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Assistência aos pacientes com HIV/Aids no Brasil

Resumos

O trabalho teve por objetivo avaliar a assistência à população com Aids no Brasil e a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS) de prover intervenções para enfrentamento da epidemia e discutir a sustentabilidade da iniciativa brasileira de distribuição universal e gratuita dos anti-retrovirais. O trabalho considerou dados originais de uma pesquisa sobre a capacidade potencial de distribuição de uma futura vacina anti-HIV no Brasil, envolvendo 119 entrevistados. Nas abordagens da assistência hospitalar e da assistência farmacêutica foram utilizados dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS e do Sistema de Controle Logístico de Medicamentos do Programa Nacional de DST/Aids. Os resultados mostraram bom desempenho da política de distribuição de anti-retrovirais. Entretanto, o acesso ao tratamento de doenças oportunistas foi deficitário. Os valores pagos pelo Sistema Único de Saúde pelas internações por Aids mantiveram-se muito baixos, com valor médio em torno de R$700,00, em 2004. A assistência a pacientes com HIV/Aids no Brasil tem sido tratada como um direito do cidadão, com o respaldo de uma articulação efetiva entre as esferas de governo e a sociedade civil. Os desafios que se colocam atualmente dizem respeito ao monitoramento mais fino dos processos e resultados obtidos e à sustentabilidade da distribuição universal e gratuita de anti-retrovirais.

Síndrome de imunodeficiência adquirida; Síndrome de imunodeficiência adquirida; Infecções oportunistas relacionadas a Aids; Infecções oportunistas relacionadas a Aids; Agentes anti-HIV; Agentes anti-HIV; Sobreviventes de longo prazo ao HIV; SUS(BR); Prestação de cuidados à saúde; Administração de serviços de saúde


This study was intended to assess care provided to those living with HIV/AIDS in Brazil and the Brazilian Unified Health System (SUS) capacity of delivering interventions to cope with the epidemic as well as to discuss the sustainability of the Brazilian initiative of providing universal free access to antiretrovirals (ARVs). Original data from a study comprising 119 respondents on the potential capacity of delivering a prospective HIV vaccine in Brazil was used. Inpatient and pharmaceutical care was based on data from the SUS Hospital Information System and Drug Logistics Management Systems of the National Program for STD/AIDS. The study results indicate good performance of the Brazilian ARV Access Program but access to treatment of opportunistic infections was, however, unsatisfactory. The rates covered by SUS for AIDS hospital admissions remained very low, on average around R$700 in 2004. Health care to HIV/AIDS patients has been considered a citizen's right strongly supported by an effective joint action of the Brazilian government and civil society. The current challenges are fine monitoring of processes and program results and ensuring sustainability of universal free ARV access.

Acquired immunodeficiency syndrome; Acquired immunodeficiency syndrome; AIDS-related opportunistic infections; AIDS-related opportunistic infections; Anti-HIV agents; Anti-HIV agents; HIV long-term survivors; SUS (BR); Delivery of heath care; Health services administration


ARTIGOS ORIGINAIS

Assistência aos pacientes com HIV/Aids no Brasil

Margareth Crisóstomo PortelaI; Michel LotrowskaII

IDepartamento de Administração e Planejamento em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

IIMédicos Sem Fronteiras. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência Correspondência: Margareth Crisóstomo Portela Departamento de Administração e Planejamento em Saúde Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca Fundação Oswaldo Cruz Rua Leopoldo Bulhões, 1480 sala 724 - Manguinhos 21041-210 Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: mportela@ensp.fiocruz.br

