INTRODUÇÃO
O governo brasileiro mostra grande interesse em reduzir a mortalidade infantil nas três últimas décadas, com a implantação de programas, projetos e planos.25, aEssas ações, junto com a importante queda da fecundidade nesse período, contribuíram para o declínio no seu coeficiente. Entretanto, persistem óbitos infantis considerados evitáveis no País. 9, 12, 13
Há estreita relação entre mortalidade infantil evitável e acesso oportuno aos serviços de saúde, uma vez que os óbitos evitáveis são conceituados, segundo Rutstein et al 19 (1976), como: “mortes que poderiam ter sido evitadas, parcial ou totalmente, pela presença de serviços de saúde efetivos”. A ênfase é maior quando o cenário dos óbitos é uma cidade pólo regional de saúde, que constitucionalmente deve prover universalidade do acesso e integralidade da atenção dentro dos preceitos do Sistema Único de Saúde (SUS).25, a
As políticas de atenção à saúde da criança, em consonância com esses princípios, propõem assistência resolutiva, com acolhimento, humanização, atuação em equipe, intersetorialidade e responsabilização pela criança por toda a atenção básica, preferencialmente ofertada pela Estratégia de Saúde da Família (ESF) e pelo Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). O objetivo é promover a saúde e reduzir a mortalidade infantil. bO acompanhamento da criança no primeiro ano de vida é dever da equipe de saúde, que identifica os critérios de risco de adoecer e morrer ao nascer (baixo peso, prematuridade, hipóxia, mãe adolescente, de baixa escolaridade e história de morte em menor de cinco anos na família), e define os atendimentos médicos prioritários. cA esses critérios associam-se hospitalização anterior, atraso vacinal, residência em área de risco, ausência de renda e dependência química.
Acompanhando o padrão nacional, o Coeficiente de Mortalidade Infantil (CMI) do Recife, PE, apresenta redução progressiva (CMI = 13 óbitos/1.000 nascidos vivos em 2007), semelhante à de cidades brasileiras mais desenvolvidas, como Rio de Janeiro, RJ, São Paulo, SP, e Belo Horizonte, MG. Entretanto, 86% dessas mortes poderia ter sido evitada por ações do setor saúde ou por suas parcerias com outros setores sociais. Isso sugere a existência de barreiras de acesso às ações e serviços de saúde. d
A extensa literatura que relaciona a mortalidade infantil evitável ao acesso aos serviços de saúde utiliza como principal ferramenta de investigação os métodos epidemiológicos ou avaliativos. Esses métodos mostram a magnitude do problema, 9, 12, 13, 23 mas não aprofundam a perspectiva dos atores sociais (usuários, profissionais) ou fatores contextuais (políticas e características da oferta) que influem sobre o acesso.
A maioria dos estudos qualitativos centra-se nas barreiras de desempenho profissional relacionadas ao acolhimento e vínculo, 21, 22 ou na perspectiva materna do óbito infantil, 10, 15, 20 e poucos analisam a influência das barreiras de acesso na persistência desses óbitos evitáveis ou não incluem a visão de todos os atores envolvidos.
O acesso à atenção em saúde refere-se à possibilidade de as pessoas obterem cuidados de saúde quando necessitem, de maneira fácil e conveniente. 1 Como o acesso só se concretiza quando os serviços são realmente utilizados por quem deles necessita, o modelo teórico de Aday & Andersen2(1974) analisa os fatores que influem na utilização dos serviços, definindo as duas dimensões mais importantes de acesso: potencial erealizado. O acesso potencial relaciona-se às características da oferta (disponibilidade e organização dos serviços) e dos usuários: fatores predisponentes (características sociodemográficas, crenças e atitudes, nível de informação); fatores capacitantes (pessoal e comunitário) e necessidades de atenção em saúde. O acesso realizado refere-se à utilização de fato dos serviços.2
O objetivo deste estudo foi analisar fatores que influenciam a mortalidade infantil evitável na perspectiva de todos os atores envolvidos no fenômeno.
MÉTODOS
Estudo qualitativo descritivo-interpretativo de abordagem crítico-construtivista, 11, 14 para desvendar a relação existente entre o acesso das crianças à atenção e a mortalidade infantil evitável por ações e serviços, utilizando o referencial teórico de Aday & Andersen 2 (1974) para análise do acesso. O trabalho de campo, parte de pesquisa mais ampla, edesenvolveu-se entre fevereiro de 2007 e fevereiro de 2008 no Distrito Sanitário I (DS-I) de Recife, região Nordeste, por apresentar os maiores CMI no período.
