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Modelo preditivo do uso de cocaína em prisões do Estado do Rio de Janeiro

Resumos

OBJETIVO: Identificar variáveis preditoras e grupos mais vulneráveis ao uso de cocaína em prisão. MÉTODOS: Foram selecionados 376 presos com história de uso de cocaína em prisão (casos) e 938 presos sem história de uso de cocaína na vida (controles), que cumpriam pena no sistema penitenciário do Rio de Janeiro em 1998. A análise considerou as variáveis de exposição em três níveis de hierarquia: distal, intermediário e proximal. Na análise bivariada utilizou-se regressão logística e na multivariada, regressão hierarquizada, resultando em valores de odds ratio. RESULTADOS: As variáveis associadas ao uso de cocaína na prisão, no nível proximal, foram uso de álcool e maconha e tempo de reclusão em anos. O efeito das variáveis de vulnerabilidade social (nível distal) é intermediado pelas variáveis dos níveis seguintes. Considerando apenas os níveis distal e intermediário, o uso de maconha antes de ser preso (OR=4,50; IC 95%: 3,17-6,41) e o fato de ter cometido delito para obter droga (OR=2,96; IC 95%: 1,79-4,90) são as mais fortemente associadas ao desfecho. Para cada ano a mais que se passa na prisão, a chance de usar cocaína aumenta em 13% (OR=1,13; IC 95%: 1,06-1,21). CONCLUSÕES: Considerando os níveis distal e intermediário, o uso de maconha antes da prisão e delito para obtenção de droga foram as variáveis com maior poder de predição. O modelo final revelou o uso de álcool, de maconha na prisão e o tempo de cumprimento de pena são importantes preditores do desfecho. O ambiente carcerário aparece como fator estimulante da continuidade do uso de drogas.

Transtornos relacionados ao uso de cocaína; Alcoolismo; Hábito de fumar maconha; Prisões; Análise multivariada hierarquizada; Fatores de risco; Vulnerabilidade social


OBJECTIVE: To identify predictors of and groups vulnerable to cocaine use in prison. METHODS: We selected 376 inmates with history of cocaine use in prison (cases) and 938 inmates with no history of drug use (controls) serving sentences in the Rio de Janeiro State prison system in 1998. The analysis included exposure variables divided into three hierarchical levels: distal, intermediate, and proximal. We performed bivariate analysis using logistic regression and multivariate analysis using hierarchized regression; results are given in odds ratios. RESULTS: Variables associated with cocaine use in prison in the proximal level were use of alcohol and marijuana and duration of imprisonment in years. The effect of social vulnerability variables (distal level) was intermediated by variables in the next levels. Considering only the distal and intermediate levels, use of marijuana prior to imprisonment (OR=4.50; 95% CI: 3.17-6.41) and offence in order to obtain drugs (OR=2.96; 95% CI: 1.79-4.90) showed the strongest association with the outcome. For every additional year spent in prison, the odds of cocaine use increase by 13% (OR=1.13; 95% CI: 1.06-1.21). CONCLUSIONS: Considering the distal and intermediate levels, use of marijuana prior to imprisonment and perpetration of offence in order to obtain drugs were the variables with greatest predictive value. The final model showed alcohol and marijuana use in prison and duration of imprisonment as important predictors of the outcome. The prison environment appears as a factor stimulating drug use.

Cocaine-related disorders; Alcoholism; Marijuana smoking; Prisons; Hierarchized multivariate analysis; Risk factors; Social vulnerability


ARTIGOS ORIGINAIS

Modelo preditivo do uso de cocaína em prisões do Estado do Rio de Janeiro

Márcia Lazaro de CarvalhoI; Joaquim Gonçalves ValenteI; Simone Gonçalves de AssisII; Ana Glória Godoi VasconcelosI

IDepartamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). (Fiocruz). Rio de Janeiro, RJ, Brasil

IICentro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde. ENSP/Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Márcia Lazaro de Carvalho Rua Leopoldo Bulhões, 1480/806 21041-210 Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: marcialc@ensp.fiocruz.br

RESUMO

OBJETIVO: Identificar variáveis preditoras e grupos mais vulneráveis ao uso de cocaína em prisão.

