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Fatores associados ao abandono de tratamento em saúde mental em uma unidade de nível secundário do Sistema Municipal de Saúde

Factors associated to treatment dropout in mental health

Resumos

A ocorrência de abandono de tratamento psiquiátrico de nível secundário é uma relevante questão clínica e econômica. Taxas de abandono em psiquiatria são mais altas que em outras especialidades médicas. Estudos publicados nos últimos 15 anos têm identificado diversos fatores estatisticamente associados ao não-comparecimento às consultas e/ou ao abandono de tratamento em saúde mental. OBJETIVO: Avaliar variáveis demográficas, psicopatológicas, de diagnóstico e tratamento enquanto possíveis preditores de abandono de tratamento em serviço especializado de saúde mental. MÉTODO: Estudo observacional, avaliando 896 pacientes encaminhados, no período de abril de 2004 a março de 2006, por Unidades Básicas de Saúde da área de abrangência do serviço especializado. RESULTADOS: Pacientes solteiros, com idade abaixo da média do grupo (39,2 anos) e desempregados abandonaram significantemente mais o tratamento. Duas variáveis relativas ao exame psicopatológico se associaram significantemente com abandono de tratamento (memória quanto ao passado recente e relação do humor com fatos reais, atuais). Pacientes adultos que receberam diagnóstico psiquiátrico de oligofrenia abandonaram significantemente menos e pacientes com diagnóstico relativo aos transtornos da infância e adolescência (F80-F98 da CID-10) também abandonaram significantemente mais o tratamento. O registro de comorbidade psiquiátrica e tratamento exclusivamente farmacológico se associaram a não abandono do tratamento. CONCLUSÃO: Os resultados confirmam achados de diferentes autores da evidência de características associadas a abandono ao tratamento. Tais achados sugerem que determinados subgrupos de pacientes necessitem de abordagens customizadas, a fim de influenciar positivamente sua adesão final ao tratamento indicado.

Desistência do paciente; saúde mental; atenção secundária à saúde


Psychiatric out-treatment drop-out is a relevant clinical and economical issue. Drop-out rates in psychiatry are higher than in any other medical specialties. Articles published in the last 15 years have identified several factors statistically associated to no-compliance and treatment dropping-out. OBJETIVE: The objective of this paper is to evaluate demographical, psychopathological, diagnose and treatment variables as possible predictors of attrition from a mental health out-service. METHOD: Natural experiment, evaluating 896 patients referred by primary care units from April 2004 till March 2006. RESULTS: Single patients, unemployed people, and those whose age was below group-average (39.2 years) dropped-out significantly more than others. Two variables related to psychopathological examination were associated to treatment drop-out (recent memory and relation of affective disposition to current circumstances). Adult patients that received a diagnosis of Mental Retardation and those with a diagnosis related to groups F80-F98 (CID-10) also dropped-out significantly more. The identification of a psychiatric comorbidity and exclusively pharmacological treatment were associated to adherence. CONCLUSION: Results support the findings of different researchers as to the evidence of characteristics associated to treatment dropping-out. These findings suggest that certain group of patients need a more customized care, in order to positively influence their final adherence to their treatment.

Patient dropouts; mental health; secondary health care


ARTIGO ORIGINAL

Fatores associados ao abandono de tratamento em saúde mental em uma unidade de nível secundário do Sistema Municipal de Saúde

Factors associated to treatment dropout in mental health

Mário Sérgio Ribeiro; Márcio José Martins Alves; Eveline Maria de Melo Vieira; Priscila Matthiesen e Silva; Camila Vieira Dal-Bianco Lamas

Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Mário Sérgio Ribeiro Rua Severino Meireles, 325, apto. 902 38025-040 - Juiz de Fora, MG E-mail: mariosribeiro@acessa.com

RESUMO

A ocorrência de abandono de tratamento psiquiátrico de nível secundário é uma relevante questão clínica e econômica. Taxas de abandono em psiquiatria são mais altas que em outras especialidades médicas. Estudos publicados nos últimos 15 anos têm identificado diversos fatores estatisticamente associados ao não-comparecimento às consultas e/ou ao abandono de tratamento em saúde mental.

OBJETIVO: Avaliar variáveis demográficas, psicopatológicas, de diagnóstico e tratamento enquanto possíveis preditores de abandono de tratamento em serviço especializado de saúde mental.

