Acessibilidade / Reportar erro

Características clínicoepidemiológicas dos acidentes ofídicos em Rio Branco, Acre

Clinical and epidemiological characteristics of snakebites in Rio Branco, Acre

Resumos

Com o objetivo de determinar o perfil clínico-epidemiológico dos acidentes ofídicos, em hospital do Estado do Acre, foram estudados prospectivamente 144 pacientes admitidos no período de janeiro a dezembro de 2002. Desses, 113 (78,5%) foram classificados como vítimas de acidente com envenenamento. Os gêneros Bothrops, Lachesis e Micrurus foram responsáveis por, respectivamente, 75,7%, 2,1% e 0,7% dos casos. Os acidentes predominaram em pessoas do sexo masculino (78,5%), trabalhadores rurais (51,4%) e com idades entre 10 e 29 anos (43,8%). Nos acidentes botrópicos, os envenenamentos considerados moderados (48,6%) prevaleceram sobre os leves (31,2%) e graves (20,2%). Dois casos envolvendo o gênero Bothrops não receberam terapia antipeçonha. Entretanto, soro heterólogo foi administrado em 23 vítimas de acidente sem envenenamento. Concluindo, os resultados obtidos neste estudo diferiram dos observados por outros autores quanto à gravidade dos casos e adequação do tratamento, indicando a necessidade de treinamento da equipe.

Acidente ofídico; Envenenamento humano; Serpente; Acre


This study aimed to determine the clinical epidemiological profile of the snake bites attended at the reference hospital of Acre. One hundred-forty four patients were studied prospectively, from January to December 2002. One hundred-thirteen (78.5%) cases were classified as accidents by venomous snakes. The genera Bothrops, Lachesis and Micrurus were responsible, respectively, for 75.7%, 2.1% e 0.7% cases. The accidents predominated in males (78.5%), rural workers (51.4%) and between 10 and 29 years old (43.8%). The distribution according to the severity of poisoning by genera Bothrops was: moderate (48.6%), mild (31.2%) or severe (20.2%). Two cases of Bothrops accident did not receive serumtherapy. However, the antivenom was administered in twenty-three patients without envenoming. In conclusion, the results obtained were different of the observed by another authors with respect to the severity of accidents and suitable treatment.

Snakebite; Human envenomation; Snake; Acre State


ARTIGO ARTICLE

Características clínicoepidemiológicas dos acidentes ofídicos em Rio Branco, Acre

Clinical and epidemiological characteristics of snakebites in Rio Branco, Acre

Edna MorenoI, II; Marcony Queiroz-AndradeIII; Rejâne Maria Lira-da-SilvaIV ; José Tavares-NetoV

IDepartamento de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Acre, Rio Branco, AC

IICurso de Pós-graduação em Medicina e Saúde da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA

IIIFaculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA

IVInstituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA

VDepartamento de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Profª. Edna Moreno Rua Floriano Peixoto 335, Centro 69908-030 Rio Branco, AC Tel: 55 68 226-1144, Fax: 55 68 226-5490 e-mail: epmoreno@uol.com.br

RESUMO

Com o objetivo de determinar o perfil clínico-epidemiológico dos acidentes ofídicos, em hospital do Estado do Acre, foram estudados prospectivamente 144 pacientes admitidos no período de janeiro a dezembro de 2002. Desses, 113 (78,5%) foram classificados como vítimas de acidente com envenenamento. Os gêneros Bothrops, Lachesis e Micrurus foram responsáveis por, respectivamente, 75,7%, 2,1% e 0,7% dos casos. Os acidentes predominaram em pessoas do sexo masculino (78,5%), trabalhadores rurais (51,4%) e com idades entre 10 e 29 anos (43,8%). Nos acidentes botrópicos, os envenenamentos considerados moderados (48,6%) prevaleceram sobre os leves (31,2%) e graves (20,2%). Dois casos envolvendo o gênero Bothrops não receberam terapia antipeçonha. Entretanto, soro heterólogo foi administrado em 23 vítimas de acidente sem envenenamento. Concluindo, os resultados obtidos neste estudo diferiram dos observados por outros autores quanto à gravidade dos casos e adequação do tratamento, indicando a necessidade de treinamento da equipe.

