Acessibilidade / Reportar erro

Criptococose não associada àAIDS no Rio Grande do Sul: relato deoito casos e revisão daliteratura sul-riograndense

Resumos

Relatam-se oito casos de criptococose não associada à AIDS diagnosticados em Santa Maria, RS, no período 1961-1995. É revisada a literatura sul-riograndense sobre a micose e comentada a prevalência da infecção pela var. neoformans em pacientes sem doença predisponente nas regiões subtropicais.

Criptococose; Pacientes não aidéticos


We report eight cases of cryptococcosis in non AIDS patientes diagnosed in Santa Maria, RS, during 1961-1995. A review of the literature is performed and the prevalence of the infection caused by var. neoformans in patients without underlying disease in subtropical regions is commented.

Cryptococcosis; Non AIDS patients


CRIPTOCOCOSE NÃO ASSOCIADA À AIDS NO RIO GRANDE DO SUL: RELATO DE OITO CASOS E REVISÃO DA LITERATURA SUL-RIOGRANDENSE

Jorge O. Lopes, Jane M. Costa, Leandro A. Streher, Clovis Clock, Marcelo S. Pinto e Sydney H. Alves

Relatam-se oito casos de criptococose não associada à AIDS diagnosticados em Santa Maria, RS, no período 1961-1995. É revisada a literatura sul-riograndense sobre a micose e comentada a prevalência da infecção pela var. neoformans em pacientes sem doença predisponente nas regiões subtropicais.

Palavras-chaves: Criptococose. Pacientes não aidéticos.

A criptococose é uma infecção aguda, subaguda ou crônica, causada por duas variedades do Cryptococcus neoformans: var. neoformans e var. gattii. A infecção causada pela var. neoformans é de distribuição cosmopolita, geralmente acometendo o indivíduo imunocomprometido residente em área urbana, sendo o habitat desta variedade associado aos locais ricos em fezes de pombos e de outras aves. A infecção causada pela var. gattii é considerada prevalente em regiões tropicais e subtropicais, geralmente acometendo o indivíduo imunocompetente residente em área rural11 20 24, sendo o habitat do fungo associado ao eucalipto (Eucalyptus camaldulensis e E. tereticornis)7 17. Esta variedade também foi isolada das fezes de morcegos em casa abandonada13, de ninho de vespas4 e, recentemente, de ocos de oiti (Moquilea tomentosa) e de cássia (Cassia grandis), em praça pública da cidade de Terezina, PI14.

Antes do surgimento da AIDS, a criptococose era doença de ocorrência rara, geralmente associada ao uso de corticóides, diabete mélito, doença de Hodgkin e a lupus eritematoso sistêmico (LES)11. Na presente publicação relatamos a ocorrência de oito casos de criptococose não associada à AIDS, diagnosticados no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), RS, no período 1961-1995, e revisamos a literatura Sul-riograndense sobre a micose.

MATERIAL E MÉTODOS

No período 1961-1995, foram diagnosticados oito casos de criptococose não associada à AIDS no Serviço de Micologia do HUSM. Em todos os casos, o diagnóstico foi baseado no exame do líquor coletado por punção lombar, em preparações com nigrosina e/ou isolamento do fungo em cultivo no meio de Sabouraud, incubado a 25oC. A diferenciação entre as variedades foi realizada por semeaduras no meio CGB (canavanina, glicina e azul de bromotimol)10.

RESULTADOS

Os dados dos oito casos são mostrados na Tabela 1. Todos os pacientes eram brancos, com idade variando de dois a 62 anos. A relação masculino/feminino foi de 3/1 na doença causada pela var. neoformans e o único caso com a var. gattii ocorreu em um homem de zona rural. O comprometimento exclusivo do sistema nervoso central (SNC) foi o motivo de internação de quatro pacientes, LES de dois e ambos os pacientes com doença de Hodgkin internaram com quadro de broncopneumonia.

No tratamento de todos os pacientes foi utilizada anfotericina B, isolada ou em associação com 5-fluorocitosina. Dos pacientes sem doença predisponente, apenas o caso com var. gattii evoluiu para óbito. Os pacientes com LES tiveram cura sem recidivas, e os pacientes com doença de Hodgkin evoluíram para óbito.

DISCUSSÃO

Desde o relato de Clausel em 19493, foram diagnosticados 56 casos adicionais de criptococose em pacientes não aidéticos no Rio Grande do Sul: 31 pela var. neoformans, nove pela var. gattii e 16 que não tiveram a variedade caracterizada2 5 9 16 18 19 21 22 23 24 25 26 (Tabela 2). A doença causada pela var. neoformans apresentou distribuição uniforme em todas as faixas etárias, enquanto a var. gattii foi diagnosticada com mais freqüência entre 30 e 49 anos. A relação masculino/feminino foi de 2/1 na var. neoformans e de 8/1 na var. gattii. Manifestações exclusivas do SNC foram observadas em 38,7% dos pacientes infectados pela var. neoformans e em 44,4% dos com var. gattii, sendo o exame do líquor positivo em 87,1% dos pacientes com a var. neoformans e em 77,7% dos com a var. gattii. Doença predisponente esteve com maior freqüência associada à infecção causada pela var. neoformans (64,5%) do que pela var. gattii (11,5%). A doença evoluiu para óbito em 42% dos pacientes com a var. neoformans e em 33% dos com a var. gattii.

