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O aumento de entidades filantrópicas no SUS: o que esse cenário revela?

RESUMO

O artigo analisa aspectos da mudança da natureza jurídica de instituições privadas de assistência à saúde, de estabelecimentos “com” para “sem” fins lucrativos. Trata-se de uma pesquisa exploratória, apoiada no referencial de análise de políticas, com foco em dados secundários, provenientes do Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES), de 2012 a 2020, e estudo de caso. Os resultados apresentam aumento dessas entidades em todas as regiões do país e evidências de que se comportam como estabelecimentos com fins lucrativos. A mudança de natureza jurídica oculta um processo mais amplo de mercantilização implícita dos serviços de saúde, incentivado por políticas estatais e relacionado às isenções previstas em lei.

Instituições Filantrópicas de Saúde, legislação & jurisprudência; Obtenção de Fundos; Gestão em Saúde; Sistema Único de Saúde; Política Pública

ABSTRACT

The article analyzes aspects of the change in the legal nature of private healthcare from “for-profit” to “non-profit” entities. It is an exploratory research, supported by the policy analysis framework, focusing on secondary data from the Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (National Registry of Health Facilities – CNES) from 2012 to 2020 and a case study. The results show an increase in these entities in all regions of the country and evidence that they behave like profit-oriented entities. The change in legal nature hides a broader process of implicit commodification of healthcare services, encouraged by state policies and related to exemptions provided by law.

Voluntary Health Agencies, legislation & jurisprudence; Fund Raising; Health Management; Unified Health System; Public Policy

INTRODUÇÃO

No Brasil, as instituições privadas sem fins lucrativos são responsáveis por expressiva parcela da atenção especializada no país11. Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, et al. Arranjos regionais de governança do Sistema Único de Saúde: diversidade de prestadores e desigualdade espacial na provisão de serviços. Cad Saude Publica. 2019;35 Supl 2:e00094618. https://doi.org/10.1590/0102-311X00094618
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e compõem um campo da complexa relação público-privada no Sistema Único de Saúde (SUS). Esta relação é marcada por assimetrias de poder quanto ao processo decisório e de governança da política de saúde11. Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, et al. Arranjos regionais de governança do Sistema Único de Saúde: diversidade de prestadores e desigualdade espacial na provisão de serviços. Cad Saude Publica. 2019;35 Supl 2:e00094618. https://doi.org/10.1590/0102-311X00094618
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, 22. Silva JFM, Carvalho BG, Domingos CM. A governança e a relação público-privado no cotidiano das práticas em municípios de pequeno porte. Cienc Saude Colet. 2018;23(10):3179-88. https://doi.org/10.1590/1413-812320182310.13952018
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, e inserida em um histórico de fomento, por parte do Estado, à expansão do setor privado. Tal prática pode se configurar pela mercantilização dos serviços de saúde, valendo-se de subsídios diretos e indiretos (isenções fiscais e tributárias) aplicados a essas entidades33. Göttems LBD, Mollo LRR. Neoliberalism in Latin America: effects on health system reforms. Rev Saude Publica. 2020;54:74. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054001806
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.

A mercantilização se relaciona ao aumento da lógica privada, mediante a participação direta do setor privado, enquanto prestador de serviços de saúde, e a adoção de princípios de gestão, remuneração e organização dos sistemas44. Ferreira MRJ, Mendes AN. Mercantilização nas reformas dos sistemas de saúde alemão, francês e britânico. Cienc Saude Colet. 2018;23(7):2159-70. https://doi.org/10.1590/1413-81232018237.12972018
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. Tais características parecem estimular a mudança da natureza jurídica de estabelecimentos privados “com” para “sem” fins lucrativos.

Esse processo tem propiciado novas relações público-privadas, de caráter neopatrimonialista, devido aos benefícios que envolvem, na atualidade, o Estado e o mercado. Além disso, as políticas de contrarreforma da década de 1990 incentivaram o fortalecimento de modalidades que se beneficiam com as prerrogativas legais das entidades sem fins lucrativos55. Andreazzi MFS, Bravo MIS. Privatização da gestão e organizações sociais na atenção à saúde. Trab Educ Saude. 2014;12(3):499-518. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00019
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.

Este estudo tem como foco a mudança da natureza jurídica das instituições prestadoras de serviços de saúde nos últimos dez anos. Baseia-se em dois argumentos principais: o primeiro refere-se a uma transição de estabelecimentos privados “com” para “sem” fins lucrativos, em um processo que pode representar uma tendência de mudança nas relações público-privadas na saúde no Brasil; e o segundo, vinculado ao anterior, diz respeito a mecanismos de mercantilização que podem estar sendo empregados por essa via. Nessa perspectiva, visa analisar e identificar características desse fenômeno, com o intuito de fomentar e ampliar o debate, bem como trazer proposições e estimular outras análises a respeito do tema.