Palavras-chaves: Acidente ofídico. Envenenamento humano. Serpente. Acre.

ABSTRACT

This study aimed to determine the clinical epidemiological profile of the snake bites attended at the reference hospital of Acre. One hundred-forty four patients were studied prospectively, from January to December 2002. One hundred-thirteen (78.5%) cases were classified as accidents by venomous snakes. The genera Bothrops, Lachesis and Micrurus were responsible, respectively, for 75.7%, 2.1% e 0.7% cases. The accidents predominated in males (78.5%), rural workers (51.4%) and between 10 and 29 years old (43.8%). The distribution according to the severity of poisoning by genera Bothrops was: moderate (48.6%), mild (31.2%) or severe (20.2%). Two cases of Bothrops accident did not receive serumtherapy. However, the antivenom was administered in twenty-three patients without envenoming. In conclusion, the results obtained were different of the observed by another authors with respect to the severity of accidents and suitable treatment.

Key-words: Snakebite. Human envenomation. Snake. Acre State.

Os acidentes ofídicos continuam a representar um problema para a coletividade, especialmente para aquelas que habitam países tropicais4 17 23.

Em 1999, foram notificados 17.704 acidentes ofídicos no Brasil com um coeficiente de incidência de 10,4 acidentes/100.000 habitantes. Na distribuição dos casos, a região Norte, onde residem somente 7,6% da população brasileira11, registrou a ocorrência de 3.697 (21%) casos e um coeficiente de incidência de 28,6 acidentes/100.000 habitantes. Desses, 147 (4%) foram notificados no Estado do Acre, correspondendo ao coeficiente de incidência de 26,3 acidentes/100.000 habitantes1.

Contudo, os dados epidemiológicos disponíveis não retratam a real magnitude, provavelmente devido a subnotificação dos casos, tendo em vista, entre outros fatores, as dificuldades de acesso aos serviços de saúde dessa região16 17.

No Estado do Acre, as condições climáticas são favoráveis à presença de uma fauna diversificada, incluindo as serpentes. Estas características aliadas à economia predominantemente agropastoril/extrativista e as atividades de lazer, como caça e pesca, freqüentemente em áreas de mata nativa, concorrem para a maior exposição da população à fauna ofídica e, conseqüentemente, aos acidentes.

Considerando a escassez de dados que permitissem traçar o perfil clinicoepidemiológico dos acidentes ofídicos ocorridos no Estado, é que se propôs a realização deste estudo.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Este estudo foi realizado no Pronto Socorro do Hospital Geral de Clínicas de Rio Branco (HGCRB), em Rio Branco — Acre, no período de primeiro de janeiro a 31 de dezembro de 2002. Nesse intervalo, 146 pacientes foram admitidos com diagnóstico médico de acidente ofídico. Desses, dois foram excluídos por não concordarem em participar do estudo.

A unidade de saúde (HGCRB), da Secretaria de Estado de Saúde do Acre, é referência para o tratamento de casos de acidente ofídico ocorridos na região do Vale do Acre, com 65% da população do Estado11.

Os 144 casos foram estudados prospectivamente e, para tanto, foi utilizado um protocolo cuja elaboração teve como instrumento norteador o Manual de Diagnóstico e Tratamento de Acidentes por Animais Peçonhentos da Fundação Nacional de Saúde16. Para preenchimento do protocolo, foi entrevistado paciente e/ou responsável legal, momento em que foram coletados dados de identificação, demográficos, clínicos e antecedentes epidemiológicos da vítima, e dados sobre o animal agressor.

A terapêutica pré-hospitalar foi considerada adequada quando uma ou mais condutas foram adotadas: 1. lavagem do local picado com água ou com água e sabão, 2. paciente mantido em repouso e/ou hidratado, 3. animal agressor trazido para identificação e 4. encaminhamento imediato ao serviço de saúde. Conduta inadequada foi considerada quando realizado: 1. garroteamento, sucção e/ou corte no local picado, 2. uso de contaminantes e 3. ingesta de bebidas alcoólicas, chás e outras16.

