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Perfil de internações psiquiátricas femininas: uma análise crítica

Profile of female hospitalizations in a psychiatric unit: a critical analysis

RESUMO

Objetivo

Analisar o perfil das internações psiquiátricas de mulheres e adolescentes ocorridas nos anos de 2018 e 2019 em um hospital geral.

Métodos

Realizou-se um estudo quantitativo com delineamento transversal, cujo cenário foi uma unidade de internação psiquiátrica feminina de um hospital geral, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. A coleta de dados ocorreu por meio dos prontuários eletrônicos de mulheres internadas referentes aos anos de 2018 e 2019. Analisaram-se as variáveis idade, diagnóstico de saúde mental, número de dias de internação, procedência e gestação por meio da estatística descritiva com o software Statistical Package for Social Sciences .

Resultados

Obteve-se o total de 418 internações; 132 correspondem a adolescentes e 79 a gestantes. A média de idade foi de 28,7 anos. O tempo médio de internação foi de 28,5 dias. Os principais locais de procedência foram os serviços de emergências psiquiátricas. O principal diagnóstico foi a depressão (46,4%) e o transtorno de humor bipolar (23,9%).

Conclusão

Conhecer o perfil epidemiológico das internações psiquiátricas femininas oportuniza que um tratamento diferencial seja estabelecido, visto que a atenção à saúde mental das mulheres é multifacetada, complexa e interseccional e exige conhecimento científico, assim como a abordagem integrada dos serviços de saúde. Os transtornos mentais acometem também adolescentes e mulheres gestantes, sendo fundamental conhecer as necessidades dessas populações a fim de desenvolver de um cuidado especializado.

Saúde mental; saúde da mulher; epidemiologia; psiquiatria

ABSTRACT

Objective

To analyze the profile of psychiatric hospitalizations of women and adolescents in the years 2018 and 2019 in a general hospital.

Methods

A quantitative study with a cross-sectional design was carried out, whose setting was the psychiatric inpatient unit of a general hospital, in Porto Alegre, in Rio Grande do Sul. Data collection occurred through the electronic medical records of hospitalized women for the years 2018 and 2019 The variables age, mental health diagnosis, number of days of hospitalization, origin and pregnancy were analyzed using descriptive statistics using the software Statistical Package for Social Sciences.

Results

A total of 418 hospitalizations were obtained, 132 corresponding to adolescents and 79 to pregnant women. The average age was 28.7 years. The average hospital stay was 28.5 days. The main places of origin are the psychiatric emergency services. The main diagnosis was depression (46.4%) and bipolar mood disorder (23.9%).

Conclusion

Knowing the epidemiological profile of female psychiatric hospitalizations provides an opportunity for a differential treatment to be established, since the mental health care of women is multifaceted, complex and intersectional and requires scientific knowledge, as well as an integrated approach to health services. Mental disorders also affect adolescents and pregnant women, and it is essential to know the needs of these populations in order to develop specialized care.

Mental health; women’s health; epidemiology; psychiatric

INTRODUÇÃO

A Lei nº 10.216, de 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, é responsável por uma série de medidas que tornaram a reestruturação do modelo de assistência em saúde mental brasileiro possível11. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em Saúde Mental 1990-2004. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. . Essa lei foi sustentada por outros decretos e portarias que asseguraram e iniciaram o processo de desinstitucionalização dos indivíduos em sofrimento psíquico, os quais enfrentavam décadas de distanciamento social e de negação de direitos humanos básicos.

A substituição do modelo asilar pelo modelo psicossocial, que sugere a autonomia e o empoderamento dos sujeitos22. Nunes, JMS, Guimarães JMX, Sampaio, JJC. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Physis. 2016;26(4):1213-32. , foi marcada pela criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para indivíduos com transtornos mentais, a qual permitiu a articulação dos serviços de saúde mental oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), integrando a rede de atenção básica, atenção hospitalar e atenção psicossocial especializada, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)33. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. .