MÉTODOS: Foram selecionados 376 presos com história de uso de cocaína em prisão (casos) e 938 presos sem história de uso de cocaína na vida (controles), que cumpriam pena no sistema penitenciário do Rio de Janeiro em 1998. A análise considerou as variáveis de exposição em três níveis de hierarquia: distal, intermediário e proximal. Na análise bivariada utilizou-se regressão logística e na multivariada, regressão hierarquizada, resultando em valores de odds ratio.

RESULTADOS: As variáveis associadas ao uso de cocaína na prisão, no nível proximal, foram uso de álcool e maconha e tempo de reclusão em anos. O efeito das variáveis de vulnerabilidade social (nível distal) é intermediado pelas variáveis dos níveis seguintes. Considerando apenas os níveis distal e intermediário, o uso de maconha antes de ser preso (OR=4,50; IC 95%: 3,17-6,41) e o fato de ter cometido delito para obter droga (OR=2,96; IC 95%: 1,79-4,90) são as mais fortemente associadas ao desfecho. Para cada ano a mais que se passa na prisão, a chance de usar cocaína aumenta em 13% (OR=1,13; IC 95%: 1,06-1,21).

CONCLUSÕES: Considerando os níveis distal e intermediário, o uso de maconha antes da prisão e delito para obtenção de droga foram as variáveis com maior poder de predição. O modelo final revelou o uso de álcool, de maconha na prisão e o tempo de cumprimento de pena são importantes preditores do desfecho. O ambiente carcerário aparece como fator estimulante da continuidade do uso de drogas.

Descritores: Transtornos relacionados ao uso de cocaína. Alcoolismo. Hábito de fumar maconha. Prisões. Análise multivariada hierarquizada. Fatores de risco. Vulnerabilidade social.

INTRODUÇÃO

Atualmente, o uso abusivo de drogas e a violência são ameaças constantes à qualidade de vida. O tráfico de drogas aparece como um consistente vínculo entre violência e drogas, já que é um tipo de mercado gerador de ações violentas. No Brasil, o crime organizado floresceu e institucionalizou-se a partir da década de 80, tornando-se uma resposta social como mercado de trabalho, sobretudo para os jovens pobres das periferias e favelas (Minayo & Deslandes,8 1998).

Dados da Segunda Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro revelam que, do conjunto de atos infracionais cometidos por jovens nos últimos cinco anos, 13,4% se enquadram em posse/uso de entorpecentes e 22,2%, no tráfico de entorpecentes, pela Lei nº 6.368/76.

A distinção entre uso e tráfico, na prática, nem sempre é claramente definida. Em 1997 o tráfico de drogas respondia por 14,8% das sentenças condenatórias e situava-se em terceiro lugar na freqüência de crimes cometidos.1 1 Dados do Censo Penitenciário Nacional de 1997, Brasília. Ministério da Justiça (dados inéditos). No Estado do Rio de Janeiro, em 1998, o tráfico de entorpecentes aparece como responsável por 45,7% dos crimes cometidos por adultos presos. A grande maioria dos presos que atualmente ingressam no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro são condenados por tráfico de entorpecentes (artigo 12 da lei 6.368/76): em 2000, foram 47% dos homens e 74% das mulheres, na sua grande maioria, jovens.2 2 Secretaria de Estado de Justiça do Rio de Janeiro (SEJ-RJ). Perfil dos Internos na "Porta-de-Entrada" do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro nos últimos cinco anos (1996-000). Rio de Janeiro: Superintendência de Saúde, SEJ-RJ; 001.

Estudo foi realizado em 1998 com 2.095 presos sobre a relação entre doença sexualmente transmissível (DST)/Aids e uso de drogas no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. O uso de cocaína antes da prisão foi informado por 52% dos presos nas unidades masculinas, 48% das presas nas unidades femininas e 25% dos presos nos hospitais psiquiátricos (Carvalho et al,3 2000).

