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Resistência à mefloquina do tipo RIII em crianças com malária falciparum em Manaus, AM, Brasil

RIII mefloquine resistance in children with falciparum malaria in Manaus, AM, Brazil

Resumos

Relata-se a ocorrência de resistência à mefloquina administrada na dose de 20mg/kg em 51 crianças com malária falciparum atendidas em centro de referência em Manaus, Brasil, no período de outubro a novembro de 1997. Todas as crianças foram avaliadas nos dias 3, 5, 7, 14, 21, 28 e 35 do tratamento, segundo critérios clínico e parasitológico. Foi encontrada uma incidência de resistência RIII de 5,9% (IC 95% variando de 1,5 a 17,2), a razão cura/resistência calculada foi 20:1 e cura/gravidade 62:1. Os dados chamam a atenção para a importância da resistência à mefloquina nesse grupo de crianças.

Malária; P. falciparum; Mefloquina; Resistência; Crianças


We report the occurrence of resistance to mefloquine 20mg/day in 51 children with falciparum malaria treated, at reference center of Manaus, Brazil, from October to December 1997. All children were evaluated at day 3, 5, 7, 14, 21, 28 and 35 of treatment. Clinical and parasitological cure criteria were adopted. The incidence of RIII mefloquine resistance was 5.9% (IC 95% 1.5-17.2). The cure/resistance proportion was 20:1 and cure/severity was 62:1. These findings suggest the importance of mefloquine resistance within this group of children.

Malaria; P. falciparum; Mefloquine; Resistance; Children


ARTIGO

Resistência à mefloquina do tipo RIII em crianças com malária falciparum em Manaus, AM, Brasil

RIII mefloquine resistance in children with falciparum malaria in Manaus, AM, Brazil

Elza Noronha, Maria das Graças Alecrim, Gustavo Adolfo Sierra Romero e Vanize Macêdo

Resumo Relata-se a ocorrência de resistência à mefloquina administrada na dose de 20mg/kg em 51 crianças com malária falciparum atendidas em centro de referência em Manaus, Brasil, no período de outubro a novembro de 1997. Todas as crianças foram avaliadas nos dias 3, 5, 7, 14, 21, 28 e 35 do tratamento, segundo critérios clínico e parasitológico. Foi encontrada uma incidência de resistência RIII de 5,9% (IC 95% variando de 1,5 a 17,2), a razão cura/resistência calculada foi 20:1 e cura/gravidade 62:1. Os dados chamam a atenção para a importância da resistência à mefloquina nesse grupo de crianças.

Palavras-chaves: Malária. P. falciparum. Mefloquina. Resistência. Crianças.

Abstract We report the occurrence of resistance to mefloquine 20mg/day in 51 children with falciparum malaria treated, at reference center of Manaus, Brazil, from October to December 1997. All children were evaluated at day 3, 5, 7, 14, 21, 28 and 35 of treatment. Clinical and parasitological cure criteria were adopted. The incidence of RIII mefloquine resistance was 5.9% (IC 95% 1.5-17.2). The cure/resistance proportion was 20:1 and cure/severity was 62:1. These findings suggest the importance of mefloquine resistance within this group of children.

Key-works: Malaria. P. falciparum. Mefloquine. Resistance. Children.

A resistência aos antimaláricos tem ampla distribuição no mundo e é um dos entraves para o controle da malária, valendo lembrar que a disseminação de cepas de P. falciparum resistentes à cloroquina, hoje, praticamente se sobrepõe à distribuição geográfica da endemia. A resistência do plasmódio às drogas está relacionada a fatores ligados ao parasita, ao hospedeiro e às condições sócio-econômicas e, geralmente, o uso frequente, abusivo e indiscriminado dos medicamentos corrobora para a disseminação de cepas resistentes.

