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Co-ocorrência de violência física conjugal e contra filhos em serviços de saúde

Co-occurrence of physical violence against partners and their children in health services

Resumos

OBJETIVO: Apresentar um perfil de ocorrência e co-ocorrência de violência física conjugal e contra filhos em uma população atendida em serviço de saúde, segundo diferentes características socioeconômicas e demográficas. MÉTODOS: Estudo transversal sobre violência familiar e prematuridade, realizado na cidade do Rio de Janeiro, em 2000. Foram elegíveis para a análise os domicílios contendo mulheres vivendo com companheiro e nos quais coabitavam com pelo menos um filho (ou enteado) de até 18 anos (n=205). Condições socioeconômicas, demográficas e relativas aos hábitos de vida da mulher e do companheiro foram consideradas como potenciais preditores de violência. A variável de desfecho foi analisada em quatro níveis: ausência de violência física no domicílio; ocorrência de violência física no casal; contra pelo menos um filho; e coocorrência. Utilizou-se um modelo logito-multinomial para as projeções de prevalências desses matizes de violência segundo os descritores selecionados. RESULTADOS: Os fatores associados ao maior risco do desfecho foram: idade materna >25 anos; companheiro com primeiro grau incompleto, presença de >2 crianças menores de cinco anos no domicílio; e abuso de álcool e drogas ilícitas pelo companheiro. Em domicílios com todas essas características, a estimativa conjunta de prevalência projetada de violência no casal e contra filhos chegou a 90,2%, sendo de 60,6% a de coocorrência. Na ausência desses fatores, as estimativas foram consideravelmente menores (18,9% e 0,2%, respectivamente). CONCLUSÕES: Profissionais de saúde não devem somente atentar à presença de um gradiente situacional, mas também ao fato de que existe paulatinamente mais chance dos agravos violentos acontecerem como um fenômeno englobando todo o grupo familiar.

Violência doméstica; Violência contra a mulher; Maus-tratos conjugais; Maus-tratos infantis; Fatores de risco; Fatores socioeconômicos; Características da família; Estudos de casos e controles


OBJECTIVE: To profile the co-occurrence of physical violence against partners and their children in a population attending a health care service, according to different socioeconomic and demographic characteristics. METHODS: A cross-sectional study on family violence and pre-term delivery was carried out in the city of Rio de Janeiro, Brazil, in 2000. Households of women living with a partner and at least one child (or stepchild) aged less than 18 years were eligible to the study (n=205). Socioeconomic, demographic, and life style variables for the family couple were considered as potential predictors of violence. The outcome variable was assessed at four levels: no physical violence in the household; physical violence against partners, physical violence against at least one child or co-occurrence of both. A multinomial logit model was used for projecting the respective prevalences according to a range of selected descriptors. RESULTS: The risk factors associated to greater risk of the outcome were: maternal age >25; partner with less than eight years of schooling; presence of >2 children under the age of five in the household; and alcohol/illicit drug abuse by the partner. In households with all those characteristics, the joint projected prevalence of violence against partners and their children was 90.2%, and as much as 60.6% accounted for the co-occurrence of both. In the absence of those factors, estimates were significantly lower (18.9% and 0.2%, respectively). CONCLUSIONS: Health providers should not only anticipate a situational gradient, but also be aware there is an increasingly higher risk of violence comprising the whole family group.

Domestic violence; Violence against women; Spouse abuse; Child abuse; Risk factors; Socioeconomic factors; Family characteristics; Case-control studies


Co-ocorrência de violência física conjugal e contra filhos em serviços de saúde

Co-occurrence of physical violence against partners and their children in health services

Michael Eduardo Reichenheim; Alessandra Silva Dias; Claudia Leite Moraes

Instituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Michael Eduardo Reichenheim Instituto de Medicina Social - UERJ Rua São Francisco Xavier, 524 7º andar 20559-900 Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: michael@ims.uerj.br

RESUMO

OBJETIVO: Apresentar um perfil de ocorrência e co-ocorrência de violência física conjugal e contra filhos em uma população atendida em serviço de saúde, segundo diferentes características socioeconômicas e demográficas.

