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Fatores contribuintes aos acidentes aeronáuticos

Factores contribuyentes de accidentes aeronáuticos

Resumos

O objetivo do estudo foi comparar os resultados de investigações de acidentes aeronáuticos brasileiros do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) com os do sistema de análise e classificação de fatores humanos (Human Factors Analysis and Classification System - HFACS). Foram analisados e comparados os relatórios finais de 36 investigações de acidentes aeronáuticos ocorridos entre 2000 e 2005, no estado de São Paulo. Foram mencionados 163 fatores contribuintes dos acidentes aeronáuticos nos relatórios do Cenipa, enquanto 370 foram identificados por meio do HFACS. Conclui-se que as análises do Cenipa não contemplaram fatores organizacionais associados aos acidentes aéreos.

Acidentes Aeronáuticos; Acidentes de Trabalho; Avaliação; Fatores de Risco


El objetivo del estudio fue comparar los resultados de investigaciones de accidentes aeronáuticos brasileños del Centro de Investigación y Prevención de Accidentes Aeronáuticos (CENIPA) con los del sistema de análisis y clasificación de factores humanos (Human Factors Analysis and Classification System - HFACS). Se analizaron y compararon los informes finales de 36 investigaciones de accidentes aeronáuticos ocurridos entre 2000 y 2005, en el estado de Sao Paulo, Sureste de Brasil. Se mencionaron 163 factores contribuyentes de accidentes aeronáuticos en los informes del CENIPA, mientras que 370 fueron identificados por medio del HFACS. Se concluye que los análisis del CENIPA no contemplaron factores organizacionales asociados con los accidentes aéreos.

Accidentes de Aviación; Accidentes de Trabajo; Evaluación; Factores de Riesgo


The objective of the study was to compare the results of aviation accident analyses performed by the Center for Investigation and Prevention of Aviation Accidents (CENIPA) with the method Human Factors Analysis and Classification System (HFACS). The final reports of thirty-six general aviation accidents occurring between 2000 and 2005 in the State of São Paulo, Southeastern Brazil were analyzed and compared. CENIPA reports mentioned 163 contributive factors, while HFACS identified 370 factors. It was concluded that CENIPA reports did not contemplate the organizational factors associated with aviation accidents.

Accidents, Aviation Accidents; Occupational Accidents; Evaluation; Risk Factors


COMENTÁRIOS

Fatores contribuintes aos acidentes aeronáuticos

Factores contribuyentes de accidentes aeronáuticos

Marcia FajerI; Ildeberto Muniz de AlmeidaII; Frida Marina FischerIII

IPrograma de Pós-Graduação em Saúde Pública. Faculdade de Saúde Pública (FSP) Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

IIDepartamento de Saúde Pública. Faculdade de Medicina de Botucatu. Universidade Estadual Paulista. Botucatu, SP, Brasil

IIDepartamento de Saúde Ambiental. FSP-USP. São Paulo, SP, Brasil

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Marcia Fajer R. do Rocio, 450, Apto 12 C - Vila Olímpia 04552-000 São Paulo, SP, Brasil E-mail: mcafajer@usp.br

RESUMO

O objetivo do estudo foi comparar os resultados de investigações de acidentes aeronáuticos brasileiros do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) com os do sistema de análise e classificação de fatores humanos (Human Factors Analysis and Classification System - HFACS). Foram analisados e comparados os relatórios finais de 36 investigações de acidentes aeronáuticos ocorridos entre 2000 e 2005, no estado de São Paulo. Foram mencionados 163 fatores contribuintes dos acidentes aeronáuticos nos relatórios do Cenipa, enquanto 370 foram identificados por meio do HFACS. Conclui-se que as análises do Cenipa não contemplaram fatores organizacionais associados aos acidentes aéreos.

Descritores: Acidentes Aeronáuticos. Acidentes de Trabalho. Avaliação. Fatores de Risco.