RESUMO

O trabalho teve por objetivo avaliar a assistência à população com Aids no Brasil e a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS) de prover intervenções para enfrentamento da epidemia e discutir a sustentabilidade da iniciativa brasileira de distribuição universal e gratuita dos anti-retrovirais. O trabalho considerou dados originais de uma pesquisa sobre a capacidade potencial de distribuição de uma futura vacina anti-HIV no Brasil, envolvendo 119 entrevistados. Nas abordagens da assistência hospitalar e da assistência farmacêutica foram utilizados dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS e do Sistema de Controle Logístico de Medicamentos do Programa Nacional de DST/Aids. Os resultados mostraram bom desempenho da política de distribuição de anti-retrovirais. Entretanto, o acesso ao tratamento de doenças oportunistas foi deficitário. Os valores pagos pelo Sistema Único de Saúde pelas internações por Aids mantiveram-se muito baixos, com valor médio em torno de R$700,00, em 2004. A assistência a pacientes com HIV/Aids no Brasil tem sido tratada como um direito do cidadão, com o respaldo de uma articulação efetiva entre as esferas de governo e a sociedade civil. Os desafios que se colocam atualmente dizem respeito ao monitoramento mais fino dos processos e resultados obtidos e à sustentabilidade da distribuição universal e gratuita de anti-retrovirais.

Descritores: Síndrome de imunodeficiência adquirida, prevenção e controle. Síndrome de imunodeficiência adquirida, terapia. Infecções oportunistas relacionadas a Aids, prevenção econtrole. Infecções oportunistas relacionadas a Aids, terapia. Agentes anti-HIV, provisão edistribuição. Agentes anti-HIV, economia. Sobreviventes de longo prazo ao HIV. SUS(BR). Prestação de cuidados à saúde, organização eadministração. Administração de serviços de saúde.

INTRODUÇÃO

O capítulo "Cuidados, Apoio e Tratamento" da Declaração de Compromisso sobre HIV e Aids das Nações Unidas13 considera dois aspectos principais. Um deles é o fortalecimento dos sistemas de saúde para a provisão de terapia anti-retroviral segura e efetiva e do melhor cuidado preconizado para a prevenção e tratamento de doenças oportunistas, incluindo ações no campo das políticas e práticas farmacêuticas que possibilitem a viabilização e manutenção sustentável dessa provisão. O outro é o desenvolvimento e implementação progressiva de estratégias abrangentes de cuidado e suporte, inclusive psicossocial, a indivíduos, famílias e comunidades afetadas pelo HIV/Aids, com base familiar ou comunitária ou no âmbito dos sistemas de serviços de saúde.

Os compromissos firmados para 2003 e 2005 já estavam contemplados nas diretrizes adotadas pelo governo brasileiro. O sistema de saúde brasileiro começou a distribuir medicamentos para o tratamento de doenças oportunistas em 1988, e zidovudina em 1991.3,4 Em 1996, de modo inovador e pioneiro, o governo brasileiro sancionou uma lei dispondo sobre a obrigação do Estado de distribuir, de forma universal e gratuita, os medicamentos para o tratamento dos portadores do HIV/Aids.1 1 Brasil. Lei nº 9.313, de 13 de novembro de 1996. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores de HIV e doentes de Aids. Disponível em http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=144779 [acesso em 1 mar 2006] Por outro lado, o Programa Nacional de DST/Aids (PN-DST/Aids) tem se caracterizado historicamente pela integralidade das ações de cuidado aos pacientes com HIV/Aids e incorporação de estratégias abrangentes de enfrentamento da epidemia, com um papel central reservado à articulação com a sociedade civil.2,7

O processo de avaliação do cumprimento das metas estabelecidas suscita, portanto, questões que transcendem a simples observância das metas, no plano formal. Ele coloca desafios que apontam a necessidade de um monitoramento mais fino dos processos e resultados relacionados à assistência de indivíduos afetados pelo HIV/Aids no âmbito farmacêutico, no contexto de utilização de serviços do sistema de saúde ou ainda no nível comunitário. Também instiga indagações acerca da qualidade da assistência resultante das ações de um programa nacional diferenciado, sob diversos aspectos, mas que não prescinde do sistema de saúde brasileiro com um todo, às voltas com sérios problemas operacionais. Finalmente, evidencia questões colocadas na pauta do governo brasileiro em relação a como garantir a sustentabilidade da política de assistência farmacêutica a indivíduos com HIV/Aids, considerando os custos cada vez mais elevados.

