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Comparação entre a epidemiologia do acidente e a clínica do envenenamento por serpentes do gênero Bothrops, em adultos idosos e não idosos

Comparison between the epidemiology of accidents and the clinical features of envenoming by snakes of the genus Bothrops, among elderly and non-elderly adults

Resumos

O objetivo do presente estudo foi conhecer diferenças epidemiológicas e clínicas do envenenamento por Bothrops spp em adultos idosos (>60 anos) e não idosos (20 a 59 anos). Os dados foram obtidos de 1.930 prontuários de pacientes atendidos no Instituto Butantan de 1981 a 1992. Quanto maior a idade do paciente maior a freqüência do acometimento das mãos em relação aos pés (p<0,05). Porcentagem pouco maior dos idosos (17%) em relação aos não idosos (11%) foi atendida >12 horas após a picada (p<0,05). A necrose foi mais comum entre idosos (p<0,05) e a insuficiência renal entre pacientes com 50 anos ou mais, em relação aos mais jovens (p<0,05). Concluiu-se que indivíduos com idade mais avançada são mais comumente picados nas mãos e menos nos pés e evoluem mais freqüentemente para necrose na região da picada e para insuficiência renal do que os mais jovens.

Bothrops; Acidente ofídico; Envenenamento; Idoso


This study had the aim of ascertaining epidemiological and clinical differences in envenoming caused by Bothrops spp between elderly adults (>60 years) and non-elderly adults (20 to 59 years). The data were obtained from 1,930 medical records of patients attended at the Butantan Institute between 1981 and 1992. The greater the patient’s age was, the higher the frequency of bites on the hands rather than on the feet was (p < 0.05). A slightly higher percentage of the elderly patients (17%, versus 11% of the non-elderly group) were attended >12 hours after the bite (p < 0.05). Necrosis was more common among the elderly patients (p < 0.05) and renal failure was more common among patients aged 50 years or over (p < 0.05), in relation to younger patients. It was concluded that elderly individuals are more often bitten on the hands and less often on the feet, and that they develop local necrosis and renal failure more frequently than do younger individuals.

Bothrops; Snake bites; Envenoming; Elderly


ARTIGO ARTICLE

Comparação entre a epidemiologia do acidente e a clínica do envenenamento por serpentes do gênero Bothrops, em adultos idosos e não idosos

Comparison between the epidemiology of accidents and the clinical features of envenoming by snakes of the genus Bothrops, among elderly and non-elderly adults

Lindioneza Adriano RibeiroI; Rodolfo GadiaII; Miguel Tanús JorgeI

IPrograma de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG

IIHospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG. Hospital Vital Brazil, Instituto Butantan, São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Prof. Miguel Tanús Jorge Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde/FAMED/UFU Av. Pará 1720, Bairro Umuarama 38400-902 Uberlândia, MG Tel: 55 34 3218-2224; Fax: 55 34 3218-2389 e-mail: miglind@ufu.br

RESUMO

O objetivo do presente estudo foi conhecer diferenças epidemiológicas e clínicas do envenenamento por Bothrops spp em adultos idosos (>60 anos) e não idosos (20 a 59 anos). Os dados foram obtidos de 1.930 prontuários de pacientes atendidos no Instituto Butantan de 1981 a 1992. Quanto maior a idade do paciente maior a freqüência do acometimento das mãos em relação aos pés (p<0,05). Porcentagem pouco maior dos idosos (17%) em relação aos não idosos (11%) foi atendida >12 horas após a picada (p<0,05). A necrose foi mais comum entre idosos (p<0,05) e a insuficiência renal entre pacientes com 50 anos ou mais, em relação aos mais jovens (p<0,05). Concluiu-se que indivíduos com idade mais avançada são mais comumente picados nas mãos e menos nos pés e evoluem mais freqüentemente para necrose na região da picada e para insuficiência renal do que os mais jovens.

Palavras-chaves: Bothrops. Acidente ofídico. Envenenamento. Idoso.

