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Efeitos adversos da poliquimioterapia em pacientes com hanseníase: um levantamento de cinco anos em um Centro de Saúde da Universidade Federal de Uberlândia

Adverse effects of multidrug therapy in leprosy patients: a five-year survey at a Health Center of the Federal University of Uberlândia

Resumos

A implementação da poliquimioterapia (PQT/OMS) - composta pelas drogas dapsona, clofazimina e rifampicina - possibilitou a cura da hanseníase, porém não foram priorizados o manejo dos efeitos adversos pelas equipes de saúde. Objetivando determinar a magnitude dos efeitos adversos da poliquimioterapia para hanseníase e relacioná-los como possível causa de não adesividade do paciente ao tratamento, revisou-se prontuários de 187 pacientes tratados com PQT, de 1995 a 2000, no Centro de Saúde Escola (CSE) <FONT FACE=Symbol>-</FONT>UFU, com registro de efeitos colaterais em 71 pacientes (37,9%). Dentre os 113 efeitos adversos, 80 (70,7%) relacionaram-se à dapsona, 7 (6,2%) à rifampicina, 26 (20,5%) à clofazimina. Esses efeitos levaram à mudança de esquema terapêutico em 28 (14,9%) dos 187 pacientes ou 39,4% dos 71 com efeitos adversos. Discute-se a importância de considerar os efeitos adversos da PQT na capacitação das equipes de saúde para maior adesão do paciente ao tratamento, colaborando para eliminar a hanseníase como problema de saúde pública.

Hanseníase; Reações adversas; Poliquimioterapia; Adesividade ao tratamento


The introduction of multidrug therapy (WHO/MDT) - composed by the drugs dapsone, clofazimine and rifampicin has enabled the cure of Hansen's disease, however, the adverse effects of these drugs were not given priority by the health team. Aiming to determine MDT's adverse effects' magnitude and relate them to the non-adhesion of patients to the treatment, a study of 187 charts of patients treated with MDT from January of 1995 to May 2000, was carried out at a Health Center of the Federal University of Uberlândia. Side effects were recorded in 71 patients' charts. Among the 113 side effects found, 80 (70.7%) were related to dapsone, 7 (6.2%) were caused by rifampicin and 26 (20.5%) were attributed to clofazimine. These effects induced 28 (14.9%), patients to change the therapeutic scheme, representing 39.4% from the 71 patients with adverse effects. Throughout this study, the importance is discussed of considering MDT's adverse effects when training the health team to heighten the patient's adhesion to the treatment and thereby collaborating to eliminate Hansen's disease as a public health problem.

Hansen's disease; Adverse effects; Multidrug therapy; Adhesion to treatment


ARTIGO

Efeitos adversos da poliquimioterapia em pacientes com hanseníase: um levantamento de cinco anos em um Centro de Saúde da Universidade Federal de Uberlândia

Adverse effects of multidrug therapy in leprosy patients: a five-year survey at a Health Center of the Federal University of Uberlândia