A instituição de leitos de saúde mental em hospitais gerais para quadros agudos, como dispositivo da RAPS, constitui-se como uma importante estratégia para fortalecer os princípios do modelo de atenção psicossocial, visto que propõe uma assistência articulada com a rede de atenção à saúde mental44. Zanardo GLP, Silveira LHC, Rocha CMF, Rocha KB. Internações e reinternações psiquiátricas em um hospital geral de Porto Alegre: características sociodemográficas, clínicas e do uso da Rede de Atenção Psicossocial. Rev Bras Epidemiol. 2017;20(3):460-74. , proporciona um serviço multidisciplinar e é de fácil acesso pela população55. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde Mental em Dados – 12. Brasília, 2015. . Com o aumento da prevalência do adoecimento psíquico na população feminina, as internações psiquiátricas com leitos exclusivos para mulheres e adolescentes em hospitais gerais têm se mostrado como uma estratégia para o tratamento quando integradas com a RAPS, envolvendo unidade de saúde, CAPS e outros serviços11. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em Saúde Mental 1990-2004. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. .

As mulheres são a população adulta mais acometida pelos os transtornos mentais66. Hiany N, Vieira MA, Gusmão ROM, Barbosa SF. Perfil Epidemiológico dos Transtornos Mentais na População Adulta no Brasil: uma revisão integrativa. Rev Enfermagem Atual In Derme. 2018;86(24). . Há escassez de dados recentes sobre a prevalência dos transtornos mentais nas mulheres, no entanto um estudo multicêntrico concluiu que as prevalências em três grandes centros urbanos brasileiros estão entre 29% e 54%77. Almeida-Filho N, Mari JJ, Coutinho E, França JF, Fernandes J, Andreoli SB, et al. Brazilian multicentric study of psychiatric morbidity. Methodological features and prevalence estimates. Br J Psychiatric. 1997;171:524-9. . Já para os transtornos mentais comuns na população feminina brasileira, tem-se a prevalência de 24,3%88. Santos GBV, Alves MCGP, Goldbaum M, Cesar CLG, Gianini RJ. Prevalência de transtornos mentais comuns e fatores associados em moradores da área urbana de São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública. 2019;35(11). . Esses dados apresentam-se como índices bastantes significativos em um país com desigualdades de gênero, classe e raça bem delimitadas. Além disso, em um estudo com 340 mulheres gestantes usuárias da atenção básica, observou-se que 26,6% delas apresentavam critérios para um provável transtorno mental99. Costa DO, Souza FIS, Pedroso GC, Strufaldi MWL. Transtornos mentais na gravidez e condições do recém-nascido: estudo longitudinal com gestantes assistidas na atenção básica. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(3):691-700. .

Em relação às mulheres no período da adolescência, observa-se que a prevalência de transtornos mentais comuns é de 38,4%1010. Lopes CS, Abreu GA, Santos DF, Menezes PR, Carvalho KMB, Cunha CF, et al. ERICA: prevalência de transtornos mentais comuns em adolescentes brasileiros. Rev Saúde Pública. 2016;50(2). , tornando-se ainda mais frequente com a proximidade da vida adulta. Tal fato demonstra que desde muito jovens as mulheres estão expostas a fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos.

Pode-se destacar como motivos causadores do sofrimento psíquico em mulheres a entrada no mercado de trabalho, uma vez elas acumulam as horas de trabalho remunerado com os afazeres diários em casa e com o cuidado com os familiares. Logo, essa tripla jornada causa sobrecarga física e emocional, sendo capaz de ocasionar elevado adoecimento psíquico1111. Costa FA. Mulher, trabalho e família: os impactos do trabalho na subjetividade da mulher e em suas relações familiares. Rev Grad Psicol PUC Minas. 2018;3(6):434-52. .

