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Vínculo e autonomia na prática de saúde bucal no Programa Saúde da Família

Resumos

OBJETIVO: Compreender o estabelecimento do vínculo na construção de autonomia dos sujeitos que engendram as práticas de saúde bucal no Programa Saúde da Família. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: Estudo qualitativo realizado em Alagoinhas, BA, 2004, utilizando-se uma abordagem crítico-reflexiva. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com trabalhadores e usuários e observação da prática no Programa Saúde da Família, num total de 17 entrevistados. A análise dos dados foi orientada pelo modelo de análise hermenêutico-dialética, confrontando as representações dos diferentes sujeitos e articulando-os com o referencial teórico orientador do estudo. ANÁLISE DOS RESULTADOS: Os usuários atendidos pela equipe de saúde bucal do Programa Saúde da Família apontaram seus problemas e o tratamento que desejavam realizar. Estabeleceu-se uma linha de tensão, que pode definir o serviço como acolhedor e vincular, e assim contribuir para o fortalecimento da autonomia dos demandantes. No entanto, usuários e profissionais negociavam acerca do tratamento. O estabelecimento do vínculo permitiu que a negociação caminhasse para um consenso de necessidades e responsabilidades, impedindo que o ato terapêutico esteja centrado no profissional, mas que seja realizado pela manifestação de desejo do usuário. CONCLUSÕES: O vínculo guarda estreita relação com a capacidade de o outro usufruir da condição de sujeito ativo nas decisões acerca da sua vida. Possibilitou aos sujeitos irem ao encontro de suas potencialidades, favorecendo a reciprocidade de experiências e possibilitando a construção de atos terapêuticos co-responsabilizados. A prática em saúde bucal alicerçada em pilares relacionais precisa do vínculo, autonomizando o usuário e ampliando o cuidado.

Autonomia Pessoal; Educação em Saúde Bucal; Programa Saúde da Família; Conhecimentos; Pesquisa Qualitativa


OBJECTIVE: To understand the establishment of bond in the construction of autonomy of the subjects who generate the practices of oral health in the Family Health Program. METHODOLOGICAL PROCEDURES: A critical refl exive approach was undertaken in this qualitative study carried out in Alagoinhas (Northeastern Brazil). ANALYSIS OF RESULTS: Interviewees taken care of by the oral health team of the Program point out their problems and the treatment they want. A line of tension is established that will define the service as welcoming, binding and will contribute towards enhancing the autonomy of those seeking oral health services. However, negotiation concerning the treatment that will be implemented, between those seeking and providing it, is fundamental. Establishing a bond made it possible for negotiation to lead to a consensus concerning necessities and responsibilities, impeding the therapeutic act from being centered on the health care worker, allowing it to ensue according to the desire of the person seeking care. CONCLUSIONS: Bond maintains a close relationship with the capacity of the other to become an active subject in decision making with regard to his/her life. It allows subjects to strive towards their potentialities, favoring the reciprocity of experiences and the construction of therapeutic acts for which they are co-responsible. Oral health practice based on relational pillars needs to foster bond, making those that seek care autonomous and amplifying care.

Personal Autonomy; Health Education, Dental; Family Health Program; Health Knowledge; Health Knowledge; Qualitative Research


ARTIGO ORIGINAL

Vínculo e autonomia na prática de saúde bucal no Programa Saúde da Família

Adriano Maia dos SantosI; Marluce Maria Araújo AssisII; Maria Angela Alves do NascimentoII; Maria Salete Bessa JorgeIII

IInstituto Multidisciplinar em Saúde. Universidade Federal da Bahia. Vitória da Conquista, BA, Brasil

IIUniversidade Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, BA, Brasil

IIIUniversidade Estadual do Ceará. Fortaleza,CE, Brasil

Correspondência Correspondência: Adriano Maia dos Santos Instituto Multidisciplinar em Saúde UFBA - Campus Anísio Teixeira Av. Olívia Flores, 3000 Bairro Candeias 45055-090 Vitória da Conquista, BA, Brasil E-mail: maiaufba@ufba.br

RESUMO

OBJETIVO: Compreender o estabelecimento do vínculo na construção de autonomia dos sujeitos que engendram as práticas de saúde bucal no Programa Saúde da Família.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: Estudo qualitativo realizado em Alagoinhas, BA, 2004, utilizando-se uma abordagem crítico-reflexiva. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com trabalhadores e usuários e observação da prática no Programa Saúde da Família, num total de 17 entrevistados. A análise dos dados foi orientada pelo modelo de análise hermenêutico-dialética, confrontando as representações dos diferentes sujeitos e articulando-os com o referencial teórico orientador do estudo.