A gravidade do envenenamento (leve, moderado ou grave) foi classificada conforme recomendada pelo Ministério da Saúde: leve, moderado ou grave, nos acidentes botrópicos; moderado ou grave, nos acidentes laquéticos e grave no acidente elapídico16.

Para este estudo, o caso foi considerado como acidente sem envenenamento quando da ausência de sintomatologia, de alterações no exame físico e no tempo de coagulação sangüínea. O gênero da serpente foi confirmado naqueles casos em que a vítima trouxe o animal agressor para classificação por profissional especializado. Quando não foi possível a identificação da serpente, o caso foi considerado como provável.

O acidente foi classificado como laquético, quando a vítima apresentou sintomatologia compatível com ativação do sistema nervoso autônomo parassimpático (hipotensão arterial, bradicardia, tontura, escurecimento da visão, cólica abdominal e diarréia)16.

Para análise estatística dos resultados, foi utilizado o programa SPSS® versão 9.0. As análises foram realizadas pelo teste t de Student, análise de variância (ANOVA), teste do c2 e quando necessário, correção de continuidade de Yates. O nível de significância dos testes utilizados foi estabelecido em 5%.

Os pacientes ou responsáveis legais assinaram termo de consentimento livre e esclarecido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Hospital Estadual do Acre, Parecer final nº 006/2002.

RESULTADOS

Dos 144 casos de acidentes ofídicos investigados, apenas em 17 (11,8%) casos o diagnóstico foi confirmado com a captura e identificação das serpentes. Dessas, sete (41,2%) eram B. atrox e dez (58,8%) Helicops angulatus. Na maioria (88,2%) dos casos o diagnóstico foi baseado em critérios clínicoepidemiológicos, o que caracterizou o acidente como provável.

Considerando o quadro clínico apresentado pela vítima, o gênero Bothrops foi responsável por 109 (75,7%) dos casos registrados, seguidos por três (2,1%) acidentes envolvendo o gênero Lachesis e um (0,7%), o gênero Micrurus. Tanto os acidentes laquéticos, como o acidente elapídico, foram classificados como graves. Em 31 (21,5%) casos não foram observados sinais e/ou sintomas de envenenamento.

Do total de acidentes (n=144), 113 (78,5%) ocorreram entre pessoas do sexo masculino e 31 (21,5%) do sexo feminino. A idade variou de 2 a 70 anos, com média de 29,1 (±15,6) anos, sendo mais (43,8%) atingida a faixa etária de 10 a 29 anos. As picadas foram mais (51,4%) freqüentes em trabalhadores rurais (n=74). Essas e outras características sociodemográficas estão descritas na Tabela 1. O sexo masculino (p<0,009) e a ocupação vinculada ao meio rural (p<0,003) predominaram, estatisticamente, entre os acidentados por serpentes peçonhentas (Tabela 1).

Como mostra a Tabela 2, a classificação quanto à gravidade do envenenamento dentre os 109 acidentes provocados pelo gênero Bothrops foi: 34 (31,2%) casos leves, 53 (48,6%) moderados e 22 (20,2%) graves. A região anatômica mais freqüentemente atingida foi o pé (43,1%), seguindo-se a perna (25,7%) e a mão (16,5%). A maior (48,6%) freqüência de acidentes ocorreu no turno matutino e no período das chuvas (55%), que correspondeu ao intervalo de janeiro a maio e dezembro. A maioria (82,6%) dos acidentes ocorreu na área rural, não havendo diferença estatísticamente significante (p>0,16) entre os casos leves, moderados e graves. Do conjunto dos casos (n=109), no momento do acidente, 53,2% (n=58) estavam trabalhando e 33% (n=36) realizavam alguma atividade de lazer. A mesma Tabela 2 mostra o predomínio de casos leves entre a maioria (70,6%) das vítimas procedentes do município de Rio Branco. A Figura 1 destaca a freqüência e os municípios de onde procediam os pacientes.