Outro estudo, realizado em 1999, sobre o perfil dos jovens infratores que cumpriam medida sócio-educativa internados no Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (DEGASE), revelou que o tráfico de drogas se destaca como o principal motivo de apreensão de menores entre os 687 adolescentes entrevistados (34% dos meninos e 46% das meninas). O uso de drogas na vida foi informado por 90% dos entrevistados, tendo sido a cocaína consumida por 50% dos meninos e 56% das meninas.3 3 Mattos HRA, Quitete B, Amorim E, Carvalho ML, Lacerda AC, Caputo A et al. O uso de drogas e a Prevalência de Doenças Sexualmente Transmissíveis/HIV/Aids entre os adolescentes internados no Departamento Geral de Ações Sócio-educativas (DEGASE), 1999. In: Anais, Seminário Internacional sobre as Toxicomanias. Desafios da pós-modernidade: diversidades e perspectivas; 2000; Rio de Janeiro, Brasil. Rio de Janeiro: NEPAD/UERJ; 2000. p. 99

Para contribuir para o entendimento dos fatores que estão associados ao uso de cocaína na prisão, é necessário dispor-se de um modelo conceitual que explique as relações entre os fatores a serem estudados. Partiu-se do pressuposto de que, apesar de estarem todos na condição de presos, existem diferenças entre eles que podem explicar diferentes comportamentos na prisão. Alguns fatores podem agir direta ou indiretamente sobre o uso de cocaína, encontrando-se em diferentes níveis de hierarquia (proximais, intermediários ou distais).

A identificação de grupos com maior risco de uso de cocaína na prisão permitiria intervenções específicas relevantes para a população estudada. O objetivo do presente estudo foi identificar variáveis preditoras do uso de cocaína na prisão e suas inter-relações com os que haviam e que não haviam feito uso de drogas.

MÉTODOS

Em 1998, foi realizada pesquisa no sistema penitenciário do Rio de Janeiro pela Coordenação de Saúde do Departamento de Sistema Penitenciário (Desipe) da então Secretaria de Estado de Justiça do Rio de Janeiro, quando foram entrevistados 2.039 presos selecionados por amostragem aleatória entre os 10.600 que cumpriam pena.

Com base nos dados dessa pesquisa, foi selecionada uma subpopulação composta somente por presos com comportamentos opostos em relação ao uso de cocaína. A seleção foi feita de acordo com a ocorrência do desfecho, participantes foram agrupados em dois grupos de comparação com o objetivo de identificar possíveis preditores do uso de cocaína na prisão. Os grupos foram analisados como casos e controles, sendo considerado um estudo do tipo "caso-controle" aninhado em estudo transversal.

Assim, a população estudada foi composta de 1.314 presos. No grupo de "casos", foram incluídos 376 presos (29,0%) com história positiva de uso de cocaína na prisão. Desses, 42 passaram a fazer uso da droga após a prisão, ou já faziam uso antes e permaneceram usando após a entrada no sistema prisional (334). No grupo de "controles" foram incluídos 938 presos (71,0%) que informaram não ter história de uso de cocaína na vida (nem antes nem depois da prisão). Esse critério foi restritivo, pois exclui aqueles que apesar de não relatarem uso na prisão, já haviam feito uso anterior. Essa restrição foi intencional, já que eles representam um grupo "intermediário" no qual seria difícil esclarecer os verdadeiros preditores de uso na prisão, objetivo principal do estudo.

Foi aplicado um questionário estruturado por meio de entrevistas, por profissionais da saúde, no período de março a setembro de 1998. As perdas foram em média de 15%.

As variáveis independentes utilizadas na descrição do perfil dos internos foram inicialmente classificadas em blocos assim definidos: sociodemográficas, história penal, história de uso de outras drogas e história de doenças sexualmente transmissíveis antes e depois da prisão.