Desenhou-se amostra teórica 6 em duas etapas. Selecionaram-se as instituições: Sede Administrativa do DS-I; Serviços de Atenção Básica (nove unidades da ESF e uma Unidade Básica Tradicional – UBT, que presta assistência de acordo com o modelo tradicional, com a atenção básica infantil realizada por pediatras e sem adscrição de área); e serviços de média complexidade (duas policlínicas e um Serviço de Alergologia, serviços que ofertam atenção básica infantil dentro do modelo tradicional além da atenção especializada). Foram selecionados 91 informantes buscando-se a variedade máxima de discursos para garantir suficiência e saturação amostral. 6, 11, 14
Utilizou-se dupla estratégia de coleta: a) entrevistas individuais semiestruturadas (roteiro segundo marco teórico) com os atores sociais vinculados às instituições e mães das crianças entre 28 e 365 dias de vida. Foram entrevistados os 91 informantes: 11 gestores – nove gestores distritais e dois gerentes das unidades; 48 profissionais do PACS e ESF: dez médicos; 12 enfermeiras; 26 ACS (20 ACS da ESF e seis do PACS; quatro diretores de policlínicas; um diretor da UBT e sete pediatras das policlínicas; 20 mães; b) estudo de caso de óbito infantil pós-neonatal. Identificaram-se as áreas do DS-I de maior ocorrência de óbitos pós-neonatais considerados evitáveis; analisaram-se os 18 eventos ocorridos no período para eleger aquele que melhor exemplificasse os problemas de acesso que culminaram com a morte que poderia ter sido evitada. Para construir o caso utilizaram-se: revisão das fichas de pré-natal da médica e enfermeira da unidade da ESF; fichas de atendimento e consultas da mãe e criança da maternidade e hospital pediátrico; anotações de visitas domiciliares do ACS à mãe e criança; cartão de crescimento/desenvolvimento e vacinal da criança; fichas de consulta e encaminhamento da criança pela ESF; declaração de óbito da criança pelo Instituto Médico Legal; entrevistas individuais semiestruturadas com profissionais envolvidas na assistência e óbito (ACS, médica e enfermeira da ESF); e entrevistas não estruturadas à mãe da criança. Foram necessárias duas entrevistas para o estabelecimento de relação dialógica satisfatória. As entrevistas consideraram a maior disponibilidade e desejo da mãe em revelar os acontecimentos que levaram sua filha ao óbito e foram realizadas em local, dia e horário que lhes foram convenientes.
As entrevistas tiveram duração entre 30 e 60 minutos, foram gravadas e transcritas textualmente e complementadas com o Diário de Campo.
Realizou-se análise temática de conteúdo, considerando o tema como unidade de significação que se liberta do texto segundo os critérios contidos no marco teórico-conceitual. 4 A geração das categorias foi mista (roteiro e emergente). A qualidade dos dados foi garantida pela triangulação entre grupos de informantes, técnicas e estratégias de coleta e de uma analista externa. 6, 11
As categorias e subcategorias de análise do acesso foram as que os atores sociais associaram à mortalidade infantil: a) Fatores relacionados às políticas do SUS: implantação; divulgação; programas de saúde infantil; ações intersetoriais; b) Fatores estruturais da oferta: disponibilidade de recursos humanos e materiais; c) Fatores organizacionais da oferta e de desempenho profissional: atenção preventiva e curativa (local da atenção; profissional prestador); aspectos da atenção (acolhimento/humanização/qualidade técnica); d) Fatores do contexto social: condição social das famílias e entorno; rede de apoio social.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas em Seres Humanos do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP), processo n° 892, 2006. Todos os atores assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
A maioria dos participantes era constituída por mulheres; entre os dez homens entrevistados, dois eram gestores, três diretores de unidades, três ACS e dois médicos. Os informantes institucionais exerciam suas atividades entre cinco e dez anos, com extremos representados pelos ACS do PACS e profissionais das Policlínicas e UBT (modelo tradicional), que atuavam havia mais de 15 anos, e por uma médica e cinco ACS da ESF, componentes das equipes havia um ano. As 21 mães entrevistadas tinham entre 17 e 38 anos; nove moravam com o pai da criança; 13 tinham ensino fundamental incompleto, uma o ensino médio e duas trabalhavam com vínculo; nove tinham trabalho informal e dez se declararam sem ocupação; a renda familiar mensal era de um salário mínimo, sendo complementada por programas de transferência de renda.
Emergiram distintas barreiras de acesso ao longo do contínuo assistencial para a maioria dos entrevistados. Destacaram-se o nível básico, com importantes diferenças de intensidade nos discursos, a depender do grupo de pertença. Quatro grupos de barreiras retroalimentaram-se, com repercussões na prevenção da mortalidade infantil evitável.
