Acessibilidade / Reportar erro

Tentativa de suicídio: prevalência e fatores associados entre usuários da Atenção Primária à Saúde

Suicide attempt: prevalence and associated factors among users of Primary Health Care

RESUMO

Objetivo

Estimar a prevalência de tentativa de suicídio entre usuários da Atenção Primária à Saúde (APS) e verificar fatores associados.

Métodos

Estudo transversal realizado com indivíduos de 18 anos ou mais, atendidos na rede urbana da APS de Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Foi calculada a prevalência do desfecho, com intervalo de confiança de 95% (IC95), além das Razões de Prevalência (RPs) brutas e ajustadas para verificação dos fatores associados.

Resultados

Amostra de 1.443 indivíduos, prevalência da tentativa de suicídio de 9% (IC95 8%-11%), com maior probabilidade em mulheres (RP = 3,01; IC95 1,54-5,86), 18-59 anos (RP = 2,15; IC95 1,38-3,34), sem cônjuge (RP = 1,82; IC95 1,09-3,03), com duas ou mais doenças crônicas não transmissíveis (RP = 1,54; IC95 1,08-2,18), diagnóstico de HIV/AIDS (RP = 3,02; IC95 1,30-7,02), de depressão (RP = 2,69; IC95 1,83-3,96), história familiar de tentativa de suicídio (RP = 1,99; IC95 1,50-2,63) e insônia (RP = 1,46; IC95 1,05-2,02). Observou-se tendência linear inversamente proporcional em relação à escolaridade, com redução de 42% na probabilidade do desfecho entre os participantes com ensino superior (RP = 0,58; IC95 0,39-0,86).

Conclusões

Constataram-se alta prevalência de tentativa de suicídio, em comparação à média nacional, e associação com idade adulta, sexo feminino, menor escolaridade, ausência de cônjuge, diagnóstico de doenças crônicas, insônia e história familiar de suicídio.

Suicídio; atenção básica; fatores de risco

ABSTRACT

Objective

To estimate the prevalence of attempted suicide among Primary Health Care (PHC) users and to verify the associated factors.

Methods

Cross-sectional study, performed with individuals aged ≥ 18 years, assisted in the urban PHC services in Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brazil. The prevalence of the outcome was calculated, with a confidence interval of 95% (95% CI), in addition to the crude and adjusted Prevalence Ratios (PR) to verify the associated factors.

Results

Sample of 1,443 individuals, 9% prevalence of attempted suicide (95% CI 8%-11%), most likely in women (PR = 3.01; 95% CI 1.54-5.86), 18-59 years (PR = 2.15; 95% CI 1.38-3.34), individuals without a spouse (PR = 1.82; 95% CI 1.09-3.03), with two or more chronic non-communicable diseases (PR = 1.54; 95% CI 1.08-2.18), diagnosis of HIV/AIDS (PR = 3.02; 95% CI 1.30-7.02) and of depression (PR = 2.69; 95% CI 1.83-3.96), family history of attempted suicide (PR = 1.99; 95% CI 1.50-2.63) and insomnia (PR = 1.46; 95% CI 1.05-2.02). An inversely proportional linear trend was observed in relation to education, with a 42% reduction in the probability of the outcome among participants with higher education (PR = 0.58; 95% CI 0.39-0.86).

Conclusions

There was a high prevalence of attempted suicide compared to the national average and association with adult age, female gender, lower education level, absence of a partner, diagnosis of chronic diseases, insomnia and family history of suicide.

Suicide; primary health care; risk factors

INTRODUÇÃO

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) definiu como suicídio o “ato deliberado, executado pelo próprio indivíduo, cuja intenção seja a morte, de forma consciente e intencional, mesmo que ambivalente, usando um meio que ele acredita ser letal”11. Conselho Federal de Medicina (CFM). Suicídio: informando para prevenir. Brasília: CFM; 2014.. Por sua vez, a expressão “comportamento suicida” diz respeito à “ação de autoagressão, assim como variáveis relacionadas às tentativas de suicídio, com alta ou baixa letalidade, que ocorrem dentro de um contexto social e trazem elementos que indicam a procura de ajuda”22. Abreu KP, Lima MADS, Kohlraush E, Soares JF. Comportamento suicida: fatores de risco e intervenções preventivas. Rev Eletr Enf. 2010;12(1):195-200.. O comportamento suicida representa um foco de prevenção, haja vista que todos esses aspectos podem fazer parte do cotidiano de atendimentos em saúde, incluindo a Atenção Primária à Saúde (APS).