Embora exista pequeno número de casos de criptococose em pacientes sem doença predisponente, alguns aspectos devem ser considerados. No Brasil, Rozembaum e cols20 estudaram 12 casos, encontrando a var. gattii em 58% (7/12) e a var. neoformans em 42% (5/12). Os pacientes com a infecção pela var. gattii procediam das regiões nordeste e sudeste do Brasil, onde predomina o clima tropical. Na Argentina, Bava e Negroni1 estudaram 32 casos de criptococose não associada à AIDS, isolando a var. gattii em quatro; 12 dos pacientes não apresentavam doença predisponente. Na Austrália, Kwon-Chung e cols12 estudaram 35 casos de criptococose em pacientes sem doença predisponente e identificaram a var. gattii em 74% (26/35) e a var. neoformans em 26% (9/35). Os pacientes com infecção pela var. gattii eram, na sua maioria, aborígenes da região norte da Austrália e 70% deles apresentavam comprometimento do SNC8. É importante salientar que, embora a Austrália e o Rio Grande do Sul estejam situados em regiões "cortadas" pelo paralelo 30oS, o norte da Austrália está localizado na região tropical, como a maior parte do Brasil. No Rio Grande do Sul, foram diagnosticados 19 casos de criptococose em pacientes sem doença predisponente, sendo a var. neoformans caracterizada em 58% (11/19) e a var. gattii em 42% (8/19). Na Austrália, 15% (4/26) dos casos de doença pela var. gattii evoluíram para óbito, não tendo ocorrido nenhuma morte pela var. neoformans. No Rio Grande do Sul, 25% (2/8) dos casos pela var. gattii e 45% (5/11) dos casos pela var. neoformans evoluíram para óbito.

Em pacientes não imunocomprometidos, a var. gattii é prevalente nas regiões tropicais, inclusive no Brasil20 e na Austrália8. Nas regiões subtropicais, incluindo o sul do Brasil, a Argentina e provavelmente o sul da Austrália, a var. neoformans parece ser a variedade prevalente. A alta taxa de mortalidade observada na infecção pela var. neoformans no Rio Grande do Sul (40% [8/20] em pacientes com doença predisponente, e 45% [5/11] em pacientes sem doença predisponente) está de acordo com os dados de Dromer e cols6 que mostraram ser uma infecção grave, mesmo em pacientes sem doença predisponente, com taxas de mortalidade de 10-25%.

SUMMARY

We report eight cases of cryptococcosis in non AIDS patientes diagnosed in Santa Maria, RS, during 1961-1995. A review of the literature is performed and the prevalence of the infection caused by var. neoformans in patients without underlying disease in subtropical regions is commented.

Key-words: Cryptococcosis. Non AIDS patients.

Departamento de Microbiologia e Parasitologia e Serviço de Micologia, Hospital Universitário, Universidade Federal de Santa Maria, RS.

Endereço para correspondência: Dr. Jorge O. Lopes. Deptº de Microbiologia e Parasitologia/UFSM, Faixa de Camobi. km 09, 97119-900.Santa Maria, RS.

Fax: (055) 220- 8742.

Recebido para publicação em 24/07/96.

