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Hospitais gerais filantrópicos: novo espaço para a internação psiquiátrica

Philanthropic general hospitals: a new setting for psychiatric admissions

Resumos

OBJETIVO: Estudar o processo de instalação de enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais filantrópicos e descrever suas características e práticas terapêuticas. MÉTODOS: Foram selecionadas 10 instituições em cidades dos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Santa Catarina, no ano de 2002. Realizaram-se 43 entrevistas semi-estruturadas, no mínimo três em cada instituição, com profissionais de saúde, baseadas nos seguintes eixos temáticos: processo de instalação do serviço, modelo terapêutico e situação atual. As entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas e submetidas a análise de conteúdo. RESULTADOS: As instituições localizam-se em cidades onde não havia hospitais psiquiátricos. Cinco hospitais reservam leitos para pacientes psiquiátricos em enfermarias de clínica médica. Em seis instituições, a proposta terapêutica centra-se numa abordagem farmacológica. Na falta de recursos e de planejamento terapêutico, a internação de pacientes mais agitados aumenta a resistência da comunidade hospitalar. As restrições relativas à realização de exames complementares, quando da internação psiquiátrica, constituem outra barreira a ser superada. Falta intercâmbio entre autoridades e direções dessas instituições, obrigadas a exceder quotas de internação devido à demanda de cidades vizinhas. CONCLUSÕES: Na instalação das enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais filantrópicos houve a confluência de demanda local com vontades individuais. Apesar do evidente empenho e flexibilidade dos profissionais, ainda não se pode falar em consolidação desses serviços diante das várias dificuldades a serem superadas: resistência local à internação psiquiátrica, restrições econômicas, capacitação profissional deficitária e ausência de um modelo terapêutico que vá além da abordagem farmacológica.

Serviços de saúde mental; Serviços de saúde mental; Pacientes internados; Hospitalização; Ocupação de leitos; Hospitais filantrópicos; Hospitais gerais; Administração hospitalar


OBJECTIVE: To understand the process that led Brazilian philanthropic general hospitals to implement psychiatric units and to describe the main characteristics and therapeutic approaches of these services. METHODS: Ten institutions in three Brazilian states (Minas Gerais, São Paulo e Santa Catarina) were assessed in 2002. Forty-three semi-structured interviews were carried out with health professionals who worked at the hospitals to collect data on service implementation process, therapeutic approaches and current situation. The interviews were audio-recorded and their content was analyzed. RESULTS: There was no mental hospital in the cities where the institutions were located. In five hospitals, psychiatric patients were admitted to general medical wards because there was no psychiatric unit. The therapeutic approach in six hospitals was based on psychopharmacological treatment. Due to lack of resources and more appropriate therapeutic planning, the admission of patients presenting psychomotor agitation increases resistance against psychiatric patients in general hospitals. Financial constraints regarding laboratory testing is still a challenge. There is no exchange between local authorities and hospital administrators of these institutions that are compelled to exceed the allowed number of admissions to meet the demand of neighboring cities. CONCLUSIONS: The need for mental health care to local populations combined with individual requests of local authorities and psychiatrists made possible the implementation of psychiatric units in these localities. In spite of the efforts and flexibility of health professional working in these institutions, there are some obstacles to be overcome: resistance of hospital community against psychiatric admissions, financial constraints, limited professional training in mental health and the lack of a therapeutic approach that goes beyond psychopharmacological treatment alone.

Mental health services; Mental health services; Inpatients; Hospitalization; Bed occupancy; Hospitals, voluntary; Hospitals, general; Hospital administration


ARTIGOS ORIGINAIS

Hospitais gerais filantrópicos: novo espaço para a internação psiquiátrica

Philanthropic general hospitals: a new setting for psychiatric admissions

Cristina Larrobla; Neury José Botega

Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria. Faculdade de Ciências Médicas. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, Brasil

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Neury José Botega Departamento de Psiquiatria Faculdade de Ciências Médicas -UNICAMP Caixa Postal 6111 13081-970 Campinas, SP, Brasil E-mail: botega@fcm.unicamp.br

RESUMO

OBJETIVO: Estudar o processo de instalação de enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais filantrópicos e descrever suas características e práticas terapêuticas.

MÉTODOS: Foram selecionadas 10 instituições em cidades dos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Santa Catarina, no ano de 2002. Realizaram-se 43 entrevistas semi-estruturadas, no mínimo três em cada instituição, com profissionais de saúde, baseadas nos seguintes eixos temáticos: processo de instalação do serviço, modelo terapêutico e situação atual. As entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas e submetidas a análise de conteúdo.