Óbitos infantis e as políticas do SUS
A maioria dos atores institucionais relacionaram a persistência dos óbitos às barreiras devidas à inadequada implantação do modelo de atenção do SUS, em que se incluem as políticas direcionadas à saúde infantil. Entretanto, houve contrapontos entre os distintos grupos. A maioria dos participantes do modelo tradicional (profissionais das Policlínicas e UBT) desconhecia as políticas direcionadas à saúde infantil, enfatizando a ausência efetiva de um programa de saúde da criança no município; os gestores e profissionais da ESF/PACS enalteceram a fragilidade de articulação intersetorial. As mães perceberam a pouca resolubilidade da ESF como fatores contributivos. Entretanto, existiram narrativas sobre o declínio dos óbitos ser oportunizado pelas ações da ESF/PACS, especialmente entre participantes das equipes ( Tabela 1).
Tabela 1. Oportunidades e barreiras de acesso relacionadas às políticas do SUS. Recife, PE, 2007.
Categoria/grupo de atores | Citações |
Incompleta implantação das políticas do SUS (atores institucionais) | -[...] se existem as diretrizes das crianças, o programa da criança de risco, que faça com que realmente aconteça [...] não tá acontecendo como preconizado, visitas, acompanhamento mesmo dessa criança [...]. (G8). -[...] essa unidade (refere-se à Policlínica) deveria ser de apoio [...] e aqui a procura tem sido mais direta do pessoal do que encaminhada pelos médicos(refere-se aos médicos da ESF) e ACS [...] tem que ter uma integração [...] e u acredito que diminuiria muito as patologias e a mortalidade infantil.(PED4). |
Desconhecimento profissional sobre as políticas de saúde da criança (profissionais Policlínicas/UBT) | -Em relação à pediatria, quando a gente não tem um programa específico [...] eu acho que isso ainda precisa melhorar [...] até pra poder a gente ter um atendimento melhor, ficar mais vigilante nesses casos de óbito [...] ou se tem, eu desconheço, então a falha não é só minha, porque não me passaram [...]. (UB1). |
Fragilidade de ações intersetoriais (gestores/profissionais ESF/PACS) | -[...] um primeiro aspecto para discutir a evitabilidade dos óbitos é a falta de um trabalho intersetorial forte [...]. O setor saúde conseguir estabelecer parcerias com outros setores, garantir a escolaridade das mulheres, habitação, renda, geração de emprego. Tudo isso vem sendo feito, mas a velocidade é lenta. (G1). - [...] não é tanto responsabilidade da saúde em relação ao óbito infantil [...] é questão política também, da exclusão social [...] tem outros fatores aí envolvidos, estruturais, socioeconômicos, políticos, familiares, a saúde é limitada pra tratar esses problemas.(ENF9). |
Pouca resolubilidade da ESF (mães) | -Não sei por que abre! (refere-se à USF) [...] quando o menino adoece eu não vou nem lá porque não resolve nada! (Mãe 15). -Eu nem gosto muito de levar pra consultar na USF, porque muitas vezes a médica de lá não sabe o que é que o menino tem, aí encaminha pra outra unidade (refere-se às Policlínicas) [...] eu gosto de ir já direto. (Mãe 1). |
Implantação da ESF/PACS (profissionais ESF/PACS) | -[...] acho que a gente não tá cem por cento, mas estamos chegando lá [...] diminuiu a mortalidade infantil [...] por causa do acompanhamento, do tratamento específico que a gente dá a essas crianças [...] no caso de vacina, de diarreia, aí foi controlado isso. (PACS3). |
SUS: Sistema Único de Saúde; ESF: Estratégia de Saúde da Família; UBT: Unidade Básica Tradicional; PACS: Programa de Agentes Comunitários de Saúde; USF: Unidade de Saúde da Família; G: gestor distrital; UB: policlínica; ENF: enfermeira; PED: pediatra da policlínica
Óbitos infantis e fatores estruturais e organizacionais da oferta
Quase todos os entrevistados percebiam a escassez global de recursos como prejudicial ao acesso à atenção preventiva e curativa. Houve diferentes enfoques entre os grupos quanto ao desfecho para o óbito infantil. Para os profissionais do PACS/ESF, as mortes infantis relacionavam-se ao grande número de famílias adscritas às equipes na ESF, com o excesso de atribuições por profissionais. Isso ocasionaria o descumprimento das ações programáticas, como as direcionadas à saúde da criança. Todos os atores sociais enfatizaram a falta de médicos na ESF, que desloca a atenção curativa para as enfermeiras, com prejuízo da capacidade de resolução dos problemas. Para os profissionais do PACS/ESF, o déficit de médicos interfere na supervisão aos ACS nas visitas domiciliares, fundamentais no seguimento da criança de risco para o óbito. Houve conflitos entre os discursos das mães, que relacionavam as mortes infantis à constante falta de medicamentos, com os dos atores institucionais, que viam na sua disponibilidade um dos pontos positivos do SUS e não percebiam associações com os óbitos ( Tabela 2).
