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Competência profissional e assistência em anticoncepção

Resumos

OBJETIVO: Avaliar a competência técnica de profissionais que atuam no cuidado em anticoncepção. MÉTODOS: Realizou-se pesquisa do tipo avaliativa, na área da saúde, em oito municípios do Estado do Ceará, de julho a setembro de 2003. Os dados foram coletados mediante entrevistas com 29 enfermeiros e 50 usuários do Programa Saúde da Família e observações feitas nas unidades de saúde. RESULTADOS: A maioria dos enfermeiros havia participado de alguma capacitação sobre anticoncepção e normas técnicas. No entanto, foi relatada a existência de barreiras profissionais pelos enfermeiros e outras foram identificadas pelos usuários, os quais mostraram a necessidade de melhor capacitação dos profissionais que atuam nessa área. Os enfermeiros reconheceram dificuldades, tanto na comunicação e informação quanto técnicas, no manejo dos anticoncepcionais. CONCLUSÕES: Há lacunas na competência profissional em anticoncepção que associadas a falta de sistematização do trabalho em equipe, geram distorções na qualidade da atenção. O trabalho em equipe foi caracterizado pela indefinição de atribuições e tarefas dos seus membros.

Planejamento familiar; Anticoncepção; Competência profissional; Capacitação em serviço; Educação em saúde; Avaliação; Saúde da família


OBJECTIVE: To evaluate the technical competence of professionals carrying out activities related to contraceptive care. METHODS: Evaluative research in the field of health was conducted in eight districts of the State of Ceara from July to September 2003. Data was collected by means of interviews with 29 nurses working in the Family Health Care Program within these districts and 50 people being attended by this program. Observations of the Family Health Care Units were a complementary source of data within this study. RESULTS: The majority of nurses had received some form of training regarding contraception and the technical norms regulating their use. However, professional barriers were reported by the nurses and others were identified by lay persons being attended by the program, that indicate the need to provide better training for professionals engaged in this area of care. The nurses recognized they had deficits in information and communication skills as well as technical deficits in dealing with contraception. CONCLUSIONS: There are gaps in professional competence with regard to contraceptive care that, when associated to the lack of systematization of team work, generates distortions in the quality of care. Team work was characterized by the lack of definition of team members' specific attributions and tasks.

Familiar planning services; Contraception; Professional competence; In-service training; Health education; Evaluation; Family health


ARTIGOS ORIGINAIS

Competência profissional e assistência em anticoncepção

Escolástica Rejane Ferreira MouraI; Raimunda Magalhães da SilvaII

IDepartamento de Enfermagem. Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE, Brasil

IICentro de Ciências da Saúde. Universidade de Fortaleza. Fortaleza, CE, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Escolástica Rejane Ferreira Moura Av. Filomeno Gomes, 80 Apto 401 Jacarecanga 60010-280 Fortaleza, CE, Brasil E-mail: escolpaz@yahoo.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a competência técnica de profissionais que atuam no cuidado em anticoncepção.

MÉTODOS: Realizou-se pesquisa do tipo avaliativa, na área da saúde, em oito municípios do Estado do Ceará, de julho a setembro de 2003. Os dados foram coletados mediante entrevistas com 29 enfermeiros e 50 usuários do Programa Saúde da Família e observações feitas nas unidades de saúde.

RESULTADOS: A maioria dos enfermeiros havia participado de alguma capacitação sobre anticoncepção e normas técnicas. No entanto, foi relatada a existência de barreiras profissionais pelos enfermeiros e outras foram identificadas pelos usuários, os quais mostraram a necessidade de melhor capacitação dos profissionais que atuam nessa área. Os enfermeiros reconheceram dificuldades, tanto na comunicação e informação quanto técnicas, no manejo dos anticoncepcionais.

CONCLUSÕES: Há lacunas na competência profissional em anticoncepção que associadas a falta de sistematização do trabalho em equipe, geram distorções na qualidade da atenção. O trabalho em equipe foi caracterizado pela indefinição de atribuições e tarefas dos seus membros.

