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Crise econômica e contrarreforma dos sistemas universais de saúde: caso espanhol

Resumos

A crise econômica que afeta a Europa neste século XXI tem modificado os sistemas de proteção social dos países que adotaram, no século XX, o modelo de sistema de saúde universalista, como a Espanha. Esta comunicação apresenta algumas transformações recentes, causadas por mudanças na legislação espanhola. Estas se deram no acesso às prestações de saúde, principalmente com relação ao atendimento a estrangeiros, no aporte financeiro dos usuários às prestações sanitárias e na assistência farmacêutica. Verifica-se que em situações de crise há tendências de reforma no sentido de restringir direitos, aprofundando desigualdades sociais.

Sistemas de Saúde, economia; Espanha; Reforma dos Serviços de Saúde; União Europeia, economia; Equidade em Saúde; Política de Saúde


The economic crisis that has been affecting Europe in the 21st century has modified social protection systems in the countries that adopted, in the 20th century, universal health care system models, such as Spain. This communication presents some recent transformations, which were caused by changes in Spanish law. Those changes relate to the access to health care services, mainly in regards to the provision of care to foreigners, to financial contribution from users for health care services, and to pharmaceutical assistance. In crisis situations, reforms are observed to follow a trend which restricts rights and deepens social inequalities.

Health Systems, economics; Spain; Health Care Reform; European Union, economics; Equity in Health; Health Policy


INTRODUÇÃO

A crise econômica que afeta a Europa neste século XXI tem modificado os sistemas de proteção social dos países que adotaram, no século XX, o modelo de sistema nacional de saúde universalista, como Portugal, Itália, Grécia, Reino Unido e Espanha.2Conill EM. Sistemas comparados de saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de saúde coletiva. 2.ed. Rio de Janeiro: Hucitec; Fiocruz; 2009. p.563-613.

Esta comunicação, como parte de um estudo realizado sobre tendências da crise econômica sobre as políticas de saúde e o sistema nacional de saúde da Espanha, apresenta algumas transformações recentes, causadas por mudanças na legislação, que se deram no acesso às prestações de saúde, no aporte financeiro dos usuários às prestações sanitárias e na assistência farmacêutica.

Por apresentar muitos pontos de proximidade com o sistema público brasileiro, malgrado as diferenças históricas e os diferenciados contextos político-sociais e econômicos dos países, nos parece importante conhecer o que vem ocorrendo com o sistema de saúde espanhol neste momento de crise econômica.

Na Espanha, de 1978 a 1986, o sistema de saúde era de seguros obrigatórios, tipo previdenciário e disponível a trabalhadores assegurados e seus beneficiários. A partir da Lei 14/1986, denominada Ley General de la Sanidad, foram estabelecidos princípios e diretrizes que possibilitaram que a assistência sanitária se tornasse universalista, acessível a todos os espanhóis, independentemente do tipo do vínculo de trabalho.3García-Armesto S, Abadía-Taira MB, Durán A, Hernández-Quevedo C, Bernal-Delgado E. Spain: health system review. Health Syst Transit. 2010;12(4):1-295, xix-xx.

O financiamento do sistema passou a ser mediante impostos gerais e não por cotizações obrigatórias de trabalhadores e empresas. Constituiu-se um sistema nacional de saúde, nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil, unindo antigas e fragmentadas redes de serviços regionais e corporativas, independentemente da condição de trabalho.

Foi criado o Sistema Nacional de Saúde considerando o conjunto dos serviços de saúde do governo central e das Comunidades Autônomas (CCAA), semelhante aos governos estaduais brasileiros, mas com maior autonomia, que passaram a se responsabilizar pelo planejamento e gestão de centros de saúde e de redes de serviços específicas.

Como instrumento de coordenação entre a esfera nacional e as CCAA na busca de consensos entre as partes envolvidas, foi organizado o Conselho Interterritorial do Sistema Nacional de Saúde, função que na Espanha é realizada, em parte, pela Comissão Intergestores Tripartite e que, similar ao SUS, reúne representações das três esferas federal, estadual e municipal. Todavia, no SUS foram organizados espaços de participação social nas instâncias decisórias, como o Conselho Nacional de Saúde e outros conselhos estaduais e municipais.

Fundamentadas nas normas constitucionais e nos Estatutos de Autonomia, todas as CCAA progressivamente assumiram competências no campo da saúde pública, em processo de descentralização diferenciado do existente no Brasil, pois na Espanha trata-se de dois níveis governamentais – nacional e regional, não chegando como no SUS ao estabelecimento de competências, direitos e deveres da esfera local.4Sacardo DP, Fortes PAC, Tanaka OY. Novas perspectivas na gestão do sistema de saúde da Espanha. Saude Soc. 2010;19(1):170-9. DOI:10.1590/S0104-12902010000100014

A lei de 1986, em seu artigo 1°, objetivava a proteção da saúde de todos os espanhóis, inclusive não residentes na Espanha e também aos cidadãos estrangeiros estabelecidos em território nacional. A cobertura do sistema universalista passou de 86,0% das pessoas asseguradas em 1982 a 97,0% da população, em 1987.1Abellán Perpiñan JM, Sánchez Martinez FI, Martinez Pérez JE, Méndez Martinez I. El sistema sanitario público en España y sus comunidades autónomas: sostenibilidad y reformas. Bilbao: Fundación BBVA; 2013.

Os fundamentos legais, até 2012, possibilitaram que o sistema provesse cobertura na prestação de cuidados de saúde a toda a população espanhola e de imigrantes, mesmo que irregulares no país. Essa situação vem se modificando com a promulgação do Real Decreto-ley 16/2012, de 20 de abril de 2012, que trata de medidas urgentes para garantir a sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde.