Tabela 2. Barreiras de acesso relacionadas aos fatores estruturais e organizacionais da oferta. Recife, PE, 2007.
Fatores estruturais | |
Categoria/grupo de atores | Citações |
Déficit global de recursos (todos os atores) | -Talvez falta de condições, falta de cuidados [...] eu acho que de tudo, em termo de médico, de remédio [...]. Às vezes por parte da mãe [...] não tem como recorrer, comprar remédio [...] termina o menino morrendo. (Mãe 2). -[...] não tem uma balança, nenhuma criança é pesada [...] Não existe fita métrica, não tem um gráfico de perímetro cefálico [...]... Não tem nada vezes nada (PED6). -[...] o PSF não atende só criança [...] a gente tenta dar prioridade aos grupos de criança, de mulher, aos hipertensos, diabéticos [...], o excesso de burocracia, de trabalho, de cobranças, de falta de pessoal, termina interferindo [...] (ENF9). |
Déficit de médicos na ESF (todos os atores) | -[...] A gente tem que resolver todos os problemas [...] às vezes só cuidando das crianças que só chegam doentes, aquelas que precisam de orientações e da prevenção pra não adoecer [...] fica a desejar, porque não tem médico; se tem, é sobrecarregado [...] (ENF9). -No posto (USF) perto de casa tem que marcar ficha, (para consulta médica) ir de manhã cedo, [...] tem vezes que não consegue pegar, tem vezes que tem sorteio pra saber o dia que a pessoa vai ser consultada! (Mãe 12). |
Falta de supervisão do ACS (profissionais ESF/PACS) | -[...] eu acho que o enfermeiro deveria acompanhar mais o ACS na visita domiciliar. O ACS às vezes fica muito sozinho. (ACS5). |
Déficit de medicamentos (mães) | -Ontem mesmo comprei esse remédio aqui [...] às vezes tiro dinheiro da feira, porque [...] eles passam remédios que não tem lá no posto, aí tem que comprar. (Mãe 11) |
Fatores organizacionais | |
Categorias | Citações |
Barreiras para a atenção de doenças agudas na ESF (mães) | -Se eu tiver que pegar uma ficha pra atender minha filha, porque tá doente, devia atender logo, sem marcar, se não fosse um caso grave, marcava já pra outro o dia, não esperava um, dois meses [...]. Vai tudo pra emergência, podendo ser atendido lá no posto (refere-se à USF) , que é muito mais perto. (Mãe 8) . -[...] se for uma doença que eu sei que o posto (USF) não vai atender, que vai ser viagem perdida, vou logo na emergência. (Mãe 16). -[...] no posto (USF) a gente tem que esperar as pessoas que são marcadas serem atendidas [...] para ser atendido no encaixe [...] aí o menino vai morrer, é? (Mãe 1). |
Substituição de médicos e/ou pediatras por enfermeiras para a atenção na ESF (mães e médicos) | -O atendimento do posto (USF) onde moro, eu não gosto, não, porque lá quem atende não é uma médica, é uma enfermeira, ela não tem uma total capacidade como uma médica tem [...]. e lá só tem clínico geral [...] devia ter pediatra. (Mãe 18). -[...] esse negócio de criança ser atendida por clínico, eu acho que não dá muito certo [...] e as mães, parece que não gostam. [...] aqui (refere-se à Policlínica) sempre é superlotado, porque elas (refere-se às mães) não se satisfazem com a assistência do médico generalista dos PSF. (PED3). -Eu não concebo a enfermeira atender pediatria [...] chegou pra mim uma criança no décimo mês de vida, tinha sopro cardíaco e encaminhei imediatamente pra referência cardiológica [...] a enfermeira não tem o preparo de diagnosticar sopro [...] (MED5). |
ESF: Estratégia de Saúde da Família; UBT: Unidade Básica Tradicional; PACS: Programa de Agentes Comunitários de Saúde; USF: Unidade de Saúde da Família; ACS: Agente Comunitário de Saúde; PSF: Programa de Saúde da Família; ENF: enfermeira; PED: pediatra da policlínica
As barreiras organizacionais emergiram com grande intensidade e o rechaço ao atendimento de doenças agudas nas unidades da ESF foi unânime entre as mães, imputado como uma das causas das mortes infantis, o que obriga a utilização das emergências pediátricas ( Tabela 2).