Inicialmente, a análise dos dados incluiu a descrição do uso de cocaína na prisão segundo as principais variáveis, utilizando a odds ratio como medida de associação entre a variável resposta, uso de cocaína na prisão, e as demais variáveis analisadas em cada bloco. Resultados complementares podem ser encontrados em Carvalho.4 4 Carvalho ML. Sistema prisional e drogas: interfaces em uma sociedade violenta [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2003.

As variáveis que se mostraram estatisticamente significantes (p<0,05) na explicação das diferenças entre usuários e não usuários de cocaína na prisão na fase descritiva bivariada foram selecionadas para compor a fase multivariada. Potenciais fatores de confusão foram incluídos no modelo (gênero e idade). Em seguida, estimaram-se modelos multivariados por blocos introduzindo as variáveis de uma só vez (método direto de seleção de variáveis) e, aquelas que se mostrassem significantes (medidas pelas OR ajustadas e IC 95%) foram consideradas na base teórica do modelo conceitual. Este modelo foi elaborado com vistas a esclarecer as inter-relações entre os fatores anteriores à prisão.

Procurou-se elaborar modelos preditivos do uso de cocaína na prisão, utilizando a modelagem hierárquica conceitual baseada na proposta apresentada por Victora et al13 (1997). Considerou-se que as variáveis independentes associadas ao uso de cocaína na prisão estivessem em diferentes níveis de hierarquia, segundo o modelo conceitual proposto (Figura).


A modelagem hierarquizada iniciou introduzindo-se de uma só vez, as variáveis do primeiro nível (distal). As variáveis significativas na análise do primeiro nível (p<0,05) foram conservadas no modelo e entraram no ajuste do próximo nível (intermediário). Para o nível seguinte, o mesmo procedimento foi empregado. A análise foi controlada por possíveis fatores de confusão, que nesse caso, são as variáveis das etapas anteriores. Variáveis proximais foram ajustadas para variáveis distais e intermediárias.

Na análise do nível proximal, diferentemente da proposta de Victora para modelagem hierarquizada, optou-se por excluir as variáveis do nível distal que não se mostraram significantes nesta fase da modelagem, com o intuito de se obter estimativas mais precisas das OR ajustadas e um modelo mais parcimonioso.

Utilizou-se a estatística deviance (-2 vezes logaritmo da verossimilhança) para avaliar o ajuste dos modelos. A contribuição das variáveis de cada nível foi avaliada pela diferença entre deviances, no caso de modelos aninhados, ou do critério de informação de Akaike (AIC) quando os modelos comparados não eram aninhados. A significância estatística das diferenças entre deviance foi avaliada pela distribuição qui-quadrado com o número de graus de liberdade calculados pela diferença entre o número de parâmetros nos dois modelos comparados. O critério de Akaike (-2 vezes logaritmo da verossimilhança + 2 vezes o número de parâmetros) não tem distribuição associada e quanto menor o valor, melhor o ajuste (Cook & Weisberg,4 1999).

Foram utilizados os programas Epi Info versão 6.04b e SPSS for Windows versão 9.0 para análise dos dados.

Tratando-se de pesquisa oficialmente encomendada pela então Coordenação de Saúde da Secretaria de Justiça do Estado, com apoio do Ministério da Saúde e da United Nation Drug Control Program (UNDCP), foi assegurado o respaldo legal para a realização da mesma. Os internos assinaram consentimento esclarecido para a realização de exames laboratoriais.

Os resultados dos exames foram entregues aos participantes e aqueles que apresentaram problemas de saúde foram encaminhados ao ambulatório médico para devido acompanhamento.

RESULTADOS

A amostra foi predominantemente masculina (94%) e jovem: mediana de 29 anos tanto para usuários de cocaína na prisão quanto para os que nunca experimentaram a droga. Exceto quanto à escolaridade, em que os usuários referiram maior escolaridade nas categorias primeiro grau incompleto ou completo, não se observou diferença significativa quanto às demais variáveis sociodemográficas entre os dois grupos (Tabela 1).