Descritores: Planejamento familiar. Anticoncepção. Competência profissional. Capacitação em serviço. Educação em saúde. Avaliação. Saúde da família.

INTRODUÇÃO

A competência profissional no campo da anticoncepção deve incluir os conhecimentos técnicos, científicos e culturais atualizados, direcionados ao atendimento das necessidades de saúde sexual e reprodutiva dos clientes. Isso inclui habilidade para dar orientação, informar e comunicar-se adequadamente, participando da tomada de decisões quanto aos métodos anticoncepcionais (MAC) e acolhendo com respeito o/a cliente. A esse respeito, o Ministério da Saúde7 acrescenta que os profissionais devem estar preparados para lidar com mitos, preconceitos e percepções errôneas que os indivíduos acumulam com relação aos MAC, sexualidade, saúde reprodutiva, acompanhamento dos filhos, dentre outros.

A atuação dos profissionais de saúde no campo do planejamento familiar está amparada na Constituição Federal, artigo 226, parágrafo 7º, que recomenda uma assistência embasada no princípio da paternidade responsável e no direito de livre escolha dos indivíduos e/ou casais.7 Portanto, as ações voltadas à anticoncepção têm como pressuposto a oferta dos MAC aprovados no País, para garantir à mulher, homem ou casal a possibilidade de livre escolha. Os métodos atualmente disponíveis e autorizados no Brasil incluem os comportamentais, hormonais orais e injetáveis, preservativo masculino e feminino, diafragma, espermicida, DIU, laqueadura e vasectomia.8

Para que a assistência em anticoncepção seja ofertada com qualidade à população, foram estabelecidos elementos que assegurem esse cuidado em planejamento familiar. Entre eles, estão a oferta de MAC, a informação ao cliente, o relacionamento interpessoal, a competência profissional, o acompanhamento dos usuários e a disposição de uma rede apropriada de serviços.2 Porém, a competência profissional é um dos aspectos mais difíceis de serem avaliados, uma vez que os clientes avaliam este aspecto mais pelo tempo gasto com eles e o acolhimento que lhes foi dirigido, do que propriamente o conhecimento técnico e as habilidades profissionais. A mesma autora narrou que a incompetência clínica, especificamente, é relatada raramente, pois a documentação a respeito de procedimento clínico e suas conseqüências foi escassa e pobre. Exceção foi o estudo detalhado sobre as mortes por esterilização em Bangladesh, conseqüentes de circunstâncias físicas não sanitárias, precárias condições de assepsia, erros grosseiros na técnica ou na aplicação de padrões médicos impróprios. Uma razão para a escassez de trabalhos pode ter caráter político, pois problemas técnicos sérios podem não ser publicados, em vista do rompimento da colaboração daquele profissional na melhoria do seu desempenho. O status impresso particularmente aos médicos pode ser outra razão, uma vez que os clínicos foram protegidos pela maior parte dos relatórios públicos.2

Em face ao exposto, pergunta-se: equipes de Saúde da Família teriam capacitação suficiente para oferecer ações de anticoncepção? Teriam acesso a manuais e normas técnicas que orientem o atendimento? Quais seriam suas dificuldades e obstáculos para lidar com as questões de anticoncepção? Como os usuários vêem a atuação dessas equipes no que diz respeito à assistência em anticoncepção?

Portanto, o presente estudo teve por objetivo avaliar a competência técnica de profissionais que atuam no cuidado em anticoncepção.

MÉTODOS

A assertiva de analisar a competência se complementa com a de Garcia-Nunez,5 o qual enfatiza que uma avaliação mostra o que funciona e o que não funciona, o que se deve manter ou mudar, se constituindo em instrumento para a tomada de decisão.