As barreiras ao atendimento curativo por substituição de pediatras por clínicos gerais e/ou enfermeiras na ESF foram narradas pelas mães e médicos das Policlínicas e das ESF como contributivos para os óbitos. Para os médicos, as enfermeiras não têm formação profissional para prestar atenção curativa, sugerindo conflitos intraequipes ( Tabela 2).
Óbitos infantis e fatores de desempenho profissional
O desempenho inadequado dos profissionais com pouca qualidade técnica foi relacionado com as mortes infantis evitáveis por quase todos os participantes. Entre os informantes institucionais, atribuiu-se a ausência de compromisso profissional à sobrecarga das equipes da ESF, ao deficiente ensino universitário voltado para especialistas e à percepção de desvalorização profissional nessa estratégia de atenção. A mortalidade infantil foi imputada pelas mães não apenas à má qualidade técnica, mas à atenção desumanizada, com falta de acolhimento em todos os níveis assistenciais ( Tabela 3).
Tabela 3. Barreiras de acesso relacionadas aos fatores de desempenho profissional. Recife, PE, 2007.
Categoria/grupo de atores | Citações |
Deficiente qualidade técnico-científica (todos os atores) | -[...] eu acho que essas crianças que ainda estão morrendo por diarreia e pneumonia é porque ainda falta orientação, ainda falta aquela equipe (refere-se à ESF) ali, junto [...] uma atenção maior. (ENF7). -Dar mais atenção à criança [...] porque na maioria dos postos (USF) e emergências que a gente vai, nem chega a olhar a criança [...] passa qualquer remédio e manda pra casa [...] tem que examinar, saber o que ela tem [...] quando a criança volta pra emergência, fica internada e pode morrer [...] uma coisa que poderia ser evitada. (Mãe 16). -[...] eles (refere-se aos profissionais das ESF) estão exercendo a função simplesmente pelo financeiro [...] o município capacita muito, eles não fazem uso da capacitação para orientar famílias.(Geradm1). -[...] eu me lembro de uma criança que tava apresentando diarreia e vômito [...] foi vista ligeiramente aqui na Policlínica e encaminhada para casa [...] chegou em outro serviço e foi a óbito! Quais foram as falhas da gente para essa criança morrer no mesmo dia?(UB1). |
Falta de compromisso profissional para a atuação na ESF (atores institucionais) | -Eu me angustio muito [...] não dou atenção às crianças porque as outras categorias do PSF me consomem demais e a pediatria fica sem assistência médica. (MED9). -[...] eu fico angustiada porque você não consegue fazer o que gostaria [...] já iniciei grupo (de educação em saúde) e não consegui levar adiante, não temos pernas pra isso [...] pelo excesso de trabalho (ENF1). -Nossas universidades não formaram profissionais para trabalhar na perspectiva da promoção, prevenção, do tratamento integral, da responsabilidade sanitária. (G1). -[...] na universidade se cultua que o médico ruim é o do PSF, o estudante que vai para PSF é o fraco [...] porque o grande aluno vai ser especialista. (G4). |
Atenção sem acolhimento e desumanizada (mães) | -[...] ter paciência com as crianças, consciência e atender com mais educação, porque tem muitos [...] já discuti aqui com médico por causa da ignorância, a gente vai perguntar o que é que a criança tem, se tem alguma coisa grave, ele responde: “Quem é o médico: eu ou você?”. Mas eu sou a mãe [...] tem que explicar direitinho pra eu ficar ciente. (Mãe 4). -[...] tem médico que não é atencioso, nem toca na criança, como se tivesse com nojo! (Mãe 5). |
ESF: Estratégia de Saúde da Família; USF: Unidade de Saúde da Família; PSF: Programa de Saúde da Família; G: gestor distrital; UB: policlínica; ENF: enfermeira; PED: pediatra da policlínica; Geradm: gerente da unidade; MED: médico
Óbitos infantis e o contexto social
A mortalidade infantil evitável teve como principal determinante a exclusão social das famílias, de pobreza elevada, desemprego, violência e uso de drogas, segundo quase todos os participantes. A falta de rede de apoio social esteve presente no discurso das mães. Para os informantes da ESF/PACS, em consonância com as mães, o óbito infantil esteve especialmente associado às características maternas, culpabilizando as mães por negligência com os filhos ( Tabela 4).
Tabela 4. Barreiras de acesso relacionadas aos fatores do contexto familiar. Recife, PE, 2007.