ABSTRACT

This study had the aim of ascertaining epidemiological and clinical differences in envenoming caused by Bothrops spp between elderly adults (>60 years) and non-elderly adults (20 to 59 years). The data were obtained from 1,930 medical records of patients attended at the Butantan Institute between 1981 and 1992. The greater the patient’s age was, the higher the frequency of bites on the hands rather than on the feet was (p < 0.05). A slightly higher percentage of the elderly patients (17%, versus 11% of the non-elderly group) were attended >12 hours after the bite (p < 0.05). Necrosis was more common among the elderly patients (p < 0.05) and renal failure was more common among patients aged 50 years or over (p < 0.05), in relation to younger patients. It was concluded that elderly individuals are more often bitten on the hands and less often on the feet, and that they develop local necrosis and renal failure more frequently than do younger individuals.

Key-words: Bothrops. Snake bites. Envenoming. Elderly.

No Brasil, são anualmente notificados ao Ministério da Saúde cerca de 20.000 acidentes por serpentes peçonhentas, sendo aqueles causados por espécies do gênero Bothrops responsáveis por cerca de 85% dos casos8. O envenenamento por Bothrops causa inflamação (edema e eritema), equimose, bolhas e necrose na região da picada e, sistemicamente, alteração da coagulação sangüínea e sangramento. Nos casos mais graves ocorrem choque e insuficiência renal podendo determinar óbito4 5 11. Eventualmente hemorragia em locais nobres como o cérebro também pode causar óbito9. A necrose local pode complicar-se com infecção por bactérias, sobretudo provenientes da boca da serpente, e formação de abscesso7. Considerando o curso clínico deste envenenamento nas condições de atendimento rotineiras no Brasil, a letalidade nos casos tratados é baixa (0,3%)8, mas um número maior de pacientes apresenta seqüelas como a perda do membro picado ou de um segmento deste6. Em uma casuística de 3.139 pacientes picados por serpentes do gênero Bothrops atendidos no Hospital Vital Brazil (HVB) do Instituto Butantan (IB), detectou-se 0,3% de óbito e 0,7% de amputações11. Recentemente, foi observado que pacientes com 50 anos ou mais, com envenenamento botrópico, apresentavam evolução fatal mais freqüente do que aqueles mais jovens. Foi sugerido que o óbito poderia estar relacionado com o estado de saúde destes pacientes que, em maior proporção que os jovens, apresentam doenças que acometem órgãos nobres como os rins e pulmões, freqüentemente lesados pelo veneno10. Os idosos têm menor capacidade de regeneração dos tecidos3, portanto, espera-se que sofram maior dano tecidual pelo veneno botrópico do que os jovens. Não existe, até o momento, nenhum estudo que tenha comparado adequadamente a epidemiologia do acidente e a clínica do envenenamento botrópico em idosos em relação aos adultos não idosos, o que foi o objetivo do presente estudo.

MATERIAL E MÉTODOS

Dados referentes à epidemiologia do acidente e à clínica do envenenamento, por serpentes do gênero Bothrops, foram obtidos a partir de informações contidas em 1930 prontuários médicos de pacientes com 20 anos ou mais, atendidos no HVB do IB, no período de 1981 a 1992. As serpentes trazidas receberam identificação por biólogos do Laboratório de Herpetologia do IB. O tempo de coagulação (TC) foi mensurado, à beira do leito, por meio da observação de alguns mililitros de sangue colocados em dois tubos de vidro, a 37ºC, mas muitas vezes também à temperatura ambiente. Um dos tubos era periodicamente inclinado para se observar a coagulação e o outro servia de controle.

Foram considerados idosos para efeito deste estudo, pacientes com 60 anos ou mais. Os dados foram comparados aos daqueles referentes a pacientes adultos não idosos (20 a 59 anos) picados por serpentes desse mesmo gênero.

As análises estatísticas foram realizadas pelo teste do c2 e, quando necessário, pelo teste de Fisher, utilizando-se o Epi Info 6. Considerou-se diferenças estatisticamente significantes em nível de 5%. A comparação entre os dois grupos quanto à variação sazonal foi realizada segundo distribuição bimestral.

Todos os dados foram coletados por dois dos autores, no período em que trabalhavam no Hospital Vital Brazil, à medida que os atendimentos foram ocorrendo, e o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia, processo número 032/99.

RESULTADOS

Não houve diferença significativa entre os dois grupos estudados no que se refere ao mês e horário do dia em que ocorreu o acidente, espécie e tamanho da serpente agressora. Picadas nas mãos foram tanto mais comuns quanto maior a idade do paciente, o contrário ocorrendo com picadas nos pés (Tabela1).