Além do indivíduo, o suicídio afeta os sobreviventes, abrangendo familiares, amigos e a comunidade em geral. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que de 6 a 10 pessoas sejam afetadas com danos emocionais e socioeconômicos33. World Health Organization (WHO). Multisite Intervention Study on Suicidal Behaviours SUPRE-MISS: protocol of SUPRE-MISS [recurso eletrônico]. Geneva: WHO; 2002. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5671:folha-informativa-suicidio&Itemid=839. Acesso em: 17 maio 2019.
https://www.paho.org/bra/index.php?optio...
. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), aproximadamente 800 mil pessoas suicidam-se anualmente, representando mundialmente, em 2016, a segunda principal causa de mortalidade em jovens de 15 a 29 anos. Ainda de acordo com o órgão, para cada indivíduo que comete suicídio, muitos outros realizam tentativas44. Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Suicídio [recurso eletrônico]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/suicidio. Acesso em: 18 jan. 2021.
https://www.paho.org/pt/topicos/suicidio...
, sendo esse o principal fator de risco na população em geral55. Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da saúde em atenção primária. Genebra: OMS; 2000..

Os altos índices de tentativas e de suicídios no Brasil configuram um desafio à saúde pública. Entre 2011 e 2015, houve registro de 55.649 suicídios, o que representa uma taxa média de 5,5/100.000 habitantes66. Brasil. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Suicídio. Saber, agir e prevenir. Brasília: SVS; 2017.. A ocorrência é heterogênea e, em determinadas regiões, as taxas são significativamente superiores. No Rio Grande do Sul (RS), por exemplo, o índice tem sido aproximadamente o dobro do nacional: em 2016 foram registrados 1.166 suicídios, correspondendo a 11/100.000 habitantes (17,8 entre homens e 4,5 entre mulheres). No mesmo período, foram notificados no estado 3.700 casos de lesão autoprovocada, dos quais 1.837 foram definidos como tentativa de suicídio, equivalendo a 17,4/100.000 habitantes. Mesmo que elevados, é possível que os números estejam subestimados, haja vista que a implantação da vigilância das lesões autoprovocadas é recente77. Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Secretaria da Saúde. Boletim de Vigilância Epidemiológica de Suicídio e Tentativa de Suicídio [recurso eletrônico]. 2018. Disponível em: https://www.cevs.rs.gov.br/upload/arquivos/201809/05162957-boletim-de-vigilancia-epidemiologica-de-suicidio-n1-2018.pdf. Acesso em: 13 jul. 2020.
https://www.cevs.rs.gov.br/upload/arquiv...
.

Vários são os fatores que predispõem ao suicídio e, mesmo que seja difícil mensurar as motivações individuais e se deva, acima de tudo, ser sensível às particularidades de cada caso, é importante atentar às situações mais frequentes. Os principais aspectos apontados pela literatura incluem transtornos mentais prévios, fatores sociodemográficos e psicológicos, dor e doenças crônicas22. Abreu KP, Lima MADS, Kohlraush E, Soares JF. Comportamento suicida: fatores de risco e intervenções preventivas. Rev Eletr Enf. 2010;12(1):195-200.. Diante disso, conhecer o problema e os aspectos envolvidos é uma das maneiras de preparar as equipes de APS e de identificar as melhores formas de abordagem para contribuir com estratégias relacionadas à prevenção55. Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da saúde em atenção primária. Genebra: OMS; 2000..

Nesse contexto, objetivou-se, com este estudo, estimar a prevalência de tentativa de suicídio entre usuários da APS, além de identificar fatores associados, visando fornecer informações úteis para possíveis intervenções no sentido de reduzir o número de ocorrências tanto de tentativas quanto de suicídio.

MÉTODOS

Este estudo foi realizado com dados oriundos de uma pesquisa transversal que teve o objetivo de analisar diferentes aspectos relacionados a adultos e idosos atendidos na rede urbana de APS, em Passo Fundo, RS.