Isabela Maria Bernades Goulart1 1 . Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG. Endereço para correspondência: Dra. Isabela Maria Bernades Goulart. Av. Pará 1720, Bloco 2H, Campus Umuarama, 38405-320 Uberlândia, MG. Tel: 34 3218-2246, Fax: 34 3218-2349. E-mail: imbgoulart@ufu.br Recebido para publicação em 24/5/2001. , Guilherme Leonel Arbex1 1 . Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG. Endereço para correspondência: Dra. Isabela Maria Bernades Goulart. Av. Pará 1720, Bloco 2H, Campus Umuarama, 38405-320 Uberlândia, MG. Tel: 34 3218-2246, Fax: 34 3218-2349. E-mail: imbgoulart@ufu.br Recebido para publicação em 24/5/2001. , Marcus Hubaide Carneiro1 1 . Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG. Endereço para correspondência: Dra. Isabela Maria Bernades Goulart. Av. Pará 1720, Bloco 2H, Campus Umuarama, 38405-320 Uberlândia, MG. Tel: 34 3218-2246, Fax: 34 3218-2349. E-mail: imbgoulart@ufu.br Recebido para publicação em 24/5/2001. , Mariana Scalia Rodrigues1 1 . Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG. Endereço para correspondência: Dra. Isabela Maria Bernades Goulart. Av. Pará 1720, Bloco 2H, Campus Umuarama, 38405-320 Uberlândia, MG. Tel: 34 3218-2246, Fax: 34 3218-2349. E-mail: imbgoulart@ufu.br Recebido para publicação em 24/5/2001. e Rafael Gadia1 1 . Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG. Endereço para correspondência: Dra. Isabela Maria Bernades Goulart. Av. Pará 1720, Bloco 2H, Campus Umuarama, 38405-320 Uberlândia, MG. Tel: 34 3218-2246, Fax: 34 3218-2349. E-mail: imbgoulart@ufu.br Recebido para publicação em 24/5/2001.

ResumoA implementação da poliquimioterapia (PQT/OMS) - composta pelas drogas dapsona, clofazimina e rifampicina - possibilitou a cura da hanseníase, porém não foram priorizados o manejo dos efeitos adversos pelas equipes de saúde. Objetivando determinar a magnitude dos efeitos adversos da poliquimioterapia para hanseníase e relacioná-los como possível causa de não adesividade do paciente ao tratamento, revisou-se prontuários de 187 pacientes tratados com PQT, de 1995 a 2000, no Centro de Saúde Escola (CSE) ¾ UFU, com registro de efeitos colaterais em 71 pacientes (37,9%). Dentre os 113 efeitos adversos, 80 (70,7%) relacionaram-se à dapsona, 7 (6,2%) à rifampicina, 26 (20,5%) à clofazimina. Esses efeitos levaram à mudança de esquema terapêutico em 28 (14,9%) dos 187 pacientes ou 39,4% dos 71 com efeitos adversos. Discute-se a importância de considerar os efeitos adversos da PQT na capacitação das equipes de saúde para maior adesão do paciente ao tratamento, colaborando para eliminar a hanseníase como problema de saúde pública.

Palavras-chaves: Hanseníase. Reações adversas. Poliquimioterapia. Adesividade ao tratamento.

Abstract The introduction of multidrug therapy (WHO/MDT) - composed by the drugs dapsone, clofazimine and rifampicin has enabled the cure of Hansen's disease, however, the adverse effects of these drugs were not given priority by the health team. Aiming to determine MDT's adverse effects' magnitude and relate them to the non-adhesion of patients to the treatment, a study of 187 charts of patients treated with MDT from January of 1995 to May 2000, was carried out at a Health Center of the Federal University of Uberlândia. Side effects were recorded in 71 patients' charts. Among the 113 side effects found, 80 (70.7%) were related to dapsone, 7 (6.2%) were caused by rifampicin and 26 (20.5%) were attributed to clofazimine. These effects induced 28 (14.9%), patients to change the therapeutic scheme, representing 39.4% from the 71 patients with adverse effects. Throughout this study, the importance is discussed of considering MDT's adverse effects when training the health team to heighten the patient's adhesion to the treatment and thereby collaborating to eliminate Hansen's disease as a public health problem.

Key-words: Hansen's disease. Adverse effects. Multidrug therapy. Adhesion to treatment.

A hanseníase é uma doença infecciosa, de evolução crônica que acomete predominantemente os nervos periféricos e, secundariamente, pele e mucosas. Seu agente etiológico é o Mycobacterium leprae descoberto por G.A. Hansen, em 1873.

A infecção ativa pelo M. leprae é caracterizada por uma grande variabilidade no curso clínico, variando de uma doença paucibacilar na qual poucos bacilos estão presentes, a uma doença multibacilar, na qual uma grande carga bacilar está presente nas lesões.