A Tabela 2 mostra que as manifestações clínicas e evolução do envenenamento em pacientes idosos foram semelhantes àquelas nos não idosos (p> 0,05) exceto para necrose que foi mais freqüente entre os idosos (p< 0,05). Percentagem um pouco maior dos idosos (41: 17,7%) em relação aos não idosos (199: 11,7%) foi atendida somente 12 horas ou mais após a picada (p <0,05). A idade dos pacientes não se associou à dose de soro administrada (Tabela 3) ou ao tempo de internação (p> 0,05). A grande maioria dos pacientes tanto idosos (197: 85,3%) quanto não-idosos (1.368: 86,4%) permaneceu internada por menos de três dias (p> 0,05). Utilizando-se o ponto de corte em 50 anos pode-se observar que a insuficiência renal foi mais comum nos pacientes com 50 anos ou mais (17: 7,4%) em relação aos mais jovens (18: 1,1%) (p< 0,05).

DISCUSSÃO

No Brasil, a maioria das picadas ocorre nos membros inferiores8 11 12 13 porque quase todas as serpentes peçonhentas têm hábitos terrestres1 2. A maior proporção de picadas nas mãos em relação àquelas nos pés, em idosos comparados aos não idosos, deve estar relacionada a diferenças no tipo de trabalho no campo, talvez devido à menor participação do idoso em atividades como a de carpir, que exige muita capacidade física.

A maior ocorrência de necrose no local da picada envolvendo o paciente idoso, provavelmente deve-se à queda da capacidade regenerativa dos tecidos no organismo envelhecido3.

Embora pelos dados do presente estudo, exceto pela ocorrência de necrose, os envenenamentos pareçam apresentar igual gravidade nos idosos e não idosos, o pequeno número de casos com algumas dessas manifestações clínicas, principalmente a evolução para a amputação, insuficiência renal, choque, seqüela ou óbito torna difícil a detecção de diferenças não muito pronunciadas entre os dois grupos (grande probabilidade de erro tipo 2).

A insuficiência renal foi mais freqüente nos pacientes > 50 anos ou, mais provavelmente porque possuem menor reserva de função renal do que os jovens14.

Não se tem explicação clara para o maior tempo entre o acidente e o atendimento entre os idosos, mas talvez se relacione a dificuldades que possam ter para se locomoverem e ao fato de a procura por serviços de saúde especializados ser uma atividade crescente na vida do brasileiro e os mais jovens podem estar mais acostumados a ela.

A dose de soro administrado foi semelhante nos pacientes idosos e nos não idosos. Provavelmente os pacientes dos dois grupos chegam ao hospital com aspecto de estarem com gravidade de envenenamento semelhante, uma vez que a dose recomendada para ser administrada depende da gravidade e não da idade ou peso da vítima8 13.

Como o tempo em que os pacientes idosos e não idosos permaneceram internados foi semelhante, a evolução do envenenamento também deve ser semelhante, em que pese a maior propensão para necrose em idosos.

O número de casos fatais foi insuficiente para se confirmar, como demonstrado anteriormente10, maior freqüência de óbito entre idosos.

Conclui-se em relação ao envenenamento por Bothrops spp que: entre as vítimas > 60 anos em relação àquelas com 20 a 59 anos de idade, a epidemiologia e a clínica não apresentam diferenças marcantes. Entretanto, à medida que o paciente é mais velho, é maior a probabilidade de ser picado na mão e menor a de ser picado no pé. As pessoas > 60 anos têm maior probabilidade de apresentarem necrose na região da picada, enquanto os adultos > 50 anos têm maior probabilidade de desenvolverem insuficiência renal do que os mais jovens.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao corpo clínico do Hospital Vital Brazil do Instituto Butantan, pelo atendimento aos pacientes e ao CNPq (bolsa de produtividade científica para o Prof. Dr. Miguel Tanús Jorge e de iniciação científica para Rodolfo Gadia).

Recebido para publicação em: 01/08/2007

Aceito em: 17/12/2007

Apoio: CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

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  • Endereço para correspondência:

    Prof. Miguel Tanús Jorge
    Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde/FAMED/UFU
    Av. Pará 1720, Bairro Umuarama
    38400-902 Uberlândia, MG
    Tel: 55 34 3218-2224; Fax: 55 34 3218-2389
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008

    Histórico

    • Aceito
      17 Dez 2007
    • Recebido
      01 Ago 2007
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