MÉTODOS: Estudo transversal sobre violência familiar e prematuridade, realizado na cidade do Rio de Janeiro, em 2000. Foram elegíveis para a análise os domicílios contendo mulheres vivendo com companheiro e nos quais coabitavam com pelo menos um filho (ou enteado) de até 18 anos (n=205). Condições socioeconômicas, demográficas e relativas aos hábitos de vida da mulher e do companheiro foram consideradas como potenciais preditores de violência. A variável de desfecho foi analisada em quatro níveis: ausência de violência física no domicílio; ocorrência de violência física no casal; contra pelo menos um filho; e coocorrência. Utilizou-se um modelo logito-multinomial para as projeções de prevalências desses matizes de violência segundo os descritores selecionados.

RESULTADOS: Os fatores associados ao maior risco do desfecho foram: idade materna >25 anos; companheiro com primeiro grau incompleto, presença de >2 crianças menores de cinco anos no domicílio; e abuso de álcool e drogas ilícitas pelo companheiro. Em domicílios com todas essas características, a estimativa conjunta de prevalência projetada de violência no casal e contra filhos chegou a 90,2%, sendo de 60,6% a de coocorrência. Na ausência desses fatores, as estimativas foram consideravelmente menores (18,9% e 0,2%, respectivamente).

CONCLUSÕES: Profissionais de saúde não devem somente atentar à presença de um gradiente situacional, mas também ao fato de que existe paulatinamente mais chance dos agravos violentos acontecerem como um fenômeno englobando todo o grupo familiar.

Descritores: Violência doméstica. Violência contra a mulher. Maus-tratos conjugais. Maus-tratos infantis. Fatores de risco. Fatores socioeconômicos. Características da família. Estudos de casos e controles.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To profile the co-occurrence of physical violence against partners and their children in a population attending a health care service, according to different socioeconomic and demographic characteristics.

METHODS: A cross-sectional study on family violence and pre-term delivery was carried out in the city of Rio de Janeiro, Brazil, in 2000. Households of women living with a partner and at least one child (or stepchild) aged less than 18 years were eligible to the study (n=205). Socioeconomic, demographic, and life style variables for the family couple were considered as potential predictors of violence. The outcome variable was assessed at four levels: no physical violence in the household; physical violence against partners, physical violence against at least one child or co-occurrence of both. A multinomial logit model was used for projecting the respective prevalences according to a range of selected descriptors.

RESULTS: The risk factors associated to greater risk of the outcome were: maternal age >25; partner with less than eight years of schooling; presence of >2 children under the age of five in the household; and alcohol/illicit drug abuse by the partner. In households with all those characteristics, the joint projected prevalence of violence against partners and their children was 90.2%, and as much as 60.6% accounted for the co-occurrence of both. In the absence of those factors, estimates were significantly lower (18.9% and 0.2%, respectively).

CONCLUSIONS: Health providers should not only anticipate a situational gradient, but also be aware there is an increasingly higher risk of violence comprising the whole family group.

Keywords: Domestic violence. Violence against women. Spouse abuse. Child abuse. Risk factors. Socioeconomic factors. Family characteristics. Case-control studies.

INTRODUÇÃO

A violência familiar tem sido reconhecida como um evento bem mais comum do que supõe o senso-comum.10 Atinge principalmente mulheres e crianças/adolescentes, implicando em graves repercussões físicas, emocionais e sociais. Pesquisas em todo o mundo apontam um problema expressivo.20 No Brasil também há evidências de que se trata de um importante problema de saúde pública.1 1 Ministério da Saúde. Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violências. Brasília (DF); 2001.