RESULTADOS: As instituições localizam-se em cidades onde não havia hospitais psiquiátricos. Cinco hospitais reservam leitos para pacientes psiquiátricos em enfermarias de clínica médica. Em seis instituições, a proposta terapêutica centra-se numa abordagem farmacológica. Na falta de recursos e de planejamento terapêutico, a internação de pacientes mais agitados aumenta a resistência da comunidade hospitalar. As restrições relativas à realização de exames complementares, quando da internação psiquiátrica, constituem outra barreira a ser superada. Falta intercâmbio entre autoridades e direções dessas instituições, obrigadas a exceder quotas de internação devido à demanda de cidades vizinhas.

CONCLUSÕES: Na instalação das enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais filantrópicos houve a confluência de demanda local com vontades individuais. Apesar do evidente empenho e flexibilidade dos profissionais, ainda não se pode falar em consolidação desses serviços diante das várias dificuldades a serem superadas: resistência local à internação psiquiátrica, restrições econômicas, capacitação profissional deficitária e ausência de um modelo terapêutico que vá além da abordagem farmacológica.

Descritores: Serviços de saúde mental, organização e administração. Serviços de saúde mental, recursos humanos. Pacientes internados. Hospitalização. Ocupação de leitos. Hospitais filantrópicos. Hospitais gerais. Administração hospitalar.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To understand the process that led Brazilian philanthropic general hospitals to implement psychiatric units and to describe the main characteristics and therapeutic approaches of these services.

METHODS: Ten institutions in three Brazilian states (Minas Gerais, São Paulo e Santa Catarina) were assessed in 2002. Forty-three semi-structured interviews were carried out with health professionals who worked at the hospitals to collect data on service implementation process, therapeutic approaches and current situation. The interviews were audio-recorded and their content was analyzed.

RESULTS: There was no mental hospital in the cities where the institutions were located. In five hospitals, psychiatric patients were admitted to general medical wards because there was no psychiatric unit. The therapeutic approach in six hospitals was based on psychopharmacological treatment. Due to lack of resources and more appropriate therapeutic planning, the admission of patients presenting psychomotor agitation increases resistance against psychiatric patients in general hospitals. Financial constraints regarding laboratory testing is still a challenge. There is no exchange between local authorities and hospital administrators of these institutions that are compelled to exceed the allowed number of admissions to meet the demand of neighboring cities.

CONCLUSIONS: The need for mental health care to local populations combined with individual requests of local authorities and psychiatrists made possible the implementation of psychiatric units in these localities. In spite of the efforts and flexibility of health professional working in these institutions, there are some obstacles to be overcome: resistance of hospital community against psychiatric admissions, financial constraints, limited professional training in mental health and the lack of a therapeutic approach that goes beyond psychopharmacological treatment alone.

Keywords: Mental health services, organization & administration. Mental health services, manpower. Inpatients. Hospitalization. Bed occupancy. Hospitals, voluntary. Hospitals, general. Hospital administration.

INTRODUÇÃO

A assistência psiquiátrica adentrou o século XX sob a influência de um modelo assistencial marcado pela segregação. Notadamente após a II Guerra, esse modelo começou a ser fortemente criticado, surgindo assim uma série de alternativas assistenciais, dentre as quais destacam-se as enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais.1

Destacam-se entre os principais condicionantes do desenvolvimento das enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais,1 a adoção de uma política de bem-estar social por diversos países do hemisfério norte, a partir da qual o Estado passou a ter papel fundamental na regulação social, incluindo-se a área de assistência e proteção aos doentes; a experiência de pequenas enfermarias psiquiátricas em hospitais militares gerais; a crítica à dimensão segregadora, estigmatizante e produtora de anomia dos grandes hospitais psiquiátricos ou de qualquer macroinstituição para desadaptados sociais; a idéia de que a internação psiquiátrica não deveria mais ser vista como centro da assistência psiquiátrica, devendo ser integrada a estruturas assistenciais extra-murais; o desenvolvimento de abordagens terapêuticas que viabilizaram e agilizaram o tratamento de quadros psiquiátricos graves, particularmente a convulsoterapia, nas décadas de 40 e 50, e a psicofarmacoterapia na década de 50; o desenvolvimento de abordagens psicoterapêuticas aplicáveis ao contexto institucional, como técnicas grupais e breves de psicoterapia, bem como de abordagens socioterapêuticas (terapia ocupacional, laborterapia, entre outras).1,5

