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Influência do aumento do acesso à atenção básica no comportamento da taxa de detecção de hanseníase de 1980 a 2006

Resumos

A taxa de detecção da hanseníase no Brasil aumentou nas duas últimas décadas do século XX, sendo que a reforma sanitária ocorreu no mesmo período. A taxa de detecção é função da incidência real de casos e da agilidade diagnóstica do sistema de saúde. Utilizou-se a cobertura vacinal por BCG como uma variável procuradora do acesso à atenção primária em saúde. Uma regressão log-normal foi ajustada à taxa de detecção de 1980 a 2006, com o tempo, tempo ao quadrado e da cobertura do BCG como variáveis independentes, sendo positivo o coeficiente de regressão desta última variável, sugerindo que o comportamento da taxa de detecção da hanseníase refletiu a melhora de acesso à atenção primária no período estudado. A tendência de aumento da taxa de detecção se reverte em 2003, indicando o início de uma nova fase no controle da hanseníase.

Hanseníase; Sistemas de saúde; Epidemiologia; Vigilância epidemiológica


Brazilian Hansen's disease detection rate rose during the 80s and 90s of the 20th century. The Brazilian health system reform happened during the same period. Detection rate is a function of the real incidence of cases and the diagnostic agility of the health system. Coverage of BCG immunization in infants was used as a proxy variable for primary healthcare coverage. A log-normal regression model of detection rate as a function of BCG coverage, time and time square was adjusted to data. The detection rate presents an upward trend throughout the period and with a downturn beginning in 2003. The model showed a statistically significant positive regression coefficient for BCG coverage, suggesting that detection rate behavior reflects the improvement of access to health care. The detection rate began a trend towards decline in 2003, indicating a new phase of Hansen's disease control.

Leprosy; Health systems; Epidemiology; Health Surveillance


ARTIGO

Influência do aumento do acesso à atenção básica no comportamento da taxa de detecção de hanseníase de 1980 a 2006

Maria Lucia Fernandes PennaI; Maria Leide W. OliveiraII; Eduardo Hage CarmoIII; Gerson Oliveira PennaIV; José Gomes TemporãoV

IAssessora do Programa Nacional de Controle da Hanseníase, Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Brasília, DF

IICoordenadora do Programa Nacional de Controle da Hanseníase, Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Brasília, DF e Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ

IIIDiretor do Departamento de Vigilância Epidemiológica e Pesquisador em Epidemiologia do Instituto de Saúde da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA

IVSecretário de Vigilância à Saúde, Ministério da Saúde e Núcleo de Medicina Tropical, Universidade de Brasília, Brasília, DF

VMinistro da Saúde e Pesquisador Titular da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dra. Maria Lúcia F. Penna Rua Ministro Raul Fernandes 180/401 22260040 Rio de Janeiro, RJ Tel: 55 21 9232-7390 e-mail: mlfpenna@terra.com.br

RESUMO

A taxa de detecção da hanseníase no Brasil aumentou nas duas últimas décadas do século XX, sendo que a reforma sanitária ocorreu no mesmo período. A taxa de detecção é função da incidência real de casos e da agilidade diagnóstica do sistema de saúde. Utilizou-se a cobertura vacinal por BCG como uma variável procuradora do acesso à atenção primária em saúde. Uma regressão log-normal foi ajustada à taxa de detecção de 1980 a 2006, com o tempo, tempo ao quadrado e da cobertura do BCG como variáveis independentes, sendo positivo o coeficiente de regressão desta última variável, sugerindo que o comportamento da taxa de detecção da hanseníase refletiu a melhora de acesso à atenção primária no período estudado. A tendência de aumento da taxa de detecção se reverte em 2003, indicando o início de uma nova fase no controle da hanseníase.

Palavras-chaves: Hanseníase. Sistemas de saúde. Epidemiologia. Vigilância epidemiológica.

Embora já tenha se passado mais de 25 anos desde a introdução da poliquimioterapia (PQT), não existem evidências de seu impacto na transmissão da hanseníase. Na verdade, um melhor conhecimento sobre a transmissão do Mycobacterium leprae ainda é necessário1 para embasar ações de controle com grande impacto na transmissão8.

