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Polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica pós-tratamento com interferon peguilado alfa 2b em um paciente co-infectado HIV/HCV: relato de caso

Chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy after treatment with pegylated interferon alpha 2b in a patient with HIV/HCV coinfection: case report

Resumos

A polineuropatia desmielinizante inflamatória cônica possui forte associação com a infecção pelo HIV e HCV. Uma rara associação entre PDIC e o tratamento da hepatite C com interferon peguilado alfa foi descrita recentemente. Nós descrevemos o primeiro caso de polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica em um paciente branco, sexo masculino infectado por HIV e HCV associado a interferon peguilado alfa 2b. O paciente recuperou-se completamente após o uso de imunoglobulina hiperimune endovenosa. Infectologistas e hapatologistas devem estar atentos à esta rara e grave associação, que exige imediata descontinuação da droga e tratamento precoce.

Polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica; Coinfecção HIV/HCV; Interferon peguilado alfa; Polineuropatia


Chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy has a strong association with HIV and HCV infection. A rare association between chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy and hepatitis C treatment with pegylated interferon alpha was described recently. We described the first case of chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy associated with pegylated interferon alpha 2b in a white man infected with HIV and HCV. The patient recovered completely with the use of intravenous hyperimmune immunoglobulin. Infectologists and hepatologists should be alert regarding this rare and serious association, which requires immediately drug discontinuation and early treatment.

Chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy; HIV/HCV coinfection; Pegylated interferon alpha; Polyneuropathy


RELATO DE CASO CASE REPORT

Polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica pós-tratamento com interferon peguilado alfa 2b em um paciente co-infectado HIV/HCV: relato de caso

Chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy after treatment with pegylated interferon alpha 2b in a patient with HIV/HCV coinfection: case report

Bil Randerson BassettiI; Eduardo Sturzeneker TrésI; Jovana Gobbi Marchesi CiríacoII; Lauro Ferreira Silva Pinto NetoIII

ICurso de Medicina, Escola Superior de Ciências, Santa Casa de Misericórdia de Vitória, ES

IIDepartamento de Clínica Médica, Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória, ES

IIIDepartamento de Clínica Médica, Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórida de Vitória, ES

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr. Lauro Ferreira da Silva Pinto Neto Rua Chapot Presvot 100/1701, Praia do Canto 29055-410 Vitória, ES. Tel: 55 27 3345-2123 e-mail: lauro.neto@emescam.br

RESUMO

A polineuropatia desmielinizante inflamatória cônica possui forte associação com a infecção pelo HIV e HCV. Uma rara associação entre PDIC e o tratamento da hepatite C com interferon peguilado alfa foi descrita recentemente. Nós descrevemos o primeiro caso de polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica em um paciente branco, sexo masculino infectado por HIV e HCV associado a interferon peguilado alfa 2b. O paciente recuperou-se completamente após o uso de imunoglobulina hiperimune endovenosa. Infectologistas e hapatologistas devem estar atentos à esta rara e grave associação, que exige imediata descontinuação da droga e tratamento precoce.

Palavras-chaves: Polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica. Coinfecção HIV/HCV. Interferon peguilado alfa. Polineuropatia.

ABSTRACT

Chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy has a strong association with HIV and HCV infection. A rare association between chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy and hepatitis C treatment with pegylated interferon alpha was described recently. We described the first case of chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy associated with pegylated interferon alpha 2b in a white man infected with HIV and HCV. The patient recovered completely with the use of intravenous hyperimmune immunoglobulin. Infectologists and hepatologists should be alert regarding this rare and serious association, which requires immediately drug discontinuation and early treatment.

Key-words: Chronic inflammatory demyelinating polyneuropathy. HIV/HCV coinfection. Pegylated interferon alpha. Polyneuropathy.

INTRODUÇÃO

A polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica (PDIC) é uma síndrome de origem inflamatória, potencialmente tratável quando diagnosticada corretamente. Sua prevalência varia de 1 a 7,7 casos por 100.000 adultos. A polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica associa-se muitas vezes com doenças virais, como vírus da imunodeficiência humana (HIV) e o vírus da hepatite C (HCV)1. Muito recentemente, não apenas o agente viral, mas também o tratamento com imunomoduladores, como o interferon peguilado alfa (INFα), tem sido correlacionado com surgimento de PDIC2,3. Este relato de caso refere-se a um paciente imunodeprimido com síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) e HCV que evoluiu com PIDC secundária ao uso de INFα2b, com excelente resposta à terapia com imunoglobulina humana hiperimune (IHH).