No hospital geral, o processo de integração entre a psiquiatria e outras especialidades foi realizado gradualmente de três maneiras: deslocamento de pacientes psiquiátricos para enfermarias de psiquiatria, realização de interconsultas, e maior participação dos psiquiatras em comissões hospitalares. Esse processo não foi simples nem fácil, tendo que superar muitas resistências até os dias atuais. A chamada psiquiatria de hospital geral desenvolveu-se principalmente no hemisfério norte, e atualmente, em vários países, a maioria das internações psiquiátricas ocorre em enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais.1,5

Na América do Sul, a proporção de hospitais gerais com enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais é pequena.7 No Brasil, o processo de instalação dessas enfermarias, vigoroso na década de 80, praticamente interrompeu-se em meados da década de 90. Apenas 1,3% dos hospitais gerais do Sistema Único de Saúde (SUS) contam com uma enfermaria de psiquiatria.7

Um estudo censitário3 salientou que as enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais concentravam-se no Sul e no Sudeste, em instituições públicas vinculadas ao ensino universitário, localizadas geralmente nas capitais. Verificou-se que essas enfermarias mais recentemente instaladas, bem como a reserva de leitos psiquiátricos em enfermarias de clínica médica, ocorreram em hospitais filantrópicos de cidades com até 200 mil habitantes, em hospitais não vinculados ao ensino universitário, nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Santa Catarina.4

Faltam informações na literatura científica nacional sobre as condições e características do processo de instalação, consolidação e incorporação das enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais à cultura médica local. No entanto, o conhecimento sobre o processo de instalação e da situação dessas enfermarias é fundamental, tendo em vista o importante papel estratégico desses serviços na rede de cuidados ao doente mental.

O objetivo do presente trabalho foi estudar o processo de instalação de enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais em alguns hospitais gerais filantrópicos, e descrever suas características e as práticas terapêuticas adotadas.

MÉTODOS

A partir de listas do Datasus e das Secretarias de Saúde Mental dos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Santa Catarina, foram selecionadas cinco instituições com enfermaria de psiquiatria e outras cinco com leitos reservados para internações por causas psiquiátricas em suas enfermarias de clínica médica. A seleção contemplou todas as instituições que preencheram os seguintes critérios de inclusão: hospitais gerais localizados em cidades com até 200 mil habitantes, que tivessem efetuado no mínimo cinco internações mensais por causas psiquiátricas.

Numa primeira etapa, enviou-se carta à diretoria clínica das instituições, descrevendo a pesquisa e o interesse de marcar entrevistas com alguns profissionais que lá trabalhavam. As instituições selecionadas concordaram em participar. Estabeleceu-se o mínimo de três entrevistas por instituição. A pesquisa foi realizada no ano de 2002.

Foram realizadas por uma das autoras (C.L.) 43 entrevistas semi-estruturadas, com base nos seguintes eixos temáticos: processo de instalação, modelo terapêutico, situação atual. As entrevistas procuraram contemplar diversos atores vinculados direta e indiretamente à área da psiquiatria: presidente da mantenedora (2), diretor clínico do hospital (6), chefe da enfermaria de psiquiatria (8), membros mais antigos da equipe de enfermagem (7), outros profissionais (20), entre os quais, psicólogos, assistente social e terapeuta ocupacional. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas. Além da entrevista, foi preenchido pela entrevistadora um formulário descritivo, contendo informações sobre as instalações hospitalares, recursos humanos e materiais e estratégias terapêuticas adotadas nas enfermarias de psiquiatria. A entrevista e o formulário descritivo basearam-se em estudos prévios realizados no Brasil e na América do Sul,3,7 desenvolvidos a partir de recomendações da Organização Mundial de Saúde.10 Realizou-se estudo-piloto em uma instituição hospitalar em cidade de pequeno porte do interior paulista para treinamento do entrevistador e adaptação dos instrumentos de pesquisa.