Na Amazônia Brasileira, a multirresistência do P. falciparum foi verificada desde a década de 801 2 6, fazendo-se necessária a busca de medicações alternativas mais eficazes, como a mefloquina. Apesar de alguns estudos de sensibilidade in vivo3 13 mostrarem resistência RI do Plasmodium falciparum à mefloquina nessa região, a caracterização in vitro, geralmente, aponta para a boa resposta à droga9 18. Em contrapartida, em um estudo longitudinal realizado no Estado do Pará7, foi observada a tendência ao aumento das concentrações inibitórias mínimas da mefloquina para o plasmódio ao longo do tempo, sugerindo a possibilidade de diminuição da sensibilidade com o uso da droga a longo prazo. De uma maneira geral, até o presente momento, não existem dados suficientes relacionados à resistência que impossibilitem o uso da mefloquina para o tratamento da malária falciparum no Brasil.

A problemática da resistência às drogas antimaláricas torna-se ainda maior quando se considera a infecção pelo P. falciparum em crianças, por se tratar de um grupo etário onde a doença está potencialmente relacionada com maior morbidade e mortalidade. Relata-se nesse trabalho, a ocorrência de resistência à mefloquina, com padrão RIII, em crianças tratadas em centro de referência em Manaus, AM, Brasil.

MATERIAL E MÉTODOS

Durante um estudo clínico, realizado no Instituto de Medicina Tropical do Amazonas (IMT-AM), na cidade de Manaus, no período de outubro a dezembro de 1997, foram acompanhadas 51 crianças com idade de até 14 anos, com diagnóstico de malária falciparum não complicada, tratadas com mefloquina na dose de 20mg/kg fracionada em duas doses com intervalo de 6 horas. Garantiu-se que os pacientes não tivessem história de convulsões17 e todos foram avaliados segundo os critérios de gravidade estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS)19. Cada criança teve uma ficha clínica contendo dados de anamnese e clínicos. O diagnóstico laboratorial da malária foi realizado por meio de gota espessa com coloração pelo Giemsa4, sendo realizada a contagem de parasitos em relação a 100 leucócitos com posterior cálculo da densidade parasitária. A primeira dose da mefloquina foi administrada sob supervisão e a segunda, em casa pelos pais ou agentes de cuidados, sendo orientados para a possibilidade de intercorrências. O controle de cura foi feito nos dias 3, 5, 7,14, 21, 28 e 35, sendo registrado o desaparecimento da febre e da parasitemia assexuada. O padrão de sensibilidade in vivo foi avaliado segundo a OMS11. Os pacientes resistentes foram tratados com associação de artemether em duas doses: 2mg/kg/dia e 1mg/kg/dia.

O protocolo de pesquisa foi submetido e aprovado pela Comissão de Ética do IMT-AM e cumpriu com as exigências da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre Desenvolvimento de Pesquisa em Seres Humanos. A análise de dados foi realizada no Programa EPI-INFO versão 6.04. A freqüência da resistência foi estimada por meio de proporção com seu respectivo Intervalo de Confiança de 95% com nível de significância de 5% e os eventos incidentes foram expressos pela relação pacientes/dias de observação.

RESULTADOS

Foram acompanhadas 51 crianças com média de idade de 7,5 anos (desvio padrão de 4,2 anos), sendo semelhantes as proporções entre os sexos: 45,1% para o feminino e 54,9% para o masculino. Houve perdas amostrais no seguimento dos pacientes visto que, dos 51 que iniciaram o estudo, somente 36 compareceram para verificação de cura no terceiro dia, 10 no quinto, 29 no sétimo, 15 no 14º, 13 no 21º, 11 no 28º e 4 no 35º dia. Uma criança foi excluída da análise de resistência pois apresentou aumento da parasitemia (de 3825 para 43775 parasitas/mm3) associado a crise convulsiva, sendo necessário o uso de artemether no segundo dia de tratamento.

Os principais sintomas e sinais encontrados nos pacientes, previamente ao tratamento, estão mostrados na Tabela 1. No exame físico, 98% das crianças não apresentavam alterações do estado geral. Entre os achados anormais, 49% tinham hepatomegalia, 43,1% esplenomegalia, 33,3% palidez cutâneo-mucosa e 5,9% desidratação leve.