RELATO DO CASO

Um paciente, de 52 anos de idade, sexo masculino, ex-usuário de drogas inalatórias, ex-etilista, com SIDA em tratamento regular com zidovudina (AZT), lamivudina (3TC) e nevirapina (NVP) desde 2001, foi encaminhado ao serviço de infectologia da Santa Casa de Misericórdia, em Vitória (ES), referência estadual em hepatites. Apresentava contagem de linfócitos T CD4+ em 500 cel/mm3 e carga viral indetectável (< 50 cópias/mm3), com sorologia positiva para hepatite C (anti-HCV). Nesta época, o diagnóstico foi confirmado com PCR qualitativo, tendo sido identificado o genótipo 3a e carga viral de 3.377.750 cópias. Os exames laboratoriais mostravam elevação de aminotransferases: AST = 171u/L (VR < 37u/L) e ALT = 194u/L (VR < 65u/L). Foi indicada biópsia hepática, com resultado A3 F4, segundo a classificação de METAVIR4. Em razão do programado tratamento da hepatite C, optou-se por substituir a NVP por lopinavir/ritonavir (LPV/R) e o AZT por estavudina (d4T), para evitar possíveis interações com a ribavirina, e pelo potencial hepatotóxico da nevirapina. Não havendo sinais clínicos de hepatopatia crônica descompensada, foi iniciado tratamento com interferon peguilado alfa 2b (PegIntron®) associado à ribavirina por 48 semanas, com negativação do PCR qualitativo ao final do tratamento.

Na 44ª semana de tratamento com interferon peguilado alfa 2b (INFα2b), o paciente iniciou com fraqueza progressiva e ascendente em membros inferiores, alιm de parestesias frequentes, sendo a estavudina substituída pelo tenofovir, de imediato, sem melhora do quadro. O paciente foi internado para investigação na 46ª semana de tratamento antiviral. O interferon peguilado foi suspenso na 47ª semana. Ao exame neurológico, foi identificada tetraparesia com força grau 3 (VR = 0 a 5) proximal em mãos, grau 4 (VR = 0 a 5) distal; força grau 3 (VR= 0 a 5) proximal e 2 (VR = 0 a 5) distal em membros inferiores, arreflexia em membros inferiores, e reflexos normais em membros superiores. Havia, ainda, hipoestesia superficial e profunda em bota e luva. Ataxia mista (sensitiva-cerebelar), sendo o componente sensitivo identificado pela prova de Roomberg positiva, marcha talonante e pseudoatetose em membros superiores, além de hipoestesia profunda nos quatro membros. O componente cerebelar era discreto e identificado como alargamento da base durante a marcha.

Na investigação complementar, apresentou eletroneuromiografia (ENMG) mostrando polineuropatia sensitivo-motora grave com sinais de denervação axonal recente. O exame do liquor não mostrou alterações, com proteínas de 24,7mg/dL (VR = 14 a 45). Devido à ataxia cerebelar, foi realizada ressonância nuclear magnética (RNM) de crânio, evidenciando atrofia cerebral difusa, mais pronunciada em cerebelo. Diante dos achados clínicos e dos exames complementares, tomou-se como principal hipótese diagnóstica a polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica. Submetido à pulsoterapia com metilprednisolona 1g/dia, por 5 dias, em 3 ciclos mensais, com melhora parcial insignificante. Optou-se, então, por tratamento com imunoglobulina humana hiperimune, 0,4g/kg/dia por 5 dias, resultando em regressão importante dos sintomas já após 15 dias, e com manutenção posterior da resposta clínica. O exame neurológico de controle mostrou discreto alargamento da base e hipoestesia superficial em bota, sem outras alterações. Dois meses após tratamento com IHH, o paciente não apresentava mais qualquer sequela do quadro neurológico periférico. O paciente não logrou resposta virologica sustentada ao tratamento da hepatite C com PCR qualitativo positivo, 6 meses após o final do tratamento.