MÉTODO: Estudo observacional, avaliando 896 pacientes encaminhados, no período de abril de 2004 a março de 2006, por Unidades Básicas de Saúde da área de abrangência do serviço especializado.

RESULTADOS: Pacientes solteiros, com idade abaixo da média do grupo (39,2 anos) e desempregados abandonaram significantemente mais o tratamento. Duas variáveis relativas ao exame psicopatológico se associaram significantemente com abandono de tratamento (memória quanto ao passado recente e relação do humor com fatos reais, atuais). Pacientes adultos que receberam diagnóstico psiquiátrico de oligofrenia abandonaram significantemente menos e pacientes com diagnóstico relativo aos transtornos da infância e adolescência (F80-F98 da CID-10) também abandonaram significantemente mais o tratamento. O registro de comorbidade psiquiátrica e tratamento exclusivamente farmacológico se associaram a não abandono do tratamento.

CONCLUSÃO: Os resultados confirmam achados de diferentes autores da evidência de características associadas a abandono ao tratamento. Tais achados sugerem que determinados subgrupos de pacientes necessitem de abordagens customizadas, a fim de influenciar positivamente sua adesão final ao tratamento indicado.

Palavras-chave: Desistência do paciente, saúde mental, atenção secundária à saúde.

ABSTRACT

Psychiatric out-treatment drop-out is a relevant clinical and economical issue. Drop-out rates in psychiatry are higher than in any other medical specialties. Articles published in the last 15 years have identified several factors statistically associated to no-compliance and treatment dropping-out.

OBJETIVE: The objective of this paper is to evaluate demographical, psychopathological, diagnose and treatment variables as possible predictors of attrition from a mental health out-service.

METHOD: Natural experiment, evaluating 896 patients referred by primary care units

from April 2004 till March 2006.

RESULTS: Single patients, unemployed people, and those whose age was below group-average (39.2 years) dropped-out significantly more than others. Two variables related to psychopathological examination were associated to treatment drop-out (recent memory and relation of affective disposition to current circumstances). Adult patients that received a diagnosis of Mental Retardation and those with a diagnosis related to groups F80-F98 (CID-10) also dropped-out significantly more. The identification of a psychiatric comorbidity and exclusively pharmacological treatment were associated to adherence.

CONCLUSION: Results support the findings of different researchers as to the evidence of characteristics associated to treatment dropping-out. These findings suggest that certain group of patients need a more customized care, in order to positively influence their final adherence to their treatment.

Key-words: Patient dropouts, mental health, secondary health care.

INTRODUÇÃO

Para que se possa proceder à avaliação da qualidade de serviços de saúde, é necessário, antes de tudo, que se defina o conceito de qualidade1. Tal empreendimento é complexo, dada sua natureza abrangente - isto é, deve levar em conta, entre outros aspectos, o acesso, a adequação, a efetividade, a eqüidade, os custos e a satisfação dos usuários - e dinâmica, associada a valores sociais e subjetivos. A própria delimitação do objeto ao qual o termo se aplica varia, ora se referindo à atenção médica propriamente dita, ora aos serviços de saúde. Segundo Ribeiro et al.2, uma meta dos sistemas públicos de atenção à saúde é proporcionar o mais alto nível de qualidade ao maior número de pessoas, da forma mais eqüitativa e ao menor custo.

De acordo com a tipologia de Donabedian3,4, três aspectos devem ser abordados na avaliação da qualidade de um serviço de saúde: 1) a "estrutura" existente; 2) o "processo" de atendimento desenvolvido; e 3) a verificação de seus "resultados", procurando determinar se o serviço produz o impacto esperado na saúde dos pacientes. A busca de identificação de fatores associados ao abandono de tratamento se insere, caracteristicamente, em um modelo de avaliação de resultados.

Já em 1991, Olfson5 verificou que um quarto dos pacientes referenciados para assistência à saúde mental especializada não comparecia ao serviço secundário. Verificou, ainda, que este grupo de pacientes que não compareceu à consulta de referência em psiquiatria também apresentou taxas mais elevadas, que o grupo-controle, de não-comparecimento a consultas de referência em outras especialidades.