Ainda que haja um amplo campo para a exploração e análise das questões sublinhadas, algumas já vêm sendo objeto de estudos. Destaca-se nesse sentido, a avaliação da assistência ambulatorial a pacientes com HIV/Aids, conduzida entre 2001 e 2002 em sete estados brasileiros – Pará, Maranhão, Ceará, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul –, recentemente publicada pela equipe do Projeto QualiAids.9,10

O presente artigo teve por objetivo avançar na abordagem de outros aspectos da assistência às pessoas vivendo com HIV/Aids no Brasil, incluindo uma avaliação global da capacidade de enfrentamento da epidemia; um panorama descritivo do volume de internações no Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos anos; e considerações acerca dos efeitos e sustentabilidade da distribuição universal e gratuita dos anti-retrovirais.

FONTE DOS DADOS ANALISADOS

Foram compilados dados de fontes diversas, apresentando alguns resultados inéditos e outros oriundos de estudos e documentos prévios.

A avaliação global da capacidade de distribuição de intervenções sobre a infecção pelo HIV e a Aids leva em consideração dados originais de uma pesquisa realizada em 2005 sobre a capacidade potencial de distribuição de uma futura vacina anti-HIV no Brasil, segundo proposta da Organização Mundial de Saúde (OMS).1 Os dados foram obtidos de 119 entrevistados, incluindo gestores do PN-DST/Aids, representantes das coordenações dos programas de DST/Aids estaduais e municipais, representantes de organizações não-governamentais, pesquisadores e profissionais envolvidos na assistência a pacientes com HIV/Aids. Foram avaliadas 12 intervenções referentes ao HIV variando os escores entre 0 e 10, compreendendo itens como: profilaxia à exposição do HIV para profissionais de saúde, acesso à profilaxia primária e secundária de infecções oportunistas, acesso ao tratamento de infecções oportunistas e programas efetivos de tratamento dos portadores de HIV/Aids de ampla escala populacional.

As abordagens de aspectos relativos à assistência hospitalar e à assistência farmacêutica decorrente da política de distribuição universal de anti-retrovirais entrelaçam-se, considerando, preponderantemente, dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do SUS2 2 Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde. Disponível em http://www.datasus.gov.br [acesso em 1 mar 2006] e do Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (SICLOM) do PN-DST/Aids.6 Os dados do SIH incluem todas as internações pagas pelo SUS em nível nacional, realizadas em hospitais públicos e privados (contratados e filantrópicos), contemplando variáveis demográficas (idade e sexo), diagnóstico clínico e variáveis relativas ao uso de serviços (tempo de permanência, uso de Unidade de Tratamento Intensivo, procedimentos empregados dentre outros).

Com foco nos custos sob a perspectiva do SUS e no volume de internações e de pacientes em uso de medicamentos anti-retrovirais, parte dos resultados aqui apresentados articula séries históricas de dados das fontes mencionadas, obtidas do Sistema de Monitoramento de Indicadores do PN-DST/Aids (MONITORAIDS).3 3 Sistema de Monitoramento de Indicadores do Programa Nacional de DST/Aids - Monitoraids. Disponível em http://www.aids.gov.br [acesso em 1 mar 2006] Nesse caso, as autorizações de internações hospitalares (AIH), que constituem a unidade de observação do SIH, não são diferenciadas em termos de internações propriamente ditas ou utilização de hospital-dia. Também não foi possível identificar no SICLOM casos de duplicação de registros de pacientes em terapia anti-retroviral.