A detecção e o tratamento dos casos são ainda, na atualidade, os principais métodos usados para combater a hanseníase visando a interrupção da cadeia de transmissão da doença23.

A hanseníase já foi objeto dos mais diversos tipos de tratamento, sendo que no final da década de 1940, foram publicados dois relatos de experiência de tratamento com a sulfona-mãe (diamino-difenil-sulfona), demonstrando bons resultados terapêuticos e baixo custo financeiro. A dapsona (DDS) firmou-se então, como a principal droga anti-hansênica e estratégica para o controle da doença na década de 195025.

Posteriormente, a partir de 1962, a clofazimina (CFZ) testada por Browne & Hogerzeil2 e a rifampicina (RMP), por Opromolla15, também começaram a ser utilizadas no tratamento da hanseníase.

No entanto, a monoterapia apresentava-se como a causa mais freqüente de desenvolvimento da resistência ao medicamento8 e a utilização de, no mínimo, duas drogas potentes ajudariam a superar esse problema.

Tendo conhecimento desse fato, a OMS, em 1981, introduziu a quimioterapia combinada com três drogas, conhecida como poliquimioterapia (PQT/OMS), que consiste no uso das três drogas consideradas as melhores, a saber: DDS + CFZ + RMP.

A PQT/OMS começou a ser implementada no Brasil em 1986 e, em 1991, foi adotada oficialmente pelo Ministério da Saúde (MS), sendo o tratamento poliquimioterápico recomendado para todos os casos de Hanseníase. Todavia, sua administração chegou a ser questionada pelos centros de saúde espalhados pelo país, em função dos muitos casos de efeitos adversos6 16. Para os indivíduos classificados como paucibacilares são recomendadas 6 doses mensais de rifampicina em até 9 meses de tratamento e, dapsona diariamente. Para os pacientes classificados como multibacilares, recomenda-se 12 doses mensais em até 18 meses de rifampicina e clofazimina e, dapsona e clofazimina em doses diárias4.

A dapsona ( DDS; 4, 4'- Diamino-Difenil-Sulfona) encontra-se no centro de toda terapêutica anti-hansênica e age através da competição com o ácido para-aminobenzóico (PABA), diminuindo ou bloqueando a síntese do ácido fólico bacteriano.

Vários efeitos colaterais são atribuídos à dapsona9 10, entre os quais: gastrite, cefaléia, fotodermatite, metahemoglobinemia, anemia hemolítica, agranulocitose, hepatite, síndrome sulfona, neuropatia periférica e síndrome nefrótica.

A clofazimina (Lampren, B663) é um derivado iminofenazínico e seu mecanismo de ação é ignorado, havendo possibilidade de que interfira diretamente com o DNA bacteriano9 10. Os mais importantes efeitos colaterais dessa droga são a hiperpigmentação cutânea, a ictiose e a síndrome do intestino delgado.

A rifampicina (RFP; RMP; Rifampim; Rifaldim, Rimactan) é um derivado semi-sintético da rifamicina B e age inibindo a síntese protéica bacteriana por combinar-se com a RNA polimerase. Seus efeitos colaterais incluem: hepatotoxidade, trombocitopenia, psicose, síndrome pseudo-gripal9 10. Choque, dispnéia, anemia hemolítica e insuficiência renal podem ocorrer raramente18 1 22.

Em 1992, o Ministério da Saúde foi signatário da meta de eliminação da hanseníase preconizada pela OMS24 (menos de 1 caso por cada 10.000 habitantes) e o Brasil passou de 16,4/10.000 habitantes em 1985 para 5,51/ 10.000 habitantes em 19974, por meio da implementação da poliquimioterapia (PQT). A efetividade do tratamento baseada na percentagem de curados entre os casos paucibacilares e os multibacilares foi de 72% e 62%, respectivamente, apresentando um baixo incremento devido à pequena redução do percentual de casos em abandono4.