Quanto às condutas terapêuticas adotadas pelos acidentados ou responsáveis antes da chegada ao serviço de saúde, dos 144 casos, 94 (65,3%) assumiram atitudes inadequadas capazes de agravar o quadro clínico, enquanto 50 (34,7%) adotaram condutas conforme recomendado pelo Ministério da Saúde (Tabela 3). Dentre as condutas inadequadas, a ingestão de chá caseiro (23,6% ou 34/144), do extrato vegetal denominado Específico Pessoa (17,4% ou 25/144) e o torniquete (9% ou 13/144) foram as mais referidas, enquanto a limpeza do local (22,2% ou 32/144) foi a atitude adequada mais freqüente. Vale ressaltar que, considerando as atitudes adotadas (adequadas x inadequadas) e a gravidade do caso (leve mais moderado e grave), nos 113 acidentes com envenenamento houve associação significativa (p<0,04) entre gravidade do caso e conduta inadequada.

As manifestações mais freqüentes na região da picada foram dor (75,7%), sangramento (75,7%) e edema (73,6%). Dentre as manifestações sistêmicas, as mais referidas foram náuseas (22,9%), vômitos (16%) e gengivorragia (15,3%). Outras, embora menos freqüentes, merecem destaque: dezessete (11,8%) pacientes referiram parestesia no local da picada; oito (5,6%) desenvolveram oligúria, sendo que quatro (2,8%) evoluíram para insuficiência renal; e um (0,7%) caso apresentou fácies miastênica acompanhada de ptose palpebral e oftalmoplegia. Quanto às alterações laboratoriais, a incoagulabilidade sangüínea foi detectada em 62 (43,1%) dos 129 pacientes em que o tempo de coagulação (TC) foi avaliado.

Os dados contidos na Tabela 3 revelam que dos 113 (78,5%) casos classificados como acidentes por serpentes peçonhentas, 109 (98,2%) receberam soroterapia heteróloga. Nos quatro envenenamentos em que o soro não foi administrado, dois tinham sido medicados na unidade que prestou o primeiro atendimento, mas, como não trouxeram encaminhamento médico detalhado, não foi possível saber o tipo de soro utilizado. Dois (1,8%) casos classificados como provável acidente botrópico, com a ocorrência de dor, edema e eritema, por decisão médica, não foram tratados com terapia antipeçonha. Entretanto, apresentaram evolução favorável do quadro clínico.

O soro antibotrópico foi aplicado em 104 (78,8%) pacientes; soro antibotrópico-laquético, em 19 (14,4%); soro antibotrópico-crotálico, em 6 (4,5%); soro antielapídico, em 2 (1,5%); e um (0,8%) paciente usou soro antilaquético. Totalizando, foram administradas 759 ampolas de soro antipeçonha, recebendo cada paciente, em média, sete ampolas.

Também na Tabela 3, observa-se que, dos 31 (21,8%) acidentes sem envenenamento, 23 (74,2%) foram submetidos à soroterapia. Para estes pacientes foram prescritas e aplicadas 97 ampolas de soro heterólogo.

Soroterapia complementar foi administrada em 23 casos, 22 classificados como acidente botrópico e um, como acidente laquético. Em 13 (56,5%) casos, o TC permanecia alterado; em 8 (34,8%) o TC normalizara-se, porém, havia agravamento do quadro clínico (dor e edema). Para dois (8,7%) pacientes não havia referência quanto à avaliação do TC e evolução do caso.

Dentre os 132 pacientes para os quais foi prescrita soroterapia, 115 (88,5%) receberam pré-medicação (anti-histamínico e corticosteróide), sendo que 34 (26,2%) apresentaram reações adversas com comprometimento cutâneo (rubor facial e urticária), gastrintestinal (dor abdominal e náuseas), cardiovascular (hipotensão), neurológico (tremores) e respiratório (dispnéia e tosse). Dos 34 pacientes, cinco (21,7%) não apresentavam sinais e/ou sintomas de envenenamento.

Antibióticos foram administrados em 85 (59,4%) pacientes. A profilaxia do tétano foi realizada em 49 (34,3%) acidentados (Tabela 3).

Firmado o diagnóstico de síndrome compartimental, a fasciotomia foi executada em 5 (3,5%) pacientes. Drenagem foi indicada para os 6 (4,2%) casos em que houve formação de abscesso.