As mulheres, em todas faixas etárias, são mais vulneráveis às sintomatologias ansiosas e depressivas1212. Andrade LHSG, Viana MC, Silveira CM. Epidemiologia dos transtornos psiquiátricos na mulher. Rev Psiquiatr Clín. 2006;33(2):43-54. , podendo-se destacar a alta incidência de depressão e de transtorno de humor bipolar nessa população. O abuso de substâncias entre as mulheres é outro agravante de saúde mental que necessita de um tratamento intensivo e multidisciplinar, uma vez que o funcionamento fisiológico e emocional está alterado. O uso pesado de substâncias – aquele realizado por vinte ou mais vezes no período de trinta dias anteriores ao inquérito da pesquisa – é mais frequente em mulheres do que em homens em Porto Alegre, cidade em que ocorreu este estudo1313. Duarte PCAV, Stempliuk VA, Barroso LP, orgs. Secretaria Nacional de Políticas sobre drogas. Relatório Brasileiro sobre Drogas. Brasília: Senad; 2009. . Contudo, o uso de substâncias ilícitas em algum momento da vida ainda é mais prevalente em homens do que em mulheres no Brasil1414. Fundação Oswaldo Cruz. III Levantamento nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2017. .

Portanto, ao analisar a interseção entre saúde mental e saúde da mulher, percebe-se a necessidade de pesquisas nesse contexto, uma vez que a RAPS apresenta fragilidades, principalmente quando se observa a população de adolescentes e de gestantes. Nesse sentido, o objetivo da pesquisa foi analisar o perfil das internações psiquiátricas de mulheres ocorridas nos anos de 2018 e 2019 no Hospital Materno-infantil Presidente Vargas.

MÉTODOS

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo transversal, descritivo, de cunho quantitativo.

Local do estudo

O estudo foi realizado em uma unidade de internação psiquiátrica que dispõe de 24 leitos destinados a mulheres com transtornos mentais, sendo 5 leitos reservados para gestantes com transtornos por uso de substâncias e 5 leitos para adolescentes entre 12 e 18 anos. A unidade psiquiátrica localiza-se em Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, e pertence ao Hospital Materno-infantil Presidente Vargas.

Participantes da pesquisa

Têm-se como população os dados de prontuários de mulheres internadas na unidade de internação psiquiátrica de 2018 a 2019, incluindo as mulheres adultas, gestantes com transtornos por uso de substâncias e adolescentes de 12 a 18 anos. A amostra foi composta por 418 prontuários eletrônicos.

Coleta dos dados

A coleta de dados ocorreu em janeiro de 2020 a partir de dados secundários, os quais são provenientes dos prontuários eletrônicos das pacientes internadas nos anos de 2018 e 2019.

Procedimentos de análise dos dados

Os dados coletados foram organizados em planilhas do software Microsoft Excel, de forma codificada conforme a natureza das variáveis. As variáveis selecionadas para estudo foram: idade, diagnóstico de saúde mental, número de dias de internação, procedência e gestação. Posteriormente, analisaram-se as variáveis por meio da estatística descritiva por meio do software Statistical Package for Social Sciences .

Aspectos éticos

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Materno-infantil Presidente Vargas sob o Parecer nº 3.420.364, cumprindo-se todas as prerrogativas bioéticas da pesquisa com seres humanos.

RESULTADOS

Obteve-se um total de 418 internações psiquiátricas nos anos de 2018 e 2019. Em 2018, o número total correspondeu a 190 internações. Em contraponto, no ano de 2019 esse número cresceu para 228 internações.

Entre os anos de 2018 e 2019, 132 (31,6%) das internações correspondem a adolescentes, 79 (18,9%), a mulheres gestantes e 4 (3,05%), a adolescentes gestantes. Constata-se que, do total de mulheres gestantes, 44 (55,7%) estavam internadas devido a transtornos por uso de substâncias e risco ao concepto. Em relação à idade, englobaram-se mulheres de 12 a 77 anos, o que resultou em uma média de 28,7 anos. Sobre o tempo de internação, obteve-se uma média de 28,5 dias.

Os locais de procedência das mulheres internadas constituíram-se majoritariamente de serviços de emergências psiquiátricas. Em menores proporções, teve-se a procedência de outras internações hospitalares e também de serviços ambulatoriais ( Tabela 1 ).

Tabela 1
Local de procedência das internações psiquiátricas

Os principais diagnósticos encontrados foram: depressão (46,4%), transtorno de humor bipolar (23,9%), transtorno por uso de substâncias (10,5%), esquizofrenia (5,7%), transtorno psicótico não especificado (5,7%), deficiência intelectual (1,7%), transtorno esquizoafetivo (1,7%), entre outros ( Tabela 2 ).

