Acessibilidade / Reportar erro

O Inquérito triatomínico (1975-1983)

Entomological survey (1975-1983)

Resumos

Quando redimensionadas e sistematizadas as ações de controle vetorial no país, a partir do ano de 1975, havia, antes de tudo, que atualizar a informação existente sobre a distribuição dos vetores no país, e distinguir precisamente a importância das diferentes espécies na transmissão domiciliar da doença de Chagas. Foram então realizados inquéritos regionais por amostragem naquelas regiões para as quais a informação então existente se considerava especialmente precária ou insuficiente; e também inquérito entomológico feito casa-a-casa em todos os municípios sabida ou supostamente de risco. No caso deste último, foram pesquisados 1.942 municípios em 19 estados, segundo a divisão política vigente no ano de 1980, tomado aqui como referencia. Esse trabalho, feito já como parte da rotina das operações de controle e que serviu como linha de base para as intervenções, se completou no ano de 1983. Em anos imediatamente seguintes foi ainda estendido a outras áreas consideradas também vulneráveis à infestação por triatomíneos. Os resultados colhidos permitiram o mapeamento da área endêmica ou com risco de transmissão vetorial no país. Ademais, através dele se reconheceu como espécies comprovadamente vetoras da infecção chagásica no ambiente domiciliar, ao menos cinco do total de trinta então identificadas: Triatoma infestans, Panstrongylus megistus, T. brasiliensis, T pseudomaculata e T. sordida, por ordem de importância. Pode-se também verificar o avanço havido na dispersão de T. infestans, vetor alóctone capturado em estados da região Nordeste onde antes não se sabia estar presente. Em relação às espécies nativas se comprovou uma clara divisão de território entre elas; e, ainda, que P. megistus era a espécie mais difusamente distribuída, enquanto T. brasiliensis e T. pseudomaculata apresentavam distribuição restrita ao semiárido do nordeste, e T. sordida, aquele com o maior número de capturas (ainda que quase sempre peri-domiciliares), se mantinha quase que exclusivamente nos limites do cerrado, de onde é nativo.

Doença de Chagas; Vetores; Inquérito triatomínico; Brasil


After the systematization and re-dimension of the vectorial control in all the Country by 1975, it was considered necessary to have an up-to-date information on the distribution of vectors in Brazil, and differentiate precisely the role of each of the different species on the intra-domiciliary transmission of Chagas disease. For this purpose, sampling regional surveys for regions with non reliable information were performed, as well as, a house by house search for vectors on those areas considered at risk. For this last, 1,942 municipalities from 19 states were searched, as by the political division of the country by 1980, that was taken as a reference in this paper. These activities, that were implemented as part of the routine for intervention, were completed by 1983. Immediately after, this work was also extended for other areas considered targets for infected bugs. Results obtained, allowed to map the endemic area and the area under risk of vectorial transmission all over the country. Even more, with the results obtained it was possible to recognize those five species proved as vectors of the infection, among thirty already identified. These species, in order of importance, were: Triatoma infestans, Panstrongylus megistus, T. brasiliensis, T pseudomaculata and T. sordida. It was possible also to verify the increase in the dispersion of T. infestans, an aloctonous vector captured now in states of the North-east region, where it was not recognized previously. In relation with native species, a clear division of territories among them was found. Furthermore, P. megistus was found with a difuse distribution, but T. brasiliensis and T. pseudomaculata were restricted to the semi-arid Noth-east. The most often captured bug was T. sordida, (mostly around houses) limited to the cerrado area, which is its origin.

Chagas disease; Vectors; Triatominic survey; Brazil


PARTE II - OS GRANDES INQUÉRITOS NACIONAIS

O Inquérito triatomínico (1975-1983)

Entomological survey (1975-1983)

Antônio Carlos Silveira

Ex-Diretor da Divisão Nacional de Doença de Chagas e da Divisão Nacional de Epidemiologia do Ministério da Saúde e Consultor da Organização Panamericana de Saúde, E-mail: atcrs@uol.com.br

Endereço para correspondência Endereço para correspondência : Dr. Antonio Carlos Silveira SQN 304/B/302 70.736-020, Brasília, DF, Brasil.