A média do tempo decorrido entre o acidente e a admissão na unidade foi de 6,0 (± 9,6), 22,4 (±45,4) e 32,9 (±45,7) horas para os casos leves, moderados e graves, respectivamente (ANOVA, p<0,02), enquanto a média do tempo decorrido entre a admissão e a soroterapia foi de 72,9 (±83,3) minutos para casos leves; 71,7 (±84,8) para os moderados e 162,6 (±207,5) para os graves (ANOVA, p<0,008).

O período de permanência dos acidentados por serpentes peçonhentas na unidade de referência variou de 1 a 140 horas (26,0±25,7 horas), e o tempo médio de permanência foi de 16,6(±13,6), 32,5 (±28,3) e 44,7 (±30,4) horas para os casos leves, moderados e graves, respectivamente (ANOVA, p<0,0001).

Com relação à evolução dos casos, dos 113 pacientes acidentados por serpentes peçonhentas, 72 (63,7%) receberam alta médica, 35 (31%) foram transferidos para unidades de internação da instituição e seis (5,3%), para outras instituições de saúde. Vale ressaltar que, no total dos casos (n=144), 83 (57,6%) receberam alta médica nas primeiras 24 horas, e o tempo médio de permanência dos acidentados que não apresentaram sinais e/ou sintomas foi de 9,55 horas (±5,53).

Nesta casuística, 18 (12,5%) pacientes referiram acidente ofídico anterior, porém, não apresentavam seqüelas. Não foi possível o acompanhamento a longo prazo para a avaliação de complicações tardias do quadro clínico. Também, entre os 144 casos atendidos não foi constatado nenhum óbito durante o período da pesquisa.

DISCUSSÃO

Para o Estado do Acre, a relevância do ofidismo como causa de envenenamento humano é sugerida pelo número de casos atendidos na unidade de referência do município de Rio Branco.

Como era esperado, verificou-se que o gênero Bothrops foi responsável pela maioria dos acidentes envolvendo serpentes peçonhentas. Devido à capacidade de adaptar-se a diferentes tipos de ambientes7, serpentes desse gênero podem ser encontradas nos mais diversos ecossistemas, inclusive, áreas alagáveis representadas por várzeas e igapós, ambientes típicos da região estudada10.

Apesar de que na maioria dos casos o diagnóstico foi baseado no quadro clínicoepidemiológico apresentado pela vítima, dentre as serpentes trazidas ao serviço e identificadas, a espécie B. atrox foi responsável por todos os acidentes em que houve envenenamento, confirmando os resultados observados em outros estudos realizados na região3 17 18.

O maior número de acidentes envolvendo pessoas do sexo masculino e trabalhadores rurais, na faixa etária de 10 a 29 anos, provavelmente, deveu-se a maior freqüência com que esse grupo desenvolve atividades, principalmente, na agricultura e na extração da borracha. Considerando as características da atividade que exerce, este segmento ocupacional está mais exposto às serpentes e conseqüentemente aos acidentes.

No Estado do Acre, Pierini et al18 relataram também, elevada ocorrência de acidentes ofídicos entre seringueiros e indígenas na região do Vale do Juruá.

No presente estudo, foi verificado que 18,7% dos acidentes ocorreram entre estudantes que estavam indo ou vindo da escola. Devido à distância entre a escola e a moradia e à falta de transporte apropriado, os estudantes nas zonas rurais enfrentam longas caminhadas, geralmente em áreas de risco.

Segundo a Fundação Nacional de Saúde16, na região Norte, a distribuição mensal dos acidentes não apresenta sazonalidade marcante, ocorrendo casos uniformemente durante todo o ano. Todavia, nesta pesquisa, 51,4% dos casos ocorreram nos cinco primeiros meses do ano, sobretudo no mês de abril. Isso se deve, provavelmente, ao período caracterizado por altas temperaturas e elevados índices pluviométricos, ocasionando o transbordamento do leito de rios, igarapés e açudes, obrigando as serpentes a procurarem terra firme, aumentando a possibilidade de contato com as pessoas.