Categoria/grupo de atores | Barreiras |
Pobreza (todos os atores) | -[...] acho que é miséria de vida do povo mesmo, porque a maioria desses óbitos é de classe social pobre [...] emprego está cada vez mais difícil, [...] não tem alimentação adequada, moradia decente, vive ali naquele mangue com todo tipo de doenças. (UB2). |
Culpabilização materna, pobreza, violência e falta de rede de apoio social (mães) | -Mães que não têm cuidado [...] têm uma carreira de filho [...] tem uma criança de cinco anos e deixa a de um ano pra ela cuidar [...] aí ficam lá brincando no lixo, pegam bactérias, adoecem e acabam morrendo. (Mãe 16). -[...] lá onde eu moro é assim, o povo é acomodado, acostumado a violência, crianças pedindo esmola [...] no caso se alguém precisa de ajuda, ninguém quer dar [...] e às vezes quando procura o atendimento, ajuda não tem [...]. não é povo de você chegar: “me empresta um dinheiro pra levar o menino no hospital?”. Ninguém ajuda! (Mãe 13). |
Culpabilização materna por negligência e uso de drogas (profissionais ESF/PACS e mães) | -Gravidez indesejada, alcoolismo e droga [...] deixam as crianças sozinhas dentro de casa e vão pro pagode [...] morrem por descuido mesmo. (MED5). |
Culpabilização materna por negligência e pouca percepção da gravidade da doença (mães) | -Falta de cuidado, né? sei lá [...] a mãe, eu acho assim, a criança tem uma febre, a pessoa corre logo pro hospital, porque guardar doença [...] eu, quando a minha tá doente vou logo e muita mãe deixa em casa: “ah! febrinha besta” e quando vê é uma coisa tão grande que não tem tempo de tratar; aí morre logo. (Mãe 8). |
Culpabilização materna por negligência e má qualidade assistencial (mães) | -Mal tratado né? Também caso de emergência [...] a mãe não cuida também da criança, não corre pra levar pro médico [...].Na emergência assim, chegar pra ter que esperar a vez [...] a criança tá com muita febre [...] aí tem que esperar, né? Lá tem muita criança cansada [...] muita criança internada [...] (Mãe 10). -Quando a mãe leva tarde pro médico, fica tentando cuidar em casa, quando vai pro hospital, aí já é tarde [...]. Muitas vezes no hospital mau atendimento [...] eu acho que é isso. (Mãe 12). |
ESF: Estratégia de Saúde da Família; PACS: Programa de Agentes Comunitários de Saúde; UB: policlínica; MED: médico
Caso de óbito infantil evitável
O caso do óbito infantil pós-neonatal evitável em área adscrita à ESF permitiu o aprofundamento da análise dos obstáculos ao acesso realizado às ações e serviços de saúde, emergentes das categorias das entrevistas, e mostrou ligações existentes entre as principais barreiras de acesso à atenção da criança ao longo de sua trajetória de (des)assistência no seu cotidiano real. Foram analisadas as situações que emergiram no processo de interação entre os distintos atores envolvidos desde a vida intrauterina da criança até sua morte: a) barreiras de acesso no pré-natal não realizado pela mãe, em risco social e o não seguimento da criança de risco social por médico e enfermeira da ESF. Isso sugere implantação incompleta das políticas do SUS direcionadas à saúde da criança e a falta de compromisso profissional para atuação na ESF; b) o não atendimento da criança doente no dia que antecedeu ao óbito, mostrando a barreira de atenção a doenças agudas na USF; e c) a falta de referência para a assistência médica oportuna, por ocasião do rechaço na USF. Deficiente qualidade técnico-científica e falta de compromisso profissional para atuação na ESF foram relatadas. Os eventos contribuíram para o óbito infantil por causa evitável por ações e serviços de saúde ( Tabela 5).
Tabela 5. Trajetória do óbito infantil evitável: as diversas barreiras de acesso. Recife, PE, 2007.