RESUMO

Quando redimensionadas e sistematizadas as ações de controle vetorial no país, a partir do ano de 1975, havia, antes de tudo, que atualizar a informação existente sobre a distribuição dos vetores no país, e distinguir precisamente a importância das diferentes espécies na transmissão domiciliar da doença de Chagas. Foram então realizados inquéritos regionais por amostragem naquelas regiões para as quais a informação então existente se considerava especialmente precária ou insuficiente; e também inquérito entomológico feito casa-a-casa em todos os municípios sabida ou supostamente de risco. No caso deste último, foram pesquisados 1.942 municípios em 19 estados, segundo a divisão política vigente no ano de 1980, tomado aqui como referencia. Esse trabalho, feito já como parte da rotina das operações de controle e que serviu como linha de base para as intervenções, se completou no ano de 1983. Em anos imediatamente seguintes foi ainda estendido a outras áreas consideradas também vulneráveis à infestação por triatomíneos. Os resultados colhidos permitiram o mapeamento da área endêmica ou com risco de transmissão vetorial no país. Ademais, através dele se reconheceu como espécies comprovadamente vetoras da infecção chagásica no ambiente domiciliar, ao menos cinco do total de trinta então identificadas: Triatoma infestans, Panstrongylus megistus, T. brasiliensis, T pseudomaculata e T. sordida, por ordem de importância. Pode-se também verificar o avanço havido na dispersão de T. infestans, vetor alóctone capturado em estados da região Nordeste onde antes não se sabia estar presente. Em relação às espécies nativas se comprovou uma clara divisão de território entre elas; e, ainda, que P. megistus era a espécie mais difusamente distribuída, enquanto T. brasiliensis e T. pseudomaculata apresentavam distribuição restrita ao semiárido do nordeste, e T. sordida, aquele com o maior número de capturas (ainda que quase sempre peri-domiciliares), se mantinha quase que exclusivamente nos limites do cerrado, de onde é nativo.

Palavras-chaves: Doença de Chagas. Vetores. Inquérito triatomínico. Brasil.

ABSTRACT

After the systematization and re-dimension of the vectorial control in all the Country by 1975, it was considered necessary to have an up-to-date information on the distribution of vectors in Brazil, and differentiate precisely the role of each of the different species on the intra-domiciliary transmission of Chagas disease. For this purpose, sampling regional surveys for regions with non reliable information were performed, as well as, a house by house search for vectors on those areas considered at risk. For this last, 1,942 municipalities from 19 states were searched, as by the political division of the country by 1980, that was taken as a reference in this paper. These activities, that were implemented as part of the routine for intervention, were completed by 1983. Immediately after, this work was also extended for other areas considered targets for infected bugs. Results obtained, allowed to map the endemic area and the area under risk of vectorial transmission all over the country. Even more, with the results obtained it was possible to recognize those five species proved as vectors of the infection, among thirty already identified. These species, in order of importance, were: Triatoma infestans, Panstrongylus megistus, T. brasiliensis, T pseudomaculata and T. sordida. It was possible also to verify the increase in the dispersion of T. infestans, an aloctonous vector captured now in states of the North-east region, where it was not recognized previously. In relation with native species, a clear division of territories among them was found. Furthermore, P. megistus was found with a difuse distribution, but T. brasiliensis and T. pseudomaculata were restricted to the semi-arid Noth-east. The most often captured bug was T. sordida, (mostly around houses) limited to the cerrado area, which is its origin.

Key-words: Chagas disease. Vectors. Triatominic survey. Brazil.

INTRODUÇÃO

Quando a partir de 1975, se passou a contar com recursos suficientes para a manutenção de ações regulares de controle da transmissão vetorial da doença de Chagas no país, ainda que não em volume suficiente para a integral cobertura da área de risco já conhecida, havia antes de tudo que atualizar e complementar a informação então existente. Dados sobre a distribuição dos vetores, e a importância relativa das diferentes espécies, eram fragmentários, pouco precisos ou não completamente confiáveis. Ainda assim, é de se assinalar que para algumas áreas ou estados havia já um grande volume de informações, como para Minas Gerais1,2,3,4,5 , São Paulo6,7,8, Rio Grande do Sul9,10,11,12,13, Paraná8,14,15, e também para vários dos estados da região Nordeste16,17,18,19,20,21,22 . Além disso, até então, haviam sido feitos alguns trabalhos de revisão de grande relevância23, 24,25 .