DISCUSSÃO

O INFα peguilado associado à ribavirina constitui o tratamento padrão da hepatite C crônica5. Seu uso está relacionado a efeitos colaterais freqüentes, como fadiga, mialgia, cefaléia, náuseas, anorexia, dores articulares, labilidade emocional, depressão e hipotireoidismo1. A PIDC associada ao tratamento com INFα é um evento raro. Entretanto, algumas neuropatias autonômicas, sensitivas e, mais recentemente, a PDIC tem sido atribuídas ao uso dessa droga. Tem sido especulado que sua ação imunomoduladora sobre linfócitos T, B e, principalmente, sobre células dendríticas, e destas sobre os nervos periféricos, seja a principal causa da desmielinização. Uma possibilidade é que a apoptose induzida pela citocina nas células produtores de mielina resulte na inibição da remielinização do sistema nervoso3. Sabe-se também que o interferon alfa aumenta produção de auto anticorpos, regula a transcrição de genes associados com antígenos de MHC classe 1 e dispara resposta mediada por citocinas pró inflamatórias e que ativa fenômenos auto imunes em pessoas pré dispostas. O sistema imune pode atacar o tecido nervoso próprio, reconhecendo um epítopo molecular semelhante a um antígeno estranho, resultando em desmielinização inflamatória6.

O primeiro caso de associação de PDIC com uso de interferon alfa convencional, desenvolvido após 4 meses de tratamento, foi descrito por Marzo cols7, em 1998. Hirotani cols2 relataram um caso semelhante de PDIC, também após 16 semanas de tratamento da hepatite C com INFα mais ribavirina, em um paciente monoinfectado pelo HCV. Outro caso semelhante foi descrito por Khiani cols3, também em um paciente monoinfectado pelo HCV, o qual desenvolveu a PDIC na 15ª semana de terapia com interferon peguilado α2a e ribavirina, tendo ainda como particularidade a interrupção da terapia antiviral na 13ª para tratamento de uma pneumonia bacteriana, desenvolvendo PDIC duas semanas após sua reintrodução. O primeiro caso foi tratado com prednisona 60mg/dia e melhora com poucas sequelas. Nos dois últimos casos, foi obtida boa resposta ao uso de IHH.

Ao nosso conhecimento, este é o quinto caso relatado e o primeiro em um paciente co-infectado com HIV e HCV, com uso de interferon peguilado alfa2b.

A relação de PDIC com infecções virais, dentre elas o HIV e HCV, está bem estabelecida1. Apesar do paciente em questão ser co-infectado HIV/HCV, ambas as cargas virais estavam negativas durante o aparecimento dos sintomas, não havendo uma correlação temporal entre infecção e doença neurológica.

Outro fator que poderia estar relacionado ao desenvolvimento da neuropatia periférica é o uso de estavudina (d4T) no tratamento da SIDA8. No entanto, a neuropatia periférica comumente associada à estavudina não é a descrita no presente caso e mesmo após a suspensão do medicamento, continuou a ocorrer piora da clínica da neuropatia, tornando menos provável sua associação com o quadro. De qualquer forma, não há como descartar o fato de a estavudina ter contribuído de algum modo para o aparecimento deste quadro.

Um fato interessante que chama atenção neste caso é a ataxia, com sinais de atrofia cerebelar na RNM, prováveis sequelas do uso crônico de álcool9, assim como da infecção crônica pelo HIV8.

A importante correlação temporal da sintomatologia com o uso de INFα permite supor que a polineuropatia foi provavelmente secundαria ao uso da droga. Apesar de ser uma reação adversa pouco comum, outros casos na literatura vem demonstrando essa associação2,3,7,10, e o fato da estavudina poder ter concorrido para este quadro representa mais um alerta aos médicos que tratam pacientes co-infectados HIV/HCV, para as possíveis toxicidades concomitantes das medicações usadas.

O uso da corticoterapia como opção terapêutica da PDIC é descrita nos principais consensos internacionais1, sendo que sua utilização aqui buscou um melhor custo-benefício. Como houve apenas regressão parcial da neuropatia, foi indicado uso da IHH na dose semelhante à utilizada por outros autores6,8, de 0,4g/kg por 5 dias, com melhora sustentada dos sintomas.

Em conclusão, devemos ressaltar a importância dessa nova associação entre PDIC e INFα que ainda necessita de melhor esclarecimento sobre sua patogênese. É de extrema importância que infectologistas e hepatologistas estejam atentos a esta rara complicação, que exige imediata descontinuação do interferon, pela sua rápida evolução. E, ainda, chamar a atenção para utilização precoce da IHH, pois mesmo que descrito como opção de tratamento, o glicocorticóide não foi capaz de reverter a progressão da PDIC.

Recebido para publicação em 26/06/2009

Aceito em 13/01/2010

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  • Endereço para correspondência:
    Dr. Lauro Ferreira da Silva Pinto Neto
    Rua Chapot Presvot 100/1701, Praia do Canto
    29055-410 Vitória, ES.
    Tel: 55 27 3345-2123
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Fev 2010

    Histórico

    • Aceito
      13 Jan 2010
    • Recebido
      26 Jun 2009
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