No intuito de garantir poder estatístico adequado para as análises, para a pesquisa original, o tamanho amostral foi definido de duas formas, considerando-se confiança de 95% e poder de 80% para ambas. No primeiro cálculo, para identificar uma prevalência de 10% dos diferentes desfechos, considerando-se a margem de erro de cinco pontos percentuais, obteve-se um n de 138 participantes. No segundo, para identificar a associação entre os diferentes desfechos e fatores de exposição, baseado em 9 não expostos para cada exposto, prevalência dos desfechos estimada em 10%, frequência esperada em não expostos de 9,1% e Razão de Prevalência (RP) de 2, chegou-se a um total de 1.220. Acrescentando-se a esse número 15% para fatores de confusão, determinou-se que seriam necessários 1.403 participantes.

Foram considerados elegíveis os usuários com idade igual ou superior a 18 anos, de ambos os sexos, residentes na cidade e com condições de responder ao questionário. Todas as 34 unidades de saúde foram incluídas, sendo o n em cada uma definido proporcionalmente a partir do número de procedimentos executados em cada local no mês que antecedeu o início da coleta de dados. De forma consecutiva, foram incluídos na amostra todos os usuários que estavam na unidade para a realização de algum procedimento, até que se atingisse o n estipulado para cada local, ou até que todos os presentes no último turno da coleta fossem convidados a participar. Os dados foram coletados de maio a agosto de 2019 por meio da aplicação de questionário padronizado, pré-testado e pré-codificado, por estudantes de Medicina previamente treinados, nas próprias unidades de saúde, de acordo com os horários de funcionamento.

Para atingir os objetivos deste estudo, analisaram-se sexo (masculino; feminino), idade (em anos completos, 18-59; ≥60), cor da pele autorreferida (branca; não branca), escolaridade (ensino fundamental, médio e superior), situação conjugal (com e sem cônjuge), condições de moradia (morar sozinho ou não), exercício de atividade remunerada (sim; não), renda familiar mensal per capita em salários mínimos (≤1; >1; valor de R$ 998,00 na época do estudo), quantitativo de doenças crônicas não transmissíveis – DCNTs (0-1; ≥2 DCNTs, considerando diagnóstico médico autorreferido de obesidade, diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, hipercolesterolemia, hipertrigliceridemia e cardiopatia), diagnóstico médico autorreferido de HIV/AIDS, câncer e depressão (sim; não). Ainda, vigência de tratamento psicológico (sim; não), dor crônica (há mais de seis meses: sim; não), autopercepção de saúde (com opções de resposta excelente, boa, regular e ruim, dicotomizadas em positiva – excelente e boa – e em negativa – regular e ruim), histórico familiar de tentativa e de suicídio consumado (sim; não), tempo em meses desde a última consulta médica na APS (categorizado em ≤1; 2-6; 7-12; >12), uso de medicamento contínuo (sim; não), insônia88. Leger D, Guilleminault C, Dreyfus JP, Delahaye C, Paillard M. Prevalence of insomnia in a survey of 12778 adults in France. J Sleep Res. 2000;9:35-42. (sim; não) e gestação atual ou prévia (sim; não). Foi perguntado ainda sobre tabagismo, consumo de bebida alcoólica e prática de atividade física no tempo livre (sim; não).

Além disso, foram avaliados os hábitos alimentares com base nos marcadores do consumo alimentar99. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Orientações para avaliação de marcadores de consumo alimentar na atenção básica [recurso eletrônico]. Brasília: MS; 2015. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/marcadores_consumo_alimentar_atencao_basica.pdf. Acesso em: 20 jul. 2019.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
, considerando-se como adequados os hábitos de indivíduos que responderam afirmativamente para a ingestão de feijão, de frutas frescas e de verduras e/ou legumes no dia anterior e negativamente para a ingestão de hambúrger e/ou embutidos, de bebidas adoçadas, de macarrão instantâneo, salgadinhos de pacote ou biscoitos salgados e de biscoito recheado, doces ou guloseimas.

As questões referentes ao suicídio, de autoria dos pesquisadores, incluíram: Alguma vez você já pensou seriamente em pôr fim a sua vida? Em caso de resposta afirmativa: Você já chegou a traçar um plano para pôr fim a sua vida? Àqueles que responderam afirmativamente, perguntou-se: Alguma vez você tentou pôr fim a sua vida? A tentativa de suicídio foi considerada como desfecho deste estudo.