Na medida em que as taxas de alta por cura e de abandono do tratamento praticamente estabilizaram-se, a meta de eliminação da hanseníase ficou protelada4. Provavelmente porque, ao implementar a PQT, questões relevantes como os prejuízos causados pelos efeitos adversos às drogas, assim como o manejo desses efeitos não foram levados em consideração, sendo que tais questões podem contribuir efetivamente para o afastamento do paciente e, ainda, levar à adoção de esquemas monoterápicos pelas equipes de saúde, que aumentam a probabilidade de resistência medicamentosa.

Considerando-se que 33% dos pacientes em registro ativo do Centro de Saúde Escola - UFU e do município estão em abandono, isto é, não receberam nenhuma dose supervisionada de poliquimioterapia no último ano14, pressupõe-se que um dos motivos deste abandono possa estar relacionado à ocorrência de efeitos colaterais das drogas utilizadas, bem como à não orientação prévia e adequada sobre os mesmos pelas equipes de saúde7, que não estão devidamente capacitadas para o diagnóstico e manejo destes efeitos6 16.

Como não há prevenção primária em hanseníase, isto é, não há uma vacina contra a doença, é consenso que a poliquimioterapia constitui-se hoje como a principal estratégia para interromper a cadeia de transmissão do M. leprae e eliminar a hanseníase como problema de saúde pública6 16. Portanto, torna-se necessário conhecer os efeitos colaterais relacionados às drogas utilizadas na poliquimioterapia da hanseníase, para que se possa prevenir e diagnosticar a ocorrência de tais efeitos.

O objetivo deste trabalho é determinar a magnitude dos efeitos colaterais relacionados às drogas utilizadas na PQT e relacionar tais efeitos como possível motivo de não adesividade do paciente ao tratamento, assim como ao risco de morbidade para o mesmo, contribuindo para o aumento da adesão ao tratamento e controle da hanseníase.

Dentro desta mesma proposta busca-se, também, subsidiar a capacitação das equipes dos serviços básicos de saúde para o diagnóstico e manejo dos efeitos adversos, evitando suspensão inadequada dessas drogas, o que poderia levar à resistência medicamentosa e ao fracasso terapêutico.

MATERIAL E MÉTODOS

Foi realizado um estudo analítico epidemiológico retrospectivo, através da análise dos prontuários de 187 pacientes registrados e tratados com poliquimioterapia no período de janeiro 1995 a maio de 2000, no Centro de Saúde Escola (CSE) - Jaraguá, uma das unidades do Centro de Referência Estadual em Hanseníase/Dermatologia Sanitária ¾ Hospital de Clínicas, Universidade Federal de Uberlândia, pertencente ao Distrito Sanitário Oeste do município de Uberlândia-MG.

Como instrumento de levantamento de dados, utilizou-se a Ficha para Investigação de Ocorrência de Efeitos Adversos na PQT em hanseníase, que contempla as seguintes variáveis: a) identificação do paciente; b) classificação clínica e operacional da doença; c) baciloscopia; d) teste mitsuda; e) tratamento (Duração e esquema adotado); f) testes laboratoriais antes e após o início do tratamento: (hemograma; função hepática; função renal; glicemia; urina EAS; parasitológico); g) história pessoal (uso de outros medicamentos, história de efeitos adversos relacionados à outras drogas, que não as do tratamento; história familiar de efeitos adversos de outras drogas, anemias, etc); h) Dados relacionados a efeitos adversos à PQT e condutas.

Cada efeito adverso notificado foi checado através dos exames, da conduta adotada e das informações descritas nos prontuários dos pacientes, para certificar se esses efeitos eram conseqüência das drogas que compõem a PQT.