Conforme crescem as evidências sobre a magnitude da violência familiar, cresce também o reconhecimento de que os serviços de saúde possuem um importante papel no seu enfrentamento.7 Por suas características intrínsecas, as unidade básicas de atendimento ou aquelas ligadas a programas de atenção integral a famílias podem servir como locais de alerta e sentinela na detecção de eventos violentos que ocorrem no âmbito populacional. No entanto, uma considerável parte dos casos de maus-tratos não é identificada. Os motivos para isto são variados. Dentre outros, encontram-se as parcas informações que profissionais de saúde dispõem sobre o problema e/ou as próprias limitações estruturais dos serviços. Eles tendem a oferecer uma prática primordialmente 'socorrista', calcada em atendimentos de curta duração e essencialmente focalizados em entidades das esferas clínico-patológicas.2 2 Ministério da Saúde. Direitos humanos e violência intrafamiliar. Informações e orientações para agentes comunitários de saúde. Brasília (DF); 2001. Não surpreende, portanto, que muitas queixas trazidas aos profissionais relacionadas ao problema passem desapercebidas.

Ao se aceitar que os serviços de saúde devam ser capazes de atuar como mediadores e promotores das ações voltadas para o enfrentamento da violência familiar, faz-se necessário ampliar e aprofundar o tema, tendo a identificação precoce como uma das preocupações basilares. Nesse sentido, visando um planejamento efetivo para o encaminhamento e acompanhamento de situações de risco ou de conflitos deflagrados e abertos, é mister que se invista no desenvolvimento de estratégias de detecção.16

Um crescente corpo de experiências clínico-sanitárias e diversas evidências oriundas de pesquisas populacionais têm apontado uma concomitância entre violências conjugais e violências contra suas proles.23,24 Segundo Gelles,6 a violência familiar é sempre um fenômeno complexo que tende a envolver todos os integrantes do núcleo familiar e não restrito a um indivíduo ou relação específica. No entanto, a despeito desse alerta contundente, ainda são poucas as respostas práticas de agências de bem estar infantil ou dos programas de combate à violência conjugal e contra a mulher.1,8 E as que existem, tendem a percorrer trajetórias paralelas, pouco integradas e contemplando perspectivas diferentes.

Do ponto de vista estratégico, a maioria das ações de proteção à infância/adolescência e voltadas para mulheres agredidas tem se desenvolvido de forma independente.4 Uma limitação de se focalizar exclusivamente uma ou outra corrente é o obscurecimento da totalidade do quadro, que, por sua vez, impede um entendimento mais completo das causas e conseqüências. Como resultado, esta 'compartimentalização' inibe ações mais efetivas, reduzindo a capacidade de prover adequada segurança para todas as vítimas envolvidas.4,6 É imperativa uma atuação na família como um todo, com um olhar mais atento também sobre a coocorrência do abuso conjugal e contra filhos.

A violência familiar tem sido percebida como resultado de características individuais, contextuais e ambientais que, se presentes, aumentam a sua possibilidade.9 Várias características podem moldar os padrões e variações nas taxas de violência intrafamiliar, ainda que não necessariamente definam quem se tornará perpetrador ou vítima. São citadas as idades, o estado civil ou a personalidade de indivíduos; hábitos de vida como o abuso de álcool e drogas ilícitas; a inserção social da família envolvendo baixa renda, pouca escolaridade e desemprego; ou ainda o papel de gênero nas relações familiares – quer presentes, quer históricas nas famílias de origem.10 Ademais, é possível que diferentes conjunções de características impliquem em uma variação na freqüência da violência conjugal e contra filhos também como eventos concomitantes.

Uma revisão da literatura nacional mostrou uma completa ausência de estudos que estimem especificamente a probabilidade de co-ocorrência das diferentes formas de violência familiar. Do mesmo modo, também são escassas as informações sobre o problema nos serviços de saúde, principalmente quando sobre a conformação das ocorrências como substrato para a orientação de profissionais atendendo diretamente ao público. É bem plausível que a magnitude da ocorrência e da coocorrência do abuso conjugal e contra filhos aconteça de forma diferenciada segundo certas características da clientela que procura os serviços. Assim sendo, interessa informar profissionais de saúde sobre os diferentes perfis de violência que se apresentam no âmbito domiciliar, capacitando-os a suspeitar dos eventos de forma mais aguçada, um passo importante para uma abordagem acolhedora que facilite a revelação do problema e seu enfrentamento.