ANÁLISE DOS RESULTADOS: Os usuários atendidos pela equipe de saúde bucal do Programa Saúde da Família apontaram seus problemas e o tratamento que desejavam realizar. Estabeleceu-se uma linha de tensão, que pode definir o serviço como acolhedor e vincular, e assim contribuir para o fortalecimento da autonomia dos demandantes. No entanto, usuários e profissionais negociavam acerca do tratamento. O estabelecimento do vínculo permitiu que a negociação caminhasse para um consenso de necessidades e responsabilidades, impedindo que o ato terapêutico esteja centrado no profissional, mas que seja realizado pela manifestação de desejo do usuário.

CONCLUSÕES: O vínculo guarda estreita relação com a capacidade de o outro usufruir da condição de sujeito ativo nas decisões acerca da sua vida. Possibilitou aos sujeitos irem ao encontro de suas potencialidades, favorecendo a reciprocidade de experiências e possibilitando a construção de atos terapêuticos co-responsabilizados. A prática em saúde bucal alicerçada em pilares relacionais precisa do vínculo, autonomizando o usuário e ampliando o cuidado.

Descritores: Autonomia Pessoal. Educação em Saúde Bucal. Programa Saúde da Família. Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde. Pesquisa Qualitativa.

INTRODUÇÃO

A contextualização das políticas em saúde deve ser compreendida a partir dos conflitos que se estabelecem entre os sujeitos envolvidos no campo concreto da práxis social. Portanto, torna-se necessário estabelecer interfaces que desvelem as nuances das práticas em saúde a partir de sua inserção num contexto social, econômico, político e ideológico, que é dinâmico e engendrado historicamente.

O vínculo pode ser uma ferramenta que agencia as trocas de saberes entre o técnico e o popular, o científico e o empírico, o objetivo, o subjetivo, convergindo-os para a realização de atos terapêuticos conformados a partir das sutilezas de cada coletivo e de cada indivíduo, favorecendo outros sentidos para a integralidade da atenção à saúde.

Campos2 analisa o vínculo como um recurso terapêutico, sendo, portanto, parte integrante da clínica ampliada, ou seja, "(...) superação da alienação, da fragmentação e do tecnicismo biologicista (...)". E complementa, "(...) para que haja vínculo positivo os grupos devem acreditar que a equipe de saúde tem alguma potência, alguma capacidade de resolver problemas de saúde. E a equipe deve acolher a demanda dos usuários ou das organizações. A equipe deve apostar em que, apoiados, os usuários conseguirão participar da superação das condições adversas. Senão, tender-se-á a estabelecer-se um padrão paternalista de vínculo, que é a confiança e desconfiança ao mesmo tempo. Acreditar, sim; mas também reconhecer que sem algum apoio externo as pessoas não mudarão o contexto e a si mesmas".

A autonomia, por sua vez, é constituída pela substituição do prazer do objeto pelo prazer da representação no processo de constituição de sujeitos humanos e autônomos, com capacidade de se auto-perceber e perceber o outro em sua dimensão individual e coletiva, atravessada pela criatividade e realização de solidariedade.4

Tomando-se como objeto de discussão a prática em saúde bucal, faz-se necessário compreendê-la a partir da intervenção social, que, em termos de recursos humanos e tecnologia disponível, é considerada uma das mais avançadas do mundo. Contudo, percebe-se um paradoxo nas ações desenvolvidas pela saúde bucal, no Brasil, que Garrafa & Moysés6 definem como "tecnicamente elogiável, cientificamente discutível e socialmente caótica".

Diante do exposto, pode-se afirmar que, por um lado, a saúde bucal produz tecnologia e desenvolve procedimentos clínicos complexos e onerosos e, por outro, convive com problemas de saúde bucal – como a cárie e a doença periodontal. Os instrumentos de controle e cura para esses agravos já são bem desenvolvidos e conhecidos, mas continuam a incidir em grande parcela da população, principalmente, na mais carente.

