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Arranjos familiares e implicações à saúde na visão dos profissionais do Programa Saúde da Família

Arreglos familiares e implicaciones a la salud en la visión de los profesionales del Programa Salud da la Familia

Resumos

OBJETIVO: Descrever a percepção dos profissionais de equipes do Programa Saúde da Família sobre as configurações familiares e a compreensão de família saudável. MÉTODOS: Pesquisa de abordagem qualitativa, empregando técnica de grupo focal com profissionais do Programa Saúde da Família do município de Campo Bom, RS, no período de junho a agosto de 2005. A amostra foi composta por 12 profissionais: médicos, enfermeiras, técnicas de enfermagem e agentes comunitárias de saúde. Os temas investigados no roteiro foram: significado da família, do papel da família; tipo de família mais comumente atendida pelos profissionais; significado de família saudável; quais famílias oferecem maiores dificuldades para a atenção. O instrumental metodológico utilizado foi a análise de conteúdo. RESULTADOS: Observaram-se duas categorias principais: arranjos familiares, em que se constatou grande diversidade de arranjos; e família saudável: em que o predomínio dos relatos está de acordo com uma visão multifacetada de compreensão de saúde, abrangendo aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais. Os profissionais identificam e respeitam os diferentes arranjos familiares, e adaptam o tratamento ao modelo de família que se apresenta. CONCLUSÕES: Os achados mostram que os profissionais apresentam disposição para lidar com os múltiplos arranjos familiares presentes no seu cotidiano.

Pessoal de Saúde; Recursos Humanos em Saúde; Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde; Programa Saúde da Família; Pesquisa Qualitativa


OBJETIVO: Describir la percepción de los profesionales de equipos del Programa Salud de la Familia sobre las configuraciones familiares y la comprensión de familia saludable. MÉTODOS: Pesquisa de abordaje cualitativa, empleando técnica de grupo focal con profesionales del Programa Salud de la Familia del municipio de Campo Bom (Sur de Brasil), en el período de junio a agosto de 2005. La muestra fue compuesta por 12 profesionales: médicos, enfermeras, técnicas de enfermería y agentes comunitarias de salud. Los temas investigados en la secuencia fueron: significado de familia saludable; cuales familias ofrecen mayores dificultades para la atención. El instrumental metodológico utilizado fue el análisis de contenido. RESULTADOS: Se observaron dos categorías principales: arreglos familiares, en que se verificó gran diversidad de arreglos; y familia saludable: en que el predominio de los relatos está de acuerdo con una visión multifacética de compresión de salud, abarcando aspectos políticos, sociales, económicos y culturales. Los profesionales identifican y respetan los diferentes arreglos familiares, y adaptan el tratamiento al modelo de familia que se presenta. CONCLUSIONES: Los resultados muestran que los profesionales presentan disposición para lidiar con los múltiples arreglos familiares presentes en el cotidiano.

Personal de Salud; Recursos Humanos en Salud; Conocimientos, Actitudes y Práctica en Salud; Programa de Salud Familiar; Investigación Cualitativa


OBJECTIVE: To describe perception of family structures and understanding of a healthy family by Programa Saúde da Família (Family Health Program) team members. METHODS: Research with a qualitative approach, employing the focus group technique, and involving the Program professionals from the city of Campo Bom, Southern Brazil, between June and August 2005. Sample was comprised of 12 professionals, including doctors, nurses, nursing technicians and community health agents. The following issues were investigated: the meaning of family; the meaning of the role of family; type of family most frequently cared for by professionals; the meaning of a healthy family; and types of family causing more difficulties of care. The methodological instrument used was content analysis. RESULTS: Two main categories were observed: family structures, where a great diversity of arrangements was found; and healthy family, where the predominance of speech is consistent with a multifaceted view on health, involving political, social, economic and cultural aspects. Professionals identify and respect distinct family structures and adapt medical treatment accordingly. CONCLUSIONS: Findings reveal that professionals are willing to deal with the different family structures present in their routine.