Após dupla digitação e validação dos dados, a estatística incluiu a descrição da amostra e o cálculo da prevalência da tentativa de suicídio com intervalo de confiança de 95% (IC95). A verificação das associações entre desfecho e variáveis de exposição foi realizada por Regressão de Poisson. Na análise bivariada, calcularam-se as RPs brutas e seus IC95 e na multivariada, com variância robusta (cluster), as RPs ajustadas e seus IC95. A realização da análise ajustada teve o propósito de controlar para possíveis fatores de confusão, permanecendo significativas as RPs ajustadas e seus IC95 que mantiveram associação com a tentativa de suicídio, demonstrando, portanto, um resultado mais preciso no que se refere à relação entre as variáveis.

A análise multivariada do tipo backward stepwise seguiu um modelo hierárquico1010. Victora CG, Huttly SR, Fuchs SC, Olinto MTA. The role of conceptual frameworks in epidemiological analysis: a hierarchical approach. Int J Epidemiol. 1997;26(1):224-7.predefinido, constituído por três níveis de determinação. As variáveis demográficas e socioeconômicas foram incluídas no nível mais distal, seguidas das características de saúde no intermediário e dos hábitos de vida no nível mais proximal ao desfecho, tendo em vista o efeito de cada nível, assim como de um sobre o outro em relação à determinação da probabilidade de ocorrência da tentativa de suicídio. Em cada nível, as variáveis foram ajustadas entre si, e aquelas com p ≤ 0,20 permaneceram no modelo e foram ajustadas com as do próximo nível. No caso das variáveis qualitativas com mais de duas categorias, quando ordenadas, foi aplicado o teste de Wald para tendência linear e, em não havendo ou não sendo significativo, foi verificada a heterogeneidade. Em todas as análises se admitiu 5% de erro tipo I, considerando como significativos os valores de p < 0,05 para testes bicaudais.

A realização do estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição proponente (Parecer nº 3.219.633), em conformidade com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e os princípios éticos da Declaração de Helsinki. Todos os participantes consentiram de forma livre e esclarecida.

RESULTADOS

Participaram do estudo 1.443 indivíduos e, conforme tabela 1, predominaram indivíduos do sexo feminino (71%), com idade entre 18 e 59 anos (72%), cor da pele branca (64,8%), ensino fundamental (45,6%), com cônjuge (72,2%), que não moravam sozinhos (90,4%), não exerciam atividade remunerada (57,4%) e referiram renda de até um salário mínimo (71,2%).

Tabela 1
Caracterização de uma amostra de usuários da Atenção Primária à Saúde (APS), Passo Fundo, RS, 2019 (n =1.443)

Relativamente às características de saúde, a maioria apresentava até uma DCNT (59,3%) e 0,7% referiu diagnóstico médico de HIV/AIDS, 5,1%, de câncer e 26,8%, de depressão. Tratamento psicológico vigente foi mencionado por 8,8%, dor crônica, por 54,7%, percepção negativa da saúde, por 46,7%, história familiar de tentativa de suicídio, por 27,4% e história familiar de suicídio, por 15,7% da amostra. Prevaleceram o pouco tempo desde a última consulta médica (78,5% consultaram com médico na APS nos últimos seis meses), o uso de medicamento contínuo (63,6%) e a insônia (52,8%). Relativamente aos hábitos de vida, verificou-se que 89% apresentavam hábitos alimentares inadequados, 29,1% referiram costume de consumir bebida alcoólica, 18,3% fumavam e 57,5% não tinham o costume de praticar atividade física no tempo livre (Tabela 1).