Esta norma legal foi emitida durante período crucial da crise econômica que atingiu o país, contendo medidas consideradas urgentes sobre a necessidade de reajustes econômicos e sociais, com a alegação de garantir a sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde, de conter gastos e de objetivar melhorias na qualidade e segurança das prestações de serviços.

Algumas modificações são marcantes no sistema de saúde espanhol, a partir de 2012, quando a legislação muda o modelo sanitário deixando de ser um sistema de saúde concebido dentro do modelo de direito universal e volta ao modelo de seguro social, com assegurados e beneficiários.

Das alterações introduzidas na legislação, destaca-se o art. 3º do Decreto Real – “da condição de assegurado” – onde fica preconizado que a assistência sanitária espanhola fornecida pelo Sistema Nacional de Saúde, com fundos públicos, deve ser garantida às pessoas que apresentem a condição de assegurado, ou seja, trabalhadores afiliados à Seguridade Social, pensionistas do sistema e beneficiários de prestações periódicas como, e.g., do subsídio desemprego.

Outra modificação é o aumento da restrição no acesso ao sistema. Assim, foram excluídas as pessoas com nacionalidade espanhola ou de outro Estado-membro da União Europeia, do Espaço Econômico Europeu ou da Suíça que, apesar de residir em solo espanhol, nunca tenham contribuído com a cotização do sistema de seguridade, assim como os indivíduos que tenham rendimentos superiores a 100.000 (cem mil) euros anuais.

Os estrangeiros em situação irregular, que não estejam registrados nem autorizados como residentes no país, perdem o direito à assistência sanitária e poderão ser atendidos somente em situação de urgência – por enfermidade grave ou acidente independente da causa – e durante gravidez, parto e pós-parto. Todavia, os menores de 18 anos devem receber assistência sanitária nas mesmas condições que os espanhóis.

Outras medidas que ampliaram a restrição foram o aumento dos valores de coparticipação financeira no momento da prestação de serviços e a fragmentação das prestações em três modalidades denominadas de básica, suplementar e acessória. Nas modalidades suplementar e acessória, o assegurado necessita efetuar copagamento ao ser atendido.

A carteira comum básica de serviços assistenciais compreende todas as atividades assistenciais de prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação realizadas em centros sanitários ou sociossanitários, assim como o transporte sanitário de urgência, cuja cobertura integral é realizada mediante financiamento público.

A carteira comum suplementar inclui todas aquelas prestações cuja provisão se realiza mediante dispensação ambulatorial, abrangendo a assistência farmacêutica, de ortopróteses, de produtos dietéticos e transporte sanitário considerado não urgente. A carteira de serviços acessórios inclui atividades como terapia ocupacional, serviços e técnicas não consideradas essenciais ou que são coadjuvantes no apoio ao tratamento de patologias crônicas.

Na assistência farmacêutica ambulatorial, o Real Decreto-Ley dispôs normas e diretrizes específicas que restringem a dispensação medicamentosa gratuita. O acesso ao produto sujeita o usuário à coparticipação financeira significativa, proporcional ao nível de renda, atualizada anualmente.

Cada CCAA pode incorporar em suas carteiras de serviços, com recursos adicionais próprios, técnicas, tecnologias e procedimentos não contemplados nas normas nacionais.

Essas medidas elencadas estão no centro do debate e das disputas políticas e judiciais, não só na Espanha como na comunidade europeia. Assim, ocorrem importantes manifestações envolvendo a população, os profissionais de saúde, o judiciário espanhol e parte das organizações que compõem os acordos europeus, reprovando a mudança do modelo de sistema universal.1Abellán Perpiñan JM, Sánchez Martinez FI, Martinez Pérez JE, Méndez Martinez I. El sistema sanitario público en España y sus comunidades autónomas: sostenibilidad y reformas. Bilbao: Fundación BBVA; 2013.

Parte dos debates questiona se as medidas adotadas apresentarão eficiência e eficácia, com impacto financeiro significativo, ou se aumentarão injustiça e iniquidade para os indivíduos, prejudicando a saúde pública e, portanto, a economia do país. Foi esse cenário, importante lembrar, que consubstanciou a idealização do primeiro modelo de sistema universal, em 1948 no Reino Unido.

Em situações de crise em países cujo sistema de proteção social tem grande importância, reformas que restringem direitos podem prejudicar aqueles mais necessitados, aprofundando desigualdades e exclusões.

Na crise econômica europeia, a par de diversas medidas restritivas nas políticas de bem-estar social da região, a área da saúde tem sofrido as alterações mais expressivas e de efeitos questionáveis. As medidas mostram que o projeto neoliberal, embora considerado o modelo econômico responsável pela crise, ainda é a receita utilizada para resolver problemas orçamentários, sobretudo quando a saúde não é considerada atribuição essencial do Estado.

REFERENCES

  • 1
    Abellán Perpiñan JM, Sánchez Martinez FI, Martinez Pérez JE, Méndez Martinez I. El sistema sanitario público en España y sus comunidades autónomas: sostenibilidad y reformas. Bilbao: Fundación BBVA; 2013.
  • 2
    Conill EM. Sistemas comparados de saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de saúde coletiva. 2.ed. Rio de Janeiro: Hucitec; Fiocruz; 2009. p.563-613.
  • 3
    García-Armesto S, Abadía-Taira MB, Durán A, Hernández-Quevedo C, Bernal-Delgado E. Spain: health system review. Health Syst Transit 2010;12(4):1-295, xix-xx.
  • 4
    Sacardo DP, Fortes PAC, Tanaka OY. Novas perspectivas na gestão do sistema de saúde da Espanha. Saude Soc 2010;19(1):170-9. DOI:10.1590/S0104-12902010000100014

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2014
  • Aceito
    24 Set 2014
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