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HOMENAGEM-TRIBUTE

Prof. Raymundo Martins Castro (1927-1993)

Prof. Carlos da Silva Lacaz

Com a trágica morte do Prof. Raymundo Martins Castro ocorrida em a noite do dia 11 de setembro, está de luto a Dermatologia brasileira. Toda a classe médica do país lamentou a perda de um colega de raros predicados intelectuais e morais, devotado ao trabalho e à família, servindo ao país de modo dignificante e exemplar, formando e desenvolvendo novos valores humanos, atendendo com elevado espírito de humanidade a seus doentes, principalmente nossa tão sofrida população indígena.

Sempre mereci do ilustre colega inúmeras provas de indefectível amizade e elevado apreço. Considerava-me seu segundo pai, motivo para mim de justificada satisfação e até de orgulho. Realmente, tudo o que estava ao meu alcance eu procurava ir em auxílio de um homem de bem, que desejava seguir a carreira paterna, a de seu honrado pai, por quem tinha verdadeira veneração, o saudoso e preclaro mestre Prof. Abilio Martins de Castro (1885-1968), positivista de formação, com vasta cultura humanística e que teve o privilégio de trabalhar com o famoso Raimond Jacques Andrieu Sabouraud (1864-1938) no Hôpital Saint Louis, de Paris, onde conviveu ao lado de um outro brasileiro, Prof. Nicolau Rossetti, primeiro titular de Dermatologia da Escola Paulista de Medicina. Raymundo foi o nome dado pelo pai ao filho em, homenagem a um dos grandes mestres da Micologia, famoso pelo meio de cultivo que leva seu nome e pelos estudos clássicos que realizou sobre as "Tinhas". Abilio Martins de Castro tinha seus amores pela literatura portuguesa, principalmente Camões e Eça de Queiróz. Sua biblioteca particular, neste setor, foi doada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, logo após seu desaparecimento. Conhecendo como poucos a vida e obra de Raymundo Martins Castro, sinto-me na obrigação de retratar, principalmente aos dermatologistas brasileiros, as principais características do pranteado colega que sempre vivo permanecerá em nossa lembrança. Nasceu Raymundo Martins Castro em São Paulo, a 14 de julho de 1927, filho do Prof. Abílio Martins de Castro, antigo assistente da Faculdade de Medicina e Professor de Histologia na Escola de Medicina Veterinária (um de seus assistentes fora Humberto Cerruti) e de dona Maria José Gomes de Castro. Diplomado pela Faculdade de Medicina em 1952 após residência em doenças infecciosas e parasitárias nesta Faculdade, torna-se meu assistente, defendendo tese de doutoramento a 5 de abril de 1960, na antiga cadeira de Microbiologia e Imunologia da Faculdade de Medicina da USP (destruída pelos Catões do ensino e os aríetes da demolição) com a monografia "Prova da esporotriquina. Contribuição para seu estudo". Segue para a Alemanha, a fim de realizar no Tropeninstitut, de Hamburgo, Curso de Especialização, já famoso, em Medicina Tropical. Torna-se amigo do saudoso professor Hugo Lumbreras, do Peru, e de Heins Muhlfordt, este último protozologista de formação, que estivera há pouco, em São Paulo, hospedando-se no apartamento de Raymundo, vindo em férias para o Brasil. Visitara Foz de Iguaçu e outros lugares próximos ao Paraguai e Argentina.

Foi Raymundo Martins Castro que nos trouxe da Alemanha, as bases para a organização do "Curso de Especialização em Medicina Tropical" por nós promovido, regularmente, durante o período em que dirigimos o Instituto de Medicina Tropical de São Paulo. Volta para o Brasil, indo trabalhar na Clínica Dermatológica da Faculdade de Medicina, com o Prof. Sebastião de Almeida Prado Sampaio. Envereda-se, então, para a Dermatologia e em 1965 conquista a livre-docência na disciplina da qual seria cultor apaixonado, com a tese "Nefrotoxicidade da anfotericina B. Estudo em material de biopsia". Vagando-se a cadeira de Dermatologia da Escola Paulista de Medicina, concorre a professor titular da mesma. Orienta diversas teses. Organiza excelente Curso de pós-graduação na especialidade. Consegue um Departamento para a disciplina de Dermatologia.