O objetivo do presente estudo foi apresentar um perfil de ocorrência e co-ocorrência da violência física conjugal e contra filhos atendida em serviços de saúde, segundo diferentes características socioeconômicas e demográficas.

MÉTODOS

O presente estudo origina de um caso-controle3 3 Moraes CL. Aspectos metodológicos relacionados a um estudo sobre violência familiar durante a gestação como fator de propensão da prematuridade no recém-nascido [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz; 2001. sobre violência familiar na gestação e prematuridade do recém-nascido. O trabalho de campo ocorreu entre março e setembro de 2000, em três maternidades públicas de grande porte no Município do Rio de Janeiro. Foram excluídas famílias de recém-nascidos de mães diabéticas, com hipertensão arterial sistêmica, que nasceram com graves malformações congênitas, infecções potencialmente associadas a prematuridade ou gemelares.

Os casos da investigação de fundo foram desconsiderados pois poderiam levar a uma superestimação das prevalências de violência conjugal e contra filhos. Somente foram utilizados os controles que, conforme mostrado em Moraes & Reichenheim,15 podem ser considerados representativos da população atendida nos serviços públicos de saúde. De um total de 540, foram excluídos os domicílios contendo mulheres sem companheiro ou que não tivessem tido algum relacionamento amoroso durante a gestação (n=12), e nos quais não havia coabitação dos membros do casal com pelo menos um filho ou enteado4 4 Doravante, o termo filho(s) também abrange enteado(s). de até 18 anos durante o período de recordatório (n=323). Efetivamente, 205 domicílios remanesceram elegíveis como unidades de análise. Em 167 destes, informações sobre violência entre pais e filhos foram coletadas a partir da aferição de dois relacionamentos, porquanto nos restantes, de outro relacionamento adicional. Isso se deveu aos critérios utilizados no estudo de fundo que estipulava um total de quatro relações a investigar: 1) casal (pais); 2) mãe-filho; 3) pai-filho; 4) um quarto par (relacionamento) formado por dois outros integrantes do domicílio. Assim, além dos 167 domicílios em que havia três relacionamentos aferidos (casal, mãe-filho e pai-filho), outros 38 envolviam adicionalmente um relacionamento contendo um adulto e outra criança do domicílio.

A variável composta para captar violência familiar foi constituída de variáveis intermediárias que apreendiam, separadamente, o uso de violência física conjugal e contra a criança/adolescente. Para isto utilizouse, respectivamente, os instrumentos Revised Conflict Tactics Scales21 (CTS2) e Conflict Tactics Scales: Parent-Child Version22 (CTSPC), ambos previamente adaptados para o uso no Brasil.14,17,5 5 As versões completas em português podem ser obtidas na base SciELO por meio dos links: CTS2- Disponível em

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2002000100017&lng=

pt&nrm=iso

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2003000600014&lng=

pt&nrm=iso

Focalizou-se somente a escala da CTS2 que abordava a violência física no casal (12 itens). A operacionalização desta variável intermediária ocorreu na forma binária, classificando-se como "situação de violência" aquela em que houvesse o relato de pelo menos um item da escala perpetrado por pelo menos um membro do casal durante os meses de gravidez. Na variável intermediária usada para apreensão das situações de violência contra filhos, também foram focalizadas apenas as escalas de mau-trato físico menor e grave (nove itens) da CTSPC. Lembrando o foco domiciliar do estudo, definiu-se um uma situação de violência física como um domicílio possuindo, pelo menos, um dos relacionamentos adulto/criança envolvendo, pelo menos, uma resposta positiva a um dos itens da escala de violência física. Conforme apontado anteriormente, um domicílio poderia comportar informações sobre dois ou três relacionamentos entre pais e filhos. O período recordatório foi de nove meses, o mesmo da CTS2. Especificadas as variáveis intermediárias sobre violência física no casal e contra filho(s), compilaram-se essas informações em uma variável em quatro níveis para uso efetivo na análise de dados. A primeira categoria representou ausência de violência física no domicílio (CTS2-/CTSPC-); a segunda e terceira, indicam a ocorrência isolada de, respectivamente, violência no casal (CTS2+/CTSPC-) e contra um filho(a) (CTS2-/CTSPC+); e a quarta, a co-ocorrência dos dois tipos (CTS2+/CTSPC+).