Em relação à história penal identificou-se diferenças importantes: o usuário de cocaína na prisão apresentou maior freqüência de ter sido jovem infrator, ter visitado alguém na prisão, ser reincidente no crime e já ter cumprido maior proporção de sua pena. Quanto aos principais artigos de condenação: roubo (42,0%) e tráfico de drogas (29,0%), não houve diferença entre os dois grupos na análise univariada.

O uso de cocaína na prisão mostrou-se fortemente associado à história de uso de outras drogas, como álcool, maconha e até mesmo tranqüilizantes, tanto antes como após a prisão. O número de drogas diferentes consumidas simultaneamente também se mostrou fortemente associado ao uso de cocaína na prisão.

A história referida de DST, tanto antes como após a prisão, esteve fortemente associada ao desfecho.

No nível distal aparece o efeito total das variáveis: menor escolaridade, uso de drogas na família, história de infração juvenil, visita na prisão e sexo masculino ajustadas apenas entre si (Tabela 2). Considerando-se os dois primeiros níveis de hierarquia (Tabela 3), aparecem os efeitos das variáveis do nível distal não intermediados por variáveis do nível seguinte, mais o efeito das variáveis do nível intermediário ajustadas umas para as outras e para as variáveis do nível distal. Essas são apropriadamente consideradas possíveis fatores de confusão em relação às variáveis do nível intermediário.

A única variável do nível intermediário a sair do modelo foi "história de DST antes da prisão", porque deixou de ser significante quando ajustada para variáveis do mesmo nível e do nível distal (Tabela 3). A variável do nível distal cujo efeito não é intermediado por variáveis do nível seguinte é "uso de drogas na família". A contribuição das variáveis do nível intermediário ao modelo contendo apenas as variáveis do nível distal é estatisticamente significante como pode ser visto pela diferença da estatística deviance das Tabelas 2 e 3 (550,21; p<0,0001).

As variáveis excluídas do modelo final (Tabela 4) foram escolaridade, história de infração juvenil, visitou alguém na prisão e gênero; todas pertencentes ao nível distal, cujos efeitos como fatores de confusão para variáveis dos níveis seguintes deixaram de ser significantes. Comparando-se os valores obtidos pelo critério de Akaike nos modelos ajustados, observa-se que o modelo final apresenta o menor valor do AIC (787; Tabela 4) indicando um melhor ajuste quando comparado aos outros modelos: 1.504,21 para o modelo com as variáveis do nível distal (Tabela 2) e 970,92 para o modelo com as variáveis do nível distal e intermediário (Tabela 3).

DISCUSSÃO

O consumo de drogas é um importante problema que carece de estudos no Brasil, não sendo tarefa fácil medir a ocorrência deste desfecho, em especial no ambiente prisional, devido à dificuldade de assumir o uso, já que o uso na prisão tem implicações legais. A opção de restrição no grupo de controles, embora possa representar perda na validade externa do estudo, foi intencional, já que se acredita ser a informação de "cessação" do uso da droga ao entrar na prisão, fortemente sujeita a viés de informação. A análise descritiva exploratória revelou que o grupo excluído parece ser um grupo intermediário em termos de comportamento, tendendo a ser mais parecido com os casos, no que se refere à presença de algumas variáveis preditoras. Ainda, pela definição de casos e controles, o grupo excluído entraria no grupo de controles, já que não tinha relato de uso na prisão. As diferenças entre casos e controles poderiam vir a ser diluídas de modo artificial. Como não foi possível medir esse viés, optou-se por excluir esse grupo da análise. Além disso, mesmo que não houvesse viés de informação, acredita-se que fatores que possam ser importantes para a cessação do uso na prisão possam estar misturados com os fatores preditores do uso na prisão, objetivo do estudo.

Embora os dados tenham restrições quanto à validade externa, foi possível identificar associações e inter-relações importantes limitadas aos grupos estudados e foi traçado o perfil do interno que tem maior risco de uso de cocaína na prisão.