RESULTADOS

Um total de 187 pacientes estão incluídos neste estudo, sendo 123 (66%) homens e 64 (34%) mulheres, com uma maior concentração (74%) nas faixas etárias entre 15 e 54 anos. Quanto à forma clínica, os pacientes avaliados foram assim distribuídos: 9 (4,8%) indeterminados (I), 26 (13,9%) tuberculóides (T), 124 (66,3%) dimorfos (D) e 28 (15%) virchowianos (V). De acordo com a classificação operacional, 35,8% eram paucibacilares (PB) e 64,2% multibacilares (MB).

Em relação aos efeitos colaterais causados pelas drogas que compõem a poliquimioterapia, verificou-se que eles ocorreram em sua maioria (74,5%) nos primeiros 6 meses de tratamento e, a dapsona causou maior número de efeitos adversos com 80 (70,8%) casos registrados em 54 pacientes de hanseníase tratados com PQT, seguido por 26 (23%) efeitos indesejáveis causados pela clofazimina em 21 pacientes, enquanto a rifampicina foi responsável por apenas 7 (6,2%) relatos em 7 pacientes.

No que se refere aos efeitos colaterais da dapsona, a gastrite foi o efeito adverso mais freqüente, constatado em 18 (22,5%) pacientes, seguido pela anemia hemolítica, 15 (18,8%) casos. A cefaléia apresentou-se predominantemente no sexo masculino: 9 (11,3%) casos de um total de 13 (16,3%), enquanto a astenia foi registrada em 11 (13,8%) pacientes. Outros efeitos adversos provocados pela dapsona foram: 6 (7,5%) casos de metahemoglobinemia, 5 (6,3%) de insônia e 4 (5%) de dermatite esfoliativa.

O efeito adverso que se destacou com o uso da clofazimina foi a ictiose, 18 (69,2%) casos. Merece destaque também a ardência nos olhos com 5 (19,2%) casos. A rifampicina acarretou 2 (28,6%) casos, tanto de febre quanto de cólica renal, além de 1 (14, 3%) caso de cada um dos seguintes efeitos: enjôo, dermatite alérgica e diarréia (Tabela 1).

Dos 15 pacientes que desenvolveram anemia hemolítica em reação à dapsona, 80% tinham mais de 35 anos, sendo que a taxa de incidência naqueles com idade superior a 54 anos foi a maior (14,3%) observada. Em relação à gastrite, o maior (44,4%) percentual de ocorrência foi nos pacientes com idade entre 35 e 54 anos, sendo também bastante significativa nos intervalos de idade adjacentes (27,8% em ambos). Porém, a taxa de incidência é maior (11,9%) nos pacientes cuja idade está acima de 54 anos (Tabela 2).

Sobre o tipo de conduta clínica adotada frente ao total de efeitos adversos provenientes da dapsona (80 efeitos), predominaram 26 (32,5%) condutas de mudança no tratamento, seguidos de 23 (28,8%) solicitações de exames e de 11 (13,7%) prescrições de sintomáticos. As condutas não relatadas e/ou expectantes perfazem um total de 20 (25%). Já para os efeitos colaterais relacionados à rifampicina (7), as 4 (57,4%) condutas expectantes e/ou não relatadas foram predominantes. Para os efeitos adversos relacionados à clofazimina (26) a conduta mais utilizada foi a prescrição de sintomáticos (Tabela 3).

Quanto à solicitação de exames complementares no diagnóstico da hanseníase, antes do início da terapêutica específica dos 187 pacientes estudados, apenas 39 (21%) fizeram hemograma, 24 (13%) exames de função hepática, 27 (14%) de função renal, 34 (18%) de glicemia, 18 (12%) exames de urina e 8 (4%) parasitológicos de fezes. Durante o tratamento, a quantidade de exames realizados foi de 34 (18%) hemogramas, 18 (12%) exames de função hepática, 15 (8%) de função renal, 21 (11%) de glicemia, 21 (11%) exames de urina e 4 (2%) parasitológicos de fezes (Tabela 4).