Foram utilizados também dados do SIH que correspondem às AIH por Aids emitidas entre janeiro e dezembro de 2004, selecionadas com base na variável "procedimento realizado": tratamento de Aids; paciente sob cuidados prolongados decorrentes da Aids; e tratamento de Aids em hospital-dia. Essas análises diferenciam internações de tratamento em hospital-dia. No uso direto do SICLOM, foram considerados os dados relativos ao acompanhamento longitudinal de 42.058 pacientes, no período entre janeiro de 1998 e 5 de março de 2003, matriculados em 54 das 485 unidades de dispensação de medicamentos de Aids existentes à época. Após controle dos casos de registros múltiplos, o SICLOM incluía 102.582 pacientes registrados no período, mas somente para os 42.058 pacientes se dispunha dos dados de dispensação de medicamentos.

CAPACIDADE DE ENFRENTAMENTO DA EPIDEMIA

A Tabela 1 mostra os resultados obtidos na avaliação da capacidade de distribuição de intervenções sobre o HIV. Especificamente, os últimos itens são elementos de interesse direto no capítulo em foco da Declaração de Compromisso sobre HIV e Aids das Nações Unidas: profilaxia e exposição do HIV para profissionais de saúde; acesso à profilaxia primária e secundária de doenças oportunistas; acesso ao tratamento de doenças oportunistas; e à execução de programas efetivos de ampla escala no tratamento dos portadores de HIV/Aids. Ainda que as médias sejam ligeiramente baixas em função de algumas avaliações muito negativas, as medianas apontam para avaliações relativamente favoráveis, principalmente no caso da execução de programas efetivos de ampla escala no tratamento dos portadores de HIV/Aids (mediana =8). Entre os quatro aspectos destacados, a pior avaliação se refere ao acesso ao tratamento de doenças oportunistas.

Apesar da dispensação de medicamentos anti-retrovirais ser realizada pelos serviços do SUS, o SICLOM inclui o registro cadastral de tratamento no sistema público ou privado, permitindo estimar que 90,5% dos pacientes, de fato, recebem assistência no SUS. Este achado contextualiza o contraponto do volume e dos custos hospitalares do SUS com a distribuição de anti-retrovirais, que permeia os resultados que se seguem.

A Figura 1 mostra o grande peso que os medicamentos anti-retrovirais têm tido no gasto total do governo federal com a atenção à Aids, ao mesmo tempo em que mostra certa estabilidade, ao menos em escala ampla, do gasto com a assistência hospitalar.


VOLUME DE INTERNAÇÕES NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

No detalhamento dos gastos do SUS com a assistência hospitalar à Aids, incluindo internações propriamente ditas e tratamento em hospital-dia, a Figura 2 apresenta uma variação entre pouco menos de 20 milhões de reais, em 1998, a cerca de 27,3 milhões de reais, em 2004. A participação majoritária foi da região Sudeste, que, de forma relativamente consistente, respondeu pelo menor custo médio por internação no período (Figura 3). No Brasil, como um todo, o custo médio da internação por Aids variou entre aproximadamente R$550,00 em 1998, e R$700,00 em 2004. Os maiores custos médios foram observados nas regiões Norte e Sul do País.



A Figura 4 apresenta o número de AIH por Aids emitidas entre 1998 e 2004, segundo macrorregiões. Considerando o País, os dados apontam para um crescimento pouco expressivo do total de internações, que é traduzido por uma diferença de menos de 5 mil internações entre os extremos do período. Em relação às macrorregiões a figura mostra crescimentos relativos importantes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, contrastando com comportamento declinante na região Sudeste.


A estimativa da razão entre o número de internações por Aids e o conjunto de internações pagas pelo SUS pode estar mascarada pelas AIH de tratamento em hospital-dia. A Figura 5, entretanto, sugere níveis elevados de internações no Sudeste e Sul, ainda que na primeira região, com tendência declinante, e na segunda, com tendência ainda crescente. Nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, os níveis observados são expressivamente mais baixos, com tendência majoritariamente crescente em 2004, com ordem de grandeza de duas internações por Aids em cada mil internações do SUS.