De qualquer modo, naquela ocasião era indispensável dispor de uma linha de base sobre a qual orientar o controle, e que ademais servisse como parâmetro inicial de medida na avaliação do impacto das atividades.

INQUÉRITOS REGIONAIS

De início, dois grandes inquéritos regionais foram promovidos pela Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM) do Ministério da Saúde, a quem coube a pesquisa entomológica domiciliar e coleta de material, e pelo Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), com o apoio financeiro do Centro Brasileiro de Estudos Entomológicos em Epidemiologia (CENTEP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

O primeiro dos inquéritos abrangeu a região Nordeste 26 e o outro a região Central do país27. Em ambos os estudos, ademais de conhecer a distribuição dos vetores domiciliados, se buscou determinar as fontes alimentares preferenciais e as taxas de infecção natural das espécies identificadas. Uma outra informação de grande relevância para orientar as ações de controle foram as relações estabelecidas entre a distribuição dos vetores autóctones e os limites de sua dispersão, determinados em principio pelas condições ambientais dos biomas de que faziam parte ou de que eram nativos.

No caso da região Nordeste a pesquisa, realizada entre 1975 e 1980, compreendeu o exame de 15.342 exemplares de triatomíneos, de seis diferentes espécies (Triatoma pseudomaculata; Triatoma brasiliensis; Triatoma infestans; Triatoma sordida; Panstrongylus megistus e Rhodnius nasutus), com o predomínio de Triatoma pseudomaculata (6.235 espécimes, ou

40,6% do total). A coleta foi feita em 238 municípios selecionados, em todos os estados da região, à exceção do Maranhão.

Os dados colhidos sobre a distribuição geográfica dos vetores foram confirmatórios em relação ao que era já conhecido. P. megistus era espécie autóctone da mata atlântica e que se dispersava secundariamente pelo interior da região, onde mostrou menor antropofilia e capacidade vetorial; T. infestans e também T. sordida, em maior e menor grau respectivamente, se evidenciou serem espécies introduzidas na região, provavelmente por transporte passivo; e, as demais, (T. brasiliensis, T. pseudomaculata e R. nasutus) se reconheceu como espécies próprias da paisagem semi-árida da caatinga. Em relação à importância epidemiológica dos vetores, ficou evidente que P. megistus e T. brasiliensis eram então as espécies com maior participação na transmissão domiciliar da infecção chagásica, desde que T. infestans, reconhecidamente o mais competente vetor, se comprovou estar presente na região em baixa densidade, a não ser em áreas focais localizadas no Estado da Bahia; T. pseudomaculata e T. sordida teriam papel apenas secundário na transmissão; e, R. nasutus não contribuía diretamente na produção de casos de infecção humana por T. cruzi, a não ser de forma acidental.

Sobre as perspectivas ou projeções sobre o controle vetorial admitia-se - e hoje se sabe ser absolutamente correta essa previsão - que a eliminação das populações invasivas de T. infestans seria facilmente lograda, assim como de T. sordida em áreas onde fosse eventualmente introduzido. O mesmo se poderia esperar para as populações domiciliadas de P. megistus, T. brasiliensis e de T. pseudomaculata, sendo que para as regiões semiáridas da caatinga se poderia esperar a completa eliminação de P. megistus.

Obedecendo a critérios fito-geográficos e morfoclimáticos, o outro inquérito regional, abrangeu a região dos cerrados, incluindo os estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Maranhão. A área estudada, entre 1975 e 1980, abarcou aproximadamente a 1,8 milhões de km2, com a identificação e exame de 3.160 triatomíneos provenientes de 198 municípios.

Entre os triatomíneos capturados houve um grande predomínio de três espécies: Triatoma infestans (43.5%); T. sordida (33.0%) e Panstrongylus megistus (23,5%), além de outras que além de muito pouco freqüentes, se julgou não terem importância na transmissão domiciliar de T. cruzi.

Ficou evidente, pelo seu alto grau de domiciliação e antropofilia, que T. infestans era então o principal vetor na região estudada; e, de onde, pelo fato de ser espécie invasiva poderia ser passível de eliminação.