Com relação ao abandono e/ou conclusão do tratamento poliquimioterápico, dos 187 pacientes de hanseníase, houve 17 (9,1%) casos de abandono. Desses, em 12 não havia relato de efeitos colaterais nos prontuários, sendo 5 (41,7%) PB e 7 (58,3%) MB; 5 tinham relatos de efeitos adversos, sendo 3 (60%) PB e 2 (40%) MB (Tabela 5).

Dos 170 pacientes que concluíram o tratamento, 104 (61,1%) não sofreram efeitos colaterais, divididos entre 42 (40,4%) PB e 62 (59,6%) MB. Sobre os 66 pacientes que apresentaram efeitos, 17 (25,8%) eram PB e 49 (74,2%) MB (Tabela 5).

De um total de 71 pacientes que sofreram efeitos adversos, 51 (42,5%) eram MB e 20 (20,8%) PB. Não houve diferença entre as formas operacionais PB e MB no que diz respeito ao número de abandonos, ocorrendo 8 (47,1%) para os paucibacilares e 9 (52,9%) entre os multibacilares (Tabela 5).

DISCUSSÃO

No presente estudo, observou-se um predomínio de pacientes do sexo masculino, o que de acordo com Lombardi & Suárez12, poderia traduzir uma maior movimentação e oportunidade de contato social entre os homens. Contudo, a ocorrência de casos de hanseníase, aparentemente, tem igual freqüência entre as pessoas de ambos os sexos.

Sobre o predomínio das formas multibacilares (64,2%) e da faixa etária de 35 a 54 anos (31%) nos pacientes, pode-se considerar um período de incubação mais prolongado ou uma demora no diagnóstico12. Além disso, 45,5% dos doentes analisados são MB e possuem mais de 35 anos. A maioria dos estudos da distribuição de idade na hanseníase é baseada em dados de prevalência e, apenas alguns, nos dados de incidência. Por tratar-se de uma doença crônica, esses dados não refletem a idade específica de risco de adoecer13.

Como é o esperado em área endêmica, a forma clínica dimorfa foi a parte mais importante do espectro19, correspondendo a 124 (66,3%) doentes.

Ressalta-se que 138 (74%) pacientes analisados fazem parte da população economicamente ativa (15-54 anos), o que coincide com dados apresentados na literatura3 13. A ocorrência de efeitos colaterais concentrou-se na referida faixa etária, com 51 (75,9%) casos relativos à dapsona, 17 (77,3%) associados à clofazimina e 4 (57,1%) causados pela rifampicina. Esse dado é importante, na medida em que estes efeitos poderiam prejudicar o rendimento desses indivíduos em seus trabalhos e até mesmo incapacitá-los. A ausência do paciente em suas atividades profissionais, por motivos de efeitos adversos à PQT associados às consultas mensais e estados reacionais próprios da doença, pode ser considerada onerosa, gerando intolerância no meio patronal e acarretando demissões7. Tais ocorrências constituem portanto, um sério problema econômico e geram um imenso custo social.

Foi evidenciado que, dentre os 187 pacientes, 71 (37,9%) apresentaram pelo menos um efeito colateral relacionado com a PQT, sendo que a análise individualizada dos efeitos adversos de cada droga da PQT explicitou 113 relatos nos 71 pacientes, que ocorreram em sua maioria (74,5%) nos primeiros 6 meses de tratamento, o que é compatível com a literatura1.

A clofazimina causou 26 (23%) efeitos colaterais em 21 pacientes, dos quais 18 (69,2%) foi a ictiose. De acordo com Talhari & Neves23, pele seca ou ictiósica ocorre em praticamente todos os doentes sob tratamento com esta droga, dependendo da dose utilizada e do tipo de pele. É pertinente a observação de que as reações adversas à clofazimina foram subestimadas nesse estudo, visto que, de modo geral, os médicos não relatam no prontuário tal manifestação por ser muito comum. Talhari & Neves22 destacam ainda, a necessidade de se alertar os pacientes em uso desse medicamento, para evitarem a exposição à luz solar, dada a possibilidade de surgirem manifestações de fotossensibilidade.