Para a composição dos cenários de projeção de prevalências das quatro categorias da variável acima, testou-se uma gama de descritores usuais no campo da saúde materno-infantil, bem como algumas características reconhecidas no âmbito da violência familiar. Especificamente, foram escrutinadas as seguintes variáveis: a idade, cor e inserção em trabalho remunerado materno; o número de filhos nascidos vivos e filhos menores de cinco anos convivendo no domicílio; a escolaridade e o perfil de mau uso de álcool e/ou uso drogas ilícitas da mulher e do companheiro e; e a densidade populacional do domicílio (número de pessoas por cômodo). Foram criados cenários de propensão que progredissem de uma situação relativamente 'menos propícia' para uma 'mais propícia' à ocorrência de violência física. Confira em Resultados, Tabela 2.

Uma variável de três níveis foi utilizada para captar o mau uso de álcool e/ou drogas ilícitas pelo companheiro. Para a sua montagem, aferiram-se esses dois aspectos de forma separada. O mau uso de álcool foi avaliado pela versão adaptada para o português do instrumento Cutdown; Annoyed; Guilty and Eye-opener13 (CAGE). Aceitou-se o critério de duas ou mais respostas positivas para apreender a suspeição de mau uso de álcool. A aferição do consumo de drogas ilícitas foi baseada no instrumento Non-Student Drugs Use Questionnaire18 (NSDUQ). Definiu-se como uma situação positiva, a utilização de, ao menos, uma substância ilícita dentre as listadas (cola de sapateiro, lança-perfume; maconha; cocaína ou 'outras'). Na consolidação da variável composta, o primeiro nível indica ausência tanto de mau uso de álcool, quanto o uso de qualquer droga ilícita; o segundo, se há apenas mau uso de álcool; e o terceiro, uso de alguma droga ilícita, quer em conjunto ou independentemente do mau uso de álcool.

As demais variáveis contempladas pelo estudo foram coletadas por meio de um questionário estruturado, preparado especialmente para o estudo caso-controle de fundo. As categorias (níveis) e respectivas definições de cada descritor populacional atenderam a uma perspectiva essencialmente pragmática que visou à maximização da discriminação de subgrupos de risco.

A coleta de dados sucedeu a uma etapa de treinamento e pré-teste. As entrevistas foram direcionadas às mães dos recém-nascidos. Os contatos eram realizados durante as primeiras 48 horas de pós-parto e em local reservado, sem a presença do marido ou companheiro. Informações sobre este foram obtidas da respondente por proxi.

Para obter as projeções de prevalências segundo os diferentes cenários populacionais, utilizou-se um programa especial do aplicativo Stata denominado prvalue e que faz parte da suíte Spost que acompanha o livro de Long & Freese.12 Como a variável utilizada no estudo tem quatro níveis e não possui ordinalidade nas suas categorias, optou-se pelo uso do modelo logito multinomial. Segundo esse modelo, as estimações das probabilidades projetadas são dadas por

sendo b o índice da categoria de base (comparação); m=1 a J o índice da categoria de contraste; bm|b o coeficiente de regressão estimado para contrastar a categoria m com a b; e x o vetor de covariáveis representando os descritores. Para as estimações de precisão, utilizou-se o método de re-amostragem (bootstrap) não paramétrico5 implementado em rotina adhoc desenvolvida em Stata por um dos autores (MER), utilizando o comando prvalue no seu cerne.