A Figura 6 resulta de análise direta das distribuições das internações por Aids (N=28.163), segundo macrorregiões do País e natureza jurídica das unidades hospitalares dados do SUS de 2004, com distinção entre internações e tratamento em hospital-dia. Destacam-se as elevadas participações dos hospitais estaduais (44,2%) e hospitais filantrópicos (25%). Por outro lado, a ausência de registro de internações em hospitais universitários, é um achado que pode ser explicado pela imposição de tetos financeiros no pagamento pelo SUS aos hospitais. Esse mesmo dado sugere uma reversão em relação ao que se observava na década passada, quando esses hospitais eram os principais prestadores de assistência à pacientes com Aids.


A Figura 7 apresenta as distribuições do montante pago pelo SUS por serviços em hospital-dia (R$1.515.656,00), nacionalmente, no decorrer de 2004, segundo macrorregiões e natureza jurídica das unidades hospitalares. Ressalte-se a ausência da região Norte na provisão desse tipo de cuidado ao SUS, bem como a predominância dos hospitais federais.


Ainda com base nos dados das internações cobertas pelo SUS em 2004, a Tabela 2 apresenta as distribuições das variáveis "valor pago e tempo de permanência hospitalar segundo diagnóstico principal", definido conforme a Classificação Internacional de Doenças 10ª Revisão (CID-10), para internações regulares.11 De caráter essencialmente descritivo, a tabela ratifica o baixo nível de pagamento das internações por HIV/Aids, por parte do SUS.

Com base nos dados de dispensação de medicamentos registrados no SICLOM entre 1998 e 2003, observou-se o progressivo aumento do uso de esquemas terapêuticos adequados, segundo as recomendações preconizadas para uso da terapia anti-retroviral (Figura 8). O SICLOM permite o monitoramento longitudinal da distribuição e dinâmica do uso de terapia anti-retroviral, além de dispor um cadastro de todos os pacientes em terapia anti-retroviral. Entretanto, ainda não está completamente implementado no sentido do acompanhamento do conjunto de pacientes em terapia.


As Figuras 9 e 10 apresentam as taxas de hospitalizações e benefícios previdenciários relacionados à Aids por pacientes utilizando anti-retrovirais, entre 1998 e 2004 e entre 1997 e 2001, respectivamente. A evidente queda nas taxas sugere a efetividade da política de distribuição desses medicamentos.



DISTRIBUIÇÃO UNIVERSAL E GRATUITA DOS ANTI-RETROVIRAIS

A Tabela 3 sintetiza alguns fatos relevantes para a política de distribuição universal e gratuita de anti-retrovirais no País.

Considerando o caráter vanguardista da política de enfrentamento da infecção pelo HIV e da Aids no Brasil, as questões que se impõem hoje transcendem a simples observância das metas firmadas na 26ª Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas. Diante dessas metas antecipadamente cumpridas, colocam-se desafios no sentido de um monitoramento mais fino dos processos e resultados relacionados à assistência de indivíduos afetados pelo HIV/Aids. As variações nesses processos e resultados devem ser exploradas e compreendidas, visando a identificação de estratégias que possam efetivamente ampliar os benefícios hoje observados. Também são necessárias informações sobre a ocorrência de reações adversas à terapia anti-retroviral para estruturar respostas assistenciais oportunas e efetivas.

A interiorização e a pauperização da epidemia da Aids desafiam o País no que diz respeito à necessidade de garantir que os resultados obtidos nos principais centros urbanos sejam extensivos a todas as regiões e segmentos sociais. O Brasil deve incorporar as discussões sobre a utilização de modelos de intervenção que utilizem tecnologias menos complexas, mais factíveis e que garantam resultados satisfatórios para contextos com estruturas de saúde menos desenvolvidas e com populações de difícil acesso.

Ainda que a adesão de 75% aos medicamentos anti-retrovirais3 3 Sistema de Monitoramento de Indicadores do Programa Nacional de DST/Aids - Monitoraids. Disponível em http://www.aids.gov.br [acesso em 1 mar 2006] seja compatível com o observado em países desenvolvidos, é importante buscar formas de ampliação das atividades de promoção da adesão por meio do aprimoramento dos serviços de saúde, capacitação de equipes multidisciplinares e articulação dos serviços com a comunidade.