INQUÉRITO NACIONAL

Ao todo foram investigados 1.942 municípios em 19 estados, segundo a divisão política de então. Note-se que o estado de Goiás incluía o território que constitui hoje o estado de Tocantins. Essa área correspondia àquela considerada endêmica ou presumivelmente com risco de transmissão vetorial domiciliar, com base na informação à época disponível. Além disso, por segurança, a pesquisa entomológica foi estendida um pouco além daqueles que seriam os limites geográficos da área sabida ou supostamente infestada, o que se percebeu ser necessário quando conhecidos os resultados ainda preliminares do inquérito28.

Foram excluídos da investigação inicial os estados de São Paulo, e aqueles da região amazônica. Em São Paulo, a Secretaria Estadual de Saúde atuava de forma independente em relação ao governo federal no controle das doenças endêmicas de ocorrência predominantemente rural, através da Superintendência de Controle de Endemias (SUCEN). Especificamente no que respeita à doença de Chagas desde meados da década de 60 vinham já sendo implementadas as atividades de controle químico dos vetores. A exclusão dos estados da Amazônia se justificava pelo fato de não haver qualquer registro de domiciliação de vetores; o que, com o tempo se comprovou ser absolutamente correto, ainda que hoje se saiba ocorrer transmissão por outras vias, incluindo a vetorial sem colonização domiciliar.

Em 1980, o país se dividia em 3.991 unidades político-administrativas municipais29, o estado de São Paulo em 571 municípios e os estados da Amazônia em seu conjunto em 153 outros. Tomando os dados do censo de 1980 como referência, o inquérito triatomínico inicial, que constituiu a linha de base para as intervenções de controle, alcançou a 48,7% dos municípios existentes no país, ou 61,3% se desconsiderados aqueles que foram prévia e justificadamente excluídos. Importa mencionar que nos estados em que a presença de triatomíneos domiciliados se sabia ser focal, a pesquisa foi limitada a alguns poucos municípios. Assim, foi no caso do Rio de Janeiro. Em outras situações, a pesquisa foi dirigida apenas a determinadas áreas em que havia não mais do que a suspeita de que aí pudesse haver infestação domiciliar por triatomíneos, como nos Estados do Espírito Santo e de Santa Catarina.

Espécies identificadas e sua distribuição

A pesquisa entomológica, realizada por pessoal de campo previamente capacitado, e sob estrita supervisão, obedeceu a procedimentos definidos em guia técnico operacional30. Aí se estabeleceu como norma a pesquisa integral da unidade domiciliar, incluindo casa seus anexos e todos os possíveis locais de abrigo de vetores no ambiente peridomiciliar, realizados em um tempo previamente determinado (hora/homem). O emprego do desalojante químico Pirisa 1080 L1E1® (10 gramas de piretrina e 80 gramas de butóxido de piperonila) com diluição a 2% em água) se recomendava sempre que a observação direta resultasse negativa ou apenas com a presença de vestígios, e a unidade domiciliar se considerasse vulnerável à infestação.

A classificação taxonômica foi feita com base em chave para os gêneros de Triatominae, de Jeannel, 1919; para as espécies de Triatoma, de Galvão, 1969; para as de Panstrongylus, chave construída a partir daquelas de Galvão 1956 e Lent 1960; e, para as espécies de Rhodnius, chave de Lent de 1960.

Ao todo foram identificadas trinta diferentes espécies vetoras ou potencialmente vetoras da doença de Chagas. Dos 1.942 municípios investigados foram encontrados triatomíneos no ambiente domiciliar (intra e/ou peridomicilio) em 1.854 deles ( 95.5%)31.

Na Tabela 1, seguinte estão discriminadas as espécies e sua distribuição por estado. Manteve-se rigorosamente os apontamentos originais, mesmo aqueles que com a continuidade das operações se comprovou serem resultantes de erros de classificação taxonômica ou no processamento dos dados. A princípio, há que se desconsiderar o achado de Triatoma pseudomaculata no estado do Rio Grande do Sul e de Rhodnius prolixus em Pernambuco e, possivelmente, em Goiás. Em relação a exemplares classificados como R. prolixus provenientes do norte do então estado de Goiás e hoje Tocantins, município de Tocantinópolis, é de se observar que ainda que se tenha estendido a pesquisa a focos silvestres (Macaubeiras) e que se tenha confirmado a classificação inicialmente dada, em todas as intervenções posteriores não se voltou a identificar a espécie, ao menos no ambiente domiciliar. Em função disso e das dificuldades inerentes as diferenças interespecíficas muitas vezes extremamente singelas desse grupo de triatomíneos, tal como explicitamente admitido pelos AA dos trabalhos aí realizados, não se tem absoluta segurança em relação a esse dado32,33.