Health Personnel; Health Manpower; Health Knowledge, Attitudes, Practice; Family Health Program; Qualitative Research


ARTIGOS ORIGINAIS

Arranjos familiares e implicações à saúde na visão dos profissionais do Programa Saúde da Família

Arreglos familiares e implicaciones a la salud en la visión de los profesionales del Programa Salud da la Familia

Roseclér Machado GabardoI; José Roque JungesII; Lucilda SelliII

IPrograma de Pós-Graduação em Bioética. Universidade de Brasília. Brasília, DF, Brasil

IIPrograma de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Roseclér Machado Gabardo Catedra Unesco de Bioética Campos Universitário Darci Ribeiro Cx. Postal 04451 70904-970 Brasília, DF, Brasil E-mail: rose.gabardo@terra.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Descrever a percepção dos profissionais de equipes do Programa Saúde da Família sobre as configurações familiares e a compreensão de família saudável.

MÉTODOS: Pesquisa de abordagem qualitativa, empregando técnica de grupo focal com profissionais do Programa Saúde da Família do município de Campo Bom, RS, no período de junho a agosto de 2005. A amostra foi composta por 12 profissionais: médicos, enfermeiras, técnicas de enfermagem e agentes comunitárias de saúde. Os temas investigados no roteiro foram: significado da família, do papel da família; tipo de família mais comumente atendida pelos profissionais; significado de família saudável; quais famílias oferecem maiores dificuldades para a atenção. O instrumental metodológico utilizado foi a análise de conteúdo.

RESULTADOS: Observaram-se duas categorias principais: arranjos familiares, em que se constatou grande diversidade de arranjos; e família saudável: em que o predomínio dos relatos está de acordo com uma visão multifacetada de compreensão de saúde, abrangendo aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais. Os profissionais identificam e respeitam os diferentes arranjos familiares, e adaptam o tratamento ao modelo de família que se apresenta.

CONCLUSÕES: Os achados mostram que os profissionais apresentam disposição para lidar com os múltiplos arranjos familiares presentes no seu cotidiano.

Descritores: Pessoal de Saúde, psicologia. Recursos Humanos em Saúde. Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde. Programa Saúde da Família. Pesquisa Qualitativa.

RESUMEN

OBJETIVO: Describir la percepción de los profesionales de equipos del Programa Salud de la Familia sobre las configuraciones familiares y la comprensión de familia saludable.

MÉTODOS: Pesquisa de abordaje cualitativa, empleando técnica de grupo focal con profesionales del Programa Salud de la Familia del municipio de Campo Bom (Sur de Brasil), en el período de junio a agosto de 2005. La muestra fue compuesta por 12 profesionales: médicos, enfermeras, técnicas de enfermería y agentes comunitarias de salud. Los temas investigados en la secuencia fueron: significado de familia saludable; cuales familias ofrecen mayores dificultades para la atención. El instrumental metodológico utilizado fue el análisis de contenido.

RESULTADOS: Se observaron dos categorías principales: arreglos familiares, en que se verificó gran diversidad de arreglos; y familia saludable: en que el predominio de los relatos está de acuerdo con una visión multifacética de compresión de salud, abarcando aspectos políticos, sociales, económicos y culturales. Los profesionales identifican y respetan los diferentes arreglos familiares, y adaptan el tratamiento al modelo de familia que se presenta.

CONCLUSIONES: Los resultados muestran que los profesionales presentan disposición para lidiar con los múltiples arreglos familiares presentes en el cotidiano.

Descriptores: Personal de Salud, psicología. Recursos Humanos en Salud. Conocimientos, Actitudes y Práctica en Salud. Programa de Salud Familiar. Investigación Cualitativa.

INTRODUÇÃO

Estudos referentes à família como lugar de proteção social apresentam três esferas como responsáveis pelo bem-estar dos indivíduos: família, sociedade e Estado, destacando que o último deve garantir as condições para que as famílias consigam efetivamente cumprir seu papel de assegurar a proteção integral de seus membros.10 Assim, o Ministério da Saúde elevou a saúde da família à categoria de estratégia de mudança assistencial, constituindo-se hoje no principal programa de saúde do País, englobando paulatinamente toda a rede de serviços básicos do Sistema Único de Saúde (SUS).