Tabela 2
Diagnósticos das pacientes internadas

Em relação à população de adolescentes, ocorreram 132 internações nos anos de 2018 e 2019. O diagnóstico de depressão obteve maior prevalência (71%), como se observa na tabela 3 .

Tabela 3
Diagnósticos das pacientes adolescentes internadas

DISCUSSÃO

Observou-se uma ampla faixa etária (12 a 77 anos), em razão da população atendida pela internação psiquiátrica contemplar mulheres desde o período da adolescência, estabelecendo-se uma relação entre o ciclo reprodutivo feminino e a ocorrência de transtornos mentais. É indiscutível que a oferta de leitos para adolescentes ocorre devido à vulnerabilidade e à exposição crescente desse grupo aos transtornos mentais.

Sobre o tempo médio de internação hospitalar, um estudo similar, que teve a amostra de 202.188 internações ocorridas no período de 2001 a 2013 no estado de Minas Gerais, apresentou como tempo médio de internação hospitalar de 28 a 31 dias ao longo do período de estudo1515. Lara APM, Volpe FM. Evolução do perfil das internações psiquiátricas pelo Sistema Único de Saúde em Minas Gerais, Brasil, 2001-2013. Ciênc Saúde Coletiva. 2019;24(2):659-68. . Esse dado converge-se à média de internação do presente estudo (28,05 dias). Dessa forma, reconhecem-se esses resultados como um aspecto positivo para a assistência em saúde mental, de forma que isso pode significar a priorização do modelo de atenção comunitária em detrimento do modelo hospitalocêntrico1616. Machado V, Santos MA. Taxa de permanência hospitalar de pacientes reinternados em hospital psiquiátrico. J Bras Psiquiatr. 2011;60(1):16-22. .

Verificou-se que o principal local de procedência das pacientes foi em serviços de emergências psiquiátricas (82%), por meio do sistema de regulação de leitos do município, em consonância com o fluxo estabelecido pela RAPS. Sabe-se, no entanto, que a promoção da saúde mental, prevenindo os episódios de crise, ocorre especialmente quando o usuário acessa os locais conhecidos como porta de entrada do SUS, como as Unidades Básicas de Saúde1717. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF; 2012. , podendo, assim, reduzir a necessidade de internação em âmbito hospitalar.

Silva et al. 1818. Silva TL, Maftum MA, Kalinke LP, Mantovani MF, Mathias TAF, Capistrano FC. Perfil de internações hospitalares em unidade psiquiátrica de um hospital geral. Rev Min Enferm. 2014;18(3):652-9. , em seu estudo que avaliou o perfil de 240 internações psiquiátricas de homens e mulheres, trazem a acentuada diferença entre os gêneros em relação ao tipo de transtorno. No estudo supracitado, observou-se que 65,4% dos homens se internaram por problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas, enquanto 79,8% das mulheres se internaram por conta de transtornos do humor, esquizotípicos e delirantes. Tais resultados mostraram-se semelhantes aos do presente estudo, em que predominou a depressão (46,4%) e o transtorno de humor bipolar (23,9%).

Nessa perspectiva, a elevada porcentagem de diagnósticos de depressão neste estudo suscita reflexões sobre o tema, visto que a depressão é a principal causa de incapacidade laboral e atinge duas mulheres para cada homem, necessitando-se de um maior enfoque no cuidado a essas mulheres, tanto na prevenção quanto no tratamento desse transtorno1212. Andrade LHSG, Viana MC, Silveira CM. Epidemiologia dos transtornos psiquiátricos na mulher. Rev Psiquiatr Clín. 2006;33(2):43-54. .