A prevalência da tentativa de suicídio foi de 9% (IC95 8%-11%), e observa-se na tabela 2 que, mesmo posteriormente ao ajuste para fatores de confusão, maior probabilidade foi observada entre mulheres (RP = 3,01; IC95 1,54-5,86) e indivíduos de 18 a 59 anos (RP = 2,15; IC95 1,38-3,34) e sem cônjuge (RP = 1,82; IC95 1,09-3,03). Em relação à escolaridade, verificou-se tendência linear inversamente proporcional, com redução de 42% na probabilidade do desfecho entre os participantes com ensino superior (RP = 0,58; IC95 0,39-0,86). Ainda, entre as variáveis do segundo nível, influenciaram positivamente a prevalência da tentativa de suicídio o número de DCNTs (RP = 1,54; IC95 1,08-2,18), o diagnóstico de HIV/AIDS (RP = 3,02; IC95 1,30-7,02) e de depressão (RP = 2,69; IC95 1,83-3,96), a história familiar de tentativa de suicídio (RP = 1,99; IC95 1,50-2,63) e a insônia (RP = 1,46; IC95 1,05-2,02).

Tabela 2
Análise bruta e ajustada de fatores associados à tentativa de suicídio entre usuários da Atenção Primária à Saúde (APS), Passo Fundo, RS, 2019 (n = 1.443)

DISCUSSÃO

A importância do suicídio vem crescendo, especialmente devido ao aumento das ocorrências55. Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da saúde em atenção primária. Genebra: OMS; 2000.. No entanto, as tentativas de suicídio são oficialmente menos registradas, em comparação ao ato consumado. Tal realidade provavelmente decorre da falta de preparo profissional no que se refere à identificação dos fatores predisponentes ao suicídio, de elaboração de ações específicas nos diferentes níveis de atenção à saúde e de adequada notificação. Para viabilizar o correto reconhecimento do risco, é necessária, além de instrumentos voltados a um diagnóstico mais preciso de ideações e de tentativas, a determinação de fatores preditivos e protetores, de modo a facilitar a prevenção22. Abreu KP, Lima MADS, Kohlraush E, Soares JF. Comportamento suicida: fatores de risco e intervenções preventivas. Rev Eletr Enf. 2010;12(1):195-200..

Entre as variáveis sociodemográficas associadas ao suicídio, estão: sexo masculino, idades entre 15 e 35 e acima de 75 anos, pobreza, residência urbana, desemprego, aposentadoria, ausência de cônjuge e migração. Ainda que duas vezes menor que a taxa mundial do ano de 2012, a taxa brasileira de 2011 a 2015 indica um padrão de comportamento parecido no que se refere ao sexo e à situação conjugal. Entretanto, é importante ressaltar maiores índices de mortalidade em adultos e idosos, na contramão do que ocorre mundialmente22. Abreu KP, Lima MADS, Kohlraush E, Soares JF. Comportamento suicida: fatores de risco e intervenções preventivas. Rev Eletr Enf. 2010;12(1):195-200.. Neste estudo, a prevalência de tentativa de suicídio foi significativamente maior em mulheres e em indivíduos de 18 a 59 anos, com menor escolaridade e sem cônjuge.

No que tange à saúde mental, os transtornos psiquiátricos representam uma parcela significativa dos fatores de risco. Segundo a OMS, a maior parte dos suicidas apresentava um transtorno mental diagnosticável55. Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da saúde em atenção primária. Genebra: OMS; 2000.. Entre os transtornos de humor, a depressão maior está relacionada fortemente ao comportamento suicida nas várias etapas do desenvolvimento humano1111. Gournellis R, Tournikioti K, Touloumi G, Thomadakis C, Michalopoulou PG, Michopoulos I, et al. Psychotic (delusional) depression and suicidal attempts: a systematic review and meta-analysis. Ann Gen Psychiatry. 2018;137(1):18-29.. Também é recorrente a observação de que possuir familiares que tentaram ou efetivaram suicídio está relacionado com o aumento da taxa do comportamento suicida22. Abreu KP, Lima MADS, Kohlraush E, Soares JF. Comportamento suicida: fatores de risco e intervenções preventivas. Rev Eletr Enf. 2010;12(1):195-200.. Alinhados à literatura, os resultados apontaram que a depressão reportada assim como a história familiar de tentativa de suicídio se mostraram associadas a maior probabilidade de tentativa de suicídio.