Nesse sentido, o Programa Saúde da Família (PSF), proposto pelo Ministério da Saúde como estratégia de reorganização do modelo assistencial predominante na atenção básica, tem as seguintes finalidades: integrar ações de promoção e prevenção da saúde, racionalizar recursos destinados a atenção secundária e terciária, solucionar problemas de urgências e emergências, promover a integração do SUS com universidades e definir políticas de recursos humanos para atender os serviços de saúde.3

Esta reorganização da atenção à saúde tem como foco a família e a implementação de procedimentos diferenciados por uma equipe multiprofissional. Contudo, indaga-se sobre a que tipo de categoria de família o Programa se refere e pretende atender. Do mesmo modo, questionam-se quais são as percepções e manejos dos profissionais com diferentes organizações familiares e qual seria a compreensão da família como unidade de saúde.

As estruturas familiares são objeto de investigação de várias áreas do conhecimento, tais como ciências sociais, psicologia e antropologia. Embora sempre tenha havido distintas formas de organização familiar, persiste no imaginário individual e coletivo a imagem da família nuclear composta por mãe, pai e filhos como referência. A prática dos profissionais do PSF consiste no atendimento diário de famílias com diversas configurações.

O objetivo do presente estudo foi descrever as percepções de profissionais do PSF sobre os arranjos familiares.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A amostra foi composta por 12 profissionais escolhidos intencionalmente entre as sete equipes do município, garantindo que todos os segmentos da área da saúde fossem contemplados, segundo uma distribuição proporcional de papéis exercidos e que estivessem há pelo menos dois anos no PSF. As categorias dos 12 profissionais escolhidos foram: três médicos, dois do sexo masculino e um do feminino com idade entre 33 e 35 anos; três enfermeiras, com idade entre 33 e 47 anos de idade; dois técnicos de enfermagem, um do sexo feminino e o outro do masculino, com idade entre 45 e 49 anos; e quatro agentes comunitários de saúde do sexo feminino, com idade entre 34 e 44 anos.

Foram realizados grupos focais com os profissionais selecionados. Antes que esses grupos fossem organizados, foram realizadas visitas a cada unidade do PSF, e mais três visitas para observação dos encontros mensais das equipes, dos quais não participavam as agentes.

O roteiro dos grupos focais foi norteado por quatro temas: 1) princípios e pressupostos que regem o PSF; 2) a prática de atendimento dos profissionais; 3) as relações que se estabelecem entre os profissionais e com a comunidade; 4) tradição cultural da comunidade atendida.

Em seguida, foram realizados oito encontros com o grupo selecionado, dois para cada tema do roteiro de discussão. As sessões tiveram duração de uma hora e meia, foram gravadas e posteriormente transcritas. Os grupos focais foram realizados de junho a agosto de 2005.

Na pré-análise do material, procedeu-se à leitura flutuante das falas dos participantes e, posteriormente, à análise temática dos dados, conforme Bardin1 e Minayo.8 Após codificação dos dados, resultaram duas categorias - configurações de família e família saudável - que foram interpretadas pela análise de conteúdo.

O estudo trata da "tradição cultural de família presente na comunidade atendida", examinando os relatos referentes ao item 4 do roteiro. Os dois últimos encontros foram centrados nas seguintes questões: O que é uma família? Qual é o papel da família? Qual é o tipo de família mais comum que vocês atendem? O que entendem por família saudável? Entre os diferentes tipos de família, quais os que oferecem maiores dificuldades para a atenção? Também foram identificados, analisados e agregados ao estudo dados relacionados aos tipos de família e família saudável, relatados nos outros seis encontros.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Processo nº058/2004).

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

O material analisado foi dividido em duas categorias principais: arranjos familiares e família saudável. A primeira contemplou a percepção dos profissionais sobre o que é família, seu papel e o tipo de família que atendem no cotidiano. A segunda referiu-se ao que os profissionais compreendiam por família saudável e quais apresentavam maiores dificuldades no desenvolvimento de suas atividades na atenção à saúde.

Arranjos familiares

Observou-se grande diversidade de arranjos familiares como, por exemplo, famílias de casal homossexual com filhos, famílias extensas e famílias reconstruídas morando no mesmo terreno e idosos vivendo em união com parceiros mais jovens: "Tem as mulheres as duas que moram junto (...) vão no posto, andam na rua de mão dada... Na minha área tem duas famílias homossexual..."