RESUMEN

El objetivo del estudio fue comparar los resultados de investigaciones de accidentes aeronáuticos brasileños del Centro de Investigación y Prevención de Accidentes Aeronáuticos (CENIPA) con los del sistema de análisis y clasificación de factores humanos (Human Factors Analysis and Classification System - HFACS). Se analizaron y compararon los informes finales de 36 investigaciones de accidentes aeronáuticos ocurridos entre 2000 y 2005, en el estado de Sao Paulo, Sureste de Brasil. Se mencionaron 163 factores contribuyentes de accidentes aeronáuticos en los informes del CENIPA, mientras que 370 fueron identificados por medio del HFACS. Se concluye que los análisis del CENIPA no contemplaron factores organizacionales asociados con los accidentes aéreos.

Descriptores: Accidentes de Aviación. Accidentes de Trabajo. Evaluación. Factores de Riesgo.

INTRODUÇÃO

A aviação é uma atividade de transporte que envolve distintos níveis de operação e tarefas interligadas, algumas de elevada complexidade e sujeitas a numerosos estressores ocupacionais.4

O estado de São Paulo concentra a maior parte da atividade aérea do Brasil, principalmente da aviação geral, como aeronaves de instrução, executivas, taxis-aéreos, serviços aéreos especiais e aviação agrícola.

A análise dos acidentes aeronáuticos no Brasil é realizada por um órgão militar, o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), que se baseia em legislação internacional da Organização da Aviação Civil Internacional. Essas análises abordam fatores agrupados (materiais, operacionais e humanos) que resultam em visão multicausal dos acidentes. Todavia, esses estudos restringem-se ao sistema homem-máquina e não são investigadas falhas decorrentes de questões organizacionais.

Reason3 (2005) considera que acidentes são resultantes de combinações, nem sempre previsíveis, de fatores humanos e organizacionais dentro de um sistema complexo. Seu modelo de acidente organizacional explica esses eventos com a ocorrência de falhas ou faltas de barreiras e salvaguardas desenvolvidas no sistema para minimizar a chance de acidentes. As falhas ativas acontecem nas proximidades do desfecho do acidente envolvendo comportamentos (decisões, ações ou omissões) de operadores e são de difícil previsão e controle. Essas falhas ativas têm origens em condições latentes relacionadas a fatores técnicos e organizacionais presentes no sistema bem antes da ocorrência de acidentes. O modelo de Reason inclui ainda a demonstração da possibilidade de acidentes sem a ocorrência de falhas ativas, i.e., desencadeados diretamente a partir de interações entre condições latentes.1

Com base no modelo de Reason, o modelo Human Factors Analysis and Classification System (HFACS) tem sido utilizado para análise de acidentes, pois permite identificar um grande número de fatores contribuintes para a ocorrência de acidentes.4

O objetivo do presente estudo foi comparar os resultados de investigações de acidentes aeronáuticos brasileiros da aviação geral pelo Cenipa com o modelo HFACS.

MÉTODOS

Foram utilizados relatórios finais dos acidentes com as aeronaves da aviação geral ocorridos no estado de São Paulo, entre 2000 e 2005, concluídos pelo Cenipa até dezembro de 2008. A escolha pelo estado ocorreu em por comportar o maior número de aeronaves do País (28%) e por possuir todas as categorias da "aviação geral". A aviação comercial não foi incluída devido às grandes diferenças nas características da operação.

Os dados foram obtidos a partir de relatórios finais emitidos pelo Cenipa com informações sobre os acidentes aeronáuticos: dados dos acidentes [histórico, danos causados, pessoal envolvido, aeronave, condições meteorológicas, navegação, comunicação, aeródromo, impacto, destroços, fogo, sobrevivência, gravadores de vôo, aspectos operacionais, fatores humanos (fisiológico e psicológico)] e o que foi investigado (análises, conclusões e recomendações de segurança de vôo). Os dados sobre fatores contribuintes dos acidentes presentes nos relatórios finais do Cenipa foram obtidos da seção conclusão.

O modelo HFACS utilizado foi baseado em Shapell et al4 (2007) e tem como suporte a Teoria de Reason.3 Esse modelo foi escolhido para comparação com aquele utilizado pelo Cenipa por ter sido usado na investigação de acidentes da aviação geral nos Estados Unidos e possibilitar a avaliação de maior número de fatores contribuintes.