A situação apresentada possibilita refletir sobre a formação do cirurgião-dentista, pois mesmo as universidades, incluindo as públicas, têm formado esse profissional para atuar numa lógica liberalizante, com valorização excessiva da cura individual, muitas vezes, desconsiderando as ações públicas e coletivas em saúde. Narvai10 ressalta que "a maioria dos serviços públicos odontológicos brasileiros reproduz, mecânica e acriticamente, os elementos nucleares do modelo de prática odontológica no setor privado de prestação de serviços". O profissional formado para tratar apenas a doença limita sua prática por não perceber algo além da boca e, por percebê-la isolada de um corpo e de um território dinâmico, aborta outras possibilidades terapêuticas. Ao focalizar as ações na enfermidade, o dentista especializa-se em tratamentos cada vez mais complexos, voltando a se distanciar do real sentido das práticas em saúde, que é o ser e não, simplesmente, a doença ou suas seqüelas.

Para Ceccim & Carvalho,5 "o crescimento das especializações não garante a satisfação da população no que concerne ao atendimento, aos serviços e à própria relação com os profissionais de saúde e um dos fatores predisponentes a esta postura é justamente a fragilidade do ensino sobre Sistema Único de Saúde na formação básica e a ausência dos termos da integralidade como critério para estipular as práticas. (...) A integralidade ainda é objeto de retórica, não de ensino".

Sendo assim, há necessidade da (des)construção de toda uma prática voltada à doença e da (re)construção de um modelo de saúde bucal que deixe de ser excludente e pouco resolutivo, para que garanta dignidade e integralidade tanto ao usuário, quanto ao próprio cirurgião-dentista.11 Levando-se em consideração que a construção de um modelo de atenção à saúde bucal deve estar em consonância com o conceito ampliado de saúde do País, o presente artigo teve por objetivo compreender o estabelecimento do vínculo na construção de autonomia dos sujeitos que engendram as práticas de saúde bucal no Programa Saúde da Família (PSF).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Pesquisa qualitativa, com abordagem crítico-reflexiva da prática de saúde bucal, cujo recorte espacial foram três unidades de saúde da família, em que atuavam as equipes de saúde bucal, em Alagoinhas, BA.

As técnicas de coleta de dados foram entrevista semi-estruturada e observação sistemática da prática. Os sujeitos do estudo foram 17 pessoas, que atuaram no período de 2001-2004, distribuídas entre três grupos de representação: grupo I (cirurgiões-dentistas e auxiliares de consultório dentário – 6); grupo II (outros trabalhadores de saúde – 6); grupo III (usuários – 5).

As entrevistas e as observações da prática foram orientadas por roteiros que abordavam os seguintes pontos: 1) abordagem dispensada pela equipe de saúde bucalaos usuários no momento do atendimento; 2) relação dialógica e pedagógica entre profissional e usuário (o exercício da fala, da compreensão, do respeito e do compromisso); 3) participação da comunidade no planejamento das atividades (marcação, critério da consulta, procedimentos, prioridades); 4) critério para realização de um procedimento clínico (necessidade/vontade do usuário/profissional, ou dependência material/equipamento disponível); e 5) acolhida do usuário na USF (informações, esclarecimento, tempo de espera, linguagem, acomodação, dentre outros). A coleta de dados aconteceu no primeiro semestre de 2004.

A análise dos dados foi orientada pelo modelo da hermenêutica-dialética segundo Minayo.9 Os grupos de entrevistados foram analisados, por meio das convergências e divergências, articulando-os com o referencial teórico orientador.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana.

ANÁLISE DE RESULTADOS

A saúde não é o resultado apenas de práticas consolidadas pelo saber biomédico. Da mesma forma, a saúde bucal não é conseqüência apenas da intervenção das práticas odontológicas, mas está relacionada a aspectos biológicos, emocionais, religiosos, culturais e econômicos que exigem meios semióticos que permitam a difusão do cuidado. As práticas em saúde são a princípio construções sociais que se originam de diferentes grupos de maneira tácita e aceitos pelos sujeitos por meio dos elementos presenciais do cotidiano e atravessados por códigos de linguagem e comportamento.1

Os discursos dos cirurgiões-dentistas e auxiliares convergem, por meio da seguinte representação: "no dia-a-dia, na forma de atender, a gente procura atender o pessoal na maneira mais carinhosa possível, carinhosa é a palavra (...) então o vínculo eu tento manter, procuro discutir os problemas, tento o apoio da comunidade (...)" (Grupo I).