O estudo foi realizado nos municípios de Aratuba, Aracoiaba, Baturité, Capistrano, Guaramiranga, Itapiúna, Mulungu e Pacoti, situados no Estado do Ceará, nos meses de julho a setembro de 2003, incluindo áreas urbanas e rurais. Na época, essa região contava com 30.116 famílias cadastradas no Programa de Saúde da Família, correspondendo a 87,8% de cobertura.10

Os sujeitos foram selecionados com base nos seguintes critérios de inclusão: a) enfermeiros: estarem atuando na assistência em anticoncepção como membro de equipe de PSF e b) usuários: mulheres ou homens participantes ou desejosos de participar do serviço de planejamento familiar. Foram entrevistados 29 (90,6%) enfermeiros da região e 50 usuários. O número de usuários foi delimitado pela saturação das falas, ou seja, a coleta de informações foi iniciada sem predeterminar o número de usuários e à medida que se esgotaram os eventos novos, o total de entrevistados foi considerado satisfatório.12

As entrevistas seguiram dois roteiros, um destinado aos enfermeiros e o outro aos usuários, contendo perguntas fechadas e abertas e pré-testados em duas unidades de saúde da família.

Para organização dos resultados tomou-se por referência a Técnica de Análise Categorial do Método de Análise de Conteúdo.1 Foram realizadas operações de codificação ou enumeração para facilitar a contagem dos eventos. Os roteiros das entrevistas das usuárias foram numerados de um a 50 e dos enfermeiros de um a 29. As informações fornecidas pelos enfermeiros foram codificadas pela letra "E", enquanto que dos usuários foram codificadas pela letra "U". Foi realizada leitura fragmentada de todo o material, com a intenção de dividi-lo em unidades de significados convergentes e divergentes, resultando em quatro categorias de análises: acesso e qualidade da capacitação em anticoncepção; acesso a manuais e normas técnicas atualizadas para atendimento em anticoncepção; competência profissional em anticoncepção na fala dos enfermeiros e a partir de experiências vividas pelos usuários.

Aos sujeitos pesquisados foi garantido o anonimato, a privacidade, a proteção da imagem, a não-estigmatização e a não-utilização das informações em prejuízo das pessoas e/ou das comunidades, de forma a respeitar os aspectos éticos da pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Acesso e qualidade da capacitação em anticoncepção

Dos enfermeiros entrevistados, 21 (72,4%) haviam participado de alguma capacitação sobre a anticoncepção. Os demais enfermeiros, oito (27,6%) que não possuíam essa capacitação reconheceram o fato como uma deficiência e expressaram interesse em participar.

Apesar da maioria dos enfermeiros já ter tido acesso a cursos sobre a temática em estudo, quase a totalidade afirmou alguma debilidade no desempenho de suas atividades. A capacitação é um dos meios para melhorar a competência técnica, entretanto, não é sinônimo de qualidade. Propõe-se2 uma modalidade de capacitação com base em competências, com monitoramento periódico em serviço, no qual o instrutor avalia o nível de aprendizagem e de realização do participante e não o tempo gasto na capacitação ou o que foi assimilado pelo aluno. Ampliando essa discussão, a falta de preparo dos profissionais decorre, em parte, da formação profissional que não possibilita o desenvolvimento de competências para ampliar a capacidade de solucionar os problemas do cotidiano, de forma criativa, valorizando o aprender a aprender e o trabalho em equipe.9 O mesmo autor enfatizou que a capacitação deve ser uma ação contínua, institucionalizada, multiprofissional, centrada no processo de trabalho e orientada para a melhoria da qualidade dos serviços, incluindo a participação efetiva da própria população usuária.

