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Influência da renda na associação entre disfunção cognitiva e polifarmácia: Projeto Bambuí

Resumos

OBJETIVO: Avaliar a prevalência da polifarmácia e a influência da renda na associação entre uso de medicamentos e disfunção cognitiva, entre idosos. MÉTODOS: Dos 1.606 integrantes da linha base da coorte de idosos de Bambuí (Minas Gerais), iniciada em 1997, 1.554 participaram do estudo. Todos os participantes foram submetidos ao questionário mini-exame do estado mental. A associação entre disfunção cognitiva e polifarmácia foi testada por meio de regressões ordinais multivariadas, realizadas para a população total e para cada um dos estratos de renda. RESULTADOS: A prevalência de polifarmácia (consumo de dois ou mais medicamentos) foi de 70,4%, e o número de medicamentos consumidos mostrou-se negativa e independentemente associado à disfunção cognitiva (OR=0,72; IC 95%: 0,55;0,95). Quando estratificada pela renda pessoal (<2 salários mínimos versus > 2), observou-se associação negativa entre uso de medicamentos e disfunção cognitiva entre idosos com renda mais baixa (OR=0,64; IC95%: 0,48;0,86), mas não entre aqueles de renda mais elevada (OR=1,74; IC 95%: 0,81;3,74). CONCLUSÕES: Com referência à associação entre disfunção cognitiva e número de medicamentos consumidos, os resultados indicam desigualdade social no uso de medicamentos. É possível que esses idosos não estejam consumindo os medicamentos necessários ao adequado tratamento de seus problemas de saúde.

Saúde do idoso; Polifarmácia; Farmacoepidemiologia; Uso de medicamentos; Disfunção cognitiva; Renda


OBJECTIVE: To evaluate the prevalence of polypharmacy and the influence of income on the association between medication use and cognitive impairment among elderly people. METHODS: Out of the 1,606 baseline members of the Bambuí cohort of elderly people, which started in 1997, 1,554 took part in the study. The Mini-Mental State Examination was applied to all the participants. The association between cognitive impairment and polypharmacy was tested by means of multivariate ordinal regression, performed for the whole population and for each of the income strata. RESULTS: The prevalence of polypharmacy (two or more medications consumed) was 70.4% and the number of medications used presented an independent negative association with cognitive impairment (OR=0.72; 95% CI: 0.55;0.95). When this was stratified according to personal income (<2 minimum monthly salaries versus > 2 minimum monthly salaries), a negative association was observed between medication use and cognitive impairment among elderly people with lower income (OR=0.64; 95% CI: 0.48;0.86), but not among those with higher income (OR=1.74; 95% CI: 0.81;3.74). CONCLUSIONS: With regard to the association between cognitive impairment and number of medications consumed, the results indicate social inequality in the use of medications. It is possible that these elderly people are not consuming the medicines needed for appropriate treatment of their health problems.

Health of the elderly; Polypharmacy; Pharmacoepidemiology; Drug utilization; Cognitive impairment; Income


ARTIGOS ORIGINAIS

Influência da renda na associação entre disfunção cognitiva e polifarmácia: Projeto Bambuí

Antônio I de Loyola Filho; Elizabeth Uchoa; Josélia O A Firmo; Maria Fernanda Lima-Costa

Núcleo de Estudos em Saúde Pública e Envelhecimento. Fundação Oswaldo Cruz e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Antônio I. de Loyola Filho Fundação Oswaldo Cruz Av. Augusto de Lima, 1715 – sala 610 30190-002 Belo Horizonte, MG, Brasil E-mail: aloy@cpqrr.fiocruz.br

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a prevalência da polifarmácia e a influência da renda na associação entre uso de medicamentos e disfunção cognitiva, entre idosos.

MÉTODOS: Dos 1.606 integrantes da linha base da coorte de idosos de Bambuí (Minas Gerais), iniciada em 1997, 1.554 participaram do estudo. Todos os participantes foram submetidos ao questionário mini-exame do estado mental. A associação entre disfunção cognitiva e polifarmácia foi testada por meio de regressões ordinais multivariadas, realizadas para a população total e para cada um dos estratos de renda.