Outros estudos já apresentaram a importância da dependência ao álcool como possível marcador de risco para uso de cocaína e como os programas de prevenção e tratamento nessa área devem estar preparados para lidar com essa co-morbidade (Lopes & Coutinho,7 1999).

A associação observada do elevado número de drogas utilizadas antes da prisão, com a ocorrência de delitos sob efeito de drogas ou para obtenção delas, parece indicar que esse uso não foi eventual ou simplesmente por experimentação. Além disso, os internos que relataram continuidade do uso (antes e após a prisão) ou que passaram a usar a cocaína na prisão, foram considerados como um único grupo de usuários, atenuando um possível viés de informação, quanto à dificuldade na declaração do uso da droga a partir da entrada na prisão.

É possível que parte da explicação da importante associação entre tempo passado na prisão e uso da cocaína seja devida ao tempo passado na prisão, que pode influenciar o fato de assumirem o uso da droga com mais naturalidade e menos preconceito e esse possível viés de informação não pôde ser medido.

A análise multivariada mostrou a importância da condenação no tráfico de drogas como fator associado ao uso, o que não foi possível na análise univariada. Considerando apenas os dois primeiros níveis de hierarquia, que dizem respeito ao período anterior à entrada na prisão, o uso de maconha antes da prisão e o cometimento de delito para obtenção da droga, são as variáveis que se apresentam com maior poder de predição (Tabela 3). Embora a população prisional como um todo seja resultado do processo de exclusão social que se origina muito antes da prisão, é possível identificar aqueles com mais alto grau de vulnerabilidade ao uso. Esse processo é caracterizado principalmente pela falta de oportunidades, de escola, trabalho, inserção precoce no mercado do tráfico e desestruturação familiar.

De fato, o uso de maconha antes e depois da prisão estão intimamente relacionadas: mais de 90% dos internos que usam álcool ou maconha dentro da prisão, são os mesmos que também já haviam usado essas drogas antes da prisão e obviamente isso interferiu no fato de eles continuarem usando após a prisão.

Algumas variáveis dos níveis distal (uso de drogas na família) e intermediário (uso de maconha antes e tempo de condenação) deixam de ser significantes com a inclusão das variáveis do nível proximal, indicando com isso que as variáveis de depois da prisão (mais proximais) passam a servir de ligação entre os fatores anteriores (níveis intermediário e distal) e o desfecho, e aparecem como fatores mediadores e não de confusão, como seria habitual na interpretação da modelagem convencional (Tabelas 3 e 4).

A principal limitação dessa interpretação é que ela é mais adequada a estudos onde a temporalidade é fator conhecido e decisivo na cadeia de causalidade. Aqui não se dispõe dessas informações e o objetivo é conhecer marcadores para as causas do desfecho.

Para efeito de predição, o modelo com dois níveis de hierarquia (Tabela 3), seria suficiente, sendo aplicado no momento em que o preso entra no sistema penitenciário. O modelo com três níveis é mais adequado para identificar os presos com maior risco de uso da droga entre os que já encontram-se encarcerados. O modelo final revela como o uso de álcool, de maconha na prisão e o tempo de cumprimento da pena são importantes preditores do uso e têm efeitos independentes estatisticamente significantes que aparecem mesmo após o ajuste pelas variáveis dos níveis anteriores. Esse mesmo tipo de abordagem vem sendo utilizado em outros trabalhos (Fuchs et al,5 1996; Kiely,6 1991; Olinto et al,9 1993; Petry et al,10 2000).

Embora a análise hierarquizada apresente vantagens em relação à análise convencional, no sentido de permitir uma melhor compreensão das relações entre as variáveis independentes, alguns estudos consideram que as hipóteses de efeito indireto não são adequadamente representadas pelos modelos multivariados por meio de técnicas de regressão, e, que a análise de caminhos (path analysis) é uma técnica estatística multivariada mais adequada a este tipo de situação (Vasconcelos et al,12 1998).