Há ainda que se refletir acerca da qualidade da assistência resultante de ações de um programa nacional diferenciado, sob diversos aspectos, mas que não prescinde do fortalecimento do sistema de saúde brasileiro, como um todo. Esse sistema se vê às voltas com problemas operacionais e realidades regionais diversas, muitas delas aquém dos padrões desejados de assistência.

A assistência ambulatorial a pacientes com HIV/Aids envolve serviços com características institucionais e infra-estrutura heterogêneas, mas que, majoritariamente, dispõem de recursos mínimos necessários e estão localizados em área de fácil acesso. No estudo desenvolvido por Melchior et al9 identificou-se que 74% das unidades ambulatoriais tinham, ao menos, um médico especializado em doenças infecciosas e 90,4%, ao menos um profissional de saúde não-médico, com 76% das equipes incluindo assistente social, enfermeiro, psicólogo e farmacêutico. Na maioria dos casos, as unidades ambulatoriais dispunham de mecanismos de referência a especialistas dentro do SUS. Contudo, em parte dos serviços o tempo de espera é relevante, apontando-se como mais problemáticas as referências para pneumologistas, neurologistas, oftalmologistas e cirurgiões-gerais. Os testes de contagem de CD4 e CD8 e o teste da carga viral, bem como exames laboratoriais simples e raios-X estavam disponíveis em mais de 95% dos serviços, havendo maior dificuldade no acesso a exames mais complexos, especialmente os de imagem. A disponibilidade dos anti-retrovirais foi homogeneamente alta, contrastando com problemas na disponibilidade de outros medicamentos voltados para a profilaxia e tratamento de doenças oportunistas, cuja distribuição fica a cargo dos governos estaduais e municipais. Sob o ponto de vista da organização do cuidado, entretanto, Melchior et al9 destacam o nível aquém do desejável de profissionalização da gestão dos serviços, a inadequação da provisão de atendimento em horários restritos, o uso restrito de protocolos assistenciais, a ausência de avaliações sistemáticas dos processos e resultados obtidos, a ausência de encontros da equipe técnica e o baixo controle do absenteísmo às consultas e de pacientes que deixam os serviços, seja por morte, abandono de tratamento ou outros motivos. Entre os aspectos positivos, os autores sublinham a ampla disseminação do uso de aconselhamento pré- e pós-teste, alvo de investimento substancial do PN-DST/Aids.

Ressalta-se, na política de assistência farmacêutica a indivíduos com HIV/Aids no Brasil, o caráter universal e gratuito e o fato das recomendações para o uso da terapia anti-retroviral e profilaxia e tratamento de doenças oportunistas serem pactuadas em consensos de especialistas brasileiros. Essas se fundamentam em diretrizes clínicas preconizadas internacionalmente a partir da evidência científica vigente, e são difundidas nacionalmente e atualizadas periodicamente.4 4 Programa Nacional de DST e Aids. Disponível em http://www.aids.gov.br [acesso em 20 abr 2006]

O impacto da política de atenção integral sobre a saúde das pessoas vivendo com HIV/Aids no Brasil é inegável. Estudos reportam melhoras expressivas na sobrevida de pacientes com Aids.8,12 Por outro lado, se o número absoluto de internações por Aids manteve estabilidade no período entre 1998 e 2004. O número de indivíduos utilizando anti-retrovirais experimentou uma queda expressiva, revelando o crescimento de pacientes em terapia, o favorecimento ao diagnóstico mais precoce da doença, a maior sobrevida e, em última análise, a melhoria da qualidade do estado geral de saúde dos pacientes.