RESULTADOS: A prevalência de polifarmácia (consumo de dois ou mais medicamentos) foi de 70,4%, e o número de medicamentos consumidos mostrou-se negativa e independentemente associado à disfunção cognitiva (OR=0,72; IC 95%: 0,55;0,95). Quando estratificada pela renda pessoal (<2 salários mínimos versus > 2), observou-se associação negativa entre uso de medicamentos e disfunção cognitiva entre idosos com renda mais baixa (OR=0,64; IC95%: 0,48;0,86), mas não entre aqueles de renda mais elevada (OR=1,74; IC 95%: 0,81;3,74).

CONCLUSÕES: Com referência à associação entre disfunção cognitiva e número de medicamentos consumidos, os resultados indicam desigualdade social no uso de medicamentos. É possível que esses idosos não estejam consumindo os medicamentos necessários ao adequado tratamento de seus problemas de saúde.

Descritores: Saúde do idoso. Polifarmácia. Farmacoepidemiologia. Uso de medicamentos. Disfunção cognitiva. Renda.

INTRODUÇÃO

A polifarmácia é comumente definida como o consumo múltiplo de medicamentos, embora não haja consenso na literatura quanto à quantidade de medicamentos necessária à configuração de sua prática.7,8,14 Essa definição tem bases unicamente quantitativas, não levando em conta a pertinência clínica no seu uso (por exemplo, a presença de múltiplas doenças) ou a adequação do regime terapêutico proposto.21

Além da comorbidade, estão implicados na gênese da polifarmácia o número de médicos consultados, a ausência de perguntas sobre os medicamentos em uso durante a consulta médica e a automedicação.21 Efeitos colaterais, interações e reações medicamentosas adversas, dificuldades no cumprimento da prescrição e gastos excessivos no cuidado à saúde são alguns desdobramentos indesejáveis decorrentes do uso de polifarmácia.21,22 Tais conseqüências são mais prováveis de ocorrer entre os idosos, em razão das alterações anátomo-funcionais que acompanham o envelhecimento e que modificam a farmacocinética dos medicamentos.22

O uso múltiplo de medicamentos é mais freqüente entre idosos,1 devido à alta prevalência de doenças crônicas nessa fase da vida.2 Em países desenvolvidos, estudos farmacoepidemiológicos de base populacional têm mostrado que, entre idosos, o número de doenças crônicas,7,8,25 a utilização de serviços de saúde,7,8 ser do sexo feminino14 e ter idade mais avançada8,14 estão relacionados ao uso múltiplo de medicamentos. No Brasil, estudo realizado entre idosos residentes na região metropolitana de Belo Horizonte16 encontrou associação independente e significante entre o consumo de três ou mais medicamentos e sexo feminino, faixa etária mais alta (80 ou mais anos), ter pelo menos uma doença crônica e número de consultas médicas nos 12 meses precedentes (três ou mais). Nessa mesma população, o consumo elevado de medicamentos (cinco ou mais) esteve associado à escolaridade mais alta (oito ou mais anos) e às demais variáveis mencionadas.

As disfunções cognitivas são freqüentes na velhice,20 podendo ter repercussões negativas sobre a capacidade funcional do idoso.26 Características individuais, hábitos de vida, doenças e agravos são fatores que predispõem o idoso a essas disfunções, mas elas podem ser exacerbadas com o uso de medicamentos.26 Nesse caso, a disfunção cognitiva pode resultar do uso da polifarmácia ou da utilização de algumas classes de medicamentos (anticolinérgicos, psicofármacos, cardiovasculares, para citar alguns).18

Estudos de base populacional que investigaram associação entre uso de medicamentos e presença de disfunção cognitiva entre idosos residentes em comunidades são escassos. Hidalgo et al7 (1997) e Klarin et al9 (2003) verificaram, respectivamente entre idosos espanhóis e suecos, o consumo de número maior de medicamentos entre aqueles com comprometimento cognitivo, mas as associações não permaneceram significativas após o ajustamento por outras variáveis. Já entre idosos britânicos20 e americanos,5 o consumo de medicamentos foi menor entre aqueles que apresentaram disfunção cognitiva, mas como nos estudos citados anteriormente, as diferenças não permaneceram significativas após o ajustamento pelas demais variáveis exploratórias. Contudo, nenhum desses estudos investigou se essas associações poderiam ser influenciadas pela situação socioeconômica do idoso e/ou da sua família.