De fato, o método empregado nas capacitações de planejamento familiar/anticoncepção (1993 a 1995) era ainda bastante positivista, com predomínio do componente teórico e emprego de processo avaliativo centrado no conhecimento que o participante assimilava durante as aulas. Certamente que capacitações desta natureza traziam pouco impacto à melhoria do desempenho técnico, pois não era levado em consideração o campo de atuação desses profissionais, das suas condições de trabalho e, tampouco o processo contínuo de aprendizagem em serviço. Todavia, atualmente o Ceará dispõe de "Instrumentos de Melhoria da Qualidade em Atenção Primária à Saúde", o que abrange a área de planejamento familiar/anticoncepção. Eles foram desenvolvidos em processo de construção coletiva que contou com a participação de expertos, profissionais que prestam o cuidado, usuários e consultores de três agências de cooperação internacional Program for International Education in Reproductive Health (JHPIEGO), Management Sciences for Health (MSH) e Center for Communication on Programs (CCP). São instrumentos auto-aplicáveis, de fácil uso, que favorecem a auto-avaliação e a auto-aprendizagem das equipes, representando uma ferramenta para a educação continuada.11 Porém, há necessidade de tornar esses instrumentos acessíveis ao universo de profissionais que lida com essa área do cuidado, como estratégia para melhorar seu desempenho técnico.

Acesso a manuais e normas técnicas atualizadas para atendimento em anticoncepção

Dezoito enfermeiros (62,1%) referiram ter acesso a este tipo de material e apresentaram como principais fontes a Secretaria Estadual de Saúde do Ceará (14), o Ministério da Saúde (8), a Sociedade Civil do Bem-Estar Familiar (BEMFAM) (5), a Organização Panamericana da Saúde (OPAS) (3) e textos oferecidos em Curso de Especialização em Saúde da Família (2). Porém, boa parte desses enfermeiros alegou que o ativismo diário lhe deixa sem tempo para a leitura e o estudo dos manuais. Os outros 11 (37,9%) enfermeiros declararam não ter acesso a manuais e/ou normas técnicas.

Tabela 1

Apesar do contingente considerável de enfermeiros com acesso a esse tipo de recurso instrucional, esse acesso deveria ser universal. Faz-se necessário que gestores valorizem e favoreçam a educação continuada em serviço, mobilizando seus funcionários para a formação de grupos de estudos locais, funcionando regularmente.

A normatização das ações de saúde da mulher constitui uma das áreas programáticas do Ministério da Saúde, destacando-se como ferramenta para o desenvolvimento dos recursos humanos, da educação em saúde e do apoio logístico. É uma atividade respaldada na ampla participação de representantes de órgãos de classes, universidades, conselhos, dentre outros. Quando do lançamento do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), em 1984, manuais técnicos chegaram às secretarias estaduais de saúde que nortearam o desenvolvimento de ações de saúde reprodutiva, abrangendo a anticoncepção. Essa iniciativa desencadeou ampla discussão e aprendizado por parte de profissionais, estudantes e demais representantes de entidades envolvidas com a saúde da mulher. Entretanto, constatou-se ter havido uma descontinuidade deste processo, corroborado pela assertiva de que estas normas são pouco disseminadas entre médicos,3 e também entre os demais membros das equipes de saúde, contribuindo para que certas condutas adotadas nos serviços estejam desatualizadas. Esses autores também afirmaram que a maioria das faculdades de medicina e de enfermagem não inclui o conteúdo de planejamento familiar em suas matrizes curriculares e as que o fazem abordam somente os MAC, deixando de lado aspectos como os direitos reprodutivos e sexuais, técnicas de comunicação, dentre outros.

No decorrer da pesquisa de campo as secretarias municipais de saúde, receberam manuais de normas técnicas do MS destinados aos profissionais e gestores que lidam com a anticoncepção. A quantidade mostrou-se insuficiente, não permitindo o acesso individual dos profissionais ao material. Outro aspecto identificado foi o da lacuna deixada pelo Ministério da Saúde entre o último manual do planejamento familiar7 e a revisão atual,8 ou seja, de seis a sete anos, quando novas informações já deveriam ter sido incorporadas na prática profissional.