MÉTODOS

Trata-se de um recorte de uma tese de doutorado, que buscou compreender as modalidades institucionais de gestão e prestação de serviços na Macrorregião Norte do Paraná. Dentre as modalidades institucionais identificadas na região, este recorte teve como foco a “entidade filantrópica”.

Inicialmente, realizou-se pesquisa exploratória, a partir de dados secundários disponíveis na base do Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES), por meio da análise da evolução do número de entidades “sem” fins lucrativos entre 2012 e 2020, na região estudada, nos níveis estadual e nacional.

Por meio da identificação das instituições filantrópicas desta região, selecionaram-se os serviços que se apresentavam como estratégia local ou regional para a assistência especializada, constituindo-se o caso em estudo.

Foram entrevistados, por meio de roteiro semiestruturado, a partir da técnica de informantes-chave, os gestores municipais de saúde, diretores das instituições filantrópicas prestadoras de serviços, técnicos regionais de saúde, representantes da gestão estadual, representantes do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems) e membros do controle social que se relacionavam àquelas instituições, totalizando 22 entrevistas entre dezembro de 2019 e janeiro de 2021.

Os dados secundários permitiram uma compreensão geral do fenômeno e sua representação na região estudada, no estado do Paraná e no país. O material empírico derivado do estudo de caso foi submetido à análise hermenêutica crítica, sendo interpretado com apoio do referencial de análise de políticas66. Ham C, Hill M. The policy process in the modern capitalist state. 2. ed. New York: Pearson Education; 1993. , 77. Pereira AMM. Análise de políticas públicas e neoinstitucionalismo histórico: ensaio exploratório sobre o campo e algumas reflexões. In: Guizardi FL, Nespoli G, Cunha MLS, Machado F, Lopes M, organizadores. Políticas de participação e saúde. Recife: Editora Universitária UFPE; 2014. p. 143-64. . A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética ao qual os pesquisadores estão vinculados sob o parecer nº 4.074.080.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Entre os anos de 2012 e 2020, observou-se um incremento de 30% de estabelecimentos sem fins lucrativos no Brasil88. Ministério da Saúde (BR), DATASUS. Sistema do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES). Brasília, DF; s.d. [cited 2020 Jun 20]. Available from: http://cnes.datasus.gov.br/
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. Essa tendência foi identificada em todas as regiões geográficas brasileiras ( Figura 1), com maior destaque para a região Sudeste, o que pode estar relacionado ao fato de esta apresentar uma maior concentração de serviços privados99. Federação Brasileira de Hospitais; Confederação Nacional de Saúde. Cenário dos hospitais no Brasil 2020. Brasília, DF; 2021 [cited 2020 Jun 20]. Available from: https://www.fbh.com.br/wp-content/uploads/2021/04/Cenarios_2020.pdf
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.

Figura
Evolução do número de entidades sem fins lucrativos (associação privadaa) em regiões brasileiras, 2012–2020.

Na macrorregião estudada, as instituições filantrópicas correspondem a 36% dos estabelecimentos e alocam cerca de 65% dos leitos do SUS88. Ministério da Saúde (BR), DATASUS. Sistema do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES). Brasília, DF; s.d. [cited 2020 Jun 20]. Available from: http://cnes.datasus.gov.br/
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. No período sob análise, constatou-se uma redução das entidades privadas “com” fins lucrativos e aumento em 20% do número de estabelecimentos de natureza jurídica “sem” fins lucrativos no estado em que a região estudada está inserida, fato que coincide com a publicação gradativa de políticas específicas pelo governo local para tais estabelecimentos.

As instituições investigadas por meio do estudo de caso foram classificadas em dois grupos: filantrópicos puros e filantrópicos privados. Os estabelecimentos identificados como filantrópicos puros, ou originalmente filantrópicos, incluem instituições concebidas com a missão da filantropia; e os estabelecimentos classificados como filantrópicos privados são estabelecimentos privados que alteraram sua natureza jurídica com fins estratégicos.

O estudo de caso confirmou um processo de mudança da natureza jurídica das instituições privadas “com” para “sem” fins lucrativos. A análise do material empírico evidenciou que esse processo pode estar relacionado a alguns fatores como: indução promovida pelas isenções fiscais e tributárias que essa alteração oferece; possibilidade de firmar convênios, ter preferência quanto à complementaridade de serviços e/ou estar apto para solicitar e receber emendas parlamentares e incentivos contratuais da gestão pública; e análise estratégica acerca da viabilidade desses estabelecimentos em um contexto de restrições financeiras.