Outro tipo de família mencionado referiu-se às mulheres com filhos, morando em prostíbulos: "... um senhor que faz uma casa de tolerância. É igual um casamento. Ele cuida delas (...) umas vão lá com filhos, moram junto".

Os arranjos familiares mencionados e que fazem parte do cotidiano desses profissionais coincidem com aqueles presentes em estudos sobre a organização e dinâmicas da família brasileira. Há muitas razões pelas quais as famílias vêm assumindo diferentes conformações. Moraes9 aponta a modificação da organização do trabalho como um dos fatores envolvidos na transformação da dinâmica familiar. A progressiva urbanização e industrialização do País romperam com a antiga unidade entre casa e local de trabalho, presente na agricultura familiar.9 A unidade produtiva familiar perdeu importância diante do regime de trabalho fabril. O espaço da moradia familiar tornou-se apenas o local de domicílio e consumo. O trabalho doméstico assume a característica de atividade privada, não sendo considerado como ocupação econômica.

As transformações da família e da condição da mulher podem ser observadas na autonomia financeira alcançada pelas mulheres, rompendo com a subordinação econômica da esposa ao marido. A independência financeira da mulher possibilitou a família monoparental feminina, ou assim como o marido, que a mulher fosse provedora da casa, gerando mudanças de papéis familiares.9

Tais mudanças de papéis, presentes no espaço pesquisado, acontecem sob vários aspectos. No aspecto econômico, em que a mulher trabalhava fora de casa e seu salário fazia parte do orçamento da família; na divisão das tarefas domésticas, em que o marido ajudava nos afazeres da casa mesmo quando ele não trabalhava fora; e também situações em que o homem era responsável pela maioria das tarefas e cuidados dos filhos: "... o marido fica em casa, fica fazendo o serviço em casa e a mulher sai para trabalhar, ele faz comida, ele tem uma filha deficiente, né, ele anda com a filha, faz tudo em casa...".

Sarti12 considera que as mudanças ocorridas na família estão relacionadas com a perda do sentido da tradição. Tradicionalmente, os papéis dentro da família eram preestabelecidos e, atualmente, são construídos juntamente com o processo de individualização típico da cultura moderna (individualidade). Isso foi possível, em grande parte, pela possibilidade das mulheres controlarem a reprodução, permitindo a reformulação do seu lugar na esfera privada e pública.12

As mudanças não ocorrem isoladamente. Vários fatores influenciam novos costumes e comportamentos. A questão da urbanização e a conseqüente mudança de local de trabalho, juntamente com mudanças econômicas, levaram a mulher a buscar uma profissão. O fato de a mulher deixar de gerar e criar muitos filhos, com o advento da pílula, possibilitou o controle da reprodução, oportunizando o trabalho fora de casa. Essa autonomia econômica da mulher gerou, conseqüentemente, mudanças culturais.

Diante da diversidade de arranjos familiares, foi examinado como as variadas configurações de família estavam presentes no cotidiano do trabalho dos profissionais do PSF. Os relatos referiram-se a valores morais e preconceitos: "... o que hoje em dia a gente tem que, muitas vezes, encarar como natural, alguns anos atrás era um escândalo para a sociedade (...). Essas pessoas encaram a vida de forma diferente (...). Tem que aprender a lidar, a trabalhar isso".

Predominou nas falas a idéia de tentar não julgar a forma como a família estava organizada, e sim a preocupação em atendê-la na prevenção dos riscos a que estas famílias possam estar expostas. A disposição de aprender a lidar com os diferentes arranjos, independentemente dos valores dos profissionais também esteve presente: "... não cabe a mim achar certo ou errado... Cada um tem seus valores, seus conceitos(...). Tu tem que trabalhar aquilo, claro que a questão da prevenção...".

O modo de encarar os diferentes arranjos determina a atuação dos profissionais nas famílias. As falas denotaram posturas flexíveis, o que propicia práticas mais eficazes. Isso não significa que determinada dinâmica familiar necessite da aprovação do profissional da saúde, mas que este adote uma atitude de abertura e escuta para melhor entender esta dinâmica e conseqüentemente realizar práticas mais satisfatórias em saúde. Szymanski13 observa a importância de se considerar que famílias têm sua cultura própria, seus códigos, suas regras, seus ritos e seus jogos dentro de um contexto de emoções entrelaçadas.