O presente trabalho teve por objetivo avaliar a prevalência da polifarmácia e a influência da renda na associação entre uso de medicamentos e disfunção cognitiva, entre idosos.

MÉTODOS

O trabalho foi conduzido na cidade de Bambuí (15.000 habitantes), situada no Estado de Minas Gerais. A expectativa de vida da população do município de Bambuí era em 1997 de 70,2 anos e o índice desenvolvimento humano (IDH) era igual a 7,0, predominando baixos níveis de escolaridade (42,6% da população com 25 anos ou mais apresentava menos de quatro anos de escolaridade) e de renda (46,0% tinham renda inferior a 0,5 salário mínimo). As doenças cardiovasculares representavam a principal causa de mortalidade e a segunda causa de hospitalizações.13

O Projeto Bambuí é um estudo de coorte de base populacional de idosos residentes na cidade de mesmo nome. A identificação dos participantes foi feita por meio de um censo completo da cidade, realizado pela equipe de investigadores. Todos os moradores com 60 ou mais anos de idade em 1 de janeiro de 1997 foram convidados a participar do estudo. Entre os 1.742 moradores na faixa etária considerada, 1.606 participaram da linha de base da coorte, constituída em 1997. Maiores detalhes podem ser vistos em trabalho anterior.13 Foram selecionados todos os participantes da linha de base da coorte de Bambuí submetidos ao questionário Mini-Exame do Estado Mental (MEM) e para os quais havia informações sobre o uso de medicamentos.

A variável dependente foi o número de medicamentos consumidos nos últimos 90 dias. Os participantes foram indagados sobre os medicamentos consumidos nesse período, tendo sido a informação confirmada pela verificação das embalagens dos medicamentos referidos. Para os casos (90/1.606; 5,6%) em que o idoso selecionado não conseguisse responder ao questionário devido a problema de saúde ou incapacidade, era utilizada a resposta de alguém de suas relações pessoais (informante próximo).13 O nome e a dosagem do medicamento foram utilizados na sua identificação. Após a identificação, os medicamentos foram desdobrados em seus princípios ativos e classificados com base na sua formulação química. A classificação foi baseada no Anatomical Therapeutic Chemical Index (ATC/DDD Index), desenvolvido pelo World Health Organization Collaborating Centre for Drug Statistics Methodology* * World Health Organization. Collaborating Centre for Drug Statistics Methodology. Disponível em: http://www.whocc.no/atcddd/indexdatabase/ [Acesso em fev/2005] e indicado para comparação de estudos internacionais. O consumo total de medicamentos foi categorizado em 0; 1; 2-4 e 5 ou mais. Polifarmácia foi definida como o consumo de dois ou mais medicamentos, sendo o consumo de 2-4 medicamentos chamado de polifarmácia menor e o consumo de 5 ou mais medicamentos denominado polifarmácia maior.1

A presença de disfunção cognitiva foi determinada por meio do MEM,3 adaptado para o Brasil. Nela, em lugar da estação do ano, os indivíduos são indagados sobre o período do dia; nas perguntas sobre orientação espacial, bairro, endereço e cômodo da casa substituem respectivamente condado, hospital e andar. Em lugar do sete seriado, é solicitado somar cinco seqüencialmente, a partir de 25 ou alternativamente, soletrar o nome "Maria" de trás para frente . Para os indivíduos que não sabem ler, duas modificações são introduzidas: é apresentada uma figura "de olhos fechados", seguida da solicitação de fazer o mesmo que ela mostra, e pedido ao indivíduo para dizer uma frase, em vez de escrevê-la.23 Os escores do MEM foram dicotomizados: foram considerados positivos para presença de distúrbio cognitivo (código 1) idosos sem escolaridade e com escore<19, e aqueles com alguma escolaridade e escore <23; os restantes classificados como negativos (código 0).6