Os dados das entrevistas foram submetidos à análise de conteúdo. Este tipo de análise recorta uma totalidade em partes a serem apreendidas na seqüência apresentada em sua naturalidade. Em seguida, essas partes são reorganizadas, sempre visando a uma compreensão mais aprofundada dos sentidos dos relatos.8 Adotou-se um referencial fenomenológico para a compreensão, ou seja, principal atenção ao modo como os entrevistados apreendem e reportam aspectos de certos problemas de saúde (fenômenos).9 Trabalhou-se com o fenômeno percebido e manifesto pela linguagem, e com o que se apresenta como significativo ou relevante para o indivíduo no contexto no qual a percepção e a manifestação ocorrem.2

O protocolo desta pesquisa foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

RESULTADOS

A Tabela sumariza algumas características dos serviços avaliados. As 10 instituições visitadas localizam-se em cidades onde não há hospitais psiquiátricos. Cinco contavam com enfermarias de psiquiatria (Pouso Alegre, Araguari, Joinville, Lages, Curitibanos). Outras cinco reservavam até cinco leitos para pacientes psiquiátricos em enfermarias de clínica médica, com 24 a 38 leitos. Com exceção de uma instituição, tais leitos não tinham um espaço restrito da enfermaria.

Os diagnósticos mais freqüentes eram, segundo os relatos: esquizofrenia, dependência de álcool e depressão. Todas as enfermarias de psiquiatria e três das enfermarias de clínica médica trabalhavam com admissões involuntárias.

O espaço para os pacientes psiquiátricos não pode ser considerado suficiente. Também não há espaço suficiente ou disponível para guardar objetos pessoais dos pacientes. O suprimento de medicamentos, tanto básicos quanto psiquiátricos, foi considerado pelos entrevistados como parcialmente adequado.

Seis hospitais contavam apenas com o recurso farmacológico para o tratamento dos pacientes psiquiátricos (Pouso Alegre, Carangola, Formiga, Lages e Lençóis Paulista). Os outros quatro tinham recursos de psicoterapia individual ou grupal. Apenas dois hospitais (São Francisco do Sul e Joinville) contavam com terapeuta ocupacional.

Três grandes temas foram estabelecidos a fim de abarcar o conteúdo dos depoimentos colhidos: a) fatores que desencadearam a instalação de leitos psiquiátricos; b) situação atual da área de saúde mental e dos serviços avaliados e, c) perspectivas em relação ao futuro.

Foram identificados vários fatores desencadeantes, muitos deles produto de uma conjunção local. Na maioria dos casos existiu uma pessoa-chave, i.e. um profissional, político, pessoa influente na sociedade ou na instituição que procurou atender a demanda de pacientes e familiares, conforme os depoimentos:

"( ) Na época em que eu entrei no hospital, o filho do provedor da Santa Casa era um paciente que sofria de esquizofrenia e estava internado em cidade próxima. (...) A população não teve participação direta, eu acho, ela não brigou diretamente, pelo menos nos meios adequados. (...) Mas essa pressão existe, a chegada da família com um drogadito, alguém que tentou suicídio, vira tumulto, então aquela pressão fica.( ) Nas cidades pequenas funciona assim, as pessoas chegam até o prefeito, até os vereadores, só que de forma não oficializada." (psiquiatra)

Apesar das dificuldades, o papel corporativo facilitou a internação de pacientes psiquiátricos, na medida em que colegas de outras especialidades ajudavam para que os doentes mentais tivessem oportunidades iguais na assistência:

"A Secretaria [Estadual de Saúde] só está autorizando mesmo casos extremos. Os médicos, para poderem realmente internar [o paciente psiquiátrico], eles colocam outro procedimento para poder ser autorizado. Da psiquiatria não pode ser cobrado exame, e às vezes o paciente precisa. (...) Então eles colocam outro procedimento, para poder ter acesso." (presidente da mantenedora)

Em relação à situação atual da área da saúde em geral e dos serviços avaliados, em particular, diferentes subeixos temáticos puderam ser identificados, tais como: a política, a economia, as relações entre cidades e Estados, dificuldades com os recursos humanos, preconceitos entre outros.

Em relação às dificuldades com o financiamento, destaca-se a preocupação notória, em grande parte dos entrevistados, com o baixo valor do pagamento efetuado pelo SUS e com o número fixo de autorizações de internação hospitalar (AIH):

"Nós não podemos ultrapassar 520 AIH, não podemos ultrapassar determinado valor financeiro imposto pelo gestor municipal do SUS. ( ) A unidade psiquiátrica, ela foi montada com limite no credenciamento federal, 10 % dos leitos do hospital geral, mas com a garantia de que o paciente em surto, se a internação fosse superior a 15 dias, ele seria transferido para Curitiba." (chefe da psiquiatria)

As relações entre cidades e Estados são de competitividade e rivalidade, apresentando-se como elementos comuns as comparações entre as culturas da cidade grande e da cidade pequena. Observou-se, ainda, a existência de importação/exportação de doentes entre cidades, ou cidades que "não querem" os doentes mentais e cidades que "atraem" esses pacientes:

"Os municípios pequenos mandam para cá as pessoas para serem atendidas, e o dinheiro não dá... tem um déficit de 40% permanentemente, não há como sair dessa. Como é que eu vou explicar para os computadores de Brasília que aqui é mais bonito, por isso mandam [os pacientes] para cá! Eles não vão entender isso... Eles mandam verbas para 33 mil [habitantes], e aqui a demanda não é essa, é de 150 mil, e não há como comprovar isso." (psiquiatra)

O desconforto em relação à presença de doentes mentais nos hospitais foi um elemento comum a quase todas as entrevistas. Isso se devia basicamente, à dificuldade de lidar com pacientes agressivos, à longa permanência, e responsabilidade que o hospital tem com os demais pacientes internados. Alguns discursos são extremados, com clara expressão segregadora e preconceituosa:

"A gente percebia que o funcionário tinha certa birra do paciente psiquiátrico, eles comentavam 'Ah, já vem aquele paciente de novo!' ou 'Ah, o que está precisando é de serviço, por que é que ele não vai trabalhar!'. Mas eu observei que isso melhorou, os funcionários passaram a ter mais carinho pelos pacientes com as palestras que o psiquiatra organizou, não escuto mais aquelas queixas." (enfermeiro)

Observaram-se várias adaptações frente a carências no modelo terapêutico e na formação dos recursos humanos. Na maioria das vezes, havia falta de formação específica para trabalhar com pacientes psiquiátricos. Apesar disso, freqüentemente, as carências foram supridas pelo "bom senso", o que deu resultados positivos:

"A gente reconhece que tem falhas, mas se conseguiu fazer uma reunião uma vez por mês, toda a clínica de psiquiatria desde a limpeza até o auxiliar, todo mundo, e assim a gente discute as coisas que acontecem aqui dentro, seja o que for, então a gente chega a um consenso de como deve ser." (terapeuta ocupacional)

A dependência do álcool foi destacada como um fator determinante de internação psiquiátrica, mas também geradora de problemas e transtornos. O fato de o dependente de álcool ser identificado como agressivo, sujeito a reinternações e abandono da família pode contribuir para a estigmatização dos doentes mentais internados:

"Esse tipo de paciente [dependente de álcool] vem e volta, vem e volta, consegue uma pressão danada na Secretaria, para todos os lados. ( ) Mas, para onde vamos mandar os alcoolistas? Ninguém quer um paciente alcoolista." (psiquiatra)

Diferentes relatos vincularam-se às expectativas quanto ao futuro:

"Geralmente a gente entra quando a bomba já estourou, falta mais um entendimento preventivo. A gente é muito intervencionista, não existe um trabalho preventivo..., costurar o que já foi rasgado, não existe uma orientação para não rasgar, para cuidar." (psiquiatra)

"A referência anteriormente era a capital e outras cidades. (...) Não havia essa confiança de que pudesse ser resolvida na comunidade, porque anos e anos, e décadas, foi resolvido fora (...) Agora, a gente vai mudando isso passo a passo e vai consolidando isso." (psiquiatra)

DISCUSSÃO

A internação de doentes psiquiátricos no âmbito dos hospitais gerais visitados pode ser compreendida a partir da confluência de distintos fatores impulsionadores, catalisados por vontades individuais. As internações desses pacientes respondem, em sua maioria, a uma demanda local, seja ela de caráter individual ou coletivo. Além disso, em três localidades, a chegada de um profissional da área da psiquiatria estimulou a procura espontânea de tratamento. Essa conjunção de fatores e atores, porém, não permite afirmar que as forças sociais estejam hoje mais organizadas, nem que esse tipo de assistência esteja consolidada e incorporada à cultura médica local.

Algumas limitações do presente estudo estão indicadas a seguir. O número de instituições visitadas, embora restrito, corresponde ao universo de instituições de cidades pequenas e médias dos três Estados onde se observou o aumento do número de leitos psiquiátricos em hospitais gerais filantrópicos.4 As entrevistas face-a-face podem tanto facilitar a expressão do entrevistado, como dificultá-la, uma vez que não há anonimato nas opiniões emitidas.9 Não foi possível entrevistar alguns chefes dos serviços e presidentes das mantenedoras, afastados por serem candidatos a eleição de funções de responsabilidade pública. Por outro lado, isso levou à busca de outras pessoas-chave ligadas à instituição ou à equipe de saúde mental, excedendo o número mínimo de entrevistas planejadas. Várias instituições não contavam com dados precisos, como diagnósticos mais freqüentes. Nesses casos as respostas corresponderam a estimativas.