Com vista à identificação de um conjunto parcimonioso de descritores, implementou-se uma modelagem. Primeiramente, foram realizadas análises univariadas, modelando-se separadamente cada uma das potenciais variáveis descritoras dos cenários de interesse. Foram identificadas aquelas significativas no modelo (p=0,05). Em seguida, realizou-se uma análise multivariada, incorporando-se todas as variáveis selecionadas na etapa anterior. Entretanto, algumas perdiam a significância ao serem introduzidas no modelo completo, possivelmente devido à redundância de informação vis-à-vis uma ou mais variáveis já contempladas. Visando lidar com este problema, realizaram-se diferentes análises, em que se excluía seqüencialmente cada uma das variáveis que possivelmente competissem entre si, chegando-se em um modelo em que todas se mostravam significantes (p-valor»0,05).

Como a probabilidade de um evento positivo tende a aumentar com o número de relações aferidas, incluiu-se sistematicamente uma variável operacional para apreender se, no domicílio em questão, a informação sobre a violência perpetrada contra filhos advinha de dois ou três relacionamentos. No entanto, visando à comparabilidade entre domicílios contendo dois e três relações entre pais e filhos, todas as prevalências foram projetadas para situações envolvendo somente dois relacionamentos.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro em conformidade com os princípios da Declaração de Helsinque. A participação no estudo se seguiu a um consentimento informado e livre. Foi garantida confidência da informação às respondentes. Todas receberam orientação sobre onde procurar ajuda para lidar com situações de violência familiar caso achassem necessário.

RESULTADOS

As características maternas, dos respectivos companheiros e domiciliares são apresentadas na Tabela 1. Ainda que aproximadamente metade das mães possuía mais de 25 anos (média=26,7 anos; dp=6,3), 11,6% (IC 95%: 7,016,2) eram adolescentes. A maior parte não se considerava branca e cerca da metade não estava trabalhando no momento da entrevista. Em aproximadamente dois terços dos domicílios as mães não haviam terminado o primeiro grau; na metade deles, os companheiros não tinham finalizado o ensino fundamental e apenas um quinto completado o segundo grau. O mau uso de álcool e/ou drogas ilícitas foi constatado em cerca de um quarto dos casais. Nestes casais, a prevalência de ocorrência isolada de violência física foi de 18,5% (IC 95%: 13,223,9). Coincidentemente, foi observada prevalência de 12,2% (IC 95%: 7,716,7), tanto para a ocorrência independente de violência física contra filhos, quanto para a co-ocorrência de violências conjugal e contra filhos.

Os coeficientes de regressão e respectivos erros-padrão oriundos do modelo logito multinomial encontram-se na Tabela 2.

A Tabela 3 mostra as probabilidades de ocorrência e co-ocorrência de eventos violentos no domicílio, segundo diferentes subgrupos populacionais ou, seja, cenários de clientelas de atendimento em serviços de saúde. Ao acúmulo progressivo de situações de maior risco, i.e., conforme se 'agrava' o cenário, existe um aumento de ocorrência de um evento violento de um modo geral e um concomitante aumento na freqüência de co-ocorrência de violência conjugal e contra filhos, em particular.

No cenário A, considerado o de menor risco, existe 18,9% de chance de acontecer algum evento fisicamente violento no domicílio, sendo de 5,4% no casal, 12,8% contra filhos e 0,2% a de co-ocorrência. Por outro lado, no extremo oposto (cenário I), a probabilidade de acontecer uma violência física sobe para 92,2%, sendo que a maior parte ocorre de forma simultânea no casal e contra filhos (60,6 %). A prevalência de ocorrência de violência conjugal isolada também tende a um gradiente crescente com a progressão dos cenários. Porém, uma marcante transposição para um quadro de co-ocorrência acontece quando os descritores paulatinamente entram nas suas respectivas 'piores' categorias (Tabela 3, colunas F a I).