As demais variáveis independentes incluíram: 1) características sociodemográficas; 2) condição de saúde e 3) uso de serviços de saúde. As características sociodemográficas consideradas foram sexo, idade (variável contínua), escolaridade (anos completos), situação conjugal e renda pessoal mensal (em salários mínimos nacionais da época – SM). Os indicadores da condição de saúde foram: número de doenças crônicas diagnosticadas por um médico, auto-referido ("Algum médico ou profissional de saúde já disse que você tinha uma ou mais dessas doenças: hipertensão, doença coronariana, artrite/reumatismo, diabete, doença de Chagas?"), a incapacidade para realizar, sem ajuda de outra pessoa, pelo menos uma de três atividades da vida diária (alimentar-se, tomar banho e/ou locomover-se entre cômodos de um mesmo andar da casa). Os indicadores de uso de serviços de saúde incluíram o número de consultas médicas realizadas nos 12 meses precedentes à entrevista e a história de hospitalizações no mesmo período. Essas variáveis foram incluídas no estudo por sua importância epidemiológica e por serem tradicionalmente associadas ao uso de medicamentos em estudos farmacoepidemiológicos.

Análises univariadas foram feitas para verificar associação entre: 1) características da população de estudo e polifarmácia e 2) o consumo de algumas classes medicamentosas e resultado positivo para o MEM. A associação entre disfunção cognitiva e polifarmácia foi testada por meio de regressões ordinais multivariadas, realizadas para a população total e para cada um dos estratos de renda (<2 SM e > 2 SM). O modelo de regressão ordinal equivale a um conjunto de regressões logísticas binárias igual ao total de categorias da variável-evento menos um, e assume a premissa do odds proporcional, ou seja, gera uma medida de associação constante ao longo das categorias da variável-resposta. O modelo permite captar a natureza ordenada da variável resposta e o seu subjacente atributo de continuidade, minimizando a perda de informação na categorização.17 Nas análises multivariadas, as associações entre disfunção cognitiva e uso de medicamentos foram inicialmente ajustadas por sexo e idade, e o modelo final foi construído com a introdução das demais variáveis sociodemográficas, das variáveis indicadoras das condições de saúde e do uso de serviços de saúde (introduzidas em bloco), independente da presença ou não de associação significativa na análise univariada. As variáveis que apresentaram associações ao nível de p<0,05 no modelo final foram consideradas independentemente associadas ao uso de medicamentos. Uma aproximação do teste da razão de máxima verossimilhança foi utilizada para checar a premissa da proporcionalidade do odds. Para testar a associação entre o consumo de algumas classes medicamentosas e o resultado positivo para o MEM, na população total e em cada estrato de renda, foi utilizada a regressão logística, considerando o nível de significância de 5%. Todas as análises foram feitas utilizando-se o pacote estatístico Stata versão 7.0.

A pesquisa teve a aprovação do comitê de ética da Fundação Oswaldo Cruz e todos os participantes assinaram um termo de consentimento pós-informado.

RESULTADOS

Participaram do estudo 1.554 indivíduos, correspondendo a 96,8% dos componentes da linha base da coorte de idosos de Bambuí. Entre esses predominou o sexo feminino (60,2%), os casados ou que vivem juntos (49,4%), os de baixa escolaridade (64,8% possuíam menos de quatro anos de escolaridade completa) e os pertencentes ao estrato de renda inferior (72,8% possuíam renda mensal <2 SM). A média de idade foi de 69,2 anos (DP=7,3) e a proporção de idosos que preenchia os critérios da classificação positiva para disfunção cognitiva foi 17,4%.

A prevalência do uso de medicamentos entre os participantes do estudo foi de 85,7% (1.332/1.554); 70,4% consumiram dois ou mais medicamentos, 44,8% haviam consumido de 2-4 medicamentos (polifarmácia menor) e 25,5% consumiram cinco ou mais medicamentos (polifarmácia maior). As seguintes variáveis apresentaram associações significativas (p<0,05) ao consumo de medicamentos: disfunção cognitiva, sexo, idade, situação conjugal, número de condições crônicas diagnosticadas, incapacidade para pelo menos uma atividade de vida diária, número de consultas médicas e história de internação hospitalar nos últimos 12 meses (Tabela 1).