Os profissionais da saúde também desenvolvem uma cultura própria. De acordo com Helman,6 existem as subculturas profissionais, como, por exemplo, a medicina e a enfermagem, formando grupos à parte, com seus próprios conceitos, suas regras e sua organização social. Estes profissionais, segundo o autor, sofrem uma forma de "endoculturação" ao adquirir gradualmente a cultura da carreira que escolheram, assumindo uma perspectiva de vida bastante diferente daquelas dos leigos da profissão, e isso pode interferir tanto na assistência à saúde quanto na relação com o usuário, no caso, a família.

Independentemente dos arranjos familiares existe algo comum entre elas que se pode denominar de significado antropológico. A família aparece como união, suporte, proteção, segurança, sustentação, raízes: "Dá segurança, uma sustentação pra vida, uma direção (...)".

Desse modo, os profissionais entendem a família como um espaço de escuta, de respeito, de divisão de responsabilidades e de compartilhar momentos bons e ruins: "... família é alguém que escuta (...) a gente para pra escutar eles (...) quando tu também encontra alguém que te escute". As falas remetem ao sentido antropológico de família ao indicar elementos necessários ao desenvolvimento integral do indivíduo no âmbito social, emocional, biológico. Esse sentido atribuído à família está de acordo com Ferrari & Kaloustian5, que concebem a família como espaço indispensável para a garantia da sobrevivência, do desenvolvimento e da proteção integral dos seus membros, independentemente da forma como se estrutura.

Família saudável

Essa categoria referiu-se ao que os profissionais consideraram família saudável, sua forma de abordá-las e os limites de suas competências em tratá-las.

Este tema constitui um ponto fundamental para o PSF, pois "a família constitui, talvez, o contexto social mais importante onde a doença ocorre e é resolvida. Ela atua, por conseqüência, como unidade primária na saúde e no cuidado de seus membros".4

Um dos desafios que o profissional da saúde enfrenta é se "a saúde da família significa a soma da saúde dos indivíduos que a compõem ou, a família também é possuidora de um 'estado de saúde' que pode ser identificado, diferente da saúde de seus membros?".4 Elsen4 destaca que a intervenção nas famílias depende do posicionamento do profissional sobre esta questão.

O Grupo da Assistência, Pesquisa e Educação na área da Saúde da Família (GAPEFAM) desenvolveu a seguinte definição de família saudável: "a família saudável se une por laços de afetividade exteriorizados por amor e carinho, tem liberdade de expor sentimentos e dúvidas, compartilha crenças, valores, e conhecimentos...".4

Nessa direção, Ribeiro11 acrescenta que "a assistência em saúde da família requer enfoque multidimensional do ser e viver família, em sua interface com o processo saúde-doença e se concretiza nos diversos ambientes por onde ela transita e em sua cotidianeidade".11

Os profissionais descrevem como família saudável aquelas que tomam iniciativas, buscam soluções: "... são as famílias boas de trabalhar (risadas) (...), que têm uma certa resiliência (...), que tenham uma estrutura pra buscar a sua saúde, pra melhorar, pra manejar coisas mais básicas...".

Os participantes descreveram famílias que se unem em função da doença e, mesmo sem condições materiais, encontram uma forma para enfrentá-la: "... a família toda assumiu em torno de uma doença que aconteceu, mas dá pra considerar saudável porque nenhum deles tá queixoso, de estar cansado, de estar passando as noites em claro...".

As falas remetem à afirmação de Elsen4 que considera que a saúde individual difere de saúde da família, mas que ambas estão interligadas porque famílias saudáveis dão apoio a seus integrantes, são flexíveis a mudanças no seu funcionamento para atender a suas necessidades, propiciam ao indivíduo doente manter aderência ao tratamento, possibilitando sua reabilitação e/ou recuperação da saúde.