No entanto, foi observado que os usuários comparecem ao serviço de saúde com uma expectativa de atendimento, manifestando claramente o que querem. Nesse momento, estabelece-se uma "linha de tensão"12 que definirá se o serviço será acolhedor, terá vínculo e contribuirá para o fortalecimento da autonomia dos demandantes. Os depoimentos revelaram que, mesmo sinalizando suas demandas e/ou necessidades, os usuários tinham de negociar a realização do tratamento, não deixando de considerar os limites que cercam as práticas em saúde bucal. Esses limites incluíam: falta de material disponível para realizar o procedimento, capacidade técnica e/ou preferência do dentista para realizar o procedimento requerido pelo usuário, desacordo da demanda do usuário com os critérios técnicos do dentista, falta de interesse do dentista em resolver o problema, e a necessidade do usuário não corresponde ao nível de hierarquização da unidade de saúde.

O estabelecimento do vínculo permite que a negociação caminhe para um consenso de necessidades e responsabilidades, impedindo que o ato terapêutico esteja centrado no trabalhador, mas que, ainda assim, não seja realizado puramente pela manifestação de desejo do usuário. O vínculo precisará, portanto, interagir com ambas as possibilidades na busca da melhor conduta cuidadora.

Constatou-se que o fluxo era organizado a partir da queixa do usuário que escolhia, previamente o procedimento que desejava. Havia uma fragmentação no processo de organização da demanda, porquanto condicionada à oferta e ao profissional. Ressaltam-se contradições como, por exemplo, quando o cirurgião-dentista resolve atender aos anseios da comunidade em relação à extração dentária. O profissional relata cansaço frente às pressões que os usuários exercem ao procurar o serviço, priorizando o tratamento mutilador. Dessa forma, resolvendo que submeterá sua prática à vontade externa, ainda que a contragosto. "(...) aí quando chegou dezembro, eu estava tão cansada, mas tão cansada que disse: 'olhe, não querem extração?. Vai ser extração!'. Aí, em dezembro, só fiz extração" (Grupo I).

Percebeu-se uma ambigüidade, posto que ouvir o outro não significa ceder, passivamente, a um comando. A estratégia escolhida pelo trabalhador não constrói autonomia, pois não cria um espaço para negociações e pactuações, no qual as demandas dos usuários poderiam ser contextualizadas e redefinidas. Desconsiderar essa potencialidade pode significar um não vínculo, e ceder simplesmente aos anseios da comunidade pode representar uma não responsabilização frente aos desafios de transformação que estão delineados no cotidiano das práticas em saúde bucal.

A preferência dos usuários em relação às exodontias são construções históricas, associações que estão impressas no cognitivo coletivo, resultado de práticas desenvolvidas em relação à saúde bucal durante anos. Os usuários, então, pela dificuldade de acesso e/ou pela resolubilidade limitada, acabam optando por tratamentos que "finalizem" seu sofrimento, com garantia de que ele não se repetirá, pelo menos em relação àquele dente.

Contudo, outros depoimentos reiteraram a questão do "fazer o que é requerido pelo usuário", por meio de uma negociação. Ao possibilitar a manifestação do outro e argumentar no intuito de conseguir a melhor terapia, o cirurgião-dentista inscreve o elemento vínculo no ato clínico e efetiva a autonomia. Um usuário sintetiza a idéia: "Bem, eu acho que é feito, não da forma que eu quero, mas dentro da minha necessidade e da forma que ele explica, eu acho que o problema é resolvido, porque eu vou com um problema, ele explica o que tá acontecendo, passa a medicação, me orienta a fazer alguma coisa e eu acho que isso é correspondido" (Grupo III).

É preciso não confundir os sentidos da avaliação de risco2 com a triagem realizada em algumas unidades de saúde da família no momento da marcação da consulta. Não se trata de escolhas individuais ou realizadas na recepção pelo agente administrativo, auxiliares de consultório dentário ou agente comunitário de saúde, ainda que possam e devam sinalizar a identificação de demandas específicas. A definição das prioridades deve pautar-se em critérios epidemiológicos e clínicos, que fazem parte do campo e do núcleo de conhecimentos dos trabalhadores de saúde. Contudo, a definição deve ser legitimada pela comunidade, ou seja, ainda que existam critérios científicos que fundamentem uma organização dentro da unidade de saúde da família, esta somente se efetivará com a construção coletiva dessa tática operacional.