Na Tabela 2 estão apresentados os resultados da análise multivariada da associação entre disfunção cognitiva e consumo de medicamentos para o conjunto da população de estudo. Após o ajustamento por todas as variáveis incluídas no modelo (Modelo 2), a disfunção cognitiva apresentou associação negativa e independente com a polifarmácia. Todas as variáveis listadas na tabela (exceto situação conjugal e escolaridade de um a quatro anos) permaneceram significativamente associadas à polifarmácia.

Os resultados finais das análises multivariadas segundo o estrato de renda estão na Tabela 3. No estrato social de mais baixa renda (<2 SM), observou-se associação negativa e significativa entre disfunção cognitiva e uso de polifarmácia (OR=0,64; IC 95%: 0,48;0,86) estrato mais elevado (renda > 2 SM), a direção dessa associação foi positiva, embora não significativa (OR=1,74; IC 95%: 0,81;3,74). O padrão de associação para o uso de polifarmácia foi semelhante nos dois estratos: as diferenças estavam na incapacidade para atividades de vida diária (associação positiva e significante no estrato inferior de renda e associação negativa, mas não significativa, no estrato de maior renda) e ausência de significância estatística para as associações encontradas para o sexo feminino e história de hospitalização no estrato de maior renda.

Os resultados da análise das associações entre o consumo de classes medicamentosas e disfunção cognitiva, ajustadas por sexo e idade, estão descritos na Tabela 4. A Tabela 5 apresenta os resultados da mesma análise para os estratos de renda. Considerando o nível 1 de classificação (anatômico), o consumo de todas as classes medicamentosas investigadas foi menor entre os idosos com disfunção cognitiva, embora as diferenças não tenham sido estatisticamente significativas. Considerando a classificação terapêutico/farmacológica, presença de disfunção cognitiva esteve positiva e significativamente associada ao uso de cardioterápicos à base de digoxina e ao uso de antipsicóticos, e negativa e significativamente associado ao uso de medicamentos inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA) e antidepressivos tri-cíclicos.

Os resultados da análise estratificada mostraram a existência de diferenças no padrão de associação entre os dois estratos. Para a maior parte dos medicamentos, o consumo foi menor entre os idosos com disfunção cognitiva e renda mais baixa (significativo para os medicamentos inibidores da ECA e antidepressivos tri-cíclicos), ainda que o consumo dos medicamentos à base de digoxina e dos antipsicóticos tenha apresentado associação positiva e significativa. Entre os idosos de renda mais elevada, por outro lado, o consumo foi maior para a maioria das classes medicamentosas, e todas as associações significativas observadas (medicamentos cardiovasculares, cardioterápicos à base de digoxina e anti-hipertensivos à base de metildopa) foram positivas.

DISCUSSÃO

A prevalência de polifarmácia observada no presente trabalho foi superior ao verificado em alguns estudos conduzidos em países desenvolvidos.8,25 Já a prevalência de polifarmácia maior esteve abaixo dos valores observados em países europeus8,9,25 e acima do observado em Hong Kong27 e na região metropolitana de Belo Horizonte.16 As diferenças quanto a características sociodemográficas, traços culturais, padrão de morbidade e de uso de serviços de saúde podem estar subjacentes às variações no consumo de medicamentos entre distintas populações. Mas não se pode descartar a possibilidade de que diversidades metodológicas expliquem parcialmente a variação observada. No estudo de Bambuí foram incluídos medicamentos prescritos e não prescritos, e a pergunta sobre o consumo de medicamentos cobriu os últimos 90 dias, o que poderia explicar em parte a maior prevalência ali observada, em comparação a estudos que consideraram exclusivamente medicamentos prescritos8,25 ou que utilizaram janelas de tempo menores, como uma semana27 ou 15 dias.16