Barreiras na Atenção Básica da ESF | Exemplos de citações |
Antes do nascimento - Falta de visita domiciliar da gestante em risco social por toda a equipe da ESF para receber orientações promocionais e preventivas. | -[...] ela não realizou o pré-natal na gestação, nem o acompanhamento da puericultura da criança comigo, só vinha doente. (Enfermeira). |
Após o nascimento Falta de ações preventivas - RN não incluída nas ações de vigilância à criança de risco por critérios sociais: mãe desempregada, usuária de drogas, multípara, sem parceiro, área de risco social. - Falta de visita domiciliar pela enfermeira e/ou médica. - Criança recebe consultas na USF apenas quando doente; falta de orientações de promoção à saúde/prevenção ao óbito infantil. | -[...] ela (ACS) veio aqui em casa no dia que a gente veio (da maternidade) [...] depois fui no posto (USF) e eu disse a ela (ACS) “a menina tá sem berço, tá dormindo comigo na cama mais os outros quatro irmãos, cinco menino com ela [...].” (Mãe). [...] eu sempre chegava no posto sem marcar, chegava nas últimas com a menina [...]. (Mãe). |
Falta de responsabilização pela criança ao longo de toda a trajetória assistencial - Equipe não continuou os cuidados após a referência e o retorno do serviço especializado. | [...] aí ela (ACS) passou lá em casa pra fazer a rotina dela; aí eu disse “a menina tá se obrando e tá vomitando”; aí ela disse “leva ela pro posto”. Eu levei pro posto. Aí a doutora atendeu e mandou pra o hospital, me deu vale-transporte. (Mãe). O doutor de lá (hospital infantil) mandou voltar pra casa de novo. [...] tava com suspeita que ela tava com uma infecçãozinha na barriga, aí passou antibiótico, mas eu não quis dar não porque era muito forte [...] ela era muito nova [...] fiquei dando soro pra ela, pedi no posto [...]. (Mãe). |
Falhas de acesso à atenção durante a doença que contribuiu para o óbito Descumprimento das políticas: criança de risco sem receber consultas médicas/de enfermagem por mais de um mês até o óbito. Rechaço para a atenção de doença respiratória aguda da criança na USF no dia anterior à sua morte. Não orientação para atendimento em outro serviço. | [...] Aí eu tive um problema, uma flebite e peguei uma licença de dez dias. (Médica). [...] Aí eu fui atrás da ACS e a menina disse “não ela tá não, tá na rua”, aí eu: “cadê a doutora?” “a doutora já foi”. Eu voltei pra casa com ela, dei dipirona, a febre passou, dei peito, botei pra arrotar, botei pra dormir, ela ficou brincando, não tava esmorecida, tava espertinha, aí a gente foi dormir. (Mãe). |
Óbito por aspiração de leite desencadeado por doença respiratória (e/ou agravada por fumaça intradomiciliar/compressão do corpo da outra criança). | [...] aí eu disse: “eita! ela tá dormindo, vou pegar e dar de mamar que meu peito tá muito cheio” [...] e acendi um cigarro, e acabei de fumar e voltei e ela continuava dormindo [...] aí eu falei:” ela tá dormindo muito” [...] aí quando eu virei ela e peguei ela tava com a roupa melada de leite, o nariz todo cheio de catarro, e ela tava toda roxinha [...] aí eu peguei ela no braço e saí correndo pelo meio da rua! (Mãe). |
Culpabilização da mãe e da sobrecarga do trabalho pela morte da criança. Conflitos intraequipe. | [...] como ela (mãe ) é usuária de drogas, dormiu por cima da criança sufocando-a, ou não prestou a atenção quando mamou, regurgitou e acabou broncoaspirando [...] . A gravidez era indesejada [...] não fez uso de anticonceptivo, a médica também não deu a prescrição, porque eu não dou a medicação se o médico não prescrever antes. (Enfermeira). [...] porque eu acho o seguinte, que essas famílias que inspiram mais cuidados devem ser vigiadas [...] mais de perto. [...] o veículo para o médico, o enfermeiro, são as ACS, não é? A gente diz: “olhe fulano e fulano, esse pessoal é pra ser bem acompanhado” [...] mas a gente está aqui com um monte de gente [...]. (Médica). |
ESF: Estratégia de Saúde da Família; USF: Unidade de Saúde da Família; ACS: Agente Comunitário de Saúde
DISCUSSÃO
Apesar do compromisso das diretrizes governamentais brasileiras com a atenção integral à saúde da criança e do importante declínio da mortalidade infantil,25,aas numerosas barreiras de acesso apontaram afragilidade na implantação do SUS e de sua principal porta de entrada: a atenção básica. Em última análise, repercute na persistência do óbito infantil evitável. Percebem-se importantes diferenças de percepção e/ou de intensidade nos discursos, provavelmente devidas ao posicionamento do ator social diante do fenômeno.