Os fatores considerados no modelo HFACS são: influências organizacionais (clima organizacional, processo organizacional, gestão de recursos), supervisão insegura (supervisão inadequada, planejamento inadequado das operações, falha em corrigir problemas conhecidos, violações de fiscalização), condições prévias de atos inseguros (fatores ambientais físicos e tecnológicos), condições do operador (estado mental e fisiológico adversos, limitações físicas e mentais), fatores pessoais (gestão da tripulação a bordo e prontidão pessoal) e atos inseguros (erros de decisão, de habilidade e de percepção, e violações de rotina e excepcionais).

RESULTADOS

No período, aconteceram 74 acidentes da aviação geral. Os relatórios finais de 38 desses acidentes não haviam sido divulgados, resultando na análise de 36. A proporção de distribuição dos relatórios finais foi: 2000 (27,8%); 2001 (22,2%); 2002 (19,5%); 2003 (16,7%); 2004 (11,1%) e 2005 (2,8%).

A distribuição dos casos por categoria de operação mostrou que 44,5% envolviam operadores de serviço aéreo privado, 25%, aeronaves privadas de instrução, 16,7%, serviços aéreos especiais, 11,1%, táxis aéreos e 2,8%, transporte aéreo público.

Os acidentes incluíram 114 pessoas, das quais 50% eram tripulantes, 41,2% passageiros e 8,8% outras vítimas. Para 42,1% dos envolvidos as lesões foram fatais, 8,7% foram graves, 26,3% leves e 22,8% ficaram ilesos.

A distribuição por tipo de ocorrência foi: falha de motor em vôo (33,3%), colisão em vôo com obstáculo (30,5%), perda de controle em vôo (16,7%), perda de controle em solo (5,5%), falha de comando em vôo (2,8%), fenômeno meteorológico (2,8%), colisão no solo com obstáculo (2,8%), falha de sistema (2,8%) e desorientação espacial (2,8%).

Os fatores contribuintes apontados nos relatórios finais do Cenipa foram categorizados como fator humano (10,4%) e operacional (89,6%) e não foram identificadas falhas do fator material. O total de fatores contribuintes no modelo utilizado pelo Cenipa foi de 163, resultando em média de 4,52 fatores por acidente. A distribuição desses fatores considerando as freqüências de citações foi: deficiente julgamento (80,5%), deficiente planejamento (66,7%), deficiente supervisão (66,7%), aspecto psicológico (44,4%), indisciplina de vôo (38,9%), deficiente coordenação de cabine (30,5%), condições meteorológicas adversas (25%), pouca experiência (22,2%), deficiente aplicação de comando (22,2%), outros aspectos operacionais (19,4%), deficiente manutenção (16,7%), deficiente instrução (8,3%), influência do meio ambiente (5,5%), esquecimento (2,8%) e aspecto fisiológico (2,8%).

O total de fatores contribuintes foi de 370, com média de 10,3 por acidente, com as seguintes distribuições por categorias segundo tipos de eventos: atos inseguros (36%), supervisão insegura (28,3%), influências organizacionais (18,1%), e condições prévias de atos inseguros (17,6%) (Figura).


DISCUSSÃO

Os principais fatores contribuintes observados nos modelos de análise HFACS e Cenipa foram "deficiente julgamento" e "erro de decisão". Em ambos os métodos, o fator principal foi falhas de operadores (pilotos) e, em segundo lugar, deficiente supervisão, no modelo do Cenipa, e supervisão insegura, no HFACS. É possível que a elevada freqüência de falhas atribuídas às práticas de supervisão nos dois casos reflita a influência de práticas tradicionais na formação e experiência dos analistas.