Outro esclarecimento preliminar a fazer se refere à presença de Triatoma infestans nos estados do Maranhão, Rio Grande do Norte, Santa Catarina e Sergipe. Foram capturas isoladas e únicas quando dos levantamentos entomológicos iniciais, não tendo sido confirmada infestação nos ciclos subsequentes de operações do programa de controle, o que levou a que se considerasse esses estados livres de infestação pela espécie.

Espécies reconhecidamente vetoras e sua distribuição

As trinta espécies identificadas foram capturadas em situações e condições muito diversas, indicando grandes diferenças entre elas do ponto de vista de sua relevância na transmissão domiciliar da doença de Chagas. Com base na frequência de capturas, na existência ou não de colônias intradomiciliares, e nas taxas de infecção natural por T. cruzi pode-se determinar que não mais do que cinco das espécies teriam participação direta na manutenção da endemia chagásica humana. Todas as outras eram então de hábitos exclusiva ou predominantemente silvestres, com a incursão apenas eventual de exemplares adultos à casa ou a seus anexos. Por ordem de importância considerou-se como vetores com comprovada participação no ciclo domiciliar de transmissão: Triatoma infestans; Panstrongylus megistus; T. brasiliensis; T. pseudomaculata e T. sordida (Tabela 2)31.

Entre estas, em particular, se destacava Triatoma infestans como o principal vetor, por ser espécie alóctone e exclusivamente domiciliada, altamente antropofílica e com as maiores taxas de infecção. Além disso, se encontrava amplamente disseminado pelas regiões sul, sudeste, centro-oeste, e com invasão recente em alguns dos estados da região nordeste. As demais, vetores autóctones, apresentavam distribuição limitada a um ou outro dos grandes biomas existentes no país: Triatoma brasiliensis e T. pseudomaculata com centro de endemismo na caatinga do semi-árido nordestino; Triatoma sordida no cerrado; e, Panstrongylus megistus na mata atlântica, ainda que disperso pelo interior do país ao longo de matas galeria.

As Figuras 1 a 5 mostram a área de dispersão dessas cinco espécies de triatomíneos reconhecidas como vetoras da doença de Chagas quando do inquérito triatomínico.


Ao exame do conjunto de mapas exibidos, fica evidente que:

1º) a divisão de território entre as principais espécies autóctoness, conforme mencionado, obedecia, como segue obedecendo, os limites dos grandes ecossistemas brasileiros de onde são nativas; à exceção de Panstrongylus megistus , encontrado em áreas do interior, com clima tropical ou sub-tropical mais úmido;

2º) por isso mesmo, em termos geográficos a espécie vetora que se comprovou mais amplamente dispersa foi P. megistus;

3º) havia uma grande coincidência da área de distribuição de T. infestans, com aquela de T. sordida e também de P. megistus, especialmente nas regiões sudeste e centro-oeste;

4º) dentre as duas espécies originárias do semiárido do nordeste, T. pseudomaculata se distribuía em uma área bastante mais extensa do que T. brasiliensis.

Considerando o mapa político do país, e tomando o total de 1.942 municípios pesquisados, resulta ainda mais notável a larga disseminação de P. megistus , que se confirmou estar presente em 1.300 deles, o correspondente a, aproximadamente, 67% do total (Tabela 3).

Em relação a T.sordida importa notar que ainda que em termos territoriais a área que se conheceu infestada pela espécie tenha sido aproximadamente equivalente a de P. megistus, o número de municípios infestados foi muitíssimo menor, em não mais do que 34% dos municípios investigados. Essa aparente incongruência pode ser atribuída ao fato de T. sordida ter sido a espécie predominante em grandes municípios da região centro-oeste e também de sua ausência nos muitos municípios existentes junto ao litoral, em especial naqueles da zona da mata do nordeste, onde P. megistus foi a espécie não apenas predominante como, em muitos casos, exclusiva.