Tabela 1
- Principais manifestações clínicas em 51 crianças com malária falciparum tratadas com mefloquina no IMT-AM, Brasil.

Em relação à resposta terapêutica, três (5,9%) pacientes (IC 95% de 1,5 a 17,2) apresentaram malária resistente à mefloquina. O padrão de resistência foi caracterizado como RIII, como está representado na Figura 1, onde se observa um gráfico logarítimico, mostrando a tendência do comportamento das parasitemias. Todas as três crianças tinham relato de episódio anterior de diarréia e duas de vômitos. Dessas, uma evolui para gravidade, tendo apresentado hiperparasitemia, infecção pulmonar e hemoglobinúria. Em todas as crianças, houve negativação da parasitemia até o sétimo dia de tratamento, após o uso de artemether. Não foram referidos outros efeitos adversos nas demais crianças.


Na tentativa de aproveitamento dos dados, foi utilizada a variável pacientes/tempo para estabelecer as relações entre alguns eventos incidentes nos primeiros sete dias pós tratamento. Os índices de cura, resistência e de gravidade calculados para o grupo de crianças foram os seguintes: 373 casos/1.000 pacientes/dia, 18 casos/1.000 pacientes/dia e 6 casos/1000 pacientes dia, permitindo estabelecer uma relação de cura/resistência de 20:1 e cura/gravidade de 62:1.

DISCUSSÃO

A mefloquina foi introduzida no Brasil como alternativa terapêutica para malária falciparum multirresistente na década de 80, quando foram realizados os primeiros ensaios clínicos de eficácia12 14 15 16 e tem sido usada, com relativa segurança, no tratamento das crianças com malária falciparum10 e em associação com derivados da artemisinina, na malária grave e nas cepas de P. falciparum resistentes às múltiplas drogas5.

O achado de resistência RIII à mefloquina encontrado nesse estudo aponta para a necessidade de melhor monitorização da sensibilidade da droga nas crianças tratadas no IMT-AM e para a importância do fenômeno na determinação da maior morbidade pela doença, fazendo-se necessário estudos mais aprofundados como a caracterização de fatores de risco para a resistência, visando o uso racional da medicação.

Alguns desses fatores foram estudados em crianças na Tailândia8, sendo verificado que a baixa idade, a presença de diarréia nos primeiros dois dias do tratamento, a alta parasitemia, a anemia e tratamentos anteriores estavam relacionados com o insucesso terapêutico. No presente estudo não foi possível estabelecer esse tipo de correlação, embora se tenha observado a ocorrência de diarréia e vômitos previamente ao tratamento, o que poderia ter influenciado a absorção da droga, interferindo com a boa resposta clínica.

Relatamos, pela primeira vez, a ocorrência de resistência RIII à mefloquina em crianças da Amazônia, o que poderá contribuir para a reavaliação da terapêutica utilizada correntemente no IMT-AM, em Manaus, sugerindo a necessidade de uso mais racional da mefloquina, bem como de padronização de drogas alternativas mais eficazes e seguras.

AGRADECIMENTOS

Às crianças e aos seus pais pela colaboração, ao Prof. Wilson Duarte Alecrim pelas facilidades oferecidas para realização desse estudo no IMT-AM, ao Sr. Pedro S. Lopes e à Sra. Raimunda Barreto pela revisão do diagnóstico parasitológico.

Núcleo de Medicina Tropical e Nutrição da Universidade de Brasília, Brasília, DF e Instituto de Medicina Tropical do Amazonas, Manaus, AM, Brasil.

Endereço para correspondência: Dra Elza Noronha. Núcleo de Medicina Tropical e Nutrição/UNB. Caixa Postal 4517, 70919-970 Brasília, DF, Brasil.

Tel: 55 61 273-5008/348-2197, Fax: 55 61 273-2811

e-mail: tropical@unb.brRecebido para publicação em 25/5/99.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2000
  • Data do Fascículo
    Abr 2000

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 1999
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