Quando se analisa o período da vida em que as mulheres internadas vivenciavam, 79 (18,9%) delas estavam gestantes. A literatura demonstra a alta incidência de transtornos mentais comuns durante a gestação, variando de 12,94%1919. Kassada DS, Waidman MAP, Miasso AI, Marcon SS. Prevalência de transtornos mentais e fatores associados em gestantes. Acta Paul Enferm. 2015;28(6):495-502. a 26,6%2020. Costa DO, Souza FIS, Pedroso GC, Strufaldi MWL. Transtornos mentais na gravidez e condições do recém-nascido: estudo longitudinal com gestantes assistidas na atenção básica. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(3):691-700. em gestações de risco habitual, entre o segundo e o terceiro trimestre. Entre os fatores que contribuem para o desenvolvimento de transtornos mentais comuns na gestação, encontram-se a baixa escolaridade, o baixo poder aquisitivo e a vivência de mãe solo2121. Lopes RS, Lucchese R, Souza LMM, Silva GC, Vera I, Mendonça RS. O período gestacional e transtornos mentais: evidências epidemiológicas. Rev Multidisc Fac Noroeste de Minas. 2019;1(19):35-54. , aquela sem um companheiro ou companheira no período gestacional e puerperal.

Embora no Brasil e no exterior o uso de substâncias psicoativas seja mais comum entre os homens, as mulheres comumente sofrem com maiores prejuízos biopsicossociais devido ao acesso dificultado aos serviços de saúde2222. United Nations Office On Drugs And Crime. World Drug Report 2016. Viena, Áustria: UNODC; 2016. . Entre a população feminina, a motivação encontrada para experimentar vem, muitas vezes, do parceiro íntimo já usuário2323. Ministério da Justiça e Cidadania. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Módulo 1: o uso de substâncias psicoativas no Brasil. 11ª ed. Brasília: MJC; 2017. . Do total de mulheres internadas, 44 (10,5%) tinham como motivo de internação o transtorno por uso de substâncias na gestação. As mulheres gestantes usuárias de substâncias são um grupo bastante suscetível às complicações da drogadição, visto que comumente estão expostas à vulnerabilidade social – situação de rua, abusos sexuais, prostituição em troca de drogas ou de dinheiro para adquiri-las2424. Fertig A, Schneider JF, Oliveira GC, Olschowsky A, Camatta MW, Pinho LB. Mulheres usuárias de crack: conhecendo suas histórias de vida. Esc Anna Nery. 2016;20(2):310-6. . As gestações dessas mulheres ocorrem, em sua maioria, de forma não planejada e sem o acompanhamento pré-natal adequado. A internação é, frequentemente, a porta de entrada para um período de abstinência em que a mulher gestante consegue aderir ao acompanhamento pré-natal de forma contínua e aos cuidados de saúde necessários para uma gestação saudável.

Ao atentar para a saúde mental infantojuvenil, constata-se a existência de uma lacuna assistencial, que é reflexo da inserção tardia de políticas públicas voltadas para essa população. Esse fato culminou na fragilização das redes assistenciais, bem como na manutenção do sofrimento psíquico de crianças e adolescentes2525. Couto MCV, Delgado PGG. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psicol Clin. 2015;27(1):17-40. . Ante a situação atual da saúde da criança e do adolescente, sobretudo no que tange à saúde mental, necessita-se da inserção dessa população em políticas públicas de maneira que suas demandas sejam contempladas e a rede assistencial seja fortalecida2626. Braga CP, d’Oliveira AFPL. Políticas públicas na atenção à saúde mental de crianças e adolescentes: percurso histórico e caminhos de participação. Ciênc Saúde Coletiva. 2019;24(2):401-10. .

Atualmente, 10% a 20% das crianças e adolescentes do mundo convivem com algum transtorno mental2727. World Health Organization. MhGAP operations manual: mental health Gap Action Programme (mhGAP). Geneva: World Health Organization; 2018. , dos quais 3% a 4% necessitam de tratamento intensivo2828. Brasil. Ministério da Saúde. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2005. . Tem-se que metade dos transtornos mentais começa a se estabelecer entre os 14 e 20 anos de idade2727. World Health Organization. MhGAP operations manual: mental health Gap Action Programme (mhGAP). Geneva: World Health Organization; 2018. , elucidando a adolescência como um período crucial, especialmente porque nessa fase ocorrem diversas mudanças em busca de independização e da construção de identidade, além disso os indivíduos ficam vulneráveis a instabilidades2929. Monteiro S, Tavares J, Pereira A. Adultez emergente: na fronteira entre a adolescência e a adultez. Rev @mbienteeducação. 2018;2(1):129-37. .