Ainda sobre T. sordida é de se esclarecer a pequena importância epidemiológica que se atribuiu a espécie, em que pese de ter sido aquela com o maior número de capturas feitas e que tenha, ao menos de inicio, apresentado taxas de infecção não desprezíveis. Isso se justifica pelo raro achado de colônias intra-domiciliares, apenas encontradas excepcionalmente, uma vez esgotadas as fontes alimentares peri-domiciliares. Isso por sua vez encontra explicação em sua marcada ornitofilia. Na quase totalidade dos casos as capturas foram, assim como seguem sendo, em ninhos de aves e galinheiros.

Na Tabela 4 se detalha o número de municípios infestados por cada uma das espécies mais e menos responsáveis pela transmissão domiciliar da doença de Chagas. Esses dados confirmam a partição de território entre os vetores nativos, com a sobreposição de T. infestans, vetor alóctone, em extensas áreas, assim como ratificam a grande dispersão de P. megistus, capturado em rigorosamente todos os estados.

Algumas particularidades devem ser assinaladas em relação à distribuição regional dos vetores.

Na região nordeste, um primeiro dado a destacar foi o predomínio de municípios que se encontrou infestados por T. pseudomaculata, em relação a T. brasiliensis. A rigor, apenas nos Estados do Ceará e do Piauí essa última foi a espécie mais largamente dispersa. Considere-se que se admite com freqüência ser T. brasiliensis na região o principal vetor, à exceção do estado da Bahia. Aí T. infestans contribuiu com 73,3% do total de municípios em que na região foi identificado. Também no caso da Bahia é de se fazer referência ao fato de que a quase totalidade dos municípios onde foram feitas capturas de T. sordida na região faziam parte do estado. O que é explicável por ser aquele com a maior extensão de cerrado, paisagem dominante no oeste baiano. Além da Bahia, T. sordida foi encontrado apenas em alguns poucos municípios daqueles dois outros estados do nordeste que fazem parte do grande bioma do cerrado, Maranhão e Piauí.

Dos estados da região sudeste - uma vez que São Paulo não foi incluído no inquérito pelas razões antes mencionadas - apenas Minas Gerais apresentou infestação importante pelos principais vetores da doença de Chagas, todos eles capturados no estado. Até mesmo T. brasiliensis, espécie tipicamente nordestina e muito raramente encontrada em outras áreas que não aquelas de caatinga foi capturado em quatro municípios, assim como T. pseudomaculata em vários outros. P. megistus, T. sordida e T. infestans, nessa ordem, apresentaram alta dispersão. Chama atenção o fato de que as áreas livres de infestação em Minas Gerais foram, não por acaso, aquelas limítrofes aos demais estados da região, também não infestados. Apenas no Rio de Janeiro é de se fazer menção ao foco de T. infestans em dois municípios da baixada fluminense (Duque de Caxias e Nova Iguaçu), em trabalho de investigação de caráter especial aí realizado, em que se encontrou não mais do que 58 unidades domiciliares infestadas de um total de 45.315 pesquisadas34.

Os resultados do inquérito para a Região Sul, confirmatórios em relação ao que era já parcialmente conhecido, mostrou uma peculiar distribuição para os vetores, em especial para Triatoma infestans. No Paraná, foi identificado em duas áreas descontínuas, uma no norte do estado e outra no oeste; no Rio Grande do Sul, foi a única espécie encontrada colonizando o interior das habitações, em extenso território no centro sul do estado e fronteira oeste, constituindo uma área contígua com aquelas consideradas endêmicas de Uruguai e Argentina; e, em Santa Catarina, tal como já mencionado, houve um único achado no município de São Miguel do Oeste. Isso significa que a área com risco de transmissão vetorial por T. infestans na região sul é interrompida por um grande espaço territorial em que o vetor está ausente, que inclui o extremo norte do Rio Grande do Sul, todo o Estado de Santa Catarina e o centro-sul do Paraná. Pelas características ambientais comuns, próprias das planícies subtropicais do pampa, o Estado do Rio Grande do Sul apresenta do ponto de vista eco-epidemiológico maior similitude com os Países do Prata do que com o restante da área endêmica brasileira.

No centro-oeste do país, onde os cerrados constituem a paisagem típica da região, T. sordida foi a espécie predominantemente capturada, tanto em frequência, ou densidade, como em extensão. No entanto, Triatoma infestans esteve também amplamente disseminado. Ambas as espécies em número quase equivalente em termos de municípios infestados. Vale lembrar que, quando do inquérito triatomínico, o atual estado do Tocantins, pertencia a Goiás. Os dados a ele correspondentes estão sendo aqui contabilizados de forma individualizada, e o estado do Tocantins está sendo considerado como parte da Região Norte. Em verdade situa-se no centro geográfico do país, o que faz com que tenha limites não apenas com o Norte, mas também com estados do nordeste e centro-oeste. Com isso, sua fauna triatomínica tende a ser bastante diversificada.

