Acessibilidade / Reportar erro

Medicina ortomolecular baseada em evidência

Ponto de Vista

Medicina Ortomolecular Baseada em Evidência

Luís Beck da Silva Neto, Jorge Pinto Ribeiro

Porto Alegre, RS

A expectativa em torno dos antioxidantes e seus potenciais benefícios à saúde estende-se há décadas. Inicialmente, havia evidências observacionais de que pessoas que consumiam mais frutas e verduras apresentavam menores riscos de câncer e de doenças cardiovasculares 1. Na busca de explicações para este fato, observou-se que substâncias contidas nas frutas e verduras poderiam diminuir a oxidação passiva de moléculas de DNA e, com isso, diminuir a probabilidade da transformação inapropriada das células 2. Também as lipoproteínas de baixa densidade (LDL), quando submetidas a dano oxidativo, tornar-se-iam mais aterogênicas 3. Posteriormente, o conhecimento evoluiu para o ponto de dispormos de grandes estudos observacionais que avaliaram a associação entre vitaminas antioxidantes e doença coronária 4,5, sugerindo potencial benefício do emprego de altas doses de vitamina E, mas não de vitamina C.

É característica dos estudos observacionais a capacidade de estabelecer associações entre uma exposição e uma doença. Associações estas que, independentemente do grau de significância estatística, não podem estabelecer causalidade 6. É preciso ficar clara a necessidade de ensaios clínicos para embasar condutas clínicas preventivas de saúde. O conceito atual de medicina baseada em evidência indica que as recomendações para os pacientes precisam estar provadas sobre o seu real benefício 7,8. No caso dos suplementos vitamínicos, havia, até aqui, uma evidência epidemiológica e uma explicação plausível para o fato. No entanto, faltava qualquer comprovação da relação causa-efeito entre o uso de antioxidantes e doenças cardiovasculares.

Sem perder tempo, a indústria de produtos alimentícios despejou no mercado, inicialmente americano, toneladas de suplementos vitamínicos de todos os tipos com a mensagem de melhorar a saúde e diminuir riscos. Isto se deu com certa permissividade, em vista de serem as vitaminas submetidas à legislação de alimento e não estarem sujeitas ao rígido escrutínio reservado às novas drogas. Nos Estados Unidos da América, dezenas de milhões de dólares foram gastos com esta crença 2. Em nosso país, um apreciável número de médicos tem recomendado altas doses de suplementos vitamínicos com objetivos de prevenção primária e secundária, estabelecendo na prática a chamada medicina ortomolecular 9,10. Esta abordagem parecia atrativa, mas não dispunha, até o momento, de qualquer comprovação de eficácia baseada em ensaios clínicos. Entretanto, resultados recentemente publicados permitem um posicionamento contemporâneo para aqueles que optam por praticar a medicina baseada em evidência.

Até o momento, a evidência mais consistente que dispúnhamos sobre efeitos de antioxidantes era do ATBC Cancer Prevention Trial 11. Este foi um ensaio-clínico randomizado, duplo-cego, com seguimento de 29.133 homens fumantes por cinco a oito anos, que demonstrou ausência de efeito protetor de vitamina E e beta-caroteno na incidência de câncer de pulmão e outros cânceres. Os resultados desse ensaio sugerem a hipótese de que estes suplementos poderiam, inclusive, ser deletérios. Outros estudos menores, como o Polyp Prevention 12, ensaio-clínico que testou as vitaminas C e E na recorrência de adenomas de cólon e reto, reforçam estes resultados. Além disso, o potencial teratogênico da vitamina A foi sugerido por uma grande coorte 13.

Entretanto, dois ensaios clínicos e um estudo de coorte recentemente publicados apresentam dados muito interessantes. O primeiro arrolou 22.071 pessoas (todos médicos) saudáveis, entre 40 e 84 anos e randomizou os indivíduos para receberem 50mg de beta-caroteno em dias alternados ou placebo. Após 12 anos de seguimento, foi constatado que a incidência de câncer de pulmão, de câncer em geral, de doenças cardiovasculares e, enfim, a mortalidade, foi idêntica nos dois grupos 14. O segundo ensaio-clínico envolveu 18.314 fumantes, ex-fumantes e trabalhadores expostos ao asbesto, que foram randomicamente alocados para receber uma combinação de beta-caroteno (30mg por dia) e vitamina A (25.000UI de retinol por dia) ou placebo, tendo como desfechos a incidência de câncer de pulmão e doenças cardiovasculares 15. Este ensaio, além de não mostrar qualquer benefício no uso de beta-caroteno, demonstrou uma significativa associação positiva entre o uso de vitamina A e câncer de pulmão (risco relativo de 1,28, com intervalos de confiança de 95% de 1,04 - 1,57; p=0,02). Portanto, vitamina A poderia aumentar o risco para câncer de pulmão, se tomada regularmente em suplementos vitamínicos, por pessoas sem déficit vitamínico, que sejam fumantes ou expostas ao asbesto. O estudo de coorte de mulheres pós-menopáusicas 16, recentemente publicado, lança alguma luz no entendimento dos resultados negativos dos ensaios clínicos citados. Este estudo examinou a dieta (e não os suplementos vitamínicos), como preditiva do risco de morte cardiovascular, mostrando que as mulheres que ingerem mais vitaminas A, C e E nas suas dietas têm menor risco de doença cardiovascular. Porém, o uso de suplementos vitamínicos não ofereceu o mesmo benefício. É possível que as vitaminas contidas nas frutas e verduras sejam meras marcadoras de benefício, mas não propriamente as responsáveis pela proteção. O consumo de frutas, provavelmente por estar associado a um estilo de vida saudável e uma postura que reflete uma vontade de viver, pode trazer benefício a estas mulheres, mas isto não se deve, necessariamente, às vitaminas A ou E ou C.