Os resultados sugerem que a segurança seja compreendida como produto da adesão às regras e/ou ao jeito certo de executar as tarefas, e que essas práticas sejam garantidas, entre outros fatores, pela implantação de treinamentos e da supervisão.²

A pequena proporção de casos atribuídos a falhas mecânicas está em consonância com a literatura que trata das histórias da aviação e da segurança. Pariès & Amalberti5 mostraram que as taxas de acidentes tendem a ser maiores nos primeiros anos de introdução de novas tecnologias, seguidas de rápidas reduções até patamares inferiores aos obtidos na situação anterior.

A média dos fatores contribuintes inferior a cinco nos acidentes do modelo mostrou que, pelas análises do Cenipa, os acidentes tendem a ser abordados como eventos paucicausais e simples, dado o número de fatores associados. Isso acontece quando a análise tende a se concentrar em fatores próximos ao desfecho do acidente, sem explorar suas origens em profundidade ou sem adotar procedimentos explícitos de sistematização da coleta de dados ou da organização dos achados obtidos.¹

Segundo o HFACS, esses acidentes tiveram número médio de fatores contribuintes superiores (mais que o dobro) ao da análise do Cenipa, com identificação de fatores organizacionais ligados à gestão de recursos humanos que não foram observados na avaliação do Cenipa. Essa diferença pode ser explicada, em parte, pelo fato de o modelo HFACS estimular a exploração e organização sistemática dos achados.

Para Leveson,² a investigação de acidentes deve adotar visão ampla do ocorrido, incluindo informações que aumentem o perímetro das análises para além dos eventos proximais, explorando deficiências estruturais na organização, a gestão das deficiências e as falhas na cultura da segurança do sistema ou da sociedade.

Os achados de influências organizacionais em análises conduzidas com o método HFACS devem ser interpretados inicialmente como indícios da efetiva contribuição de aspectos dessa dimensão nas origens dos acidentes analisados.

Na lista de fatores contribuintes do Cenipa, destacam-se aspectos centrados em pessoas e naqueles representados no grupo dos fatores operacionais. Estes últimos foram considerados nas análises realizadas pelo Cenipa em conjunto com os demais do grupo dos fatores humanos. A construção de instrumentos de análise de acidentes que explicitem tanto a natureza relacional quanto a existência de interações de diversos dispositivos técnicos em comportamentos em situação de trabalho ainda é um desafio.

Uma das contribuições práticas deste estudo é de que a forma apresentada da análise dos acidentes aéreos, particularmente o modelo utilizado pelo Cenipa, não mostra indícios de que o sistema esteja se apropriando da contribuição dos estudos que enfatizam a necessidade de explicar os acidentes. Ou seja, explorando as origens latentes ou incubadas desses eventos na história do sistema, ou, ainda, discutindo seus achados com apoio de disciplinas como as Ciências Sociais, a Psicologia Cognitiva, a Ergonomia, a Antropologia, a Engenharia de Sistemas.

Recebido: 3/3/2010

Aprovado: 25/8/2010

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

  • 1. Almeida IM. Trajetória da análise de acidentes: o paradigma tradicional e os primórdios da ampliação da análise. Interface (Botucatu). 2006;10(19):185-202. DOI:10.1590/S1414-32832006000100013.
  • 2. Leveson NG. A new approach to system safety engineering. Massachusetts: Institute of Technology; 2002.
  • 3. Reason J. Safety in the operating theatre - Part 2: Human error and organizational failure. Qual Saf Health Care. 2005;14(1):56-60.
  • 4. Shappell S, Detwiler C, Holcomb K, Hackworth C, Boquet A, Wiegmann DA. Human error and commercial aviation accidents: an analysis using the human factors analysis and classification system. Human Factors. 2007;49(2):227-42. DOI:10.1518/001872007X312469
  • 5. Pariès J, Amalberti R. Aviation Safety Paradigms and Training Implications In: Sarter NB, Amalberti R. Cognitive Engineering in the Aviation Domain. London: Lawrence Erlbaum Associates Publishers; 2000. p. 253-286.
  • Correspondência | Correspondence:
    Marcia Fajer
    R. do Rocio, 450, Apto 12 C - Vila Olímpia
    04552-000 São Paulo, SP, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Aceito
      25 Ago 2010
    • Recebido
      03 Mar 2010
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