Destaca-se outro importante achado da pesquisa de campo: diferenças entre o escopo de atuação dos estabelecimentos filantrópicos “puros” e “privados”. Os primeiros, a depender de seu porte, possuem determinada inserção regional e são estabelecimentos dispostos à oferta de serviços ao SUS. Já os filantrópicos “privados” comportam-se como estabelecimentos com fins lucrativos, mas se beneficiam de isenções legais, praticam gerencialismo da oferta, possibilitam acesso diferenciado aos usuários de determinados municípios contratados, não são porta aberta à população e eventualmente fazem a gestão de serviços suplementares. Em alguns casos, os antigos donos alugam o imóvel para a própria entidade e são os presidentes das associações, de modo que essa categoria também pode ser identificada como “filantrópicos com donos”. As falas dos participantes expressam esses resultados:

“Não [mudou] nada […] continua do mesmo jeito, só tem lá ‘Associação Mais Saúde’, o que mudou foi o nome mesmo” (E9).

“Nenhum benefício [para o município], do mesmo jeito. Para nós o que mudou foi o CNPJ” (E14).

“Quando a gente passou para Fundação [filantrópica], a população não percebeu isso, tem muita gente que não sabe, não conhece isso, mas também, não ia mudar nada […]” (E8).

Tais aspectos podem representar uma ampliação da mercantilização dos serviços públicos de saúde por meio de instituições privadas sem fins lucrativos11. Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, et al. Arranjos regionais de governança do Sistema Único de Saúde: diversidade de prestadores e desigualdade espacial na provisão de serviços. Cad Saude Publica. 2019;35 Supl 2:e00094618. https://doi.org/10.1590/0102-311X00094618
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. Trata-se de um processo de mercantilização implícita, caracterizado pela adoção crescente da lógica de atuação privada por parte do setor público55. Andreazzi MFS, Bravo MIS. Privatização da gestão e organizações sociais na atenção à saúde. Trab Educ Saude. 2014;12(3):499-518. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00019
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. No Brasil, essa já é uma realidade observada nas diferentes regiões do país, de modo que o fenômeno da alteração da natureza jurídica de “com” para “sem” fins lucrativos se confirma através de uma série de políticas destinadas a esse grupo, com programas específicos de contratualização e apoio por meio de incentivos financeiros.

O estudo de caso também identificou outros elementos importantes desse cenário que merecem ser destacados, entre eles:

  • relação público-privada constituída por meio do envolvimento entre atores de mercado (prestadores) e diferentes atores públicos, incluindo parlamentares, na definição dos aspectos contratuais;

  • prestadores privados com maior poder de decisão quanto à oferta de serviços ao sistema público;

  • incipientes mecanismos de regulação dos serviços pela gestão pública;

  • relação político-partidária entre membros da diretoria dessas associações e atores públicos do nível local; e

  • fortalecimento da terceirização de serviços de saúde.

Cabe destacar que, a depender das características da gestão orçamentária municipal do teto federal de média e alta complexidade, a negociação de emendas parlamentares pode ocorrer diretamente pela instituição, sem a garantia de que serão utilizadas em favor dos usuários do sistema público. Ademais, podem angariar recursos em função de sua natureza jurídica que, por ausência de devida transparência, nem sempre serão utilizados em benefícios sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mudança da natureza jurídica de instituições privadas “com” para “sem” fins lucrativos no Brasil oculta um processo mais amplo de mercantilização dos serviços de saúde e representa uma ação estratégica dos atores de mercado. Os dados empíricos também permitem inferir que o aumento das entidades filantrópicas no SUS parece não repercutir na qualidade da assistência à saúde.

Estas instituições mantêm o comportamento de uma instituição privada lucrativa, mas com os benefícios de instituições filantrópicas. Esse fenômeno é favorecido pela incipiente regulação estatal, e as instituições se mantêm com baixa transparência quanto ao percentual de serviços prestados ao público, e distintas organizações físicas e estruturais do serviço para recepção dos usuários públicos e privados.

Nesse sentido, percebe-se a importância de pesquisas dentro dessa temática, a fim de verificar sua expressão em diferentes regiões. Além disso, advoga-se por políticas que minimizem as iniquidades quanto à oferta de serviços das entidades filantrópicas por meio de critérios que fortaleçam a participação popular, as especificidades contratuais regionais, a integralidade da atenção e os mecanismos de regulação e governança dos entes públicos, na perspectiva de serviços voltados às necessidades da população, e não aos interesses do mercado.

REFERENCES

  • 1
    Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, et al. Arranjos regionais de governança do Sistema Único de Saúde: diversidade de prestadores e desigualdade espacial na provisão de serviços. Cad Saude Publica. 2019;35 Supl 2:e00094618. https://doi.org/10.1590/0102-311X00094618
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    » https://www.fbh.com.br/wp-content/uploads/2021/04/Cenarios_2020.pdf
  • Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes - Processo: 88881.652035/2021-01 - Programa Capes DS. Auxílio: 517/2021 - Edital: Proap 2020 Estaduais).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2022
  • Aceito
    09 Jul 2022
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