Outras pesquisas serão necessárias para melhor elucidar estes fatos. Entretanto, mais uma vez, conclui-se que os suplementos vitamínicos carecem de propriedades protetoras. Há, no entanto, uma exceção: a administração de vitamina E a pacientes com cardiopatia isquêmica documentada pode diminuir a incidência de infartos do miocárdio, 17 o que foi demonstrado pelo ensaio-clínico CHAOS, no qual 2.002 pacientes foram randomizados para receber 400 a 800mg de vitamina E ou placebo por uma média de 510 dias. Nesse ensaio houve uma redução de 47% (risco relativo de 0,53; com intervalos de confiança de 95% de 0,34-0,83; p=0,005) na incidência de infartos fatais e não fatais no grupo tratado em comparação ao grupo placebo. Este foi o primeiro ensaio-clínico randomizado que mostrou benefício de uma vitamina antioxidante neste contexto. Entretanto, é importante ressaltar que estes resultados não podem ser extrapolados para pacientes sem evidência de doença coronária, que, por consistirem grupo de menor risco, possivelmente obtenham menor benefício.

Portanto, a avaliação crítica da literatura científica disponível, na forma de ensaios clínicos randomizados, permite dizer que os cardiologistas já podem praticar o que chamaríamos de medicina ortomolecular baseada em evidência. Até que outros estudos sejam divulgados, a vitamina E pode ser prescrita para pacientes com doença aterosclerótica coronária estabelecida. Qualquer outro tipo de prescrição de suplementos vitamínicos, com objetivo de prevenção primária ou secundária, é desprovido de confirmação científica e, em algumas situações, poderá aumentar o risco.

Hospital de Clínicas de Porto Alegre - UFRGS

Correspondência: Jorge Pinto Ribeiro - Hospital de Clínicas de Porto Alegre -Serv de Cardiologia - Rua Ramiro Barcelos, 2350 - 90035-007 - Porto Alegre, RS

Recebido para publicação em 30/1/97

Aceito em 21/5/97

  • 1. Peto R, Doll R, Buckley JD, Sporn MB - Can dietary beta caroteno materially reduce human cancer rates? Nature 1981; 290: 201-8.
  • 2. Greenberg ER, Sporn MB - Antioxidant vitamins, cancer, and cardiovascular disease. N Engl J Med 1996; 334: 1189-90.
  • 3. Steinberg D, Pathasarathy S, Carew TE, Khoo JC, Witzum JL - Beyond cholesterol: modifications of low-density lipoproteins that increase its atherogenicity. N Engl J Med 1989; 320: 915-24.
  • 4. Rimm EB, Stampfer MJ, Ascherio A, Giovanucci E, Colditz GA, Willet WC - Vitamin E consumption and the risk of coronary heart disease in men. N Engl J Med 1993; 328: 1450-6.
  • 5. Stampfer MJ, Hennekens CH, Manson JE, Colditz GA, Rosner B, Willet WC - Vitamin E consumption and the risk of coronary heart disease in women. N Engl J Med 1993; 328: 1444-9.
  • 6. Grisso JA - Making comparisons. Lancet 1993; 342: 157-60.
  • 7. Evidence-Based Medicine Working Group - A new approach to teaching the practice of medicine. JAMA 1992; 268: 2420-5.
  • 8. Guyatt GH, Sackett DL, Cook DJ, for The Evidence-Based Medicine Working Group. User's Guides to the Medical Literature. II - How to use an article about therapy or prevention. A. Are the results of the study valid? JAMA 1993; 270: 2598-601.
  • 9. McCarty MF - Toward a "bio-energy supplement" - a prototype for functional orthomolecular supplementation. Med Hypotheses 1981; 7: 4.
  • 10. Hauser SP - Unproven methods in cancer treatment. Curr Opin Oncol 1993; 5: 4.
  • 11. The Alpha-Tocopherol, Beta Carotene Cancer Prevention Group - The effect of vitamin E and beta carotene on the incidence of lung cancer and other cancers in male smokers. N Engl J Med 1994; 330: 1029-35.
  • 12. Polyp Prevention Study Group - A clinical trial of antioxidant vitamins to prevent colorectal adenoma. N Engl J Med 1994; 331: 141-7.
  • 13. Rothman KJ, Moore LL, Singer MR, Nguyen UDT, Mannino S, Milunsky A - Teratogenicity of high vitamin A intake. N Engl J Med 1995; 333: 1369-73.
  • 14. Hennekens CH, Buring JE, Manson JE et al - Lack of effect of long term supplementation with beta corotene on the incidence of malignant neoplasms and cardiovascular diseases. N Engl J Med 1996; 334: 1145-9.
  • 15. Omenn GS, Goodman GE, Thornquist MD et al - Effect of a combination of beta carotene and vitamin A on lung cancer and cardiovascular disease. N Engl J Med 1996; 334: 1150-5.
  • 16. Kushi LH, Folsom AR, Prineas RJ et al - Dietary antioxidant vitamins and death from coronary heart disease in postmenopause women. N Engl J Med 1996; 334: 1156-62.
  • 17. Stephens NG, Parsons A, Schofield PM et al - Randomised controlled trial of vitamin E in patients with coronary disease: Cambridge Heart Antioxidant Study (CHAOS). Lancet 1996; 347: 781-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Fev 2001
  • Data do Fascículo
    Jul 1997

Histórico

  • Aceito
    21 Maio 1997
  • Recebido
    30 Jan 1997
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br