Estudos realizados nos últimos 15 anos têm identificado diversos fatores que se associam estatisticamente ao não-comparecimento às consultas e/ou ao abandono de tratamento em saúde mental, tanto em nível primário quanto em secundário: fatores sociodemográficos5-13, relativos ao diagnóstico ou ao estado clínico6-8,10,14,15, tipo de provedor da assistência e/ou características do atendimento16,9,10,12, responsável pela referência6,13, tempo de espera para a consulta com o especialista14; crenças e expectativas dos clientes9,12,14, adesão à medicação prescrita, freqüência de busca de outros serviços5,10, entre outros, já foram identificados como capazes de influenciar a adesão ou o abandono ao tratamento. Ainda que tais estudos não apresentem resultados consistentes, na discussão dos resultados serão apresentados com mais detalhes.

Dadas as altas taxas de abandono de tratamento freqüentemente encontradas em programas de saúde mental, podem ocorrer distorções importantes na avaliação desses serviços, caso as informações relativas aos pacientes que não se mantiveram em tratamento não sejam incluídas7. A avaliação das taxas de abandono deve também levar em conta a aceitação ou a rejeição das estratégias de tratamento: uma intervenção deve ser considerada inefetiva se seus usuários a consideram inaceitável e a rejeitam17. Ou seja, entre inúmeros motivos capazes de explicar os abandonos de tratamento, inclui-se sua rejeição pelos pacientes e/ou familiares.

Pesquisa realizada por Poço e Amaral18, abrangendo dados de pacientes oriundos de apenas uma das Unidades Básicas de Saúde (UBS) analisadas neste estudo, revelou altas taxas de abandono de tratamento em todos os dispositivos assistenciais que compõem o Sistema Municipal de Saúde Mental de Juiz de Fora (SMSM-JF). Ao avaliarem os motivos de abandono por parte dos pacientes abordados no estudo referido, Ribeiro e Poço19 identificaram que 57,5% dos pacientes encontrados afirmaram não ter voltado a procurar atendimento em saúde mental. Como motivos de abandono, 35% referiram que obtiveram melhora e/ou que o tratamento não seria mais necessário, enquanto 19% consideraram que o tratamento - em boa parte realizado por especialistas - fora inadequado ou ineficaz.

Este estudo tem como objetivo avaliar variáveis demográficas, psicopatológicas e interativas, de diagnóstico e tratamento, enquanto possíveis fatores associados ao abandono do tratamento em serviço especializado de saúde mental. Enquanto o desdobramento imediato possibilita identificar possíveis ações que visem a maior engajamento dos pacientes ao tratamento psiquiátrico em um sistema de atenção à saúde mental fundamentado no modelo da Atenção Básica de Saúde (ABS).

O projeto original, do qual decorre este estudo, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora.

MATERIAIS E MÉTODO

Desenho do estudo

Partiu-se de um estudo observacional20,21 - isto é, sem intervenção do grupo de pesquisadores na alocação dos sujeitos ou procedimentos terapêuticos -, utilizando-se dos dados registrados pelos profissionais responsáveis pela assistência aos pacientes. Foram avaliados pacientes encaminhados pelas UBS da área de abrangência do Centro de Referência Regional em Saúde Mental-Oeste (CRRESAM-Oeste) nos períodos de abril de 2004 a março de 2005 e abril de 2005 a março de 2006.

A digitalização do banco de dados e a análise dos resultados foram realizadas por meio dos programas EPI-Info 6.04d e SPSS for Windows 14.0 (licença de uso CFOP 6.108/6.933).

Sujeitos, critérios de inclusão e variáveis

Dos 896 pacientes referenciados, 427 o foram no período de abril 2004 a março de 2005 e 469 no período abril de 2005 a março de 2006. Desse total de pacientes que compareceram a pelo menos uma consulta no CRRESAM-Oeste, foram excluídos 11 pacientes para os quais a variável "situação de tratamento" - isto é, a permanência em atendimento no CRRESAM-Oeste, referência ao programa especial, contra-referência à UBS, ou abandono de tratamento - não havia sido preenchida e 15 pacientes que faleceram, foram internados ou receberam alta a pedido durante o período avaliado. Ao final, foram incluídos e analisados os dados dos 870 pacientes.

Para adequar-se ao padrão assistencial estabelecido pelos protocolos de conduta do SMSM-JF22 - que prescrevem que os pacientes devem ter sua avaliação realizada pela equipe de especialistas de referência em período de até 60 dias -, a avaliação da "situação de tratamento" foi estendida para dois meses após o término de cada período estudado.