A perspectiva de cura ou alívio de um sofrimento passa, prioritariamente, pela construção de um usuário com autonomia para compreender e administrar melhor suas necessidades. Ainda, é necessária a mobilização de outros campos de conhecimentos que ajam nos processos relacionais e que se consubstanciam no acolhimento, responsabilização e compromisso e, por sua vez, operam os vínculos sociais.

As entrevistas revelaram os conflitos gerados na dinâmica das práticas em saúde bucal, devido à proporção de uma equipe de saúde bucal para cada duas equipes de PSF. O fato de haver um consultório para duas equipes faz com que uma unidade de saúde da família receba um fluxo de usuários de outra área, com isso, uma das USF trabalha com duas formas de adscrição. Segundo os depoentes, isso tem promovido desentendimentos e desconfianças, pois geralmente os usuários de uma área que não tem consultórios sentem-se desprestigiados, conforme o depoimento a seguir:

"Tinha que fazer, assim, um verdadeiro arranjo, porque nem consultório não tem na outra equipe. Então o pessoal vinha de lá, apesar que é perto, pra cá, só que aí criava vários inconvenientes. A questão da pessoa tá numa unidade que não é a sua, e com profissionais que não são aqueles que a pessoa está habituada, a questão da briga, porque sempre a unidade lá de cima achava que tá sendo deixada de lado por causa do pessoal daqui (...) (Grupo II).

Outra estrutura relevante nas falas foi a sensação de não pertencimento que os usuários experimentavam ao terem que se deslocar para outro espaço, onde todos os trabalhadores lhes são estranhos, com exceção da equipe de saúde bucal. Talvez a sensação de estranhamento justifique as constantes ausências entre os usuários das áreas sem o consultório, além de dificuldades de acessibilidade.

Os desafios impostos pela estrutura organizacional congregam a necessidade do vínculo como agenciador das relações fragmentadas durante o processo de trabalho da equipe de saúde bucal. O PSF possibilita o entrelaçamento das relações e dos afetos entre trabalhadores de saúde e a comunidade, ao ampliar a prática para além da unidade de saúde da família.

As estratégias desenvolvidas pelas equipes de saúde bucal (visitas domiciliares, atividades em grupos em escolas e centros comunitários) têm convergido para o estabelecimento do vínculo e para o fortalecimento da autonomia da comunidade em relação ao autocuidado e à troca de experiências. Uma estrutura presente em diversas entrevistas foi a construção de sujeitos autônomos, a partir do estabelecimento do vínculo. Portanto, a descentralização da atenção à saúde bucal, no momento em que outros sujeitos (auxiliares de consultório dentário, professores, famílias) passam a se envolver com o processo do cuidado, gera uma disseminação das ações e assim a clínica se democratiza.2,3 Essa identificação é ressaltada por um informante: "(...) não só eu e o agente comunitário, tudo é vínculo, ele, a escola, a família, tudo tem um vínculo. Aquela coisa, um ciclo, cada um tem que fazer seu papel, para tentar desenvolver seu trabalho. Sozinho, a gente não faz nada. PSF tem esse lado. Participação!" (Grupo I).

Um dos sujeitos de grande destaque nas práticas em saúde bucal no município foi o ACS. Suas ações são desenvolvidas nas áreas adscritas, com atuação direta junto às famílias, por meio das visitas domiciliares. O papel do agente comunitário de saúde foi importante na construção do vínculo com a comunidade. No entanto, o que define qualidade nas atividades praticadas por esses sujeitos é sua capacidade de observar, interagir e conhecer as pessoas de sua área.

As principais atividades em saúde bucal realizadas pelo agente comunitário de saúde foram: procedimentos coletivos nas escolas, palestras na comunidade, aplicação de flúor, atividades lúdicas, reuniões, marcação de consulta, visitas domiciliares e detecção de famílias ou indivíduos com maior vulnerabilidade – orgânica, subjetiva ou social. Todo esse aparato de atividades aumentou consideravelmente as responsabilidades desses trabalhadores, requerendo uma política de educação permanente, para que exerçam o trabalho de forma segura e eficaz.

O cenário conquistado pelos agentes comunitários de saúde no município era de grande destaque, com forte representação política e ampla inserção social. Assim, os agentes constituíam uma massa crítica e com potência concreta para manter ou participar do processo para instituição do modelo de saúde, com eixo central na integralidade.