A hanseníase tem sido considerada eliminada - usando-se somente o parâmetro de taxa de prevalência - quando a prevalência de casos conhecidos é menor do que 1 por 10.000 habitantes (o que equivale a 10 por 100.000 habitantes). Com este insuficiente parâmetro, no começo de 2005, o objetivo de eliminação da hanseníase foi alcançado na maior parte do mundo, com exceção de nove países entre eles o Brasil12.

Embora a prevalência de casos conhecidos no mundo tenha sido muito reduzida através de programas de diagnóstico, tratamentos encurtados e cura, a taxa de detecção de casos novos de hanseníase permanece alta em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, impedindo alcançar a prevalência de 1 por 10.000 habitantes.

A taxa de detecção é função da incidência real de casos e da agilidade diagnóstica do sistema de saúde. A redução da relação entre a taxa de detecção e a incidência real resulta em aumento da prevalência oculta, a maior responsável pela transmissão da doença. Assim, a redução da transmissão da hanseníase pressupõe a redução da prevalência oculta através de detecção ágil, que reduza a duração da doença anterior ao diagnóstico.

Tendo em vista que a hanseníase não é uma doença que leve ao óbito, a prevalência oculta pode ser muitas vezes maior do que a incidência. Por exemplo, em uma área hiperendêmica, onde a idade de aparecimento dos casos é baixa, sem nenhum serviço de saúde, a prevalência de hanseníase pode ser 30 vezes maior do que a incidência. Imaginando que se implante um sistema de saúde nesta área, processo este que levaria ao aumento de cobertura do sistema no tempo, uma taxa de detecção da hanseníase ascendente refletiria o aumento da cobertura do sistema de saúde e do acesso ao diagnóstico e tratamento. Uma vez que esta cobertura/acesso ao diagnóstico se estabilize, a taxa de detecção se comportaria no tempo acompanhando o comportamento da prevalência oculta. Se, neste momento, a taxa de detecção for maior do que a taxa de incidência real a prevalência oculta tenderia a diminuir. A taxa de detecção diminuiria então em função da diminuição da prevalência oculta e tenderia a se igualar ao longo do tempo à incidência real, quando a redução da duração da doença prévia ao diagnóstico não fosse mais possível.

O período estudado corresponde ao início da reforma sanitária e à consolidação do SUS, garantido na constituição de 1988, onde há a garantia do direito universal à saúde e a definição do comando único do sistema a nível municipal. Como conseqüência assistiu-se neste período à transformação do sistema de saúde centrado em hospitais e com estabelecimentos de saúde restritos aos grandes centros urbanos, principalmente na região sudeste do país em um sistema onde os estabelecimentos de saúde, principalmente, os postos e centros de saúde, se estenderam a regiões onde eram inexistentes. Como exemplos, os estabelecimentos de saúde mais que dobraram, passando de 18.489 em 1980 para 49.232 em 19945; a cobertura das três doses da vacina tríplice (DPT) em menores de 1 ano era de 37,43% em 1980 passando para 85,64% em 2006 (DPT+ Hib); a poliomielite foi erradicada do país e o sarampo controlado. Indicadores de saúde, que também refletem as melhorias sócio-econômicas do país além das melhorias do sistema de saúde, também apresentam grandes melhoras. A esperança de vida subiu de 62,6 anos em 1980 para 75,2 em 20036 e a mortalidade infantil caiu de 82,8 por mil em 1980 nascidos vivos para 26,6 por mil nascidos vivos3.

Assim, o estudo do comportamento no tempo da taxa de detecção de hanseníase exige a incorporação de variável que reflita as modificações do sistema de saúde no período.