A variável "situação de tratamento" foi a única estabelecida e preenchida pela equipe de pesquisa a partir da análise dos prontuários. Foi considerado "abandono de tratamento" quando, após comparecer à primeira consulta no serviço secundário, o paciente não retornava para a continuidade do tratamento até o final do mês de maio consecutivo a cada período estudado, independente do tempo de permanência em tratamento. Pacientes na situação de "não abandono de tratamento" correspondem àqueles que permaneceram em atendimento no serviço secundário, foram encaminhados a programas superespecializados ou contrareferenciados às UBS de origem.

Todas as outras variáveis utilizadas constam dos prontuários clínicos semi-estruturados que circulam no SMSM-JF. As variáveis "demográficas" e "socioeconômicas" foram coletadas a partir de um formulário, especialmente desenvolvido para a referência ao nível secundário, preenchido pelos técnicos das UBS. As demais variáveis constam de registros efetuados pelos especialistas ao longo do atendimento no nível secundário. As variáveis "psicopatológicas" e "interativas" resultam do exame psiquiátrico, porquanto as interativas correspondem a aspectos da relação especialistapaciente - tais como confiabilidade das informações, forma com que relata seus problemas, motivação para tratamento etc. - incluídos no roteiro semi-estruturado utilizado no SMSM-JF22. Os itens da avaliação psiquiátrica são registrados como: a) "bom", "prejudicado", duvidoso" ou "sem condição de avaliar"; b) "sem alteração", "com alterações", "duvidoso" ou "sem condição de avaliar"; c) "alto", "mediano", "baixo", "duvidoso" ou "sem condição de avaliar"; etc.

Os diagnósticos principais foram estabelecidos pelos especialistas, de acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID-10)23; para efeito das análises aqui realizadas, agruparam-se os diagnósticos de F80 a F99 como categoria única de transtornos mentais da criança ou do adolescente.

Tratamento estatístico

Todas as variáveis binárias foram assim mantidas, tanto para as análises descritivas quanto para os cruzamentos de dados. Objetivando-se agrupar os sujeitos da forma mais homogênea possível, as variáveis numéricas ou as qualitativas com três ou mais categorias foram transformadas em binárias. Para tanto, se utilizou: 1) no caso das variáveis quantitativas: das categorias "acima" ou "abaixo" da média; e 2) no caso das variáveis categóricas: da redução das categorias a duas possibilidades opostas - tais como professar ou não professar a religião católica; trabalhar ou não no setor de comércio e serviços - ou agrupadas por proximidade, tais como "inteligência alta" versus + "inteligência mediana" + "inteligência baixa"; os registros "duvidoso" e "sem condição de avaliar" foram considerados como não resposta (missing).

O teste qui-quadrado de Pearson foi utilizado para se avaliar a significância dos resultados encontrados nos cruzamentos de dados. Os p-valores foram considerados estatisticamente significantes quando menores ou iguais a 0,05 e marginalmente significantes quando menores que 0,1 e maiores do que 0,05. A explicitação do risco relativo foi utilizada para indicar o diferencial de chance de abandono do tratamento associado a cada variável.

RESULTADOS

Dos 870 pacientes que tiveram sua primeira consulta com a equipe de especialistas, 240 (27,6%) abandonaram o tratamento no serviço secundário (CRRESAM-Oeste).

Características sociodemográficas

Solteiros (p = 0,017), idade abaixo da média do grupo (39,2 anos; p < 0,000) e desempregados (p = 0,039) se associaram estatisticamente a abandono de tratamento no serviço secundário. Cinco outras variáveis indicaram, de maneira marginalmente significante (0,1 < p > 0,05), maior tendência a abandono: não ter sido identificado como cor diferente de branca; se tinha relação conjugal estável, não era seu primeiro relacionamento; não se declarar arrimo de família; referir renda pessoal menor do que um salário mínimo (Tabela 1).

Características psicopatológicas e interativas

Entre as inúmeras variáveis relativas ao exame psicopatológico e características interativas apenas duas evidenciaram associação com o abandono de tratamento, quais sejam, memória quanto ao passado recente (p = 0,022) e relação do humor com fatos reais, atuais (p = 0,008) (Tabela 2).

Características clínicas

Pacientes adultos que receberam diagnóstico psiquiátrico de oligofrenia abandonaram estatisticamente menos o tratamento (p = 0,037), enquanto aqueles que receberam diagnóstico relativo aos transtornos da infância e adolescência abandonaram mais o tratamento (p = 0,029); para os demais diagnósticos não se observou associação com abandono.

