser examinadas várias vezes". Contraditoriamente, finalizam o artigo, afirmando que "a técnica (pesquisa de sinais clínicos de anemia) é simples e de fácil aplicação" (não requer nenhum investimento além do treinamento de qualquer funcionário da creche). Concluem, assegurando que a pesquisa de sinais clínicos pode "representar uma grande economia de recursos, desde que aprimorada".

Nossa interpretação dos resultados é diferente. Não acreditamos que qualquer tipo de treinamento possa capacitar profissionais da saúde, médicos ou não médicos, para o preciso reconhecimento de anemia pelo exame clínico, uma vez que toda a literatura referenciada em nosso artigo3 e no de Spinelli et al,5 bem como os próprios resultados desses dois estudos3,5 concordam, mostrando que a performance diagnóstica do exame físico não é adequada para a identificação da maior parte das crianças com anemia. É provável que a limitação do exame físico no diagnóstico de anemia seja decorrente da limitação sensorial da visão humana para a percepção das nuanças do descoramento, especialmente quando a anemia não é grave, o que corresponde à maior parte dos casos de anemia na população pediátrica. Assim, conforme publicamos previamente,3 em função das limitações do exame físico, recomendamos a dosagem rotineira da hemoglobina em todas as crianças nas faixas etárias de maior risco de anemia. Tal procedimento pode proporcionar a devida atenção diagnóstica e terapêutica para a expressiva parcela de crianças portadoras de anemia que não seriam diagnosticadas corretamente pelo exame físico. Vale lembrar que a realização rotineira de exames subsidiários para a pesquisa de anemia em crianças é preconizada há muito tempo pelo Comitê de Nutrição da Academia Americana de Pediatria.1

Acreditamos, também, que os recursos para o combate da principal causa de anemia, a deficiência de ferro, devem ser concentrados na implementação de medidas preventivas: utilização de alimentos fortificados e suplementação marcial, conforme recomendado na literatura nacional2,4 e internacional.1 Por sua vez, a avaliação da efetividade dessas medidas deve ser feita por exames laboratoriais (hemoglobina sangüínea e, quando possível, ferritina sérica) e não pelo exame físico, em função de seu limitado desempenho diagnóstico. Concluindo, em nossa opinião, a pesquisa dos sinais clínicos para o diagnóstico de anemia constitui uma ação tardia e ineficiente no combate à deficiência de ferro.

REFERÊNCIAS

1. Academia Americana de Pediatria. Comitê de Nutrição. Deficiência de ferro. In: Barness LA, editor. Manual de nutrição pediátrica. São Paulo: Pharmapress; 1992. p. 227-36.

2. Queiroz SS, Torres MAA. Anemia ferropriva na infância. J Pediatr 2000;76:S298-304.

3. Sdepanian VL, Silvestrini WS, Morais MB. Limitação diagnóstica do exame físico na identificação de crianças com anemia. Rev Assoc Med Bras 1996;42:169-74.

4. Sigulem DM. Anemia nutricional ferropriva na primeira infância. In: Barbieri D, Palma D. Gastroenterologia e nutrição. São Paulo: Atheneu; 2001. p. 297-310. (Série Atualizações Pediátricas).

5. Spinelli MGN, Souza JMP, Souza SB, Sesoko EH. Confiabilidade e validade da palidez palmar e de conjuntivas como triagem de anemia. Rev Saúde Pública 2003;37:404-8.

RESPOSTA DOS AUTORES:

São Paulo, 30 de janeiro de 2004.

Sr. Editor,

Prezado Em relação à carta enviada pelo Prof. Dr. Mauro B. de Morais, achamos oportuno esclarecer que a creche é um equipamento social que apenas promove a saúde da criança sob o aspecto preventivo, motivo pelo qual foi implantada, na Agenda Mínima de Saúde, a triagem de anemia por meio de sinais clínicos. Em relação a essa diretriz, pretende-se que os funcionários de creche estejam alertas para sinais que indiquem alguma possível enfermidade e, no caso de suspeita, encaminhem a criança para cuidados médicos. É importante ressaltar que esse procedimento é apenas uma triagem, não tendo nenhuma pretensão diagnóstica.

O estudo procurou avaliar a validade e a confiabilidade dessa técnica de triagem, utilizando os resultados de uma coleta de sangue realizada em uma das creches; nossos resultados foram similares aos encontrados pelo missivista. Não nos consideramos contraditórios, apenas concluímos ser precipitado descartar a técnica, uma vez que essa foi implantada e que poderia se constituir em uma ação complementar.

Também não achamos adequado o uso sistemático de coleta por punção venosa para processo de triagem de anemia.

Atenciosamente,

Mônica G N Spinelli, José Maria P Souza, Sonia B de Souza e Edna H Sesoko

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@usp.br