Competência profissional em anticoncepção na perspectiva dos enfermeiros e de experiências vividas e relatadas pelas usuárias

Cinco enfermeiros (17,2%) afirmaram que se sentiam preparados para lidar com as questões de anticoncepção; 17 (58,6%) reconheceram dificuldades técnicas para avaliar contra-indicações; 10 (34,5%) para manejar efeitos colaterais e/ou complicações. Oito (27,6%) relataram dificuldades para informar sobre o uso correto de alguns MAC, sendo que para dois a questão era técnica e para os demais era falta de tempo relacionada a alta demanda de trabalho. A garantia da livre escolha foi posta por 14 (48,3%) enfermeiros como um desafio, não por questões técnicas de promovê-la, mas pela pequena variedade de MAC disponíveis.

Os enfermeiros que reconheceram dificuldades para avaliar contra-indicações, referiram-se exclusivamente aos anticoncepcionais hormonais (pílula e injetáveis) e, basicamente, durante a amamentação. Quanto ao manejo de efeitos colaterais, as dúvidas recaíram também sobre os métodos hormonais, incluindo, predominantemente, as alterações menstruais.

Consolidaram-se na Tabela os depoimentos de enfermeiros e relatos de usuários, classificados como barreiras à competência profissional em anticoncepção e caracterizados como condutas inadequadas adotadas por médicos e/ou enfermeiros e/ou auxiliares de enfermagem no manejo dos MAC. Com essas barreiras são fornecidas as evidências científicas que lhes circundam.

Esses dados confirmaram a necessidade de se implementar a educação continuada entre os profissionais. Falhas técnicas na atuação profissional desencadeiam, por exemplo, a negação do controle da fertilidade em razão de critérios excedentes por parte dos profissionais.2 Outro aspecto é que os clientes carregam consigo as conseqüências de técnicas inadequadas, sob a forma de dor desnecessária, infecções e outros efeitos colaterais sérios; e em algumas circunstâncias até a morte. Confirmando essa observação, destaca-se a fala de uma usuária que já havia experimentado o DIU: "eu fiquei sempre sentindo inflamação, de seis em seis meses eu ia pra revisão e sempre dava alguma coisa" (U14). E de uma outra usuária que tentou ter o DIU inserido, porém não obtendo êxito: "fiz prevenção e tudo pra colocar o DIU, mas não deu. Meu útero foi perfurado" (U29).

Quanto aos enfermeiros que expressaram como dificuldade de atuação em anticoncepção informar o/a cliente sobre o uso correto do MAC, um se referiu ao diafragma e ao DIU e um outro ao injetável, justificando serem métodos pouco disponíveis nos serviços e, portanto, pouco trabalhados. Os depoimentos apresentados a seguir confirmam:

"Não tenho segurança para informar sobre o DIU e o diafragma, também são métodos que nós falamos muito pouco, pois nunca tem por aqui". (E6)

"Tenho dificuldade de ensinar sobre a injeção trimestral, pois um tempo veio, agora já desapareceu. A gente costuma falar mais do que tem". (E20 e E21)

Esses depoimentos mostram a prática de informar apenas sobre os MAC que estão disponíveis nos serviços. Porém é direito do cliente conhecer todos os MAC existentes, e mesmo não disponíveis na unidade de saúde, ele poderá buscar outras fontes de aquisição, que deverão ser divulgadas pelo próprio serviço de primeiro atendimento.

Outra evidência identificada foi que a pequena variedade e/ou a oferta irregular dos MAC representa um obstáculo ao manejo das contra-indicações e da livre escolha do método, uma vez que as usuárias se arriscam a receber o método que estiver disponível. Dessa maneira, subestimam a própria orientação ou decisão profissional, que vê o critério técnico e sua conduta ameaçada de se efetivar. As histórias narradas pelos enfermeiros esclarecem esse achado:

"As mulheres hipertensas cujos parceiros não aceitam o condom, não tenho outro método a oferecer... entrego a pílula? Parte delas afirma que se a gente não entregar vai comprar. Então é melhor entregar, pelo menos elas ficam com o acompanhamento da gente". (E28)