Tem havido forte tentação no sentido de traduzir a queda no número relativo de internações em termos econômicos, o que parece ficar comprometido pelos baixíssimos níveis de pagamento do SUS. Assumindo, em 2004, a manutenção da taxa de internações verificadas entre pacientes usando anti-retrovirais em 1998 e o valor médio de R$700,00 por internação, poder-se-ia estimar, grosseiramente, que em 2004 foram evitadas mais de 57 mil internações, perfazendo uma economia para o SUS de cerca de 40 milhões de reais. Cabe observar, entretanto, que não é essa a cifra que dá a dimensão da eficiência da política de distribuição de anti-retrovirais no Brasil, a ser definida em uma avaliação econômica cuidadosa. Os dados de sua efetividade, traduzidos em termos do aumento da sobrevida e sua qualidade, são muito mais contundentes. Além disso, sem qualquer demérito, a decisão em prol do estabelecimento dessa política foi fundamental, sedimentando-se na sua percepção como direito humano e legal do cidadão brasileiro, com forte respaldo na articulação do Programa Nacional de Aids com as coordenações estaduais e municipais, incluindo a sociedade civil organizada.2,7

No que concerne ao acesso sustentável ao tratamento com anti-retrovirais, a Declaração de Compromisso sobre HIV e Aids das Nações Unidas reconhece a necessidade de reduzir o custo destes medicamentos e o impacto dos acordos de livre comércio sobre a fabricação local de medicamentos essenciais e sobre o desenvolvimento de novos fármacos.

O governo brasileiro vem se empenhando em garantir a sustentabilidade do acesso universal a anti-retrovirais, atualmente distribuídos para cerca de 170 mil pacientes, representando um gasto anual de aproximadamente US$450 milhões. Essa política é composta pelas estratégias de produção nacional de medicamentos não patenteados, a negociação de preço com a indústria farmacêutica e a atuação internacional visando à alteração das legislações sobre propriedade intelectual e acesso a medicamentos.5 5 Ministério da Saúde. A sustentabilidade do acesso universal a anti-retrovirais no Brasil. Disponível em http://www.aids.gov.br/main.asp [acesso em 14 nov 2005] Como resultado, entre 1997 e 2004, houve redução em 4,6 vezes do preço médio do tratamento com medicamentos anti-retrovirais , que passou de US$6,200 para US$1,300.

Entretanto, a partir de 2005, houve alteração nessa tendência de declínio dos preços. O Ministério da Saúde estima que o preço médio do tratamento experimente um aumento expressivo, em virtude da redução proporcional do consumo dos medicamentos de primeira linha, que são produzidos localmente e custam em torno de US$600/paciente ao ano, e o aumento do consumo das terapias de segunda linha, todas importadas e protegidas por patentes. Atualmente, a importação de anti-retrovirais corresponde a 80% do orçamento governamental para medicamentos anti-retrovirais e tudo indica que a situação venha a se agravar, caso não sejam utilizadas as flexibilidades do Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS) e emitidas licenças compulsórias.

Um acordo firmado no final de 2005 pelo governo federal e o laboratório fabricante agrava a situação, já que fixa um preço para os próximos seis anos para o Kaletra® e assume o compromisso de não fazer uso da licença compulsória de nenhum dos componentes a ele relacionados. O preço de US$1,380 por ano por paciente é muito elevado e superior aos US$500 pagos por países como a África do Sul. Em síntese, apesar dos anti-retrovirais serem distribuídos gratuitamente, o custo para o país está se tornando insustentável e ameaça o PN-DST/Aids.

Adicionalmente, a política de produção de genéricos para Aids adotada pelo Brasil se baseia no fortalecimento dos laboratórios públicos, possibilitando, também, o desenvolvimento de outras drogas essenciais ao sistema público de saúde. Contudo, a falta de coordenação entre os laboratórios públicos que integram o sistema de produção de medicamentos, o desenvolvimento de novas tecnologias e a promoção de pesquisas se agravou nos últimos anos, apesar de alguns investimentos do Ministério da Saúde em infra-estrutura e equipamento. Tal fato, adicionado aos procedimentos administrativos e burocráticos legais, rígidos e demorados, do sistema de licitações do Ministério da Saúde, provocou, em 2004 e 2005, o desabastecimento de medicamentos anti-retrovirais, retardou projetos de desenvolvimento de novos medicamentos, incluindo as drogas associadas em doses fixas, e colocou em risco a sustentabilidade do PN-DST/Aids e a qualidade da atenção às pessoas vivendo com HIV e Aids.