O registro de um diagnóstico de comorbidade psiquiátrica se associou negativamente a abandono do tratamento (p = 0,020), da mesma forma que a utilização de abordagem terapêutica exclusivamente farmacológica (p = 0,048) (Tabela 3).

DISCUSSÃO

Coerentemente com achados de outros pesquisadores, os resultados aqui apresentados também evidenciaram diferenças significantes entre pacientes que abandonaram e que não abandonaram o tratamento. Entretanto, não se evidenciou nenhum fator de risco que duplicasse (RR > 2) ou fator de proteção que reduzisse à metade (RR > 0,5) as probabilidades de abandono. Vale ressaltar que o encontro de significância estatística não se reveste, automaticamente, de relevância clínica e que, por outro lado, achados podem ser clinicamente relevantes, ainda que não significantes do ponto de vista estatístico.

Características sociodemográficas

Da mesma forma que o observado para os sujeitos aqui estudados, os estudos de Olfson5, Matas, Staley e Griffim6 e Rossi et al.10 também encontraram taxas de abandono significantemente mais elevadas entre pacientes solteiros; todavia, o contrário foi registrado por Young et al.7 e Gonzalez et al.12. Pacientes mais jovens também tiveram maiores taxas de abandono nos estudos de Young et al.7, Edlund et al. 9e Rossi et al.10.

Características psicopatológicas e interativas

Apenas duas variáveis "psicopatológicas" foram associadas, de modo significante, com o abandono de tratamento: memória quanto ao passado recente e relação do afeto basal com fatos reais/atuais. A "relação do afeto" é um aspecto da avaliação psicopatológica, ressaltado por Henri Ey24, que busca caracterizar desencadeadores das alterações do estado afetivo observado no exame psicopatológico. Entendese por "relação real/atual" quando se considera que o estado afetivo estaria vinculado a fatos concretos, imediatos, que deveriam resultar semelhante reação para a maioria dos sujeitos. A expressão "relação fantasmática/imaginária" associa-se à forma pessoal e idiossincrática pela qual cada sujeito elabora suas vivências pessoais; finalmente, uma "relação de tipo vital/endógena" diz respeito a alterações afetivas não justificáveis pelas circunstâncias atuais ou elaborações simbólicas dos pacientes e, assim sendo, corresponderiam a fatores de natureza preponderantemente biológica. Tal avaliação parece ter papel de relevância na indicação de modalidades terapêuticas farmacológicas ou simbólicas: assim sendo, pacientes com alterações afetivas de tipo "vital/endógena" responderiam bem a abordagens farmacológicas, enquanto, para os demais, as abordagens simbólicas estariam mais bem indicadas25.

Poucos pesquisadores avaliaram características psicopatológicas e interativas diante do abandono do atendimento psiquiátrico; aqueles que o fizeram, somente abordaram algumas poucas variáveis e poucos resultados foram congruentes com os atuais. No estudo de Gonzalez et al.12, uma maior disposição para iniciar o tratamento (motivação) em saúde mental melhorou a adesão durante o primeiro mês de tratamento, mas tal associação não se manteve no longo prazo. Grunebaum et al.14 evidenciaram que foram significantes preditores de abandono menor nível de sofrimento (distress) e menor resistência para tratamento com psiquiatra. Killaspy et al.15 concluíram seu estudo considerando que a sintomatologia psiquiátrica poderia contribuir para o nãocomparecimento a consultas por três razões principais: a) presença de sintomas ativos, como delírios persecutórios e depressão intensa; b) presença de sintomas negativos, como apatia e reduzida habilidade organizacional; e c) falta de insight.

