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Vírus rábico em morcego Nyctinomops laticaudatus na Cidade do Rio de Janeiro, RJ: isolamento, titulação e epidemiologia

Rabies virus in Nyctinomops laticaudatus bats in the City of Rio de Janeiro: isolation, titration and epidemiology

Resumos

Apresenta-se o primeiro relato de raiva em morcego da espécie Nyctinomops laticaudatus, na Cidade do Rio de Janeiro, RJ. Foram realizados isolamento e titulação viral em diferentes tecidos, encontrando-se altos títulos no cérebro e glândulas salivares. A ocorrência de raiva em uma espécie pouco freqüente neste estado sugere que a doença pode ser mais prevalente do que aparenta.

Raiva; Quiróptero; Título viral; Epidemiologia; Dose letal 50%


The first case report of rabies in bats of the species Nyctinomops laticaudatus, in the city of Rio de Janeiro City, is presented. Virus isolation and titration were performed in different tissues, and high titers were found in the brain and salivary glands. Rabies occurrence in such an infrequent species in this state suggests that the disease may be more prevalent than it appears to be.

Rabies; Chiroptera; Viral titer; Epidemiology; Lethal dose 50%


COMUNICAÇÃO COMMUNICATION

Vírus rábico em morcego Nyctinomops laticaudatus na Cidade do Rio de Janeiro, RJ: isolamento, titulação e epidemiologia

Rabies virus in Nyctinomops laticaudatus bats in the City of Rio de Janeiro: isolation, titration and epidemiology

Marlon Vicente da SilvaI; Sheila de Matos XavierII; Wildeberg Cal MoreiraI; Beatriz Cristina Pereira dos SantosI; Carlos E.L. EsbérardIII

ISeção de Virologia, Instituto Municipal de Medicina Veterinária "Jorge Vaitsman", Rio de Janeiro, RJ

IIInstituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ

IIILaboratório de Diversidade de Mamíferos, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dra. Beatriz Cristina Pereira dos Santos Seção de Virologia/Instituto Municipal de Medicina Veterinária "Jorge Vaitsman" Av. Bartolomeu de Gusmão 1120, São Cristóvão 20941-160 Rio de Janeiro, RJ Telefax: 55 21 2568-0189 e-mail: smxavier@gmail.com

RESUMO

Apresenta-se o primeiro relato de raiva em morcego da espécie Nyctinomops laticaudatus, na Cidade do Rio de Janeiro, RJ. Foram realizados isolamento e titulação viral em diferentes tecidos, encontrando-se altos títulos no cérebro e glândulas salivares. A ocorrência de raiva em uma espécie pouco freqüente neste estado sugere que a doença pode ser mais prevalente do que aparenta.

Palavras-chaves: Raiva. Quiróptero. Título viral. Epidemiologia. Dose letal 50%.

ABSTRACT

The first case report of rabies in bats of the species Nyctinomops laticaudatus, in the city of Rio de Janeiro City, is presented. Virus isolation and titration were performed in different tissues, and high titers were found in the brain and salivary glands. Rabies occurrence in such an infrequent species in this state suggests that the disease may be more prevalent than it appears to be.

Key-words: Rabies. Chiroptera. Viral titer. Epidemiology. Lethal dose 50%.

Morcegos são mamíferos da Ordem Chiroptera e representam cerca de 25% de todas as espécies de mamíferos conhecidas. Distribuem-se mundialmente, com exceção das regiões polares e ilhas muito afastadas dos continentes. Exercem importante contribuição para o equilíbrio natural como polinizadores, disseminadores de sementes e controladores de populações de insetos12. No entanto, podem transmitir diversas doenças, dentre as quais destaca-se a raiva1. Segundo dados do Ministério da Saúde, cerca de 12% dos casos humanos de raiva são transmitidos por morcegos, o que os coloca como a segunda ordem mais importante na transmissão da raiva no Brasil5, sendo superada apenas pela Ordem Carnivora. Embora freqüentemente atuem como vetores de Lyssavirus, informações sobre a patogênese destes em morcegos ainda são escassas.

Das cerca de 150 espécies brasileiras de morcegos, o vírus da raiva já foi isolado em 27, dentre as quais 18 apresentam hábitos sinantrópicos. Isto constitui um problema que pode atingir grandes proporções, com sérias implicações para a higiene e saúde pública. Espécies sinantrópicas provavelmente são as mais acessíveis a carnívoros domésticos, podendo se envolver em acidentes com cães e gatos12.

Vinte e nove espécies de morcegos brasileiros já foram registradas explorando refúgios em habitações humanas ou em suas proximidades12. No Estado do Rio de Janeiro, das 71 espécies com ocorrência confirmada, cerca de 41% usam construções humanas para abrigo3.

A espécie Nyctinomops laticaudatus só recentemente teve sua ocorrência relatada no Estado do Rio de Janeiro e, até o momento, deve ser considerada localmente como pouco freqüente, apesar de ter larga distribuição em todo o Brasil e poder formar grandes colônias, excedendo alguns milhares de indivíduos3. A espécie já foi encontrada em três ocasiões no interior de residências na Cidade do Rio de Janeiro, comprovando o freqüente uso de construções humanas como abrigo (CEL Esbérard: dados não publicados). Assim como os demais membros da família Molossidae, Nyctinomops laticaudatus apresenta hábitos predominantemente crepusculares, e sua presença em horário incomum pode sugerir uma possível manifestação de raiva13.