O desconhecimento das políticas direcionadas à saúde infantil e do modelo assistencial25, apor profissionais da rede de média complexidade, associado à visão de melhor adequação da oferta no modelo tradicional por profissionais dos dois níveis de atenção e à percepção das mães da baixa resolutividade da ESF são exemplos da baixa consolidação do modelo. Isso é preocupante, especialmente em relação à principal porta de entrada, que executa a maioria das atividades de prevenção da mortalidade infantil evitável por ações e serviços. O óbito infantil em território adscrito à ESF como desfecho de falhas do Programa Governamental de Redução da Mortalidade Infantil fpõe em evidência as barreiras na implementação das políticas de atenção à saúde da criança. Os conflitos pela convivência do modelo atual com uma rede tradicional outrora bem estruturada, cuja atenção básica era realizada por pediatras, desvela a necessidade de novos ajustes que permitam a compreensão e a legitimação do novo modelo. 5, 22
A escassez de médicos na ESF, com a assistência curativa restrita, sua substituição por enfermeiras e o rechaço ao atendimento de doenças agudas, barreiras emergidas como a principal crítica das mães ao novo modelo, dificultam a realização de atividades de seguimento da criança de risco, prioritária a toda a equipe de saúde.18,22, fO déficit de médicos interfere nos processos de trabalho e nas relações interpessoais por sobrecarga das enfermeiras e indefinição de papéis nas ESF. Isso amplia os conflitos no trabalho em equipe, que perpassam juízos de valor, posturas e concepções historicamente determinados. 3, 17, 18, 21
O estudo de caso de óbito desvelou a falta de seguimento da criança de risco pela ESF como um dos principais condicionantes da morte infantil, apontando também para a associação aos demais percalços da atenção ofertada, como as dificuldades do trabalho em equipe. As transferências recíprocas de responsabilidades pela morte e a culpabilização da mãe refletiram graves problemas comunicacionais e de atuação profissional e prováveis questões corporativas. 3, 6 De um lado, há a resistência da classe médica à mudança do comando hierárquico entre as categorias profissionais no antigo modelo de atenção e, do outro, a valorização do enfermeiro, que passa a ocupar uma posição horizontal e de igualdade com o médico, o que gera competição intraequipes. 3, 17
As barreiras relativas ao mau desempenho profissional apontaram a falta de qualidade da atenção na ESF e a não responsabilização pela criança ao longo de toda sua trajetória assistencial. O descumprimento das diretrizes governamentais de atenção infantil destacam as falhas na implantação das políticas de atenção integral à saúde da criança. fEsses aspectos estiveram presentes nos discursos de todos os participantes e no estudo de caso de óbito.
A visão unânime das mães do processo de atenção desumanizado sugere que o acesso à atenção mediado por relações interpessoais acolhedoras e solidárias entre provedor e usuário 8, 15 é atributo restrito, uma diretriz operacional do SUS não incorporada no imaginário dos profissionais na oferta do cuidado infantil. 7, 21
A culpabilização das mães pela morte dos filhos por negligência emergiu principalmente entre o grupo de mães e de profissionais da ESF/PACS predominantemente do gênero feminino. Essas profissionais destacam os fatores maternos abstraindo-os do contexto de miséria social e há a minimização da inadequação do acesso à atenção. Esses discursos implicam posturas preconceituosas de provável cunho ideológico. Entre as mães, vislumbra-se contradição de discursos que trazem à tona participação materna involuntária, imbricada às condições de extrema vulnerabilidade. Esses dados condizem com estudo desenvolvido por Scheper-Hughes 20 no nordeste brasileiro e divergem do realizado por Nations, 16 na mesma região e período, no qual as mães percebem a falha da atenção como um dos determinantes dos óbitos. Os resultados apresentados mostram mais uma atitude de resignação materna pela condição de miséria contextual que se superpõe à percepção dos obstáculos de acesso aos serviços de saúde. 9, 12, 13, 20, 22, 24 Refletem também um posicionamento pouco solidário, apoiado na impessoalidade da pergunta norteadora, que se referia aos óbitos de filhos de mulheres desconhecidas, contribuindo na elaboração de culpabilização nos seus discursos.
Em conclusão, a existência de numerosas barreiras de acesso à atenção infantil reflete a insuficiente implantação do SUS e da principal porta de entrada, a ESF. Falta a percepção entre os atores sociais da associação entre a pouca qualidade dos serviços ofertados e a persistência da mortalidade infantil evitável por ações e serviços no âmbito das políticas de atenção à saúde da criança.As barreiras estruturais (escassez de médicos na ESF), organizacionais (restrição ao atendimento de doenças agudas/substituição de médicos por enfermeiras) e de atuação profissional (baixa qualidade técnica, atenção pouco acolhedora/desumanizada e problemas no trabalho em equipe) mostraram-se os principais obstáculos de acesso à atenção básica resolutiva com responsabilização pela criança em toda trajetória assistencial.
Apesar de a condição de exclusão social das mães associar-se ao óbito infantil, esses fatores poderiam ser minimizados com atenção básica eficiente, não se omitindo o importante papel a ser desempenhado por políticas sociais mais justas e resolutivas.