As vítimas foram picadas mais freqüentemente nos membros inferiores, principalmente nos pés, o que é concordante com outros estudos4 5 12 20. O uso de indumentária inadequada tem sido determinante na ocorrência dos acidentes.

Nesta investigação, a maioria (58,3%) dos pacientes foi atendida nas primeiras seis horas após o acidente. Em se tratando de acidentes ocorridos na Região Amazônica, onde as longas distâncias e os meios de transportes utilizados dificultam o acesso da vítima à unidade de atendimento, poder-se-iam esperar intervalos maiores. Chama-se a atenção para o fato de que 61,8% dos acidentes atendidos ocorreram no município de Rio Branco, isto provavelmente influenciado pelo efeito da proximidade entre o local do acidente e do atendimento.

Foi observado neste estudo que a demora em procurar atendimento adequado foi atribuída às crendices e mitos que envolvem os acidentes ofídicos, levando o paciente a procurar tratamento empírico, como ingestão do chá da pena do pássaro nambu azul e do vegetal jarina, entre outros, como também foi observado por Pierini et al18.

Dos 144 acidentados atendidos, 17,4% referiram ter feito uso do extrato vegetal Específico Pessoa, por via oral, tópico ou ambas. Observou-se que a proporção dos que fizeram uso do Específico Pessoa foi superior aos 0,9% relatados por Borges et al3 no Amazonas. Embora o uso desse fitoterápico seja freqüente na região Norte do Brasil, estudo realizado por Borges et al2 comprovou a ineficácia desse produto na neutralização da peçonha da espécie B. atrox.

Quanto à gravidade dos acidentes com envenenamento, houve predomínio dos casos moderados, seguidos dos leves e graves, diferindo dos achados de Ribeiro et al19 e Lira-da-Silva15. Os resultados encontrados mostram associação da gravidade do caso com o maior tempo decorrido entre o acidente e o atendimento (p<0,02). Isso sugere que o retardo no tratamento pode levar a um mau prognóstico, uma vez que o soro neutraliza a peçonha e, portanto, deve ser administrado o mais precocemente possível.

Nos acidentes classificados como botrópico ou laquético, as manifestações locais mais freqüentes caracterizaram-se por dor, sangramento, edema, parestesia e eritema, compatíveis com o quadro clínico assinalado na literatura3 17 21, exceto quanto à presença de parestesia, relatada por 11,8% dos acidentados. Investigação realizada por Kerrigan13 com 312 casos de acidentes botrópicos e laquéticos, parestesia foi referida por quatro acidentados.

Quanto às manifestações sistêmicas, foram observadas, principalmente, alteração da coagulação sangüínea, manifestada, entre outras, por gengivorragia (15,3%). Estes resultados aproximam-se dos encontrados por Pardal et al17 (14,8%) e Silva22 (25,7%). Vale ressaltar que, em ambos os estudos, assim como neste, as serpentes identificadas pertenciam, predominantemente à espécie B. atrox.

Em acidentes por animais peçonhentos, merece destaque a administração precoce do soro heterólogo. A especificidade do antiveneno a ser administrado, assim como a quantidade e via adequadas, são fatores determinantes na evolução dos envenenamentos. Neste estudo, 132 pacientes receberam tratamento específico com soro antipeçonha. Entretanto, foi constatado o não emprego da soroterapia em casos confirmados de acidente ofídico. Por outro lado, em 17,4% dos casos em que o paciente não apresentava sintomatologia e/ou anormalidades laboratoriais que indicassem presença de envenenamento, a soroterapia foi administrada. Fatos que demonstram o despreparo da equipe responsável pelo atendimento.

Considerando o número de ampolas prescritas e a gravidade do caso, no tratamento dos acidentes botrópicos, verificou-se que a média observada para os casos moderados estava de acordo com o preconizado pelo MS16. Contudo, para os casos leves e graves a média foi superior e inferior ao recomendado, respectivamente, mostrando o desconhecimento dos parâmetros para a definição da gravidade do caso e, conseqüentemente, para o emprego da soroterapia adequada.

