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Erro médico em psiquiatria: caso clínico

Psyquiatry medical error: a clinical case

Resumos

Os autores relatam caso de suicídio em que os peritos concluíram por falha no atendimento médico prestado (erro médico). Uma senhora foi atendida e internada em hospital psiquiátrico. As anotações médicas no prontuário descreviam paciente com quadro depressivo grave, com ideias de ruína e intenção suicida. A paciente suicidou-se. Foi aberto inquérito policial por imposição da lei brasileira. Os peritos responsáveis pelo laudo concluíram pela possibilidade de falha no atendimento em virtude da ausência de solicitação de acompanhante para a paciente e em função de conduta terapêutica pouco incisiva em relação à gravidade descrita no prontuário.

Psiquiatria; suicídio; erro médico


The authors relate a case of suicide where experts concluded that there had been a medical error. A woman was seen by a physician and admitted to a psychiatric hospital. The doctor's notes described the patient as having a severe depressive episode, with ideas of helplessness and worthlessness and suicidal intention. The patient committed suicide. Brazilian law dictated the opening of a police investigation. The experts responsible for the report concluded that a medical error had possibly been committed: the patient had been left unaccompanied and the therapeutic conduct was not incisive enough in relation to the severity of the episode, as described in the patient's record.

Psychiatry; suicide; medical error


RELATO DE CASO

Erro médico em psiquiatria – Caso clínico

Psyquiatry medical error – A clinical case

Alan de Freitas PassosI; Fábio Lopes RochaII; Cláudia HaraIII. Naray PaulinoI

IInstituto Médico-legal de Belo Horizonte, Minas Gerais

IIInstituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais

IIIInstituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais. Faculdade de Saúde e Ecologia Humana (FASEH)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Naray Paulino Rua Juiz de Fora, 273/1007, 10º andar, Barro Preto 30180-060 – Belo Horizonte, MG Telefones: (31) 3295-4625 e (31) 9206-6726 Fax: (31) 3295-4531 E-mail: naray@uai.com.br

RESUMO

Os autores relatam caso de suicídio em que os peritos concluíram por falha no atendimento médico prestado (erro médico). Uma senhora foi atendida e internada em hospital psiquiátrico. As anotações médicas no prontuário descreviam paciente com quadro depressivo grave, com ideias de ruína e intenção suicida. A paciente suicidou-se. Foi aberto inquérito policial por imposição da lei brasileira. Os peritos responsáveis pelo laudo concluíram pela possibilidade de falha no atendimento em virtude da ausência de solicitação de acompanhante para a paciente e em função de conduta terapêutica pouco incisiva em relação à gravidade descrita no prontuário.

Palavras-chave: Psiquiatria, suicídio, erro médico.

ABSTRACT

The authors relate a case of suicide where experts concluded that there had been a medical error. A woman was seen by a physician and admitted to a psychiatric hospital. The doctor's notes described the patient as having a severe depressive episode, with ideas of helplessness and worthlessness and suicidal intention. The patient committed suicide. Brazilian law dictated the opening of a police investigation. The experts responsible for the report concluded that a medical error had possibly been committed: the patient had been left unaccompanied and the therapeutic conduct was not incisive enough in relation to the severity of the episode, as described in the patient's record.

Keywords: Psychiatry, suicide, medical error.

INTRODUÇÃO

As leis brasileiras definem o que é crime (ação ou omissão sujeita à punição por ser contrária à ordem legal vigente) e quais os atos são assim considerados1,2. Em nenhuma lei brasileira existe "erro médico" como crime3,4, mas como "conduta profissional inadequada que supõe inobservância técnica, capaz de produzir dano à vida ou à saúde de outrem, caracterizada por imperícia, imprudência ou negligência"5. Embora o tema levado aos tribunais chame-se "erro médico", os profissionais serão julgados por crimes previamente definidos em lei, como exposição da vida a perigo, homicídio, omissão de socorro, entre outros3.

Nos casos levados à justiça, sempre haverá perícia médica determinada pelo juiz (Brasil, 1941)6. Quando a perícia é de natureza criminal, em Minas Gerais, o procedimento é remetido ao Instituto Médico Legal de Belo Horizonte (IML/BH) e realizado pelo Serviço de Erro Profissional instituído em 1997. Esse serviço registrou 1.574 perícias entre junho de 1997 e junho de 2006. Obstetrícia (26%), pediatria (11%), medicina interna (7%), cirurgia plástica (5%) e ortopedia (5%) foram as mais frequentes.

Oito perícias envolveram a psiquiatria (0,5%), ou seja, média inferior a um caso/ano. Entre os casos psiquiátricos analisados, um destacou-se pelas circunstâncias e conclusão pericial: os peritos concluíram pela falha no atendimento médico prestado. O objetivo do presente trabalho é mostrar o raciocínio pericial e os elementos utilizados para elaboração de laudo psiquiátrico, a partir de um caso em que se concluiu por erro médico.

