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Sobre fazer ciência na pesquisa qualitativa: um exercício avaliativo

Doing science in qualitative research: an evaluation exercise

CARTA AO EDITOR

Sobre fazer ciência na pesquisa qualitativa: um exercício avaliativo

Doing science in qualitative research: an evaluation exercise

Campinas, 20 de novembro de 2011.

Prezado editor,

Sabe-se que a pesquisa qualitativa, por ser um método compreensivo-interpretativo por excelência, permite a criação de um modelo de entendimento que possibilita a significação de fenômenos relevantes.4 Para responder dada questão de pesquisa, é importante a adequada escolha do método empregado e da apresentação de seus resultados, visando ao fortalecimento das investigações qualitativas no campo da saúde. Assim, um instrumento de avaliação de manuscritos qualitativos tem sido utilizado para uniformizar critérios dessa avaliação, superando fragilidades, e garantindo o rigor e a pertinência dos achados científicos. O guia RATS,1 recomendado pela própria Revista de Saúde Pública (RSP) como instrumento de avaliação de artigos, é dividido em quatro blocos - relevância, apropriação do método qualitativo, transparência, consistência da interpretação e análise - e possibilita um maior rigor teórico-metodológico, importante para a legitimação das pesquisas de natureza qualitativa.

Valendo-nos da aplicação reflexiva do guia RATS na disciplina Estudos Avançados em Pesquisa Qualitativa em Saúde Coletivaª a Disciplina do programa de doutorado em Saúde Coletiva da FCM/UNICAMP, que objetiva o desenvolvimento de competências na formulação de estudos qualitativos e na realização de leitura crítica da produção científica, abrangendo as principais correntes teóricometodológicas do campo. sobre o artigo "Condições de vida de portadores de transtornos psicóticos vivendo em cortiços em Santos, SP" (Rev Saúde Pública 2011; 45(4): 693-9),2 entendemos que considerações merecem ser pontuadas.

Ressaltamos a relevância da temática proposta, mas os achados apresentados não são comparados com estudos semelhantes no País e no mundo, o que dificulta a compreensão da contribuição da pesquisa. Contudo, falta clareza na definição do objetivo, havendo uma divergência deste com o título do trabalho, o que fragiliza a argumentação e o caminho metodológico escolhido pelos autores.

O artigo está bem estruturado, porém, a pouca atenção à transparência expõe a questão crítica da confiabilidade nos estudos qualitativos.

Muito prejudicial para o estudo a falta de transparência referente à constituição do grupo pesquisado - critérios de seleção dos participantes, inserção e implicação dos pesquisadores e sua relação com os sujeitos. Salientamos que, na pesquisa qualitativa, essa seleção é intencional, o que exige a explicitação de seu processo constitutivo e da implicação do pesquisador, visto que os resultados traduzem sua particular interpretação sobre os fatos.

Com relação às técnicas de coleta de dados, falta clareza quanto à conceituação de termos como "observações etnográficas densas" e "entrevista semiestruturada em profundidade", e quanto ao tempo e frequência com que os pesquisadores foram a campo, bem como quanto à forma com que foram registrados os dados, o que prejudica a visualização de possíveis fragilidades no estudo. A coleta de dados foi interrompida por saturação das informações, mas não é possível compreender por qual de suas modalidades justificou-se a interrupção, o que dá margem a interpretações imprecisas acerca do desenho metodológico.

Nos resultados, não há menção acerca dos pontos fortes e limitações do estudo, o que dificulta a contextualização do objeto investigado e do desdobramento da pesquisa.

O que propomos aqui não é uma discussão sobre técnicas qualitativas de pesquisa, mas sobre maneiras de se fazer ciência.3 Move-nos a escrever o fato de termos observado com interesse e expectativa a crescente publicação, pela RSP, de artigos qualitativos, e nos ladeamos a esse esforço, por entender que o cuidado com a qualidade dessa modalidade de investigação transcende a mera realização de um checklist. Em tese, se é possível preencher os itens com uma miríade de termos prontos (análise de conteúdo, amostragem intencional etc.), a banalização desse uso, sem o necessário aprofundamento e domínio conceitual-epistemológico, prejudica a compreensão do leitor acerca dos procedimentos realizados na pesquisa e compromete a validade dos resultados apresentados. Tal postura não contribui para a avaliação da qualidade dos artigos, expondo o método qualitativo a vulnerabilidades teórica, conceitual e prática, o que prejudica sua consolidação como produtora de conhecimento e transformação social.

Ana Luiza de Oliveira e Oliveira

(aluloli@gmail.com)

Rosana Onocko Campos

Ana Kalliny de Sousa Severo

Antonio Rodrigues Ferreira Júnior

Cecília de Castro e Marques

Diene Monique Carlos

Girliani Silva de Sousa

Isabella de Oliveira Campos

Lucia Cristina dos Santos Rosa

Luciana Togni de Lima e Silva Surjus

Renata Cristina Sobral Dias

Rosana Aparecida Garcia

Rosemeire de Olanda Ferraz

Sabrina Stefanello

Sérgio Xavier de Camargo

Verônica Gronau Luz

Universidade Estadual de Campinas

RESPOSTA DOS AUTORES

Santos, 18 de janeiro de 2012.

Prezados editores,

A qualidade dos artigos publicados em revistas científicas preocupa a todos os pesquisadores sérios. Agradecemos a oportunidade de comentar a reflexão da carta "Sobre fazer ciência na pesquisa qualitativa: um exercício avaliativo", e dessa forma aprofundar a discussão sobre sua avaliação.