Dor e doenças crônicas, lesões desfigurantes perenes, neoplasias malignas e AIDS configuram um eixo de risco bastante significativo. As doenças crônicas estão intimamente relacionadas às mentais, implicando que o fato de ter mais de um diagnóstico poderia exacerbar os sintomas de doenças mentais1212. Kye SY, Park K. Suicidal ideation and suicidal attempts among adults with chronic diseases: a cross-sectional study. Comprehensive Psychiatry. 2017;73:160-7.. Um estudo para determinar a relação entre doença física autorreferida e a probabilidade de tentativa de suicídio mostrou que a doença pulmonar e o HIV/AIDS estavam associados a tentativas de suicídio, independentemente dos efeitos dos transtornos mentais1313. Goodwin RD, Marusic A, Hoven CW. Suicide attempts in the United States: the role of physical illness. Soc Sci Med. 2003;56(8):1783-8.. Observou-se na amostra que mais de 40% dos indivíduos apresentavam duas ou mais doenças crônicas e, na análise ajustada, evidenciou-se associação positiva com a tentativa de suicídio. Verificou-se, ainda, maior probabilidade de tentativa de suicídio em portadores de HIV/AIDS, embora a associação com o diagnóstico de câncer não tenha se mostrado significativa.

Em estudos realizados com adultos, foi observada associação da insônia com ideação suicida e suicídio consumado1414. Pigeon WR, Pinquart, M, Conner, K. Meta-analysis of sleep disturbance and suicidal thoughts and behaviors. J Clin Psychiatry. 2012;73:e1160-7.. Além disso, há uma associação indireta entre insônia e comportamento suicida, tendo em vista que indivíduos que cursam com problemas de insônia apresentam maior risco de diagnóstico de depressão, que é um preditor do comportamento suicida1515. Perlis ML, Grandner MA, Chakravorty S, Bernert RA, Brown GK, Thase ME. Suicide and sleep: is it a bad thing to be awake when reason sleeps? Sleep Med Rev. 2015;29:101-7.,1616. Perlis ML, Smith LJ, Lyness JM, Matteson SR, Pigeon WR, Jungquist CR, et al. Insomnia as a risk factor for onset of depression in the elderly. Behav Sleep Med. 2006;4:104-13.. Consoante à literatura, também nesta amostra se identificou maior probabilidade de tentativa de suicídio entre os participantes com insônia.

Segundo um estudo de revisão, 45% dos indivíduos que cometeram suicídio receberam atendimento na APS no mês que antecedeu o ato e, desses, 19% foram atendidos na saúde mental. Quando analisado o período de um ano antes do suicídio, observou-se que 77% foram atendidos na rede e que 32% consultaram profissionais da saúde mental1717. Luoma JB, Martin CE, Pearson JL. Contact With Mental Health and Primary Care Providers Before Suicide: A Review of the Evidence. Am J Psychiatry. 2002;159(6):909-16.. Em outro estudo, foi observado que aproximadamente 50% dos indivíduos que cometeram suicídio tiveram pelo menos uma visita a um serviço de saúde no mês anterior ao suicídio1818. Ahmedani BK, Simon GE, Stewart C, Beck A, Waitzfelder BE, Rossom R, et al. Health care contacts in the year before suicide death. J Gen Int Med. 2014;29(6):870-7.. Dados como esses chamam atenção para a importância de um atendimento que seja capaz de identificar os fatores de risco. Outro aspecto é o de não ignorar as ameaças de tentativa de suicídio com base no mito de que quem ameaça não comete suicídio. Além disso, no estudo citado fica claro que os serviços de APS são fundamentais quando se pensa em identificação dos riscos e em prevenção do suicídio.

Nesse sentido, no estudo ora apresentado foi verificado que apenas 8,7% realizavam acompanhamento psicológico, mas que 77,8% haviam passado em consulta nos diversos serviços da rede municipal de APS nos últimos seis meses, evidenciando-se, dessa forma, a importância da visão multifocal do suicídio, cuidado que não deve estar centrado em serviços psiquiátricos, mas distribuído em todas as especialidades e níveis de atenção à saúde. Sabe-se que a APS é um eixo fundamental na formação de uma rede de apoio ao indivíduo sob risco de suicídio, além de dar suporte aos familiares e amigos, sendo frequentemente a primeira opção de busca de auxílio. No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), a APS representa um olhar abrangente sobre o processo saúde-doença, por meio da articulação do cuidado e do uso racionalizado de recursos tecnológicos e terapêuticos1919. Secretaria Municipal de Saúde da Cidade do Rio de Janeiro (SMS/RJ). Avaliação do risco de suicídio e sua prevenção – Coleção guia de referência rápida. Rio de Janeiro: SMS; 2016..