Em suma, os acordos internacionais de comércios são incompatíveis com as necessidades da saúde pública dos países do hemisfério sul no que diz respeito à promoção da pesquisa, do desenvolvimento tecnológico, do fortalecimento da indústria doméstica e do acesso universal e gratuito aos usuários. No caso brasileiro, além de não ser possível afirmar que haja uma política clara de pesquisa e desenvolvimento, a legislação internacional tem desestimulado a engenharia reversa no sentido do desenvolvimento de drogas de segunda linha e, em conseqüência, da indústria nacional. No âmbito local, o governo não tem adotado medidas para garantir o respeito ao Artigo 68 da Lei de Propriedade Industrial, que define o prazo de três anos, após o registro dos medicamentos, para que seja iniciada a produção local dos mesmos.3 Tampouco o governo tem feito uso das flexibilidades do TRIPS a favor da indústria local. Todas as negociações de preços de anti-retrovirais efetuadas pelo Ministério da Saúde com as indústrias multinacionais detentoras de patentes resultaram em acordos de preços mais baixos. Porém, tais acordos não incluíram cláusulas de transferência de tecnologia e de licenças voluntárias e portanto, não representaram um real alento para a produção local, a cargo da indústria nacional pública e privada.

O Brasil tem atuado intensamente para que os acordos de livre comércio em negociação não incluam capítulos restritivos no que tange a propriedade intelectual, referindo-se ao acordo TRIPS e à Declaração de Doha, como patamar máximo de comprometimento com as questões de propriedade intelectual. Ainda no campo internacional, o Brasil lidera um movimento, denominado "Amigos do Desenvolvimento", que questiona o impacto das patentes sobre a pesquisa e desenvolvimento de medicamentos e o acesso a eles, no âmbito da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). A liderança brasileira e argentina pretende evitar que tratados de patentes em negociação sejam implementados, visto que significariam perda de soberania para os países em desenvolvimento.

Em 2003, o governo alterou a legislação para permitir a importação de medicamentos genéricos em caso de licença compulsória em todo o Brasil.4 Em 2005, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei que torna os medicamentos para tratamento da Aids não patenteáveis.6 6 Brasil. Comissão de Constituição e Justiça e de Redação. Projeto de Lei nº 22, de 2003. Altera a Lei nº 9.279 , de 14 de maio de 1996 incluindo os medicamentos e respectivos processos de obtenção destinados à prevenção e ao tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – SIDA-AIDS, entre as invenções não-patenteáveis. Disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/ 188522. htm [acesso em 4 mar 2006] O projeto está atualmente em discussão no Senado Federal.

Por fim, espera-se que sejam empreendidos esforços no sentido de solucionar o problema hoje imposto pela Lei de Licitação 8.666,5 que impõe a rotatividade de produtores de matéria prima para os laboratórios oficiais, impossibilitando o registro dos medicamentos produzidos como genéricos. Isso ocorre apesar de exames de bioequivalência satisfatórios e do Brasil possuir regras adequadas para o registro e o controle de medicamentos produzidos nacionalmente, contando, inclusive, com uma Agência Nacional de Vigilância Sanitária atuante.

Recebido: 24/3/2006.

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  • Correspondência:
    Margareth Crisóstomo Portela
    Departamento de Administração e Planejamento em Saúde
    Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
    Fundação Oswaldo Cruz
    Rua Leopoldo Bulhões, 1480 sala 724 - Manguinhos
    21041-210 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
    E-mail:
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006

    Histórico

    • Recebido
      24 Mar 2006
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