O estudo "Condições de vida de portadores de transtornos psicóticos vivendo em cortiços em Santos"4 é original e, como não encontramos outro semelhante publicado, o nosso diálogo foi com os estudos bem conduzidos e cujo objeto se assemelhava ao nosso. O estudo, entretanto, foi considerado não relevante sob o argumento de que não houve comparação com estudos semelhantes. A pergunta que nos colocamos é se a relevância de uma produção científica, sobretudo na área da saúde, deve ficar restrita a sua capacidade de ser comparável ou pelo fato de produzir conhecimento importante para a promoção da saúde.

O ideal seria a resposta sim para as duas; entretanto, o método qualitativo, dentro do referencial teórico antropológico, considera a resposta sim à primeira pergunta irrelevante. Ela pressuporia que o resultado encontrado num determinado grupo, com determinada cultura, seria generalizável para qualquer outra. A questão da generalização, tão cara aos estudos quantitativos, não pode ser utilizada aqui, e isso não tira a sua relevância e mostra a sua importância quando o objeto de estudo é inacessível aos métodos cujas medidas são estabelecidas a priori.

A transparência também foi objeto de crítica. Uma leitura atenta do artigo mostrará que na constituição do grupo pesquisado contávamos com 20 cortiços e somente quatro aceitaram participar. Os motivos podem ser encontrados no texto. Em síntese, as condições para a realização da pesquisa não eram favoráveis, pois envolviam pessoas portadoras de transtornos mentais graves, moradoras de uma região com tráfico de drogas e prostituição. Portanto, não se tratava de uma população de fácil acesso ou aberta aos pesquisadores, e os trabalhos foram desenvolvidos por profissionais com experiência nos cortiços da região.

Nas Ciências Sociais e Humanas em saúde é comum a publicação de artigos. Todavia, essa forma de publicação exige limites de conteúdo e não permite expor os "ossos do oficio" da pesquisa.3 Essa limitação é particularmente sentida na explicitação do método, item também criticado no nosso artigo. Sem dúvida seria mais interessante se todos os detalhes pudessem ser descritos. Não sendo possível, utilizamos as referências bibliográficas que definiam o referencial teórico, os termos e procedimentos utilizados. Ressaltamos que a interpretação dos dados se fundamentou no conceito de cultura e o critério de saturação (aqui traduzido para a área da saúde) é a expressão do contexto cultural no qual se inserem os participantes.

Ao ser utilizado nosso artigo para uma reflexão sobre a avaliação das publicações, pareceu-nos que o grande problema está na tentativa de homogeneização do termo "pesquisa qualitativa". Isso é um equívoco, pois existe uma variedade que decorre da diversidade de formação dos pesquisadores e dos referenciais teóricos adotados.

Preocupa-nos o fato de a avaliação do artigo se sustentar em critérios quantitativos, de certa forma vestidos com roupagem qualitativa. Para discutir o método em profundidade é necessário considerar a historicidade, a autoridade e os preconceitos do pesquisador,1 a relação assimétrica entre pesquisador e pesquisado,5 as tensões morais,2 entre outras questões. Não caberiam no artigo nem se enquadram em checklists. Seu uso, sem embasamento teórico, empobrece a compreensão da ciência e a torna estereotipada.

Em um momento em que a produtividade científica é exacerbada, devemos nos preocupar com criatividade, inovação e rigor científico. Elogiamos o esforço da RSP em inserir pesquisas qualitativas em seu conteúdo e de encaminhar os artigos para pareceristas que têm familiaridade com o tema, avaliando-os na sua diversidade e complexidade.

Denise Martin

(demartin@unisantos.br)

Sergio Baxter Andreoli

Rosa Maria Ferreiro Pinto

Tânia M. H. Barreira

Universidade Católica de Santos

REFERÊNCIAS

ERRATA

Nome de autor:

Onde se lê "Antonio Rodrigues Ferreira", leia-se "Antonio Rodrigues Ferreira Júnior".

Author's name:

Where it reads "Antonio Rodrigues Ferreira", it should read "Antonio Rodrigues Ferreira Júnior".

  • 1. Clark JP. How to peer review a qualitative manuscript. In: Godlee F, Jefferson T; editors. Peer Review in Health Sciences. London: BMJ Books; 2003. p.219-35.
  • 2. Martin D, Andreoli SB, Pinto RMF, Barreira TMHM. Condições de vida de portadores de transtornos psicóticos vivendo em cortiços em Santos, SP. Rev Saude Publica. 2011;45(4):693-9. DOI:10.1590/S0034-89102011000400008
  • 3. Martins HHTS. Metodologia qualitativa de pesquisa. Educ Pesq. 2004;30(2):289-300. DOI:10.1590/S1517-97022004000200007
  • 4. Turato ER. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Rev Saude Publica. 2005;39(3):507-14. DOI:10.1590/S0034-89102005000300025
  • 1. Gadamer HG. Verdad y método I. Salamanca: Ediciones Sigueme; 1993.
  • 2. Geertz C. O pensamento como ato moral: dimensões éticas do trabalho de campo antropológico nos países novos. In: Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar; 2001. p.30-46.
  • 3. Martin D, Andreoli SB, Pinto RMF, Barreira TMHM. Condições de vida de portadores de transtornos psicóticos vivendo em cortiços em Santos, SP. Rev Saude Publica. 2011;45(4):693-9. DOI:10.1590/S0034-89102011000400008
  • 4. Martin D. Refletindo a formação interdisciplinar na pós-graduação. Saude Soc. 2011;20(1):57-65. DOI:10.1590/S0104-12902011000100008
  • 5. Oliveira RC. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Editora UNESP; 2006.
  • a
    Disciplina do programa de doutorado em Saúde Coletiva da FCM/UNICAMP, que objetiva o desenvolvimento de competências na formulação de estudos qualitativos e na realização de leitura crítica da produção científica, abrangendo as principais correntes teóricometodológicas do campo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012
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