DISCUSSÃO

Como assinalado na introdução do presente artigo, os serviços de saúde podem ter um papel privilegiado no enfrentamento da violência intrafamiliar. Para tal, mesmo que à primeira vista não haja motivos explícitos, é importante que seus profissionais permaneçam continuamente atentos à possibilidade de um membro da família praticar ou ser vítima de violência. Nesse sentido, uma visita mais detalhada aos diversos matizes da violência pode em muito contribuir para auxiliá-los a suspeitar de casos. Além disso, pode abrir diversas portas para que situações potenciais venham a ser corroboradas e ações positivas subseqüentemente implementadas.6 6 Ministério da Saúde. Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violências. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001.

Na busca de um melhor conhecimento sobre as facetas da violência familiar, o presente estudo procurou contribuir identificando as características que permitissem traçar um perfil de ocorrência e co-ocorrência de violência física no âmbito da família. Os resultados mostraram que esse matiz existe e que há um gradiente crescente de ocorrência de um evento fisicamente violento no domicílio conforme mudam as características e situações familiares. Ademais, boa parte das situações conflituosas no casal, resolvidas por meios violentos, passa a vir acompanhada também de violência cometida contra filhos nas situações tendendo ao limite. Nesse sentido, profissionais de saúde não devem somente atentar à presença de um gradiente situacional, mas também ao fato de que existe paulatinamente mais chance dos agravos ocorrerem para além de relações isoladas, passando a se manifestar como um fenômeno englobando todo o grupo familiar.

Os achados do presente estudo reiteraram a idéia de que o enfoque deve ir além das 'queixas principais' apresentadas aos profissionais de saúde em todas as frentes de assistência. Poderia ser de grande benefício uma abordagem ampliada, trazendo ao conhecimento que, por exemplo, a família é composta por uma mãe com mais de 25 anos; cujo companheiro tem baixa escolaridade e abusa de substâncias psicoativas; em que se encontram duas ou mais crianças abaixo de cinco anos. De posse dessas informações e suspeitando de uma situação de violência, caberia ao profissional desencadear um processo de investigação mais acurado; quer aprofundando diretamente via um instrumental exclusivo como, por exemplo, a CTS2 e a CTSPC, quer mediante o acionamento de outros setores intra e extramurais para dar continuidade ao processo.

Na distinção dos subgrupos de interesse, procurou-se utilizar características práticas, de fácil obtenção ao contato com a clientela e que, em última instância, se prestassem ao uso em rotinas de atendimento. Todas as características estudadas, bem como sua forma de categorização, parecem atender a essas prerrogativas. Uma possível crítica poderia ser feita à avaliação do abuso de substâncias por meio do CAGE e NSDUQ que, diferente dos outros componentes do modelo, requerem um conjunto de perguntas. Contudo, os dois instrumentos contêm poucos itens e, agregados aos outros descritores, podem facilmente compor uma eficiente bateria de perguntas para uso direto pelo profissional de saúde.

Algumas das características selecionadas para compor os 'cenários de clientelas' acabaram sendo descartadas por se tornarem redundantes no modelo final. No entanto, isso não significa que não possam ser contempladas na prática. Em se tratando de modelos preditivos (ou, como entendido no presente contexto, de projeção de prevalências), alternativas pragmáticas merecem consideração. É o caso, por exemplo, do uso de uma informação sobre grau de coabitação (densidade domiciliar) em vez do número de crianças menores do que cinco anos convivendo no domicílio, cujas significâncias no modelo final não diferem muito (de p=0,045 para p=0,049). Várias características descritoras potencialmente de interesse na composição dos cenários não puderam ser trabalhadas, uma vez que não atendiam ao estudo principal e, portanto, não foram coletadas. Entre outras, mereceriam exploração futura algumas características relativas à figura masculina envolvida na dinâmica do grupo familiar, tais como: se o parceiro é ou não o pai biológico da criança ou ainda, o diferencial de sua idade em relação ao da mãe. Outros descritores de virtual interesse seriam a idade do(a) filho(a), o histórico pregresso de violência na família e o nível de apoio social materno.