RELATO DE CASO

Senhora de 62 anos, casada, do lar, um filho, atendida e internada em hospital psiquiátrico. A internação foi pedida e providenciada pelo filho em virtude da depressão de sua mãe e do histórico de tentativas de suicídio. Ele precisava viajar e temia deixá-la sozinha em casa. O psiquiatra responsável pela internação e acompanhamento anotou na papeleta "quadro depressivo com ideias deliroides de ruína e autoextermínio. Classificação Internacional de Doenças (CID) F32.2 com 20 anos de evolução. Piora nos últimos dias". A paciente foi medicada com paroxetina 20 mg/dia, clonazepam 3 mg/dia, prometazina 25 mg/dia e zopiclona 7,5 mg em caso de insônia. O psiquiatra indicou cuidados gerais, aferição de dados vitais e "observação rigorosa por risco de suicídio". Avaliação do clínico geral descreveu "paciente em bom estado geral, dados vitais estáveis, sem queixas clínicas". A prescrição permaneceu inalterada durante toda a internação.

No dia seguinte à internação, a paciente queixou-se de dor abdominal e foi medicada com paracetamol. No terceiro dia, o psiquiatra plantonista descreveu "paciente calma e cooperativa; sem intercorrências". No quarto dia, um domingo, não houve anotação psiquiátrica até a constatação do óbito pelo plantonista entre 16 e 17h.

Ocorrido óbito por enforcamento, a lei exige instauração de inquérito policial. O delegado de polícia providencia as diligências necessárias como recolher objetos da vítima, remeter o corpo para o IML, ouvir pessoas, solicitar ao IML laudo de "erro médico" (denominado "parecer médico legal"), entre outros. Ao final, o delegado remete o caso à justiça que decide sobre seu prosseguimento ou arquivamento.

Vários foram os depoimentos na delegacia de polícia. O depoimento do médico plantonista demonstrou enforcamento com cabo de força da televisão que, preso à janela, circundou o pescoço da paciente e conferiu asfixia. Declarou que, em casos graves, o hospital solicita, por intermédio do médico que admitiu o paciente, que seja mantido acompanhante. A paciente não tinha acompanhante e, caso o tivesse, seu pagamento seria custeado pela família. A paciente tinha histórico de tentativas de suicídio. No dia dos fatos, a paciente "estava em recuperação".

O depoimento da diretora clínica citou história de depressão há 20 anos. Naquele ano, era o terceiro suicídio que ocorria dentro do hospital. Era regra do hospital a solicitação de acompanhante em casos de pacientes graves.

Informações do auxiliar de enfermagem mencionaram paciente tranquila, "andando pela área de lazer". Mais tarde, "encontrada no seu apartamento enforcada". Havia anotação na papeleta sobre intenção de suicídio quando da internação. O médico não solicitou acompanhante, embora fosse regra do hospital para aquele tipo de doente.

Já o filho da paciente (41 anos, curso superior) explicou que internou a mãe porque iria viajar e temia que ela cometesse suicídio ficando sozinha. O médico não pediu acompanhante, cujo custo poderia ser arcado pelo familiar. A mãe apresentara duas tentativas de suicídio anteriormente e já contava quatro internações naquele hospital. O corpo clínico conhecia sua mãe e suas intenções. A televisão foi levada ao hospital pelo filho e ninguém o impediu de deixar o aparelho.

O depoimento do médico-assistente, responsável pela internação, relatou paciente internada pelo filho que iria viajar e temia pela vida da mãe porque "ela tinha forte quadro depressivo". O marido da paciente estava internado naquele mesmo período. Notou-se que a paciente estava "um pouco ansiosa e deprimida, com ideias de ruína, mas calma e cooperativa à admissão". A paciente não manifestou ideação suicida em nenhum momento naquela internação.

Outros dados do inquérito policial referiam-se às tentativas prévias de autoextermínio. A primeira tentativa (uso abusivo de psicofármacos) ocorrera em época e local não descritos. A segunda tentativa (disparos de arma de fogo no tórax) ocorrera oito anos antes da internação atual.

O delegado decidiu requisitar laudo para verificação de possível erro médico e elaborou as seguintes perguntas aos peritos: 1. "Foi correto o atendimento médico dispensado à paciente?"; 2. "Houve indicação médica de acompanhante permanente para a vítima diante do seu histórico de tentativa de autoextermínio e quadro clínico? Seria necessário um acompanhante quando da sua última internação?"; 3. "O quarto onde se encontrava a vítima diante de seu quadro clínico era o ideal?"; 4. "Foi correta a autorização da entrada no quarto da paciente de televisão, com cabo elétrico de 1,80 m, diante de seu histórico de tentativa de autoextermínio?"

A fim de poderem responder aos quesitos, além dos elementos já dispostos no inquérito, os peritos pesquisaram a literatura médica e os procedimentos normalmente adotados pela comunidade médica.