Em relação à rifampicina, não foram registrados muitos efeitos adversos, totalizando apenas 7 (6,2%) em 7 pacientes. O trabalho de Brasil et al1 demonstrou que a maioria dos efeitos colaterais no tratamento poliquimioterápico ocorreu devido ao uso dessa droga, diferindo do que foi constatado na atual investigação. Tal fato pode advir da diferença metodológica entre as duas pesquisas, uma vez que o trabalho de Brasil et al1 foi baseado apenas em notificações de efeitos graves selecionados no estado de São Paulo, já este estudo pautou-se no levantamento de prontuários in loco, abrangendo desde os efeitos mais simples aos mais graves.

Sobre a dapsona, os resultados apontaram-na como a principal droga causadora de efeitos indesejáveis com 80 (70,8%) casos, destacando-se 15 (13,3%) casos de anemia hemolítica, 18 (15,9%) de gastrite e 6 (5,3%) de metahemoglobinemia. Esses sintomas concentraram-se em 54 (76%) dos 71 pacientes. O trabalho de Richardus & Smith20 demonstrou que as reações adversas à dapsona aumentaram com o advento da PQT, sugerindo que uma interação, ainda inexplicada, da rifampicina com a droga em questão seria responsável pelas reações de hipersensibilidade. Esta mesma hipótese também foi mencionada por Lau11.

A anemia hemolítica merece destaque, pois acarreta sérios efeitos, principalmente em crianças, idosos e pessoas com deficiência da enzima glicose-6-fosfato-desidrogenase (G6PD)25. Observou-se, no presente estudo, o predomínio de anemia hemolítica em pacientes tratados com idade superior a 35 anos, sendo 12 (80%) dos 15 afetados. Uma possível explicação para tal fato seria a intensificação do estresse oxidativo nas hemácias com o aumento da idade21.

Dentre as condutas adotadas para aqueles que apresentaram reações adversas, destaca-se um grande número de procedimentos expectantes e/ou não relatados. Tais medidas, ainda que corretas, deveriam ser muito bem explicadas aos doentes, visto que muitos abandonam o tratamento em conseqüência da ausência de uma orientação e/ou de uma solução imediata à sintomatologia6 7 16.

Foi constatado uma baixa freqüência de solicitação de exames laboratoriais, não só no diagnóstico do paciente, mas também durante o tratamento poliquimioterápico, mesmo quando constatado algum efeito colateral. O acompanhamento laboratorial do doente é fundamental, uma vez que pode-se detectar precocemente algumas das reações indesejáveis e até preveni-las. O fato de apenas 6 (40%) em 15 pacientes que desenvolveram anemia hemolítica terem realizado hemograma no diagnóstico e ao longo do tratamento, comprova a falha na conduta adotada na detecção e no monitoramento de efeitos adversos com a PQT.

Isso pode estar relacionado à falta de capacitação técnica da equipe de saúde para a propedêutica adequada ao diagnóstico, que inclui a suspeita clínica e a realização de exames laboratoriais. Tal despreparo poderia estar relacionado à falta de treinamento da equipe e/ou à grande rotatividade de profissionais da saúde, decorrente da baixa remuneração dos mesmos1.

Apesar dos efeitos adversos terem acometido mais MB (42,5%) que fazem tratamento durante um período mais longo do que PB (29,8%), não houve diferença entre o abandono por parte de pacientes PB e MB. Este fato poderia ser explicado pelo período de ocorrência dos efeitos indesejáveis, os quais foram observados principalmente nas 6 primeiras doses. No trabalho realizado por Brasil et al1 foi demonstrado que houve maior ocorrência de efeitos adversos à PQT nos pacientes MB; mas não houve diferença entre o número de abandonos entre pacientes PB e MB, também pelo fato da maioria das reações ocorrerem até a 6a dose.