O presente artigo tem por objetivos: apresentar o primeiro relato de caso de raiva em um morcego insetívoro da espécie Nyctinomops laticaudatus, na Cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil; experimentar o isolamento do vírus rábico no cérebro, pulmões, rins e glândulas salivares do animal, estimando sua concentração em cada um destes tecidos, através do cálculo da dose letal 50% (DL50); e destacar a importância destes achados para a vigilância epidemiológica da raiva.

O morcego foi encontrado moribundo, pela manhã, no quarto de um apartamento do décimo terceiro andar de um prédio (cerca de 42m de altura), localizado no bairro da Lagoa, zona sul da Cidade do Rio de Janeiro, RJ, sudeste do Brasil, e enviado já morto à Seção de Virologia do Instituto Municipal de Medicina Veterinária "Jorge Vaitsman".

O espécime foi identificado como fêmea adulta de Nyctinomops laticaudatus (E. Geoffroy, 1805), família Molossidae. Em seguida, foi submetido ao procedimento de rotina para o diagnóstico de raiva, que compreende a pesquisa do antígeno no tecido cerebral, por meio do teste de imunofluorescência direta (IFD)2 e o isolamento do vírus através da inoculação intracerebral (IIC) em camundongos lactentes4 .

Foram coletados o cérebro, os rins, os pulmões e as glândulas salivares do animal, que foram triturados separadamente e diluídos a 10% em solução salina acrescida de antibióticos, segundo o protocolo da Organização Mundial de Saúde (OMS)4. As suspensões foram mantidas a 4°C, durante 2 horas para sedimentação. O sobrenadante de cada amostra foi submetido a diluições decimais seriadas até 10-5 (exceto o dos rins, cujo volume mostrou-se insuficiente). Seguiu-se o seguinte protocolo de inoculações4: 1) cada diluição 10-1 (de cérebro, glândulas salivares, pulmões e rins) foi inoculada em uma ninhada de 10 camundongos lactentes (dois dias de idade), para isolamento do vírus. Estes animais foram observados por 21 dias, e todos aqueles que adoeceram e morreram neste período tiveram seus cérebros submetidos ao exame de IFD4; 2) cada uma das 5 diluições (10-1 a 10-5), dos tecidos cerebral, pulmonar e das glândulas salivares, foi inoculada em lotes contendo 8 camundongos desmamados (21 dias de idade), que foram observados durante 21 dias. Todos os animais que adoeceram e morreram após o quarto dia de inoculação foram considerados positivos para raiva4 10. Ao final desta observação, procedeu-se o cálculo da DL509.

Durante a observação, os animais foram mantidos em biotério de experimentação, sob condições controladas, com água e ração ad libitum e observados diariamente.

O isolamento do vírus rábico foi realizado com sucesso em todos os tecidos pesquisados, uma vez que todos os camundongos lactentes inoculados com as suspensões de cérebro, glândulas salivares, pulmões e rins do morcego adoeceram e morreram, revelando-se positivos pela técnica de IFD (Tabela 1).

Dentre os tecidos submetidos à titulação, cérebro e glândulas salivares apresentaram as mais altas DL50, enquanto o pulmão apresentou uma concentração mais baixa de vírus (Tabela 1).

O presente relato de raiva em morcego insetívoro corrobora outros já descritos na literatura6 8 12 13.

A espécie Nyctinomops laticaudatus, ao nosso conhecimento, só havia sido relatada positiva para o vírus da raiva nas Cidades de Guarulhos (SP), em 1991 e Uberlândia (MG)14.

O isolamento de vírus rábico em tecidos externos ao sistema nervoso central (SNC) foi obtido com sucesso, em acordo com o relato de outros autores6 7 8 11. Atanasiu, em 1965, verificou que, depois do cérebro, o órgão mais importante para replicação viral é o pulmão5. Em nosso trabalho, o segundo maior título foi encontrado nas glândulas salivares, com valor muito próximo ao do SNC.

Estes dados confirmam que o contato com morcegos pode oferecer grande risco às populações humana e animal. O alto título encontrado nas glândulas salivares e a presença de vírus infectante em pulmões e rins são fatores importantes, que jamais devem ser negligenciados durante a manipulação de tecidos ou secreções destes animais em atividades educativas ou científicas.

A ocorrência de raiva em uma espécie de morcego pouco capturada na Cidade do Rio de Janeiro sugere que a doença pode ser mais prevalente em quirópteros do que aparenta. Neste contexto, a presença de cães e gatos abandonados em parques urbanos, unidades de conservação ambiental e vias públicas, representa risco iminente, uma vez que os mesmos podem entrar em contato com morcegos doentes. Nos últimos anos, foram isoladas amostras de vírus rábico em algumas espécies de morcegos, todas não hematófagas e, na maioria das vezes, esses animais estavam interagindo com humanos e/ou seus animais (M Silva: dados não publicados).

Portanto, fica evidente que o programa de profilaxia da raiva deve estabelecer, além da vacinação de carnívoros de companhia, o controle de animais errantes, o monitoramento constante da raiva em morcegos, e esclarecimentos à população quanto às formas de prevenção, transmissão e, principalmente, quanto ao risco da manipulação de animais silvestres.

Recebido em: 9/05/2006

Aceito em: 11/07/2007

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  • Endereço para correspondência:
    Dra. Beatriz Cristina Pereira dos Santos
    Seção de Virologia/Instituto Municipal de Medicina Veterinária "Jorge Vaitsman"
    Av. Bartolomeu de Gusmão 1120, São Cristóvão
    20941-160 Rio de Janeiro, RJ
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Aceito
      11 Jul 2007
    • Recebido
      09 Maio 2006
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