Alguns aspectos metodológicos podem ter influenciado os achados, tanto no sentido de garantir sua qualidade, quanto no de limitar generalizações ou mesmo introduzir vieses. No lado positivo deve ser citado o fato da equipe de campo ter sido composta somente por entrevistadoras, sensíveis ao tema e extensivamente treinadas. A opção por entrevistas individualizadas em locais reservados e acolhedores também deve ter auxiliado na obtenção de informações que, em outras circunstâncias, poderiam ter permanecido veladas. Especificamente em relação à violência, um outro fator profícuo foi o uso de instrumentos refinados e, de especial interesse, que já haviam sido previamente adaptados para uso no País.

Uma questão importante a ser levada em conta é o estudo caso-controle de fundo ter tido como interesse central detectar a violência conjugal na gestação. O presente estudo pode estar captando um perfil de violência física intrafamiliar próprio de uma fase de vida que não necessariamente retrata o conjunto de relações e dinâmicas familiares em geral. Alguns autores19 têm relatado uma variação no padrão de violência quando a mulher encontra-se grávida. Todavia, cabe apontar que isto ainda não é consenso na literatura,3 não podendo ser descartado que o mesmo padrão também ocorra em situações fora da gestação. De toda sorte, ainda que possível, qualquer generalização requer reserva, pendendo evidências adicionais que corroborem os presentes achados em outras circunstâncias.

Uma tendência à superestimação de atos violentos pode ter advindo devido à somente mulheres terem sido as provedoras de informação sobre os companheiros. Estudos pregressos usando CTS indicam que respondentes tendem a sobre-reportar comportamentos agressivos de outros quando são vítimas, mas o oposto em relação aos próprios atos.2 Entretanto, enfocar a violência preferencialmente no âmbito do casal pode mitigar um possível viés. Existem indícios de que essa abordagem aumenta a possibilidade da subvalorização dos próprios atos estar sendo compensada pela superestimação decorrente da informação por proxi, levando a um cancelamento mútuo.11

Como conjectura a atual, mas ainda escassa literatura,20 o abuso físico conjugal pode também estar relacionado com outras formas de violência contra filhos, além da física. Como o presente estudo se limitou ao perfil da ocorrência e coocorrência deste tipo de violência, seria conveniente que investigações futuras se debruçassem sobre as outras formas de violência, envolvendo também abusos psicológicos, sexuais e negligência infantil, que, como de reconhecimento crescente, provocam danos tão difíceis de superar quanto os maus-tratos físicos.6

Recebido: 20/9/2005

Revisado: 16/2/2006

Aprovado: 5/4/2006

Financiado pelo Conselho Nacional de desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - Processo n. 300234/94-5) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ - Processo n. E-26/171.223/98 e E-26/150.893/99).

ASD é bolsista pela FAPERJ, registro n. E-26/151.699/2004.

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  • Correspondência | Correspondence:
    Michael Eduardo Reichenheim
    Instituto de Medicina Social - UERJ
    Rua São Francisco Xavier, 524 7º andar
    20559-900 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Ministério da Saúde. Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violências. Brasília (DF); 2001.
  • 2
    Ministério da Saúde. Direitos humanos e violência intrafamiliar. Informações e orientações para agentes comunitários de saúde. Brasília (DF); 2001.
  • 3
    Moraes CL. Aspectos metodológicos relacionados a um estudo sobre violência familiar durante a gestação como fator de propensão da prematuridade no recém-nascido [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz; 2001.
  • 4
    Doravante, o termo
    filho(s) também abrange
    enteado(s).
  • 5
    As versões completas em português podem ser obtidas na base SciELO por meio dos
    links: CTS2- Disponível em
  • 6
    Ministério da Saúde. Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violências. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2006

    Histórico

    • Revisado
      16 Fev 2006
    • Recebido
      20 Set 2005
    • Aceito
      05 Abr 2006
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