No laudo do IML/BH, os peritos transcreveram partes dos depoimentos listados nos autos e partes das anotações médicas do prontuário hospitalar. Em alguns momentos, os peritos colocaram sinais de interrogação indicando dificuldade ou impossibilidade de leitura das observações médicas em função da letra sofrível ali disposta.

Os peritos notaram que: 1. era costume o hospital solicitar acompanhante em quadros depressivos graves. Competia ao médico que fez o atendimento inicial e a internação a solicitação de acompanhante; 2. o médico que internou a paciente não havia solicitado acompanhante; 3. a paciente foi internada para não ficar sozinha em casa. Contudo, foi deixada sozinha em apartamento do hospital; 4. o médico que internou a paciente descreveu no prontuário quadro depressivo com ideias deliroides de ruína e de suicídio e piora nos últimos dias, mas negou tal gravidade em seu depoimento perante o delegado de polícia.

O laudo pericial trouxe duas hipóteses em suas conclusões. Na primeira, o quadro era estável e sem maior gravidade; alterações acentuadas foram descritas apenas para justificar a internação. Aqui, a prescrição e a conduta em relação à ausência de acompanhante estariam corretas. Na segunda hipótese, o quadro grave descrito era verdadeiro e estaria indicada a solicitação de acompanhante, além de terapêutica mais incisiva. A ocorrência da segunda hipótese poderia ser configurada pela justiça como falha técnica no atendimento.

Prosseguindo nas conclusões, os peritos, tomados por certos os dados do prontuário, disseram tratar-se de quadro depressivo com sintomas psicóticos com ideação suicida claramente descrita pelo médico-assistente, inclusive com indicação de observação rigorosa em função desse dado. A última fala pericial disse que "se a internação se dá em hospital particular ou por convênio, em quartos individuais onde o paciente pode ficar isolado, é preciso pelo menos aventar para a família a necessidade de acompanhante.

DISCUSSÃO

Quando da investigação de caso de suposto "erro médico" os únicos dados objetivos com os quais contam a polícia, a justiça, os conselheiros de medicina e os peritos médicos são aqueles descritos em prontuário.

O prontuário médico pode estar disponível no consultório, na unidade de atendimento ou no hospital de internação. Nos dados de prontuário, peritos se apoiarão para tecerem seu raciocínio e conclusões. Se um prontuário é malfeito, inacabado ou ilegível, no todo ou em partes, os prejuízos para o raciocínio pericial avultam. Em vez de este prejuízo favorecer médico e hospital, muito pelo contrário dará margem à conclusão pela falha no atendimento prestado, tendo inclusive havido desleixo quanto aos cuidados de anotação.

Os dados do prontuário são soberanos em relação aos dados colhidos em depoimentos pessoais. Como observado, foi infrutífero o médico alegar que a paciente não estava tão grave quanto descrito no prontuário ou que não havia ideação suicida claramente perceptível – o prontuário trazia informações ostensivas e contrárias ao depoimento verbal. No caso descrito, o conjunto unânime de informações verbais, colhidas em depoimentos perante o delegado de polícia, e a regra hospitalar no sentido de que fosse solicitado acompanhante em casos como o daquela paciente influenciaram de forma significativa as conclusões periciais.

A prática da psiquiatria ensina que são comuns as tentativas de suicídio mesmo estando o paciente medicado e sob internação. Se a paciente não tivesse à sua disposição o fio de força da televisão, ainda assim poderia ter utilizado lençol, cobertor, fragmento de vidro das janelas do apartamento, entre outros métodos possíveis, e atingir seu intento.

O importante não foi o fato de a televisão ter entrado no hospital sem ressalvas ou o cabo de força ser grande ou pequeno. O importante foi a ausência de melhor abordagem terapêutica da paciente por meio de medicação ou eletroconvulsoterapia, em se tratando de depressão psicótica com risco de autoextermínio, a negligência quanto à preocupação do filho em relação à possibilidade de suicídio da mãe e a falta de melhor vigilância sobre a paciente dada a ausência de solicitação de acompanhante.

CONCLUSÕES

O paciente com ideação suicida pode tentar o autoextermínio a despeito de uma boa vigilância e de uma boa intervenção. Contudo, tanto maior será o risco quanto menor for a vigilância e menos incisivo e adequado for o tratamento instituído.

Os autores abordaram os elementos utilizados na atividade pericial para a elaboração de parecer médico legal. Procuraram mostrar a importância das anotações de prontuário na solução dos casos policiais e judiciais, assim como a importância de o médico agir de acordo com suas anotações.

Recebido em 5/2/2009

Aprovado em 18/3/2009

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  • 4. Croce D, Croce-Júnior D. Erro médico e o direito. São Paulo: Oliveira Mendes; 1997.
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  • 6
    BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Acesso em: 26 de janeiro de 2006. Disponível em: https://www.presidência.org.br/legislação
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Recebido
      05 Fev 2009
    • Aceito
      18 Mar 2009
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