Em 1970 publica com os professores Sampaio e Rivitti, excelente livro de "Dermatologia Básica", através da Editora Artes Médicas. Em 1978, reaparece a 2ª edição deste excelente texto.

Raymundo Martins Castro tinha verdadeira paixão pelos trabalhos de campo da área de Dermatologia. Com Sinésio Talhari e René Garrido Mendes, organizou recentemente expedição científica em região do norte Juruá (Amazônia Ocidental), foco endêmico de Pinta entre os índios canamarus.

Em plena floresta amazônica, através de zonas indômitas, transpondo serras e caudais fluviais, "lá onde a seriema grita e o eco não responde", realiza magnífico trabalho de Dermatologia tropical, desafiando o clima hostil e a terra áspera, qual novo desbravador.

Possuía Raymundo Martins Castro boa cultura humanística, apreciando a historiografia médica. Várias vezes conversamos sobre este tema.

Ainda recentemente, pediu-me emprestado o Dicionário médico de Littré para xerocar algumas páginas do famoso enciclopedista francês, médico e membro da Acadêmia Francesa de Letras e que traduziu, também, do grego para o francês, a fabulosa obra que nos legou Hippocrates, o oráculo de Cós.

Tinha idolatria pelo pai, de quem herdou qualidades e atributos de elevada correção moral. Nos últimos anos de sua produtiva vida, passou por momentos difíceis. Sofreu muito, mas soube, aos poucos, superar a crise. Estava alegre e feliz, por ocasião do 47º Congresso da Sociedade Brasileira de Dermatologia realizado em Curitiba, de 4 a 8 de setembro. Contou-me que iria clinicar em São Roque (Estado de S. Paulo) onde organizou uma Secção Regional da Sociedade Brasileira de Dermatologia, após sua recente aposentadoria na Escola Paulista de Medicina.

Casado com a médica Athaly Baptístine de Campos (diplomada em 1955 pela Faculdade de Medicina de São Paulo), teve cinco filhos maravilhosos, de grande talento, que se constituíam em seu maior orgulho. Eles saberão honrar o nome paterno, um deles dando continuidade aos trabalhos do pai. E a lembrança do mestre ficará para sempre, pois "nem tudo é morrer no que se acaba, se a realidade refloresce na lembrança sempre presente".

A lealdade para com seus mestres foi um traço marcante de sua personalidade. Era, às vezes, rude, mas dono de um grande coração. Deixa-nos enorme legado. Este haverá de permanecer. Recentemente prefaciou em belas palavras o livro de Aurélio Ancona Lopes e col. -Temas de Dermatologia Infantil (São Paulo, EPUC, 1993), através de palavras cheias de ternura, elogiando merecidamente o fabuloso trabalho realizado por este colega queridíssimo, que se tornou, merecidamente, um símbolo para todos nós, pela sua simplicidade, apanágio dos verdadeiros homens, aqueles que sobreviverão à passagem terrena.

Conta-se que, na França, quando se deliberava conferir, a algum cidadão honra insígne por obra de benemerência realizada em favor da humanidade, declarava-se oficialmente que ele bem mereceu da Pátria. "Il a mérité de la Patrie".

Raymundo Martins Castro, recentemente falecido, foi honra e glória da medicina brasileira. Estremeceu a Pátria, viveu para o trabalho e a família e não perdeu jamais seu grande ideal, o ideal de servir, o ideal de ser útil a seus semelhantes. Terá, para sempre, um lugar de relevo na Dermatologia Brasileira. Dai-lhe, SENHOR, o descanso eterno e o resplendor da luz perpétua.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Fev 1994
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