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Leishmaniose visceral e desnutrição: uma relação ainda muito negligenciada

Visceral leishmaniasis and malnutrition: a relation much neglected

CARTA AO EDITOR LETTER TO EDITOR

Leishmaniose visceral e desnutrição: uma relação ainda muito negligenciada

Visceral leishmaniasis and malnutrition: a relation much neglected

Guilherme Malafaia

Departamento de Áreas Acadêmicas, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, Campus Anápolis, GO

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: MSc. Guilherme Malafaia Rua Pedro Moreira 9A, Vila Nova 75200-000 Pires do Rio, GO Tel: 55 64 3461-6845 e-mail: guilhermebioufop@yahoo.com.br

Prezado Editor:

Venho por meio desta, parabenizar a Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical pela publicação do trabalho do autor De-Oliveira e cols1, intitulado "Mortalidade por leishmaniose visceral: aspectos clínicos e laboratoriais" no vol. 42, n.º 2 de 2010. Sem dúvida, os resultados desse trabalho contribuem enormemente com a elucidação de práticas que favorecem a redução da mortalidade da leishmaniose visceral humana (LVH), uma doença importantíssima no contexto brasileiro que pode levar o paciente a morte, se não tratada. Investigando as características clínicas e laboratoriais dos casos que evoluíram para o êxito lega em hospitais do município de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, entre os anos de 2003 e 2008, os autores verificaram, dentre outros aspectos, que a desnutrição foi a comorbidade mais frequentemente (32,7%) relatada na admissão hospitalar dos pacientes que evoluíram para óbito no período estudado.

A desnutrição, em especial a protéico-calórica (DPC), juntamente com a LVH constituem importantes problemas de saúde pública. Quando analisados em conjunto, os índices epidemiológicos da LVH e a prevalência da DPC são responsáveis por milhões de mortes no mundo todo. Entre os anos de 2000 e 2002, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estimou que 852 milhões de pessoas apresentavam desnutrição, sendo 815 milhões em países em desenvolvimento2. Dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde3 mostram que a DPC é responsável direta ou indiretamente por 54% das 10,8 milhões de mortes de crianças com idade inferior a 5 anos. Já a LVH, ameaça atualmente 350 milhões de pessoas incluindo jovens e crianças de 88 países4. Aproximadamente, 500 mil novos casos de LVH são relatados anualmente, principalmente em países como a Índia, Sudão e Brasil, sendo este índice subestimado4. Em 2005, a leishmaniose visceral (LV) foi responsável por 59 mil mortes em todo o mundo4, e no Brasil, de acordo com os estudos revisados por Gontijo & Melo5, em 19 dos 27 estados brasileiros já foram registrados casos autóctones de LV, e de 1999 a 2004 ocorreram em média 3,5 mil casos humanos, sendo a maioria na região Nordeste do país. De acordo com Desjeux6, um aumento significativo de casos em todo o mundo poderá ocorrer nos próximos anos, principalmente em regiões tropicais e subtropicais.

Atualmente, tem sido amplamente aceito que a imunidade ou a susceptibilidade a doenças infecto-parasitárias está diretamente relacionada com o estado nutricional do paciente. Entretanto, os mecanismos que regem a relação DPC e o curso da LVH são múltiplos e pouco esclarecidos. Em estudos recentes7,8, foi possível verificar que, infelizmente, poucos foram os trabalhos que se dispuseram estudar a complexa relação entre a DPC e a LV, fato esse que pode explicar a ausência de respostas para algumas questões cruciais relacionadas à temática. A desnutrição seria um fator predisponente por fazer parte do estado geral do paciente? Ou consequência da doença pela ação do parasito que atua como agente coadjuvante, exacerbando o quadro de deficiência nutricional pré-existente? Esse fato é especialmente preocupante haja vista que os danos causados pela DPC e pelas formas clínicas da LVH são mais severos quando ocorrem em associação. Outras questões que destacam são: o tratamento da LVH, incluindo as medidas de imunização, permitiria a obtenção de resultados eficientes numa população em que a DPC é prevalente? Além disso, como a DPC tem afetado a epidemiologia e a distribuição da LVH? Como os casos de pacientes com LVH e DPC devem ser tratados? Similarmente, pode o risco de LVH, em casos de DPC, ser reduzido? Se sim, como?

Nesse sentido, embora no estudo feito por De-Oliveira e cols1 não tenha sido realizado uma análise específica no sentido de elucidar os mecanismos que regem a relação DPC e LV, o mesmo nos chama a atenção para um problema sério de saúde pública, muito negligenciado no contexto das doenças tropicais, ou seja, a desnutrição e a LVH.

Estudos como esse contribuem de forma significativa para a compreensão de que a identificação precoce das características clínicas e laboratoriais no primeiro atendimento ao paciente é de importância crucial para reduzir a mortalidade da LVH, como também serve de alerta para o fato de que os fatores nutricionais devem ser levados em consideração nos casos de atendimento ao paciente com tal doença.

Diante da importância do estado nutricional para a manutenção da homeostasia dos sistemas fisiológicos e ao se considerar que a relação DPC e LV é ainda pouco compreendida, é possível que existam muitos mecanismos biológicos envolvidos neste sinergismo, tornando-se recomendável buscar cada vez mais conhecimentos sobre este tema. O melhor conhecimento dos mecanismos envolvidos na fisiopatogenia da DPC associada à LVH auxiliará na instituição de medidas preventivas e terapêuticas precoces.

Recebido para publicação em 03/05/2010

Aceito em 07/05/2010

  • 1. De-Oliveira JM, Fernandes AC, Dorval MEC, Alves TP, Fernandes TD, Oshiro ET, et al. Mortalidade por leishmaniose visceral: aspectos clínicos e laboratoriais. Rev Soc Bras Med Trop 2010; 43:188-193.
  • 2
    Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). Geneva: Organização Mundial da Saúde; 2004.
  • 3
    World Health Organization. Malnutrition. Quantifying the health impact at national and local levels. Geneva: World Health Organization; 2005. p. 43.
  • 4
    World Health Organization. Program for the surveillance and control of leishmaniasis. Geneva: World Health Organization; 2005. p. 89.
  • 5. Gontijo CMF, Melo MN. Visceral Leishmaniasis in Brazil: current status, challenges and Prospects. Rev Bras Epidemiol 2004; 7:1-12.
  • 6. Desjeux P. Leishmaniasis: current situation and new perspectives. Comp Immunol Microbiol Infect Dis 2004; 27:305-318.
  • 7. Malafaia G. Protein-energy malnutrition as a risk factor for visceral leishmaniasis: a review. Parasite Immunol 2009; 31:587-596.
  • 8. Malafaia G. Importance of encouragement of studies on effects of protein-energy malnutrition on vaccination against visceral leishmaniasis. Saude Amb Rev 2009; 4:47-53.
  • Endereço para correspondência:
    MSc. Guilherme Malafaia
    Rua Pedro Moreira 9A, Vila Nova
    75200-000 Pires do Rio, GO
    Tel: 55 64 3461-6845
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010
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