Também a equipe de saúde bucal realizava visitas domiciliares, todas as equipes reservavam turnos semanais para essa finalidade. O critério para visitas domiciliares não deve ser de caráter compulsório. Ela só faz sentido se estiver pautada numa necessidade explícita, e esse papel da visita cotidiana às residências atribuído é dos agentes comunitários de saúde. Há necessidade de otimização dos recursos humanos em saúde, não sendo, portanto, admissível que um trabalhador realize uma visita sem mesmo saber o que ou para que vai fazê-la.7

A visita domiciliar não deve ser encarada como uma tarefa para constar do sistema de informação no final do mês. Entende-se a visita domiciliar, como um instrumento clínico e pedagógico, fundamental nas ações do PSF: "(...) nas visitas domiciliares, a gente tem um retorno muito positivo (...) a gente pode constatar que a comunidade realmente gosta da visita do dentista (...) eles pediram pra gente continuar fazendo, justamente por conta da demanda que a gente tem aqui na unidade pra atender e da dificuldade que eles têm de vir à unidade: os deficientes físicos, os idosos, muitos acamados" (Grupo I).

As equipes de saúde bucal realizam distintas atividades com potencial para estabelecer o vínculo e co-produzir a autonomia. Contudo, com as observações, pôde-se perceber que as ações coletivas tinham seu eixo de discussão nas patologias bucais ou técnicas de higiene, e que a perspectiva era majoritariamente a prevenção. Então, as atividades fora da clínica deveriam ter um dispositivo deflagrador de mudanças, ou seja, essas equipes precisam discutir questões de cidadania, políticas de saúde e socioeconômicas, como forma de fortalecer o vínculo, construir a autonomia e despertar para a co-responsabilização frente aos problemas da comunidade.

Outro aspecto apresentou-se como atributo que contraria o sucesso das ações em saúde bucal no Sistema Único de Saúde. Para um dos entrevistados, o PSF é um espaço privilegiado para inovações e com potencialidade de transformação do modelo de atenção. Porém, ele apontou que alguns trabalhadores de saúde que não tinham identificação com o projeto social, sendo limitante para o processo de avanço: "(...) uma dificuldade de se avançar é a questão cultural das pessoas que trabalham no programa. A gente conhece muitas pessoas que fazem o pé de meia no programa e, a gente acaba conhecendo profissionais que não são adequados ao programa (...) mas, muitos profissionais acabam se desmotivando por conta de problemas de ordem superior, de gestão, salário e tudo mais" (Grupo I).

Por conseguinte, os gestores devem propor políticas que identifiquem os trabalhadores com perfil/compromisso e que se responsabilizam com o programa, e paralelamente, apresentar estratégias para que esses trabalhadores permaneçam no município o maior tempo possível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível mudar a prática de saúde bucal a partir da reorganização do processo de trabalho, incluindo as tecnologias leves, como mediadoras dos encontros dos trabalhadores de saúde entre si e com os usuários. Essas práticas devem ser definidas pelo território de necessidades e pelas demandas apresentadas pelos usuários, e balizadas pelos vários saberes técnicos e populares.

A saúde bucal tem raízes históricas na resolução dos problemas de saúde-doença dos indivíduos, alicerçados na prática curativa, no conhecimento compartimentalizado e na fragmentação do ato terapêutico. A contribuição do presente estudo é a proposta concebida na idéia de saúde, não como a ausência da doença, mas a saúde bucal produzida para tornar os sujeitos-usuários autônomos, capazes de desenvolverem o autocuidado e, também, tornarem-se terapeutas de outros.

O vínculo guarda estreita relação com a capacidade de o outro usufruir da condição de sujeito ativo nas decisões acerca da sua vida. É, portanto, o dispositivo que levam os sujeitos (trabalhadores e usuários) ao encontro de suas potencialidades, pois favorece a reciprocidade de experiências e, assim, possibilita a construção de atos terapêuticos co-responsabilizados e co-autorais.

Santos et al12 mapearam as linha de tensão que se processam nos encontros entre dentista e usuário e sinalizaram que o resultado da intervenção pode ser "a prevenção, cura ou reabilitação da saúde ou, em contraposição, uma iatrogenia, manutenção ou agravamento da enfermidade".

Nessa acepção, Campos2 salienta que "o papel do profissional de saúde é agir sobre o outro que se põe sob nosso cuidado, mas é também ajudar os outros a se ajudarem. Estimular a capacidade de as pessoas enfrentarem problemas, a partir de suas condições concretas de vida".