Outro fator influenciando o valor da taxa de detecção registrada são as alterações operacionais no tempo do sistema de vigilância epidemiológica, algumas conhecidas outras desconhecidas. Certamente podemos imaginar que os sistemas de vigilância epidemiológica possam variar operacionalmente de ano para ano, mas não de forma estável por uma ou duas décadas, isto é, em proporção semelhante e no mesmo sentido de aumento ou redução. Séries longas de dados, como a que atualmente existe da taxa de detecção no Brasil, são necessárias para qualquer inferência sobre a tendência real deste indicador. O ajuste estatístico da série histórica pretende capturar a tendência do indicador, considerando as variações como aleatórias. Além da descrição da tendência, o ajuste de modelos permite a predição de valores por extrapolação para os próximos anos. Estas predições supõem que não haja mudança de comportamento da taxa de detecção em relação ao comportamento passado.

A opção pela reorganização do Sistema de Saúde em nosso país fortaleceu sobremaneira a atenção primária à saúde, tendo como marcos referencias modelos internacionais guiados por princípios como solidariedade, eqüidade e integralidade. No Brasil usamos a terminologia atenção básica e, sua expansão se deu a partir de experiências nacionais bem sucedidas à época, iniciando-se com agentes comunitários e evoluindo para a estratégia de saúde da família.

Toda esta revolução se explicita na Publicação da Política Nacional de Atenção Básica em 2006, na busca de tê-la como organizadora de todo o sistema em um desenho poliárquico e menos hierárquico.

Em 2007 havia no Brasil, 27 mil equipes de saúde da família com mais de 200 mil agentes comunitários de saúde cobrindo uma população de mais de 85 milhões de brasileiros.

Neste trabalho, estudaremos a tendência da taxa de detecção da hanseníase de 1980 a 2006 no país, comparando seu comportamento com o comportamento de uma variável procuradora da cobertura da atenção básica no mesmo período.

MATERIAL E MÉTODOS

O número de casos novos notificados de 1980 a 2004 foram obtidos em publicação do Ministério da Saúde7, e os números referentes aos anos de 2005 e 2006 foram informados pelo Programa Nacional de Controle da Hanseníase da Secretaria de Vigilância à Saúde, Ministério da Saúde. Os dados demográficos foram obtidos junto ao site do DATASUS2.

Como variável procuradora da cobertura da atenção primária de saúde, escolhemos a cobertura da vacina BCG em menores de um ano de 1980 a 2007. Os dados foram informados pelo Programa Nacional de Imunizações da Secretaria de Vigilância à Saúde, Ministério da Saúde.

A taxa de detecção de casos novos notificados de hanseníase e a cobertura vacinal de cada ano foram ajustadas a uma função parabólica do tempo através de uma regressão log normal.

Também estimou-se o coeficiente de correlação entre a taxa de detecção de hanseníase e a cobertura vacinal por ano, e ajustou-se um modelo regressivo log normal tendo como variável dependente a taxa de detecção de hanseníase, e variáveis independentes a cobertura pela vacina BCG, o tempo e o tempo ao quadrado, ou seja, um modelo onde o logarítimo da taxa de detecção seja uma função parabólica do tempo e uma função linear da cobertura vacinal do BCG em menores de um ano.

As regressões foram realizadas utilizando o software Statistica (Statsoft, 2003).

RESULTADOS

As taxas de detecção por ano são apresentadas na Tabela 1. O ajuste ao modelo parabólico dos dados de detecção foi adequado, sendo os dois parâmetros incluídos estatisticamente significativos (tempo e tempo ao quadrado) e com parâmetros estimados com sinais contrários (coeficiente de regressão positivo para tempo e negativo para tempo ao quadrado). Isto indica que a tendência ascendente da taxa de detecção não é a mesma em todo o período e se reduz, iniciando uma tendência de redução a partir de 2003 (Tabela 2).

A cobertura de BCG também se ajustou ao modelo parabólico, com os dois parâmetros incluídos estatisticamente significativos e também com parâmetros estimados com sinais contrários (Tabela 2) indicando que a tendência de aumento não é a mesma em todo o período, se reduzindo com o tempo e se estabilizando quando a cobertura atinge 100%.