No presente estudo, as variáveis indicadoras de condições de saúde, de utilização de serviços de saúde e algumas características sociodemográficas foram consideradas a priori variáveis de confusão, na verificação da associação entre polifarmácia e disfunção cognitiva. A maior utilização de medicamentos por mulheres confirma os achados de outro estudo brasileiro.16 Tanto as variáveis indicadoras das condições de saúde quanto as de utilização de serviços de saúde apresentaram associações fortes e independentes com o número de medicamentos consumidos, corroborando um padrão consistente em diferentes populações.7,8,16 A magnitude e a independência dessas associações comprovam a importância dessas variáveis na explicação do uso de medicamentos e conseqüentemente atestam a pertinência de sua inclusão no estudo para fins de ajustamento.

O consumo de medicamentos foi significativamente menor entre os idosos bambuienses classificados como positivos para disfunção cognitiva. Resultados semelhantes foram observados em países desenvolvidos,5,20 embora nesses países a associação não tenha permanecido significativa após o ajustamento por variáveis de confusão. Idosos com disfunção cognitiva apresentam com maior freqüência problemas crônicos de saúde28 e limitações funcionais20 e dessa forma, seria plausível esperar maior uso de polifarmácia entre eles. Hanlon et al5 (1996) manifestam a preocupação de que o menor consumo de medicamentos entre idosos com disfunção cognitiva possa configurar uma subutilização de medicamentos, porque os médicos deixariam de prescrever uma terapia medicamentosa adequada, influenciados pelo conhecimento do status cognitivo de seus pacientes. Talvez os médicos, cientes de que idosos com função cognitiva alterada são mais propensos ao descumprimento do regime terapêutico,19 tornem-se mais parcimoniosos em suas prescrições.

Entre as classes medicamentosas investigadas no presente trabalho, estiveram associadas à presença de disfunção cognitiva apenas os antidepressivos tricíclicos, os medicamentos inibidores da ECA (associação negativa), os cardioterápicos à base de digoxina e os antipsicóticos (associação positiva). No que tange aos medicamentos inibidores da ECA, Klarin et al9 (2003) encontraram resultados semelhantes entre idosos de uma comunidade rural sueca. Como as classes de medicamentos investigadas são consideradas indutoras de disfunção cognitiva,18 uma explicação verossímil para o menor uso de alguns deles é que isso traduza uma maior precaução por parte dos médicos em prescrevê-los, receosos de possíveis efeitos negativos sobre os níveis de cognição de seus pacientes. Alternativamente, esses pacientes não receberiam tratamento farmacológico adequado para seus problemas de saúde.9 Entre idosos com prejuízo cognitivo, problemas de saúde podem passar despercebidos aos profissionais de saúde porque os pacientes não conseguem descrever seus sintomas adequadamente.5,9 Já a associação positiva entre uso de digoxina e de antipsicóticos e disfunção cognitiva preocupa, pois ambos são medicamentos relacionados à ocorrência desse problema. O aparecimento de distúrbios neurológicos tem sido associado a doses tóxicas de digoxina e ao uso de antipsicóticos, e em ambos os casos, isso ocorre mais freqüentemente entre idosos.18 São necessárias investigações mais profundas para melhor entendimento da associação entre uso desses medicamentos e a disfunção cognitiva nessa população.

As análises estratificadas por renda mostraram diferenças na associação entre uso de medicamentos e distúrbio cognitivo.