Na proposta apresentada por Victora et al13 (1997), a hierarquização das variáveis independentes deve ser estabelecida no marco conceitual e mantida durante a análise dos dados permitindo a seleção das variáveis mais fortemente associadas com o desfecho de interesse. Alguns estudos apontam a relação entre uso de drogas e doenças sexualmente transmissíveis. Szwarcwald et al11 (1998) chamam atenção sobre a importância de considerar o papel de segmentos específicos da população submetidos a riscos especiais. Devido à necessidade desesperada de dinheiro, entre as usuárias de droga, elas muitas vezes se expõem a práticas sexuais de risco. É possível que essas práticas não sejam muito diferentes na população carcerária, onde a droga é importante moeda de troca. Bastos & Szwarcwald2 (2000) discutem a "pauperização" da Aids, e apontam o consumo de drogas como único hábito/comportamento relacionado ao risco de infecção pelo HIV que não só é objeto de estigmatização, mas de criminalização.

O "tratamento" do jovem usuário de drogas pela via da criminalização institucional, como afirmam Assis & Constantino1 (2001), só contribui para "construir" o indivíduo infrator. Há íntima relação entre política de drogas baseada na proibição e na criminalização do uso e as dificuldades quanto ao desenvolvimento de uma política efetiva de tratamento e prevenção à adicção.

Para cada ano a mais que se passa na prisão, a chance de usar cocaína aumenta em 13%. Muitos dos encarcerados são também usuários de drogas, e acabam tendo a oportunidade de entrar em contato com o serviço público de saúde somente no momento em que cometem delitos e são presos. Alguns já entram adoecidos no sistema penitenciário, portadores de infecções como hepatite B, C, Aids ou sífilis.2 2 Secretaria de Estado de Justiça do Rio de Janeiro (SEJ-RJ). Perfil dos Internos na "Porta-de-Entrada" do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro nos últimos cinco anos (1996-000). Rio de Janeiro: Superintendência de Saúde, SEJ-RJ; 001.

O ambiente carcerário não pode ser um fator a estimular a continuidade do uso de drogas quando, na verdade, seu papel deveria ser o de cuidar do detento, promover sua recuperação e sua reinserção social. É, portanto, de responsabilidade dos serviços de saúde penitenciários o enfrentamento dessa questão. O presente modelo pode contribuir na identificação desses presos, visando ao tratamento e desenvolvimento de programas de prevenção ao uso de drogas.

Recebido em 9/6/2004. Reapresentado em 4/4/2005. Aprovado em 4/6/2005.

Baseado em tese de doutorado apresentada ao Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2003.

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  • Endereço para correspondência

    Márcia Lazaro de Carvalho
    Rua Leopoldo Bulhões, 1480/806
    21041-210 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Dados do Censo Penitenciário Nacional de 1997, Brasília. Ministério da Justiça (dados inéditos).
  • 2
    Secretaria de Estado de Justiça do Rio de Janeiro (SEJ-RJ). Perfil dos Internos na "Porta-de-Entrada" do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro nos últimos cinco anos (1996-000). Rio de Janeiro: Superintendência de Saúde, SEJ-RJ; 001.
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    Mattos HRA, Quitete B, Amorim E, Carvalho ML, Lacerda AC, Caputo A et al. O uso de drogas e a Prevalência de Doenças Sexualmente Transmissíveis/HIV/Aids entre os adolescentes internados no Departamento Geral de Ações Sócio-educativas (DEGASE), 1999. In: Anais, Seminário Internacional sobre as Toxicomanias. Desafios da pós-modernidade: diversidades e perspectivas; 2000; Rio de Janeiro, Brasil. Rio de Janeiro: NEPAD/UERJ; 2000. p. 99
  • 4
    Carvalho ML. Sistema prisional e drogas: interfaces em uma sociedade violenta [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2005

    Histórico

    • Revisado
      04 Abr 2005
    • Recebido
      09 Jun 2004
    • Aceito
      04 Jun 2005
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