Uma das ferramentas que pode ser usada na APS é a avaliação de risco de comportamento suicida, por meio da entrevista clínica, identificando fatores predisponentes e de proteção2020. Rede de Atenção Biopsicossocial (RAPS). Risco de Suicídio Protocolo Clínico: Protocolo da Rede de Atenção Psicossocial, baseado em evidências, para a abordagem do risco e das tentativas de suicídio. Santa Catarina: RAPS; 2015.. A avaliação contempla a ideação e o planejamento suicida, buscando verificar a sua intensidade, assim como a capacidade do indivíduo em conter tais impulsos, além de identificar os fatores estressores e o acesso à rede de suporte2121. Cataldo Neto A, Gauer AGJC, Furtado NR. Psiquiatria para estudante de medicina. Porto Alegre: EdiPUCRS; 2013..

Por fim, destaca-se como ponto forte desta pesquisa a abordagem da tentativa de suicídio, haja vista que a literatura disponível ainda está mais focada no suicídio consumado. Entretanto, cabe mencionar como limitação a sua natureza transversal que não permite a estimativa real do risco e, sim, a associação entre os fatores de exposição e o desfecho. Além disso, considerando que os dados foram coletados em uma amostra não probabilística e com aferição do desfecho de forma autorreferida, há possibilidade de viés de seleção e de informação. Ainda, devido ao modo com que o desfecho foi avaliado – em uma sequência de perguntas condicionadas –, é plausível admitir que a prevalência encontrada esteja subestimada, pois, embora o planejamento seja um risco para tentativa, muitos casos ocorrem de forma impulsiva.

CONCLUSÕES

Com este estudo, constatou-se alta prevalência de tentativa de suicídio em usuários da APS, assim como associação com idade adulta, sexo feminino, menor escolaridade, não ter cônjuge, ser portador de DCNT, de HIV/AIDS e de depressão, insônia, além de história familiar de tentativa de suicídio, corroborando dados encontrados na literatura.

A posse de resultados como os produzidos por esta avaliação pode ser útil para a organização dos serviços de APS de forma mais adequada à população adscrita em relação ao comportamento suicida, levando em conta a real prevalência e seus fatores associados específicos. Uma sugestão seria a implantação de uma rotina de avaliação de risco, buscando identificar a presença de doenças crônicas e a história familiar de tentativa de suicídio, especialmente em mulheres adultas, sem cônjuge e com baixa escolaridade, possibilitando, assim, uma prevenção mais efetiva.

Por outro lado, salienta-se que é necessário que o aspecto preventivo seja mais bem estudado, pois expandir o conhecimento acerca desse tema tão relevante é fundamental para que propostas de cuidado e intervenção sejam elaboradas de forma mais individualizada e assertiva para determinados territórios.