Foram referidas também como famílias saudáveis aquelas que estão em situação socioeconômica e de saneamento favorável. Além disso, considerou-se que uma família saudável independe de ser nuclear, monoparental, extensa ou homossexual e a referência dada como importante foi viver bem e haver ajuda mútua: "... são pessoas que vivem bem, bem em paz, e se ajudando mutuamente(...), é muito melhor uma criança ser criada por um casal homossexual do que por um pai e uma mãe que se matam". A idéia de família saudável está de acordo com uma visão multifacetada de compreensão de saúde, abrangendo aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais.

O oposto da família saudável foi descrito como famílias problemáticas, que não buscavam se ajudar e foram classificadas como doentes. Foram consideradas famílias difíceis de se trabalhar e com características transmitidas entre gerações: "... não param no emprego, tem adições (...) vai somando problemas, já não tem uma estrutura, e geralmente são famílias que consultam muito...". As famílias doentes foram caracterizadas pela diminuição ou ausência de reservas físicas, psíquicas, socioculturais e de ambiente físico, impedindo de equilibrar a sua vida diante de uma dificuldade ou de um fato novo.2

Vasconcelos14 aponta a existência de famílias que vivem situações de crise, colocando em risco a vida de seus membros, e aponta para alguns indicadores dessas situações, semelhantes às citadas pelos participantes deste estudo. Para o autor, estas famílias necessitam "de visitas e estudos para melhor caracterizar a situação e verificar a necessidade de apoio sistemático que se centra na dinâmica global da família e não apenas em membros isolados".14 A família saudável, portanto, não se resume à ausência de doenças, até porque a presença de um ou mais indivíduos doentes não significa que a família não possa ser considerada saudável. O seu estado saudável está na busca da reorganização diante da doença.

Quanto ao modo de abordagem às famílias, prevaleceu a idéia de trabalhar toda a família. O profissional buscava conhecer a estrutura familiar, quem era o suporte, a "cabeça" da família para poder trabalhar a família inteira: "... ver quem é o suporte principal dessa família. Em cima deste suporte você tem que trabalhar o resto dessa família. (...), consegui um vínculo com aquela família (...), conhecer a estrutura familiar...".

Os participantes relataram que procuravam não tomar partido entre os membros da família e tentar trabalhar a relação entre eles. Tentava-se conseguir um vínculo com a família. No caso de conflito ou dificuldade em abordar a família, prorrogava-se a intervenção até que a equipe encontrasse uma forma mais adequada de intervenção: "... às vezes a gente prorroga a outra reunião (...) pra daqui a 15 dias pra poder pensar... a gente deixa de molho um mês... Opa! agora vamos falar". Os relatos mostram posturas que estão de acordo com as premissas do PSF de trabalhar o indivíduo em relação.

Segundo Ribeiro,11 em certos casos, espera-se muito quanto aos papéis, deveres, responsabilidades da família e quanto à educação em saúde no tratamento e cuidado ao paciente. A exaustão e os efeitos nocivos dessa condição a que é submetida à família, nem sempre são percebidos ou considerados pelos profissionais.

Algumas abordagens às famílias adotadas pelo PSF, "por não dialogarem entre si ou não se complementarem, acabam por compor um quadro de diversidades/parcialidades, produzindo a questão conseqüente: como alcançar a integralidade do cuidado, se quem será cuidado não está suficientemente identificado?".11 Isso aponta a necessidade de conhecer o contexto familiar, seus recursos e limitações como fator decisivo para uma abordagem adequada, não repassando para a família atribuições às quais não estão capacitadas.

Os depoimentos dos profissionais trazem um questionamento sobre o limite da competência do profissional em tratar as questões familiares. Os profissionais se interrogam quanto a sua capacitação e competência para atender uma demanda que vai desde as questões mais elementares de saúde até a delegação de tarefas familiares: "... essas questões que envolvem a família (...) extrapolam até a nossa capacitação (...). A gente trabalha com recursos também de certa forma pessoais limitados...".

Não só a família que está com problemas recorre aos profissionais do PSF, mas também pessoas da comunidade quando percebem que algum morador do bairro está com algum tipo de dificuldade e não tem capacidade de resolver: "...nem é a família que veio pedir ajuda, a comunidade quer que faça alguma coisa, né, porque, na verdade, a responsabilidade seria de quem? Da família".