Os dados proporcionados pelos inquéritos triatomínicos que aqui se está identificando como Inquéritos Regionais e Inquérito Nacional, serviram de base para orientar as atividades de controle, que foram sendo desencadeadas à medida em que eram concluídos os levantamentos entomológicos em determinado município ou localidade, sendo as pesquisas estendidas progressivamente a novas áreas.

  • 1. Lent H, Martins AV. Estudos sobre os triatomídeos do Estado de Minas Gerais, com descrição de uma espécie nova. Rev Entomol 1940; 11: 877-886.
  • 2. Martins A, Versiani V, Peres JN. Distribuição geográfica dos triatomídeos e seus índices de infecção pelo Schizotrypanum cruzi  no Estado de Minas Gerais.  Arq  Higiene 1954; 2: 63-79.
  • 3. Pellegrino J. Distribuição e índice de infecção dos triatomídeos transmissores da doença de Chagas no sudoeste de Minas Gerais. Rev Bras Med 1948; 5: 555-556.
  • 4. Pellegrino J. Novos dados sobre a distribuição de triatomídeos e sua infecção pelo Schizotrypanum cruzi  no Estado de Minas Gerais, Brasil. Mem Inst Oswaldo Cruz 1950; 48: 639-667.
  • 5. Pellegrino J. Transmissores da doença de Chagas no estado de Minas Gerais. Rev Assoc Med Minas Gerais 1951; 2: 43-66.
  • 6. Correa RR. Os triadomídeos do Estado de São Paulo. Seu papel na transmissão da moléstia de Chagas (Hemíptera, Reduviidae). Rev Paul Med 1951; 39: 379-380.
  • 7. Rosenfeld G, Cardoso FA. Novos dados para o estudo da distribuição dos triatomas no Estado de São Paulo e norte do Paraná. Rev Clin São Paulo 1941; 9: 145-147.
  • 8. Rosenfeld G, Cardoso FA. Distribuição dos triatomídeos e da moléstia de Chagas no Estado de São Paulo. Rev Clin São Paulo 1941; 9: 198-209.
  • 9. Dias E. Transmissores da doença de Chagas e respectivos índices de infecção. An Fac Med Porto Alegre 1953; 12-13: 57-58.
  • 10. Di Primo R. Distribuição geográfica dos triatomíneos do Rio Grande do Sul. Rev Med  Rio Grande do Sul 1952; 9: 98-109.
  • 11. Di Primo R. Novas investigações sobre a distribuição geográfica dos triatomídeos e de seus índices de infecção no Rio Grande do Sul. Rev Med  Rio Grande do Sul 1953; 9: 240-246.
  • 12. Di Primo R. Triatomíneos do Rio Grande do Sul. An Fac Med Porto Alegre 1957; 17: 17-37.
  • 13. Pinto  C. Tripanosomiasis cruzi (doença de Carlos Chagas) no Rio Grande do Sul. Mem  Inst Oswaldo Cruz 1942; 37: 443-538.
  • 14. Lobo A, Borba AM, Souza J. Contribuição ao conhecimento da distribuição geográfica dos triatomídeos domiciliares e seus índices de infecção natural pelo Trypanosoma cruzi no estado do Paraná . Comunicação ao XI Congresso Brasileiro de Higiene. Curitiba; 1953.
  • 15. Simões AJP. Doença de Chagas no Estado do Paraná, Brasil. Esboço epidemiológico. Mem Inst Oswaldo Cruz 1943; 39:  279-291.
  • 16. Alencar JE, Almeida JO, Sherlock V, França AP, Leite L. Estudos sobre a epidemiologia da doença de Chagas no Ceará. II. Novos dados. Rev Bras Malariol  D Trop 1963; 15: 551-565.
  • 17. Aragão JMB, Aguirre GH, Leal JM, Serafim E. Contribuição ao conhecimento da distribuição geográfica dos triatomíneos domiciliários e seus índices de infecção natural por Schizotrypanum cruzi, Estado da Bahia. Rev Bras Malariol  D Trop 1955; 7: 409-421.
  • 18. Figueiredo A, Barbosa FS, Pontual LSC. Triatomídeos de Pernambuco. Rev Med  Pernambuco 1945; 15: 185-188.