  • 1. Bava AJ, Negroni R. Caracteristicas epidemiologicas de 105 casos de criptococosis diagnosticados en la Republica Argentina entre 1981-1990. Revista do Instituto de Medicina Tropical Săo Paulo 34:355-340, 1992.
  • 2. Carneiro JF. Micoses pulmonares no Brasil. Revista do Serviço Nacional de Tuberculose 4:183-210, 1960.
  • 3. Clausell DT. Infecçăo primitiva do sistema nervosos central por Torulopsis neoformans (= Torula histolytica). Anais da Faculdade de Medicina de Porto Alegre 9:71-77, 1949.
  • 4. Conti-Diaz IA. Highlights of cryptococcosis in Uruguay. Bulletin de la Société Française de Mycologie Medicale 19:83-90, 1990.
  • 5. Costa FS, Palazzo AB, Sparenberg ALF, Kalil RSN, Neugebauer SA. Criptococose pulmonar em paciente com insuficięncia renal crônica. Relato de um caso. Revista da Associaçăo Médica do Rio Grande do Sul 30:39-41, 1986.
  • 6. Dromer F, Mathoulin S, Dupont B, Brugiere D, Letenneur L and French Cryptococcosis Study Group. Comparison of the efficacy of amphotericin B and fluconazole in the treatment of cryptococcosis in humam immunodeficiency virus-negative patients: retrospective analysis of 83 cases. Clinical Infectious Diseases 22 (suppl 2):S154-160, 1996.
  • 7. Ellis D, Pfeiffer TJ. Natural habits of Cryptococcus neoformans var. gattii Journal of Clinical Microbiology 28:1642-1644, 1990.
  • 8. Ellis DH. Cryptococcus neoformans var. gattii in Australia. Journal of Clinical Microbiology 25:430-431, 1987.
  • 9. Fontana MH, Coutinho MF, Camargo ES, Soviero B, Lima SSF, Matusiak KR, Dias CG. Neurocriptococose na infância. Relato de tręs casos na primeira década de vida. Arquivos de Neuropsiquiatria 45:403-411, 1987.
  • 10. Kwon-Chung KJ, Polacheck I, Bennett JE. Improved diagnostic medium for separation of Cryptococcus neoformans var. neoformans (serotype A and D) and Cryptococcus neoformans var. gattii (serotype B and C). Journal of Clinical Microbiology 15: 535-537, 1982.
  • 11. Kwon-Chung KJ, Benett JE. Cryptococcosis. In: Kwon-Chung KJ (ed) Medical micology. Lea e Febiger, Philadelphia p. 397-446, 1992.
  • 12. Kwon-Chung KJ, Pffeifer T, Chang YC, Wickes BL, Mitchell D, Stern JJ. Molecular biology of Cryptococcus neoformans and therapy of cryptococcosis. Journal of Medical and Veterinary Mycology 32 (suppl 1):407-415, 1994.
  • 13. Lázera MS, Wanke B, Nishikawa MM. Isolation of both varieties of Cryptococcus neoformans from saprophytic sources in the city of Rio de Janeiro, Brazil. Journal of Medical and Veterinary Mycology 31: 449-454, 1993.
  • 14. Lázera M, Nishikawa M, Salmito A, Wanke B. Cryptococcus neoformans var. gattii em oco de oiti e cássia. In: Anais do III Congresso do Pavilhăo Pereira Filho, Porto Alegre p.149, 1995.
  • 15. Mitchell TG, Perfect JR. Cryptococcosis in the era of AIDS-100 years after the discovery of Cryptococcus neoformans Clinical Mycrobiology Reviews 8: 515-548, 1995.
  • 16. Neves da Silva N. Criptococose cutânea. O Hospital 44:99-105, 1953.
  • 17. Pfeiffer TJ, Ellis DH. Environmental isolation of Cryptococcus neoformans var. gattii from Eucalyptus tereticornis. Journal of Medical and Veterinary Mycology 30:407-408, 1992.
  • 18. Prolla JC, Rosa VW, Xavier RG. The detection of Cryptococcus neoformans in sputum citology. Report of one case. Acta Cytologica 14:87-91, 1970.
  • 19. Roesch EW, Luz CAS, Tregnago R, Severo LC. Soromicologia da criptococose: a propósito de 51 casos estudados em Porto Alegre, RS. Revista da Associaçăo Médica do Rio Grande do Sul 39:44-48, 1995.
  • 20. Rozenbaum R, Gonçalves AJR, Wanke B, Caiuby MJ, Clemente H, Lázera MS, Monteiro PCF, Londero AT. Cryptococcus neoformans varieties as agents of cryptococcosis in Brazil. Mycopathologia 119:133-136, 1992.
  • 21. Severo LC, Londero AT, Martins SC, Reolon M, Geyer RG. Provável criptococose pulmonar causada por Cryptococcus neoformans năo capsulado. Revista do Instituto de Medicina Tropical Săo Paulo 23:283-286, 1981.
  • 22. Severo LC, Pinto JAF, Geyer GR, Ymay I. Criptocococse. Apresentaçăo de um caso com nódulo pulmonar único. Revista Brasileira de Patologia Clínica 19:164-166, 1983.
  • 23. Severo LC, Petrillo VF, Oliveira MEN, Pereira Filho AB, da Rocha VM. Criptococúria. Relato de caso Revista da Associaçăo Médica do Rio Grande do Sul 30:137-139, 1986.
  • 24. Severo LC. Criptococose: duas doenças? Tese de Livre-Docęncia, Fundaçăo Faculdade Federal de Cięncias Médicas, Porto Alegre, RS, 1993.
  • 25. Tarasconi JC, Medeiro BS, Xavier RG. Criptococose no Rio Grande do Sul. Relato de novo caso. Revista da Associaçăo Médica do Rio Grande do Sul 22:54-57, 1978.
  • 26. Tregnago MC, Coutinho LMB, Haase HB. Criptococose sistęmica. Estudo autóptico de dois casos. Revista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre 5:67-70, 1985.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2000
  • Data do Fascículo
    Out 1997

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 1996
Sociedade Brasileira de Medicina Tropical - SBMT Caixa Postal 118, 38001-970 Uberaba MG Brazil, Tel.: +55 34 3318-5255 / +55 34 3318-5636/ +55 34 3318-5287, http://rsbmt.org.br/ - Uberaba - MG - Brazil
E-mail: rsbmt@uftm.edu.br