Acredita-se que as ações acolhedoras e vinculares são portadoras de substrato capaz de alimentar as práticas, tornando-as eficazes e eficientes. Elas edificam valores afetivos e de respeito com a vida do outro, possibilitando às práticas tradicionais (curativas e preventivas) ganharem uma nova dimensão, pautada no interesse coletivo, transpondo o caráter prescritivo que orientou essas ações ao longo do tempo.

Essa percepção é descrita por Schraiber & Mendes-Gonçalves13 "esse indivíduo que se sente doente, ou em sofrimento, enxerga a saída: assume que há correção desejável para seu problema e que existem meios para isso. O resultado das intervenções sobre qualquer desses carecimentos é reconhecido, portanto, como necessidade, tornando as próprias intervenções também necessidades. Além disso, a partir da solução que se antevê para cada carecimento – previsão que é possível para o indivíduo porque já a viu eficaz e suficiente para outros na sociedade – cada um sabe qual tipo de serviço irá procurar: se de assistência à saúde ou não; se dessa ou daquela modalidade de atenção dos serviços de saúde".

Campos2 complementa tais idéias, ao discutir a priorização como um recurso para garantir uma clínica de qualidade e defende que "fazer clínica é avaliar riscos e, em função disso, intervir com recursos terapêuticos específicos, conforme o caso e sua fase: remédio, educação em saúde, visita domiciliar, orientações dietéticas, existenciais, grupos... Um serviço de atenção primária que atende a todo mundo que o demanda e que não consegue distinguir entre os pacientes, não faz clínica de qualidade".

Há necessidade de fortalecer o vínculo, mesmo diante das dificuldades como demanda grande e escassez de recursos.2 Por sua vez, Campos & Campos3 alertam que, para trabalhar em prol da produção da saúde, necessita-se de uma nova postura enquanto cidadãos, professores e/ou membros de equipes de saúde; requer compromisso orgânico, envolvendo-se e deixando-se envolver pela dinâmica do cuidado em saúde. É vital, portanto, o resgate da autonomização dos sujeitos individuais e coletivos, tanto do ponto de vista do potencial intrínseco que cada usuário, trabalhador e/ou comunidade possuem para compartilhar saberes e fazer escolhas, bem como na dimensão co-produtiva, no sentido de perceber se as práticas cotidianas estão emancipando e co-responsabilizando os sujeitos. De outra forma, criam-se cidadãos tutelados e dependentes de escolhas externas. Para os autores, é papel do trabalhador da saúde agenciar e potencializar o coeficiente de autonomia dos distintos sujeitos, individuais e coletivos, para possibilitar que as condições de vida saudáveis sejam sustentáveis e perenes.

O estudo mostra que os agentes comunitários de saúde foram sujeitos fundamentais para gerar uma relação de confiança e cumplicidade que se estende aos demais trabalhadores, potencializando o vínculo, o acolhimento e a autonomia dos usuários. Eles são, portanto, sujeitos portadores naturais do vínculo com a comunidade, capazes de contribuir com a autonomia dos usuários. Nas visitas domiciliares, esses agentes estimulam os usuários a administrarem seus processos de saúde, a partir do fortalecimento do autocuidado e da autopercepção.8

Por fim, vínculo e autonomia entrecruzam-se, constroem-se e agenciam-se, numa relação de reciprocidade, que se processa a partir da sua presença nos interstícios das práticas sociais – nesse caso, no "ventre" da saúde e, portanto, na saúde bucal.11

Posto assim, a prática em saúde bucal alicerçada em pilares relacionais precisa do amálgama que vincula, estreita laços e liberta a potencialidade do outro, autonomizando o usuário e ampliando o cuidado.

Recebido: 21/10/2006

Revisado: 11/10/2007

Aprovado: 8/11/2007

Artigo baseado na dissertação de mestrado de AM Santos, apresentada à Universidade Estadual de Feira de Santana, em 2005.

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  • Correspondência:
    Adriano Maia dos Santos
    Instituto Multidisciplinar em Saúde
    UFBA - Campus Anísio Teixeira
    Av. Olívia Flores, 3000 Bairro Candeias
    45055-090 Vitória da Conquista, BA, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Aceito
      11 Ago 2007
    • Revisado
      11 Out 2007
    • Recebido
      21 Out 2006
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