Segundo Opromolla17, deve-se salientar que a rifampicina causa efeitos colaterais mais sérios quando ela é administrada de maneira intermitente, isto é, em doses mensais, gerando reações de hipersensibilidade. Assim, pode-se imaginar que quem supera a fase inicial do tratamento sem maiores intercorrências, tem uma maior probabilidade de concluí-lo.

Ainda que a PQT tenha oferecido aos pacientes a possibilidade de um tratamento mais eficaz, mais racional e com uma duração limitada, gerando sua maior colaboração a essa terapêutica, verificou-se que somente isso não foi suficiente para diminuir o abandono5. Dentre as causas de irregularidade ou abandono no tratamento, as falhas técnicas e administrativas foram apontadas em trabalho de Goulart et al7, incluindo-se os efeitos colaterais às drogas. Chama a atenção o fato de que, dos 17 pacientes que abandonaram o tratamento poliquimioterápico, somente 5 (29,4%) tinham registro de efeitos adversos aos medicamentos. Entretanto, mais pacientes podem ter sido acometidos por efeitos colaterais e não terem retornado ao Centro de Saúde Escola para relatá-los.

Em recente levantamento, realizado pelo serviço social do Centro de Saúde Escola ¾ UFU em 2001, foi relatado um abandono de 3 pacientes (12,5%) em 25, devido aos efeitos colaterais da PQT (dados não publicados).

A partir da implementação da PQT, ocorreu um declínio significativo da prevalência de casos de hanseníase, sendo este o melhor esquema terapêutico de que se dispõe no momento, pois consegue evitar a resistência medicamentosa, reduzir a duração e os custos do tratamento, aumentar a adesão dos pacientes, a motivação das equipes de saúde, o contato com os pacientes e a prevenção de incapacidade para o trabalho17. No entanto, o esquema multidroga é constituído por apenas uma droga bactericida, que é a rifampicina, e pelas drogas dapsona e clofazimina, que são bacteriostáticas. Seria muito importante que se pudesse contar com um esquema em que todas as drogas que o constituem fossem bactericidas e com atividade comparável a da rifampicina17.

Diante do exposto, conclui-se que as equipes de saúde devem estar bem preparadas para o diagnóstico de efeitos adversos às drogas da PQT, assim como para o manejo dos mesmos. Por isso, é de grande importância o estabelecimento de um protocolo de conduta adequado na rede de saúde pública que priorize a introdução da PQT precedida por exames laboratoriais padrão (hemograma, função hepática, função renal e glicemia) que deverão ser repetidos periodicamente. Isso proporcionaria mais conforto e segurança ao doente e à equipe e refletiria uma maior adequação do serviço na motivação do paciente para o tratamento e, consequentemente para o controle da hanseníase, colaborando para o alcance da meta de eliminar essa doença como um problema de saúde pública.

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Marcelo Simão Ferreira do Serviço de Moléstias Infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, pela revisão do texto do presente trabalho. A equipe de controle da hanseníase do Centro de Saúde Escola ¾ Jaraguá ¾ UFU pela colaboração.

20. Secretaria Municipal de Saúde/Núcleo de Informação em Saúde de Uberlândia (SAUDI), 2000.

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  • 3. Ferreira MLC, Vieira LMM, Teixeira OMJ, Matos HJ, Nery JCA, Pereira RMO. Hanseníase: perfil socioeconômico de uma população ambulatorial submetida à PQT. Hansenologia Internationalis 22:103, 1997.
  • 4
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    . Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG.
    Endereço para correspondência: Dra. Isabela Maria Bernades Goulart. Av. Pará 1720, Bloco 2H, Campus Umuarama, 38405-320 Uberlândia, MG.
    Tel: 34 3218-2246, Fax: 34 3218-2349.
    E-mail:
    Recebido para publicação em 24/5/2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Nov 2002
    • Data do Fascículo
      Out 2002

    Histórico

    • Recebido
      24 Maio 2001
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