Os profissionais reconheceram a educação em saúde como uma de suas funções, mas relataram que eram cobrados pela comunidade por questões que extrapolam esta função: "...eu não posso resolver o problema que ela não tem onde deixar o filho (para trabalhar)...". São chamados pelos vizinhos para resolver brigas familiares, casos que seriam de "polícia".

Conforme Marsiglia,7 as equipes de saúde da família vêm sendo preparadas para desenvolver novas habilidades facilitadoras de formação de vínculos com as famílias atendidas. Entretanto, pouco se faz para prepará-las para essas abordagens, como se isso fosse decorrente de um talento inato de cada um ou das experiências pessoais, ou, ainda, que a questão não fosse objeto de conhecimento especializado.7

As equipes relataram também a necessidade de incorporação de profissionais de outras áreas como assistente social e psicólogo para auxiliar no atendimento as famílias: "... E a agente acaba fazendo o que não é da nossa alçada, seria da assistente social...".

Embora considerando a importância da presença de integrantes de outras áreas nas equipes de PSF, deve-se levar em conta o questionamento "se as exigências que se fazem hoje para os profissionais que atuam no Programa de Saúde da Família não estejam a apontar para a necessidade de constituição de novas especialidades no interior das profissões da área da saúde".7

Além de agregar profissionais de outras áreas e investir em cursos de especialização, soma-se a importância da inclusão da comunidade para a resolução dos problemas por meio da educação em saúde. Esta deve estar pautada por um diálogo mais horizontalizado, considerando o saber popular e estimulando a autonomia das pessoas. Vasconcelos14 destaca que o saber das classes populares deve ser valorizado como ponto de partida do processo pedagógico, permitindo que o educando se sinta "em casa" e mantenha sua iniciativa. Agrega-se a isso a necessidade de considerar as potencialidades das redes de apoio social. O PSF não deve constituir-se isolado dos outros segmentos da sociedade. É importante que esteja articulado com os setores que constituem a comunidade. Assim, a proposta do atendimento integral às famílias, estará mais próxima da proposta do PSF.

CONCLUSÕES

A multiplicidade de arranjos familiares descritas encontram nos profissionais que as atendem a disposição em aprender a lidar com esta realidade, independentemente de estar ou não de acordo com seu modelo de vida familiar. Os profissionais tentam adequar o tratamento conforme as necessidades específicas de cada arranjo familiar.

Os profissionais descrevem características do que consideram ser uma família saudável, destacando a capacidade da família de se organizar e buscar soluções para as situações que causam desequilíbrio, independentemente de como está estruturada. Denominam também o que consideram família não-saudável, remetendo-se àquelas sem recursos para enfrentar dificuldades e aquelas difíceis de tratar.

Os profissionais sofrem inquietações diante da demanda de responsabilidades que fogem à sua capacidade de intervenção. Encontram-se, muitas vezes, encurralados entre as exigências administrativas de resultados quantificáveis preconizados pelo programa e as necessidades demandadas pelas famílias. Tais exigências os levam a sentir a importância de complementar a equipe com profissionais de outras áreas.

Outra questão é a insuficiência de capacitação para dar conta dos problemas enfrentados. Diante da complexidade da demanda atendida no PSF, outras habilidades precisam ser desenvolvidas. A formação do profissional da saúde deve capacitá-los para o novo modelo de assistência à saúde, com ênfase não mais no atendimento das necessidades físicas (doença) dos pacientes, e sim em todas as dimensões que envolvem o indivíduo e o processo saúde/doença.

Os resultados do presente estudo indicam a importância de avançar no conhecimento de indicadores de família saudável e de elementos que envolvem uma consulta familiar, temas que necessitam de maior aprofundamento para qualificar as práticas dos profissionais do PSF.

Recebido: 20/09/2007

Revisado: 7/3/2008

Aprovado: 18/6/2008

Artigo baseado na dissertação de mestrado de Gabardo RM apresentada à Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em 2006.

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  • Correspondência | Correspondence:

    Roseclér Machado Gabardo
    Catedra Unesco de Bioética
    Campos Universitário Darci Ribeiro
    Cx. Postal 04451
    70904-970 Brasília, DF, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Fev 2009

    Histórico

    • Aceito
      18 Jun 2008
    • Recebido
      20 Set 2007
    • Revisado
      07 Mar 2008
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