No estrato de renda mais pobre, idosos com disfunção cognitiva apresentaram prevalência significativamente menor no uso de polifarmácia e consumiram menos os medicamentos investigadas. Já no estrato de renda mais elevado, disfunção cognitiva esteve positivamente associada à polifarmácia (não significativa); e entre os idosos com disfunção cognitiva, o consumo foi maior para a maioria dos medicamentos investigados. Na população de estudo, os mais pobres apresentaram pior estado de saúde (número de doenças crônicas e incapacidade para realização de no mínimo uma atividade de vida diária) e utilizaram mais os serviços de saúde (número de consultas médicas e história de internação hospitalar). Conforme já exposto, todas essas variáveis apresentaram-se positivamente associadas à polifarmácia e isso permite supor que as necessidades medicamentosas sejam maiores no estrato populacional de menor renda. Diante disso, os resultados são preocupantes pois indicam, nessa população, a existência de uma desigualdade no uso do medicamento. No Brasil, a disponibilidade do medicamento é desigual, pois a assistência farmacêutica permanece marcada por deficiências do setor público no tocante ao armazenamento, distribuição e dispensação de medicamentos, predominantemente disponíveis nas farmácias privadas. Dessa forma, o acesso e uso do medicamento é condicionado à capacidade de custeio, maior entre os indivíduos de maior renda.4 Os gastos com medicamento têm peso importante no orçamento da população idosa brasileira: metade dela recebe mensalmente < 1 SM e gasta em média 23% dessa renda na aquisição de medicamentos11 e o abandono do tratamento medicamentoso em decorrência do seu custo é freqüente.10 Tudo indica que Bambuí reproduz esse padrão brasileiro, pois a relação entre uso de medicamento e situação socioeconômica aparece em outros estudos ali desenvolvidos. A renda esteve positivamente associada ao uso de medicamentos prescritos15 e os idosos de pior nível socioeconômico apresentaram maiores dificuldades para obtê-los, debitando isso a problemas financeiros.12 Referências às dificuldades para o custeio das despesas com medicamentos nessa população foram observadas também em estudo com metodologia qualitativa.24 Portanto, duas questões podem ser levantadas: 1) entre os idosos de Bambuí, as prescrições médicas seriam diferenciadas, não só em função do conhecimento do estado cognitivo do paciente por parte dos médicos, como sugerem Hanlon et al5 (1996), mas também em função do nível socioeconômico; e/ou 2) premidos por condições econômicas adversas, os idosos mais pobres e com disfunção cognitiva consumiriam menor quantidade de medicamentos que aquela necessária ao tratamento de seus problemas de saúde.

A presente investigação é o primeiro estudo brasileiro de base populacional desenvolvido no intuito de verificar a existência de associação entre disfunção cognitiva e uso de medicamentos. É também o primeiro estudo farmacoepidemiológico brasileiro que investigou se a condição socioeconômica influenciaria essa associação, no caso dela existir. Foram tomados todos os cuidados metodológicos necessários para garantir a qualidade de informação, como padronização do instrumento de coleta de dados, treinamento dos entrevistadores e identificação censitária dos participantes, entre outros.13

O caráter transversal do presente estudo não permitiu, no entanto, clarificar as relações temporais entre disfunção cognitiva e uso de medicamentos. Pode-se cogitar ainda que a insuficiência de poder estatístico do estrato de maior renda (N=422) não tenha permitido confirmar uma associação positiva entre disfunção cognitiva e polifarmácia, sugerida pela magnitude da medida de associação e respectivo intervalo de confiança (OR=1,74; IC 95%: 0,81;3,74).

Em conclusão, o presente estudo mostrou que em Bambuí, os idosos classificados como tendo disfunção cognitiva alterada consumiram menos medicamentos em comparação com aqueles considerados como não tendo essa disfunção. A renda teve papel importante nessa associação, pois o menor consumo de medicamentos por idosos com disfunção cognitiva no estrato de renda inferior não teve uma correspondência no estrato de renda mais elevado, onde o referido consumo foi maior. São necessários estudos longitudinais para estabelecer as relações temporais entre disfunção cognitiva e uso de medicamentos e assim forneçam uma melhor compreensão da importância do consumo de medicamentos na gênese da disfunção cognitiva. Além disso, esses estudos permitiriam verificar também se os problemas de saúde dos idosos com disfunção cognitiva estão recebendo um tratamento medicamentoso adequado.

Recebido: 20/9/2006

Revisado: 18/4/2007

Aprovado: 30/7/2007

Financiado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep – Processo nº 6694009-00), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – Processo nº 520337/96-4).

Artigo baseado na tese de doutorado de AI Loyola Filho, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, da Faculdade de Medicina da UFMG, em 2006.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008

    Histórico

    • Aceito
      30 Jul 2007
    • Revisado
      18 Abr 2007
    • Recebido
      20 Set 2006
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