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Mário Rubens Guimarães Montenegro

NECROLÓGIO OBTUARY

Mário Rubens Guimarães Montenegro (1923 †2005)

Com o falecimento do Professor Dr. Mário Rubens Guimarães Montenegro, no dia 11 de fevereiro de 2005, a Patologia brasileira perde um de seus mais importantes referenciais. Médico formado, em 1946, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o Monte, como carinhosamente era chamado, logo após sua graduação, ingressou como assistente no Departamento de Anatomia Patológica daquela instituição, na época chefiada pelo Prof. Ludgero da Cunha Motta.

Era homem de personalidade extremamente marcante e, em muitos aspectos, bastante peculiar. Muito inteligente, rápido em apreender e solucionar os problemas e desafios, era bastante educado, generoso e de convívio fácil. Eu (Thales de Brito) trabalhei com ele como aluno de graduação, a partir do sexto ano e, depois, como assistente do mesmo Departamento durante os dez anos seguintes, na mesma sala, em tempo integral, sem nunca termos tido uma desavença. De acordo com ele, nós nos completávamos em vários aspectos: eu, pessimista, e, ele, um otimista, que assim permaneceu durante toda sua vida. Aprendi com ele os passos fundamentais da especialidade e considero-me uma pessoa de muita sorte, uma vez que esta iniciação se deu a partir de pessoa honesta e ética, de conduta profissional reta e extremamente dedicada ao trabalho. Em paralelo, o Monte cultivava de maneira excepcional uma vida esportiva rica, sendo um nadador e velejador competitivo durante grande parte dela. Este conjunto fez dele um professor bastante popular entre os alunos.

Em 1954, foi agraciado com bolsa de aperfeiçoamento nos Estados Unidos pela Kellogg's Foundation, indo trabalhar por quase dois anos com o Prof. Damin, no Departamento de Patologia do Peter Bent Brigham Hospital (Harvard University). Sua competência aliada às qualidades pessoais fizeram que ele, em seis meses, deixasse de exercer naquela instituição atividades semelhantes as de um residente e fosse promovido a assistente do Departamento. Ali, ao lado das atividades de rotina, foi incluído dentro de um dos grupos mais importantes e pioneiros em Nefropatologia, que teve seu máximo com Frank J. Dixon e Rodriguez, e que trabalhou com modelo experimental da doença do soro em coelhos, estudando e reproduzindo nefropatias experimentais que contribuíram de maneira definitiva para a compreensão patogenética daquelas vistas no homem. Esta linha, fascinante e importante, não pode ser continuada aqui no Brasil, ficando entretanto o nome de Montenegro em um dos trabalhos pioneiros sobre o assunto.

De volta ao Brasil, continuou sua tarefa de formar discípulos. Entre muitos, trabalharam com ele e sofreram sua influência: Dr. Luiz Celso Mattosinho França, então residente e aprendiz de Neuropatologia do Departamento; Dr. Adonis de Carvalho, Dr. Zilton Andrade e, posteriormente, Dr. Kiyoshi Iriya e Dra. Lor Cury. Nessa mesma época, sua atividade científica prosseguia, com repercussões internacionais. O Monte envolveu-se então com os estudos internacionais de arteriosclerose que propiciaram a ele uma série de viagens e trabalhos extremamente importantes, de cunho epidemiológico, muito citados e fazendo inclusive parte dos livros na época. A partir destes conhecimentos, surgiu sua tese de Livre-Docência, no Departamento de Anatomia Patológica da FMUSP, já durante a cátedra do Prof. Constantino Mignone. Nessa época, como um patologista moderno, lutou contra-corrente pela introdução e valorização das biópsias por agulha, particularmente de fígado, como importante arma diagnóstica. Posteriormente, desligou-se do Departamento e transferiu-se para a nascente Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu (FCMBB), posteriormente, Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP), onde foi fundamental para sua fundação, em 1962. Nesta instituição, ao lado do investigador, Monte demonstrou outra faceta importante de sua personalidade, aquela do administrador.

Em Botucatu, sua atuação e influência foram tão amplas e marcantes que a congregação da Faculdade, recentemente, decidiu dar o nome de "Casa de Montenegro" à Instituição, de modo semelhante à FMUSP, que é a "Casa de Arnaldo" (Prof. Arnaldo Vieira de Carvalho).

A grande maioria dos docentes pioneiros do Campus de Botucatu foi atraída a Botucatu pelo seu dinamismo e magnetismo. No começo, um pequeno grupo de patologistas, incluindo a Lor, Kunie, Celso, Cristina e Viciany e eu (Marcello Fabiano de Franco) começamos, sob sua condução, praticamente a partir do nada, a construir aquele que viria a ser um Departamento de Patologia e que exerceu grande influência na história da Patologia brasileira.