A presença de transtornos mentais não manejados afeta diretamente a qualidade de vida infantojuvenil, inclusive a depressão é um dos principais causadores de incapacidade entre os adolescentes e o suicídio é a terceira causa de morte entre os 15 e 19 anos3030. Organização Pan-Americana de Saúde. Folha Informativa – Saúde Mental dos Adolescentes. Brasil: Opas; 2018. . Os achados dessa pesquisa vão ao encontro da literatura, tendo em vista que, das 131 internações ocorridas no período, 93 adolescentes possuíam diagnóstico de depressão, representando uma prevalência de 71% do total dos atendimentos.

É imprescindível considerar a variável de gênero neste estudo, pois, apesar de os dados se referirem à população feminina, impedindo a comparação com o sexo masculino, estudos afirmam que os transtornos mentais comuns são mais prevalentes em mulheres do que em homens, em todas as faixas etárias1010. Lopes CS, Abreu GA, Santos DF, Menezes PR, Carvalho KMB, Cunha CF, et al. ERICA: prevalência de transtornos mentais comuns em adolescentes brasileiros. Rev Saúde Pública. 2016;50(2). . Essa situação decorre de questões culturais e sociais impostas às mulheres desde a infância, bem como da exposição à violência, a ambientes vulneráveis, a conflitos familiares e ao bullying 3030. Organização Pan-Americana de Saúde. Folha Informativa – Saúde Mental dos Adolescentes. Brasil: Opas; 2018. , 3131. Patias ND, Silva DG, Dell’Aglio DD. Exposição de adolescentes à violência em diferentes contextos: relações com a saúde mental. Temas Psicol. 2016;24(1):205-18. , dessa forma evidencia-se a peculiaridade do cuidado a essa população.

CONCLUSÕES

As recentes mudanças na área da saúde mental, atreladas ao processo de desinstitucionalização, acarretam desafios a serem superados, os quais se relacionam diretamente com o perfil epidemiológico da população em atendimento. Em vista disso, o contexto epidemiológico é uma importante ferramenta para a produção de conhecimentos e para a tomada de decisões no que se refere à formulação de políticas de saúde, à organização do sistema e às intervenções em saúde nesse âmbito.

Entre as limitações do estudo encontram-se questões relacionadas ao preenchimento dos dados diagnósticos durante a internação hospitalar das pacientes, visto que o diagnóstico de saúde mental pode ser alterado conforme o tempo de internação e de tratamento das pacientes. Nesses casos, a busca em prontuário das avaliações subsequentes das pacientes pelos profissionais, contendo o diagnóstico final, foi realizada pelas autoras, minimizando divergências. Um potencial viés da pesquisa foi a ausência da coleta de dados sociodemográficos, inviabilizando o estabelecimento de associações entre as variáveis analisadas no presente estudo.

Em relação à saúde mental das mulheres, este estudo trouxe evidentes contribuições em razão de seus resultados, que ressaltam a elevada ocorrência de transtornos mentais na população feminina de diferentes faixas etárias e fases do ciclo reprodutivo, corroborando o fato de que a atenção à saúde mental das mulheres é multifacetada, complexa e interseccional e exige a abordagem integrada dos serviços de saúde. O fato de acometer a faixa etária das adolescentes ressalta a importância de entender os motivos que causam o transtorno psíquico, possibilitando o desenvolvimento de um cuidado especializado que contemple as necessidades e as peculiaridades desse grupo. Espera-se que os resultados obtidos incentivem a realização de outros estudos sobre a saúde mental de mulheres em sofrimento psíquico, a fim de aprofundar o conhecimento sobre o tema.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à equipe do serviço de saúde pelo auxílio técnico para a realização desta pesquisa.

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    DOI: 10.1590/0047-2085000000275
    J Bras Psiquiatr. 2020;69(3):165-70
    J Bras Psiquiatr. 2020;69(3):165-70
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2020
  • Aceito
    11 Maio 2020
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