Esta pesquisa constatou que a soroterapia adicional foi administrada em 16% dos pacientes, freqüência considerada baixa se comparada com a indicada em 41% dos acidentes provocados por B. moojeni, acompanhados por Kouyoumdjian et al14. Porém, superior àquela observada em pacientes picados por B. jararaca8. Idealmente, a dose inicial deveria ser suficiente para neutralizar a peçonha inoculada, sem necessidade de dose complementar8.

Quanto à freqüência das reações adversas, os resultados são semelhantes aos de Cupo et al9, que descrevem a ocorrência de reações em 25,6% dos pacientes que receberam soroterapia, e superiores ao percentual de 13,8% referido por Caiaffa et al6. Os resultados observados neste estudo indicam que a pré-medicação administrada não evitou o surgimento das reações, pois 24,3% dos pacientes apresentaram reações de hipersensibilidade. Esse fato confirma a polêmica existente quanto ao emprego da pré-medicação para evitar a ocorrência de reações à soroterapia.

Apesar de haver recomendação do MS16 para que a profilaxia do tétano seja realizada em todos os casos de acidente ofídico, na presente casuística tal recomendação foi ignorada na maioria (65,7%) dos casos atendidos.

Concluindo, os resultados obtidos não diferem daqueles observados por outros autores no que se refere ao gênero da serpente (Bothrops) responsável pelo maior número de acidentes ofídicos com envenenamento. Faz-se necessário orientar a população a fim de reduzir a freqüência de práticas inadequadas que levam ao agravamento do quadro de envenenamento.

O emprego inadequado da soroterapia evidencia a necessidade de qualificação dos profissionais que prestam assistência a esses pacientes.