  • 19. Figueiredo A. Zoogeografia dos triatomídeos de Pernambuco. J Med Pernambuco 1951; 47: 165-174.
  • 20. Lucena DT, Costa L. Estudos preliminares sobre a doença de Chagas na Paraíba. Rev Bras Malariol D Trop 1953; 5: 55-68.
  • 21. Lucena DT. Estudos sobre doença de Chagas no Nordeste do Brasil. Rev Bras Malariol  D Trop 1970; 22: 3-173.
  • 22. Machado H, Pinto OS. Contribuição ao conhecimento da distribuição geográfica dos triatomídeos domiciliários e de seu índices de infecção natural no Estado do Ceará. . Rev Bras Malariol  D Trop 1952; 4: 157-170.
  • 23. Lent H, Wygodzinski P. Revision of the Triatominae (Hemiptera, Reduviidae) and their significance as vectors of Chagas' disease. Bull Am Mus Nat Hist 1979; 163: 123-520.
  • 24. Neiva A, Pinto C. Chave dos reduvídeos hematófagos brasileiros; hábitos; sinonímia e distribuição. Brazil Medico  1923; 37: 98-194.
  • 25. Neiva A, Lent H. Notas e comentários sobre triatomíedeos. Lista de espécies e sua distribuição geográfica. Rev Entomol 1936; 6: 153-189.
  • 26. Forattini OP, Barata JMS, Santos JLF, Silveira AC. Hábitos alimentares, infecção natural e distribuição de triatomíneos domiciliados na região Nordeste do Brasil. Rev Saúde Públ São Paulo 1981; 15: 113-164.
  • 27. Forattini OP, Barata JMS, Santos JLS, Silveira AC. Hábitos alimentares, infecção natural e distribuição de triatomíneos domiciliados na região central do Brasil. Rev Saude Públ São Paulo 1982; 6: 171-204.
  • 28. Castro-Filho J, Silveira AC. Distribuição da Doença de Chagas no Brasil. Rev Bras Malariol  D Trop 1979; 31: 85-98.
  • 29
    Ministério da Saúde/ DATASUS. População residente. Notas Técnicas. Origem dos dados. Disponível em URL: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/ibge/popdescr.htm
  • 30
    Ministério da Saúde. Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), Divisão de Doença de Chagas. Manual de Normas Técnicas da Campanha de Controle da Doença de Chagas. Brasília: Centro de Documentação do Ministério da Saúde;á 1980.
  • 31. Silveira AC, Feitosa VR, Borges R. Distribuição de triatomíneos capturados no ambiente domiciliar, no período de 1975-83, Brasil. Rev Bras Malariol  D Trop 1984; 36: 15-312.
  • 32. Diotaiuti L, Silveira AC, Elias M. Sobre o encontro de Rhodnius prolixus Stal, 1859, em Macaubeiras. Rev Bras Malariol  D Trop 1984; 36: 11-14.
  • 33. Silveira AC, Mattos CA, Elias M, Luz FC. Rhodnius prolixus Stal 1859 em Goiás, Brasil. Nota prévia. Rev Bras Malariol  D Trop 1982; 34: 116-118.
  • 34. Silveira AC, Sakamoto T, Faria Filho OF, Gil HSG. Sobre o foco de triatomíneos domiciliados na Baixada Fluminense. Rev Bras Malariol D Trop 1982; 34:50-58.
  • Endereço para correspondência

    :
    Dr. Antonio Carlos Silveira
    SQN 304/B/302 70.736-020, Brasília, DF, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      2011
    Sociedade Brasileira de Medicina Tropical - SBMT Sociedade Brasileira de Medicina Tropical - SBMT, Núcleo de Medicina Tropical – UnB, Sala 43C – 70904-970, E-mails: rsbmt@uftm.edu.br | artes.rsbmt@gmail.com | sbmt@sbmt.org.br , WhatsApp: SBMT (61) 9.9192-6496, WhatsApp: RSBMT (34) 9.9996-5807 - Brasília - DF - Brazil
    E-mail: rsbmt@uftm.edu.br