Valorizar a APS e o SUS é imprescindível, principalmente no contexto histórico e político atual, em que há uma crescente desvalorização da saúde pública e até mesmo da ciência. É fundamental que, quando se trata de um tema como o suicídio, se possa afirmar que, mesmo com tantas dificuldades, existe um potencial enorme nos serviços de APS para prevenção, identificação e manejo dos fatores de risco na população atendida.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Conselho Federal de Medicina (CFM). Suicídio: informando para prevenir. Brasília: CFM; 2014.
  • 2
    Abreu KP, Lima MADS, Kohlraush E, Soares JF. Comportamento suicida: fatores de risco e intervenções preventivas. Rev Eletr Enf. 2010;12(1):195-200.
  • 3
    World Health Organization (WHO). Multisite Intervention Study on Suicidal Behaviours SUPRE-MISS: protocol of SUPRE-MISS [recurso eletrônico]. Geneva: WHO; 2002. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5671:folha-informativa-suicidio&Itemid=839 Acesso em: 17 maio 2019.
    » https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5671:folha-informativa-suicidio&Itemid=839
  • 4
    Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Suicídio [recurso eletrônico]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/suicidio Acesso em: 18 jan. 2021.
    » https://www.paho.org/pt/topicos/suicidio
  • 5
    Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da saúde em atenção primária. Genebra: OMS; 2000.
  • 6
    Brasil. Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Suicídio. Saber, agir e prevenir. Brasília: SVS; 2017.
  • 7
    Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Secretaria da Saúde. Boletim de Vigilância Epidemiológica de Suicídio e Tentativa de Suicídio [recurso eletrônico]. 2018. Disponível em: https://www.cevs.rs.gov.br/upload/arquivos/201809/05162957-boletim-de-vigilancia-epidemiologica-de-suicidio-n1-2018.pdf Acesso em: 13 jul. 2020.
    » https://www.cevs.rs.gov.br/upload/arquivos/201809/05162957-boletim-de-vigilancia-epidemiologica-de-suicidio-n1-2018.pdf
  • 8
    Leger D, Guilleminault C, Dreyfus JP, Delahaye C, Paillard M. Prevalence of insomnia in a survey of 12778 adults in France. J Sleep Res. 2000;9:35-42.
  • 9
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Orientações para avaliação de marcadores de consumo alimentar na atenção básica [recurso eletrônico]. Brasília: MS; 2015. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/marcadores_consumo_alimentar_atencao_basica.pdf Acesso em: 20 jul. 2019.
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/marcadores_consumo_alimentar_atencao_basica.pdf
  • 10
    Victora CG, Huttly SR, Fuchs SC, Olinto MTA. The role of conceptual frameworks in epidemiological analysis: a hierarchical approach. Int J Epidemiol. 1997;26(1):224-7.
  • 11
    Gournellis R, Tournikioti K, Touloumi G, Thomadakis C, Michalopoulou PG, Michopoulos I, et al. Psychotic (delusional) depression and suicidal attempts: a systematic review and meta-analysis. Ann Gen Psychiatry. 2018;137(1):18-29.
  • 12
    Kye SY, Park K. Suicidal ideation and suicidal attempts among adults with chronic diseases: a cross-sectional study. Comprehensive Psychiatry. 2017;73:160-7.
  • 13
    Goodwin RD, Marusic A, Hoven CW. Suicide attempts in the United States: the role of physical illness. Soc Sci Med. 2003;56(8):1783-8.
  • 14
    Pigeon WR, Pinquart, M, Conner, K. Meta-analysis of sleep disturbance and suicidal thoughts and behaviors. J Clin Psychiatry. 2012;73:e1160-7.
  • 15
    Perlis ML, Grandner MA, Chakravorty S, Bernert RA, Brown GK, Thase ME. Suicide and sleep: is it a bad thing to be awake when reason sleeps? Sleep Med Rev. 2015;29:101-7.
  • 16
    Perlis ML, Smith LJ, Lyness JM, Matteson SR, Pigeon WR, Jungquist CR, et al. Insomnia as a risk factor for onset of depression in the elderly. Behav Sleep Med. 2006;4:104-13.
  • 17
    Luoma JB, Martin CE, Pearson JL. Contact With Mental Health and Primary Care Providers Before Suicide: A Review of the Evidence. Am J Psychiatry. 2002;159(6):909-16.
  • 18
    Ahmedani BK, Simon GE, Stewart C, Beck A, Waitzfelder BE, Rossom R, et al. Health care contacts in the year before suicide death. J Gen Int Med. 2014;29(6):870-7.
  • 19
    Secretaria Municipal de Saúde da Cidade do Rio de Janeiro (SMS/RJ). Avaliação do risco de suicídio e sua prevenção – Coleção guia de referência rápida. Rio de Janeiro: SMS; 2016.
  • 20
    Rede de Atenção Biopsicossocial (RAPS). Risco de Suicídio Protocolo Clínico: Protocolo da Rede de Atenção Psicossocial, baseado em evidências, para a abordagem do risco e das tentativas de suicídio. Santa Catarina: RAPS; 2015.
  • 21
    Cataldo Neto A, Gauer AGJC, Furtado NR. Psiquiatria para estudante de medicina. Porto Alegre: EdiPUCRS; 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2021
  • Aceito
    1 Abr 2022
Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro Av. Venceslau Brás, 71 Fundos, 22295-140 Rio de Janeiro - RJ Brasil, Tel./Fax: (55 21) 3873-5510 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: editora@ipub.ufrj.br