A proposta terapêutica em cinco instituições seguia a uma abordagem farmacológica. O tempo de internação se encontra dentro dos parâmetros aceitos internacionalmente, entre 15 e 28 dias.1,3 Períodos mais breves, sem o adequado acompanhamento dos pacientes em serviços ambulatoriais, têm sido apontados como desencadeadores de reinternações, ou de sobrecarga em outros serviços comunitários.5,6

As condições materiais (limitação e inadequação do espaço físico) e de recursos humanos tornam-se menos apropriadas quando se considera a internação involuntária de pacientes agitados, agressivos ou que tentem fugir.

O tratamento dos transtornos mentais decorrentes do alcoolismo geralmente cursa com outras complicações clínicas, que requerem internação em um hospital geral. De fato, a internação de pacientes dependentes do álcool é uma das situações que exigem conhecimento psiquiátrico,5 seja na busca de tratamento emergencial de quadros agudos, ou visando a uma abordagem que motive o paciente para o tratamento. Observou-se que a internação desses pacientes, na falta de recursos e de planejamento terapêutico, parece aumentar a resistência em relação à presença de pacientes psiquiátricos na instituição. As restrições relativas à realização de exames complementares, quando se trata de internação psiquiátrica, constituem outra barreira a ser superada. É no hospital geral que podem ser feitos, mais eficientemente, diagnósticos diferenciais e tratamentos de comorbidades.

Embora os resultados obtidos no presente trabalho mostrem a vontade e a preocupação de iniciar ou de dar continuidade à assistência psiquiátrica sob uma nova concepção, a situação observada evidencia a necessidade de se instrumentalizar um sistema de comunicação e intercâmbio de informação entre as autoridades e os trabalhadores da saúde mentalno hospital geral. Esse fenômeno confirma a idéia de que o processo de mudança de modelos assistenciais em psiquiatria foi determinado por políticas vindas, basicamente, de decisões governamentais que deixaram a disciplina num lugar mais reativo do que pro-ativo.1,5 Deve-se reconhecer, também, que várias das experiências aqui documentadas foram desenvolvidas sem planejamento e/ou sem o apoio de rede de serviços extra-murais, o que dificulta sua consolidação.

Em síntese, a instalação de serviços de internação psiquiátrica e o modelo terapêutico adotado nos hospitais filantrópicos estudados diferem dos padrões internacionais de implantação de enfermarias de psiquiatria, pelo fato de os serviços terem sido instalados em cidades médias e pequenas, em hospitais não vinculados ao ensino universitário. Ainda não se pode falar em consolidação, mas conquistas importantes que refletem a vontade de vários profissionais vinculados direta ou indiretamente à área da saúde mental. Apesar do evidente empenho e flexibilidade dos profissionais, há, ainda, várias dificuldades a serem superadas: resistência local à internação psiquiátrica, restrições econômicas, capacitação profissional deficitária e ausência de um modelo terapêutico que vá além da abordagem farmacológica.

Os achados do presente trabalho aproximam as enfermarias de psiquiatria em hospitais gerais dessas instituições filantrópicas das unidades de psiquiatria de hospitais gerais universitários, onde se encontram mais recursos materiais, humanos e terapêuticos.3,5 De um lado, essas enfermarias representam inegável avanço ao evitarem internações em grandes hospitais psiquiátricos localizados nas capitais. De outro, ainda lutam com dificuldade contra a cultura local, ou enfrentam dificuldades de gerenciamento do sistema público, principalmente no que diz respeito ao financiamento. Seriam necessárias iniciativas governamentais, unidas às de centros universitários, que fomentassem o desenvolvimento desses serviços. Tais esforços deveriam pautar-se em um plano de metas, em orçamento adequado e na monitoração dos progressos obtidos.

AGRADECIMENTOS

Aos profissionais que participaram da pesquisa com seus relatos para a realização deste trabalho.

Recebido: 14/10/2005

Revisado: 17/5/2006

Aprovado: 12/7/2006

Baseado na tese de doutorado de C Larrobla, apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em 2004.

C Larrobla foi bolsista de doutorado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp - Processo n. 99/1635-0).

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  • Correspondência | Correspondence:

    Neury José Botega
    Departamento de Psiquiatria
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    13081-970 Campinas, SP, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      12 Jul 2006
    • Revisado
      17 Maio 2006
    • Recebido
      14 Out 2005
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