A correlação entre estas duas variáveis foi estatisticamente significativa e igual a 0,95. O modelo incluindo a cobertura vacinal como variável independente também apresentou os três parâmetros estatisticamente significativos, sendo o coeficiente de regressão positivo para a cobertura vacinal (Tabela 2), indicando que um aumento na cobertura vacinal significa um aumento da taxa de detecção de hanseníase segundo o modelo.

A Figura 1 apresenta graficamente o comportamento da taxa de detecção por 100.000 habitantes e a predição do modelo parabólico em função do tempo e a predição do modelo em função do tempo e da cobertura do BCG. A Figura 2 mostra a cobertura vacinal por cento e a predição do modelo parabólico em função do tempo.



DISCUSSÃO

O uso da regressão log-normal é habitual com dados de vigilância epidemiológica4 9, já que o uso do logarítimo como função de ligação permite a adequação do modelo a taxas e proporções. O exame de resíduos foi realizado para garantir a adequação desta escolha.

Sem dúvida, o comportamento da taxa de detecção da hanseníase no Brasil pode ser corretamente descrito por um modelo parabólico, apontando para uma redução da velocidade de aumento da taxa no tempo atingindo uma estabilidade e iniciando uma fase de queda da taxa, como já havia sido observado anteriormente em série menor10.

A escolha da cobertura da vacina BCG em menores de um ano como variável procuradora do aumento de cobertura da atenção básica de saúde no período se deu em primeiro lugar pela dificuldade de encontrar publicamente disponíveis séries históricas desde 1980 de dados referentes a estabelecimentos de saúde, proporção de partos hospitalares e outros. Estando disponíveis dados de cobertura vacinal, optamos pela vacina BCG porque esta vacina é apenas muito raramente aplicada em campanhas de vacinação, sendo aplicada principalmente em unidades básicas de saúde. A presença de valores de cobertura ultrapassando 100% se deve a problemas de denominador pois foi utilizado o número de nascidos vivos estimado pelo IBGE para todo o período estudado, e também a imprecisões quanto ao registro da idade da criança vacinada, por erro de registro ou por informação imprecisa do responsável.

A alta correlação entre a taxa de detecção de hanseníase e a cobertura vacinal pelo BCG em menores de um ano, assim como sua inclusão de forma estatisticamente significativa em modelo regressivo sugere fortemente que a capacidade de diagnosticar os casos existentes está relacionada ao acesso aos serviços de saúde. Não se pode negar que em função da construção do SUS, o acesso aos serviços de saúde, principalmente se levarmos em conta a população rural e de municípios de pequeno porte vem melhorando nas duas últimas décadas. Este fato isoladamente poderia explicar o comportamento ascendente da taxa de detecção da hanseníase desde 1980. Se verdadeira esta hipótese, estaríamos diante de uma redução continuada da prevalência oculta através da redução do tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico. Esta redução da prevalência oculta tem um limite, pois mesmo em situações ideais, o diagnóstico de doenças de pele depende da valorização cultural da lesão, assim como dos hábitos de utilização de serviços de saúde, como, por exemplo, a espera pela resolução espontânea de uma lesão cutânea ou qualquer outro sinal ou sintoma que não seja interpretado como ameaçador. Atingido o limite de redução da prevalência oculta, a taxa de detecção tende a refletir o comportamento da incidência real.

Nossa análise estatística dos dados apresentados mostra que a taxa de detecção de casos de hanseníase inicia uma tendência de redução durante o ano de 2003, indicando que estaremos diante de uma nova fase do controle da endemia.

7. Ministério da Saúde. Série Histórica de Casos e Óbitos de Doenças de Notificação Compulsória-Brasil 1980 A 2005, Brasilia, 2006. Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/planilhas_dnc_casos_e_obitos_todas_2006.pdf.

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  • Endereço para correspondência:

    Dra. Maria Lúcia F. Penna
    Rua Ministro Raul Fernandes 180/401
    22260040 Rio de Janeiro, RJ
    Tel: 55 21 9232-7390
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      2008
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