Sob a visão e estímulo do mestre, tivemos todas as oportunidades para crescermos nas três áreas de atuação acadêmica, docência, assistência e pesquisa. Assim, foi possível construir um departamento moderno, contemporâneo, que aglutinou e formou numerosos professores, anátomo-patologistas e pesquisadores, hoje espalhados em vários centros médicos país afora.

Neste contexto, saliento três projetos que foram revolucionários e inovadores para todos nós: i) Projeto Nutes-Clattes que nos propiciou treinamento e formação em pedagogia médica; ii) A decisão de escrevermos um livro de Patologia Geral que fosse conciso, objetivo na definição dos conceitos básicos e processos gerais, que pudesse ser utilizado pelos professores e alunos dos vários cursos da área de saúde; este projeto reuniu os principais professores de patologia do país, Dr. Zilton, Dr. Thales, Dr. Barretto Netto e resultou na publicação do livro "Patologia: Processos Gerais". A filosofia foi a mudança não só do ensino mas do enfoque da Patologia, na época centrada basicamente em necropsias. Com a participação também do Prof. Lopes de Faria, este grupo de trabalho teve papel fundamental na modernização da Patologia no Brasil; iii) Criação do Grupo de Estudo de Paracoccidioidomicose do Campus de Botucatu: Monte foi pioneiro na utilização de modelos experimentais da micose para a integração dos achados morfológicos e da resposta imunológica do hospedeiro. Esta abordagem levou à formação do grupo multidisciplinar de Paracoccidioidomicose de Botucatu, que organizou os dois primeiros Encontros Internacionais de Paracoccidioidomicose, em Barra Bonita e no Campus de Botucatu, eventos que consolidaram a expressão internacional do Grupo.

O legado que o Monte nos deixa é imenso, como expresso pelos inúmeros depoimentos espontâneos no Patocito, quando de seu falecimento, oriundos de todo o país.

Além de sua inteligência, visão ampla da patologia como especialidade multidisciplinar, sua enorme capacidade de aglutinar, o Monte foi chefe de escola altamente generoso. Deu todas as chances de crescimento para cada um de nós, estimulou que nos diferenciássemos, que estagiássemos no exterior, que fizéssemos a carreira universitária, sempre sem medo de que ficássemos melhor do que ele. Na verdade, tinha orgulho de nossas vitórias e conquistas.

Nunca lutou por cargos de direção, de poder, mantendo sempre atuação essencialmente acadêmica, universitária. Esta visão marcada pela idéia — mãe da FCMBB, que oferecia um curso básico único, multidisciplinar, a todos os estudantes, que depois então optavam por medicina, biologia ou veterinária, permitia grande integração entre as áreas básica e aplicada, tendo como paradigma o curso de Agressão e Defesa, onde a anatomia-patológica era ministrada em conjunto com a microbiologia, parasitologia, epidemiologia e imunologia.

Com base neste enfoque, a patologia de Botucatu exerceu papel fundamental na filosofia da Instituição, no sentido da importância da integração anátomo-clínica, com ênfase nos mecanismos patogênicos e na fisiopatologia.

Seu último legado acadêmico foi a fundação do Curso de Pós-Graduação em Patologia, do Departamento, que trouxe vigor renovado à pesquisa do Grupo e da Instituição. Ressalta-se que neste projeto foi importante a agregação ao grupo de pesquisadores não médicos, ressaltando a importância da pesquisa em Patologia ter que integrar, atualmente, profissionais de diferentes formações para enfrentar os desafios da moderna Patologia Molecular.

Monte aposentou-se relativamente cedo, para que sua vaga pudesse ser ocupada por uma jovem patologista do grupo. Porém, mesmo após a aposentadoria, continuou trabalhando normalmente participando da rotina das reuniões de autópsia e como consultor em patologia do sistema nervoso central.

Teve ainda, importante atividade na vida da comunidade botucatuense, tendo sido presidente do setor de natação da Associação Atlética Botucatuense e recebido o título de cidadão botucatuense por sua contribuição para o desenvolvimento do Campus da UNESP, em Botucatu.

Por fim, o Mestre foi um esposo e pai muito dedicado e amado. Foi casado em primeiras núpcias com dna. Maria Silvia Alves de Lima, falecida, e depois com a Dra. Edy de Lello Montenegro, companheira e apoio constante até o fim. Deixa os filhos Roberto, Álvaro e Renata, e os netos Érica, Silvana, Roberto e Karina.

Mais que lamentar a perda do nosso Professor em Patologia e, porque não dizer, de um exemplo a ser seguido na vida universitária, perdemos um grande amigo que será sempre lembrado por todos nós.

Thales de Brito e Marcello F. Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 2005
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