Recebido para publicação em 23/1/2003

Aceito em 16/11/2004

  • 1. Araújo FAA, Santalúcia M, Cabral RF. Epidemiologia dos acidentes por animais peçonhentos. In: Cardoso JLC, França FOS, Fan HW, Málaque CMS, Haddad Jr V (eds) Animais peçonhentos no Brasil. Biologia, clínica e terapêutica dos acidentes. Editora Sarvier, São Paulo, p. 6-12, 2003.
  • 2. Borges CC, Cavalcanti-Neto AJ, Boechat AL, Francisco CH, Arruda LFMR, Santos MC. "Eficácia da espécie vegetal Peltodon radicans POHL (LABIATAE = LAMIACEAE) na neutralização da atividade edematogênica e a ineficácia do extrato vegetal Específico Pessoa na neutralização das principais atividades do veneno de Bothrops atrox". Revista da Universidade do Amazonas 1: 97-113, 1996.
  • 3. Borges CC, Sadahiro M, Santos MC. Aspectos epidemiológicos e clínicos dos acidentes ofídicos ocorridos nos municípios do Estado do Amazonas. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 32: 637-646, 1999.
  • 4. Bucaretchi F, Herrera SRF, Hyslop S, Bacarat ECE, Vieira RJ. Snakebites by Bothrops spp in children in Campinas, São Paulo, Brazil. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 43: 329-333, 2001.
  • 5. Caiaffa WT, Antunes CMF, Oliveira HR, Diniz CR. Epidemiological and clinical aspects of snakebite in Belo Horizonte, Southeast Brazil. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 39: 113-118, 1997.
  • 6. Caiaffa WT, Vlahov D, Antunes CMF, Oliveira HR, Diniz CR. Snake bite and antivenom complications in Belo Horizonte, Brazil. Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene 88: 81-85, 1994.
  • 7. Campbell JA, Lamar WW. The venomous reptiles of Latin America. Cornell University, New York, 1989.
  • 8. Cardoso JLC, Fan HW, França FOS, Jorge MT, Leite RP, Nishioka SA, Ávila A, Sano-Martins IS, Tomy SC, Santoro ML, Chudzinski AM, Castro SCB, Kamiguti AS, Kelen EMA, Hirata MH, Mirandola RMS, Theakston RDG, Warrell DA. Randomized comparative trial of three antivenoms in the treatment of envenoming by lance-headed vipers (Bothrops jararaca) in São Paulo, Brazil. Quartely Journal of Medicine 86: 315-325, 1993.
  • 9. Cupo P, Azevedo-Marques MM, Menezes JB, Hering SE. Reações de hipersensibilidade imediatas após uso intravenoso de soros antivenenos: valor prognóstico dos testes de sensibilidade intradérmicos. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 33: 115-122, 1991.
  • 10
    Governo do Estado do Acre. Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre. Zoneamento ecológico-econômico do Estado do Acre: recursos naturais e meio ambiente — documento final. Rio Branco: SECTMA, 2000. V.1.
  • 11
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasília. Censo populacional do Brasil: Dados demográficos. Região Norte. 2000. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 29 de março de 2004.
  • 12. Jorge MT, Ribeiro LA. Envenoming by the South American pit viper Bothrops neuwiedi Wagler. Annals of Tropical Medicine & Parasitology 94: 731-734, 2000.
  • 13. Kerrigan KR. Venomous snakebite in eastern Ecuador. American Journal of Tropical Medicine and Hygiene 44: 93-99, 1991.
  • 14. Kouyoumdjian JA, Polizelli C. Acidentes ofídicos causados por Bothrops moojeni: Relato de 37 casos. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 30: 424-432, 1988.
  • 15. Lira-da-Silva RM. Estudo clínico-epidemiológico dos acidentes ofídicos por Bothrops Leucurus Wagler, 1824 (Serpentes; Viperidae) na região metropolitana de Salvador, Bahia, Brasil. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, 1996.
  • 16. Ministério da Saúde. Manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais peçonhentos. Fundação Nacional de Saúde: Brasília, p. 131, 1998.
  • 17. Pardal PPO, Souza SM, Monteiro MRCC, Fan HW, Cardoso JLC, França FOS, Tomy SC, Sano-Martins IS, Sousa-e-Silva MCC, Colombini M, Kodera NF, Moura-da-Silva AM, Cardoso DF, Velarde DT, Kamiguti AS, Theakston RDG, Warrell DA. Clinical trial of two antivenoms for the treatment of Bothrops and Lachesis bites in the north eastern Amazon region of Brazil. Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene 98: 28-42, 2004.
  • 18. Pierini SV, Warrell DA, De Paulo A, Theakston RDG. High incidence of bites and stings by snakes and other animals among rubber tappers and amazonian indians of the Juruá Valley, Acre State, Brazil. Toxicon 34: 225-236, 1996.
  • 19. Ribeiro LA, Campos VAFP, Albuquerque MJ, Takaoka NY. Acidente ofídico no Estado de São Paulo. Revista da Associação Médica Brasileira 39: 4-7, 1993.
  • 20. Ribeiro LA, Jorge MT, Iversson LB. Epidemiologia do acidente por serpentes peçonhentas: estudo de casos atendidos em 1988. Revista de Saúde Pública 29: 380-388, 1995.
  • 21. Silva JJ. Accidentes humanos por las serpientes de los géneros Bothrops y Lachesis Memórias do Instituto Butantan 44/45: 403-424, 1980/1981.
  • 22. Silva JJ. Las serpientes del género Bothrops en la Amazonia Colombiana. Acta Medica Colombiana 14: 148-165, 1989.
  • 23. Vijeth SR, Dutta TK, Shahapurkar J. Correlation of renal status with hematologic profile in viperine bite. American Journal of Tropical Medicine and Hygiene 56: 168-170, 1997.
  • Endereço para correspondência

    Profª. Edna Moreno
    Rua Floriano Peixoto 335, Centro
    69908-030 Rio Branco, AC
    Tel: 55 68 226-1144, Fax: 55 68 226-5490
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      Fev 2005

    Histórico

    • Aceito
      16 Nov 2004
    • Recebido
      23 Jan 2003
    Sociedade Brasileira de Medicina Tropical - SBMT Caixa Postal 118, 38001-970 Uberaba MG Brazil, Tel.: +55 34 3318-5255 / +55 34 3318-5636/ +55 34 3318-5287, http://rsbmt.org.br/ - Uberaba - MG - Brazil
    E-mail: rsbmt@uftm.edu.br