"Uma mulher hipertensa, por exemplo, se eu suspender a pílula dela, ela me rotula de 'ruim', que eu 'não sei de nada'". (E6, E16)

"A população não pode comprar, então leva o que tem e compromete nosso desempenho!". (E20, E21, E24, E25 e E27)

Ademais, os enfermeiros relataram situações que confirmaram o despreparo dos médicos com relação ao atendimento em anticoncepção. Uma das enfermeiras afirmou: "Os médicos deveriam se engajar mais. A gente encaminha uma mulher com complicação do uso da pílula, eles mandam de volta sem ter feito nada" (E10). E outra reforçou: "Muitas vezes eles [os médicos] já são quem encaminham pra gente. Acontece comigo, com a (...) e acho que com outros enfermeiros" (E8). Na área de atuação da enfermeira E27, essa omissão e despreparo médico se fez com tal intensidade que a profissional tomou a decisão de assumir, sozinha, a responsabilidade pelo atendimento e enfatizou: "Certa vez, recebi uma mulher com mais de 40 anos, hipertensa grave e com receita médica para receber a pílula combinada. A partir desse caso decidi que na minha área o planejamento familiar seria todo feito por mim" (E27). Sobre essa questão destaca-se que o PSF é uma proposta de trabalho em equipe, a ser desenvolvida pelo médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agentes comunitários de saúde, que tem a co-responsabilidade pela saúde de aproximadamente 1.000 famílias.

Portanto, é reconhecida a importância da participação de todos os membros da equipe nas ações de planejamento familiar para que a sobrecarga do enfermeiro não comprometa sua competência. Outrossim, os depoimentos dos dois sujeitos pesquisados trouxeram à discussão a competência de médicos, enfermeiros e do auxiliar de enfermagem (em menor intensidade), dado que parece marcar a centralização da oferta dos serviços de anticoncepção nestas três categorias profissionais, notadamente no médico e no enfermeiro. Sobre o assunto, a concentração das ações e responsabilidades sobre um mesmo profissional diminui a competência técnica com que algumas atividades são executadas.3

As consultas de acompanhamento de usuárias de pílula, injetável e DIU podem ser realizadas por enfermeiros ou auxiliares de enfermagem capacitados e que, inclusive, alguns serviços têm mostrado que até as inserções de DIU podem ser executadas com o mesmo nível de competência pelas enfermeiras ou ainda melhor do que quando são feitas por médicos.4

Em conclusão, o que se percebeu foi a falta de sistematização do trabalho em equipe, com determinação de atribuições e tarefas. Assim, sugere-se o Instrumento da Metodologia de Melhoria da Qualidade como uma ferramenta de apoio ao processo de educação continuada em anticoncepção. Além disso, estudos futuros devem ser desenhados com vistas a discutir a competência profissional na perspectiva de um trabalho em equipe, que proponha a divisão de tarefas e a assistência final integrada e resolutiva.

AGRADECIMENTOS

À gerência e equipe técnica da 4ª. Regional de Saúde do Ceará, pelo incentivo e reconhecimento do estudo para a região e apoio logístico.

Recebido em 20/6/2004. Reapresentado em 18/3/2005. Aprovado em 5/6/2005.

Apresentado no 15º Congresso Internacional em Questões de Saúde da Mulher, São Pedro, SP, em novembro de 2004.

Trabalho realizado na 4ª Regional de Saúde do Ceará.

Baseado em tese de doutorado apresentada à Universidade Federal do Ceará, em 2003.

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  • Endereço para correspondência

    Escolástica Rejane Ferreira Moura
    Av. Filomeno Gomes, 80 Apto 401 Jacarecanga
    60010-280 Fortaleza, CE, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2005

    Histórico

    • Aceito
      05 Jun 2005
    • Revisado
      18 Mar 2005
    • Recebido
      20 Jun 2004
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