Características clínicas

Quanto ao diagnóstico psiquiátrico, apenas os de oligofrenia e os relacionados a transtornos da infância e adolescência se associaram, respectivamente, a adesão e abandono. Matas, Staley e Griffim6 encontraram diferenças significantes no abandono para os diagnósticos de transtornos de personalidade, transtornos por uso de substância psicoativa e transtornos afetivos: os dois primeiros grupos diagnósticos tiveram taxas mais elevadas de abandono e o último abandonou significantemente menos o tratamento. Estudo de Percudani et al.8 revelou que pacientes com transtornos mentais neuróticos ou de personalidade seriam mais propensos a abandonar o tratamento, enquanto pacientes psicóticos manter-se-iam mais em tratamento. Ao avaliarem pacientes de sistemas públicos de saúde mental, Young et al.7 e Rossi et al.10 verificaram que pacientes que não abandonaram o tratamento tinham maior probabilidade de ter um diagnóstico que não fosse de esquizofrenia. Já no estudo de Killaspy et al.15, tanto o diagnóstico de esquizofrenia quanto o de transtorno esquizo-afetivo e transtorno bipolar foram fatores preditores de abandono. Ainda que padrões aceitáveis, como evidências conclusivas, não tenham sido identificados, vale ressaltar a afirmação de Young et al.7 de que os abandonos de tratamento possam estar associados à piora na condição clínica dos pacientes.

Abordagem terapêutica exclusivamente farmacológica se associou ao não abandono. As outras possibilidades avaliadas - pacientes ainda em fase de avaliação ou indicados para modalidade de tratamento exclusivamente simbólica ou combinação de abordagens farmacológica e simbólica -, ainda que, em seu conjunto, não correspondessem a 40% dos pacientes, abandonaram o tratamento com maior freqüência. De maneira oposta aos resultados aqui apresentados, Edlund et al.9 registraram que os resultados de seu estudo teriam sido consistentes com achados de outros pesquisadores no sentido de que taxas mais baixas de abandono ocorreriam com tratamento combinado (farmacológico + simbólico).

Ainda que este estudo não tenha abordado, especificamente, tal questão, diferentes autores têm sugerido que o abandono do paciente pode estar relacionado à qualidade da referência ao serviço de saúde mental. No estudo de Matas, Staley e Griffim6, o maior preditor de não-comparecimento à consulta especializada foi o tipo de serviço responsável pela referência: 32,8% dos pacientes referenciados pelo setor de emergência não compareceram à consulta especializada, comparado com 11,2% e 8,6% daqueles referenciados, respectivamente, por serviços de atenção primária e secundária. Profissionais e serviços com estilo mais participativo - caracterizado pelo maior envolvimento do paciente nas tomadas de decisões acerca do tratamento12 - ou que oferecem maior suporte social16 - tendem a apresentar menores taxas de abandono. Por sua vez, Melo e Guimarães13 evidenciaram que a busca de serviço especializado de saúde mental por demanda espontânea foi associada a maiores taxas de abandono de tratamento (RR = 2,12).

Entre as limitações desse estudo - como de todos os que utilizam semelhante desenho - aponta-se a reduzida possibilidade de generalização dos resultados, em especial pelo fato de que, aqui, a referência dos sujeitos ao serviço especializado obedeceu aos protocolos de conduta do SMSM-JF, sem qualquer outro critério de seleção. Deve-se, no entanto, observar que as variáveis aqui utilizadas podem, com facilidade, ser reproduzidas em outros contextos assistenciais, o que facilita a replicação deste estudo. O elevado número de sujeitos avaliados - dificilmente encontrado em estudos brasileiros - assegura a confiabilidade de seus resultados. Ressalta-se ainda que estudos que trabalham com situações de "vida real" contribuem, objetivamente, para uma avaliação da efetividade das práticas em saúde coletiva20,21. Além do mais, considera-se que, pelo simples fato de acontecerem, podem contribuir para a melhora da qualidade da assistência ou, pelo menos, para prevenir sua deterioração. A utilização de procedimentos de análise multivariada permitirá o aprofundamento destes achados.

CONCLUSÕES

Os resultados deste estudo parecem confirmar tendências observadas por diferentes autores que têm evidenciado que variáveis sociodemográficas, psicopatológicas e interativas, de diagnóstico e tratamento podem ser consideradas preditoras de abandono. Ainda que padrões mais estáveis não tenham sido identificados, tais achados sugerem que alguns subgrupos de pacientes necessitem de abordagens de características personalizadas, a fim de influenciar positivamente sua adesão final ao tratamento indicado.

Recebido 3/10/2007

Aprovado 20/3/2007

Esta pesquisa tem apoio FAPEMIG (Projeto EDT nº 3.322/2006).

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  • Endereço para correspondência:
    Mário Sérgio Ribeiro
    Rua Severino Meireles, 325, apto. 902
    38025-040 - Juiz de Fora, MG
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Recebido
      03 Out 2007
    • Aceito
      20 Mar 2007
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