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Doença reumática

Atualização

Doença Reumática

João Joaquim de Oliveira* * Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás - Goiânia Correspondência: João Joaquim de Oliveira - Rua R-4, Qd R-6, Lt-10 - Setor Oeste - 74125-060 - Goiânia, GO Recebido para publicação em 7/10/96 Aceito em 9/4/97 , Sandra Regina A. S. Silva* * Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás - Goiânia Correspondência: João Joaquim de Oliveira - Rua R-4, Qd R-6, Lt-10 - Setor Oeste - 74125-060 - Goiânia, GO Recebido para publicação em 7/10/96 Aceito em 9/4/97 , João Dhoria Vijle** * Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás - Goiânia Correspondência: João Joaquim de Oliveira - Rua R-4, Qd R-6, Lt-10 - Setor Oeste - 74125-060 - Goiânia, GO Recebido para publicação em 7/10/96 Aceito em 9/4/97

Goiânia, GO; Rochester, EUA

A doença reumática (DR) é uma complicação não supurativa (auto-imune) de uma infecção da orofaringe pelo streptococcus b-hemolítico do grupo A de Lancefield, em um hospedeiro susceptível; mais freqüente na faixa etária de 5-l5 anos 1-3. A infecção de garganta pode ter manifestações sistêmicas, ser leve, atípica ou mesmo assintomática. Cerca de 30%-70% das seqüelas reumáticas não têm relatos de infecção prévia 1,3-6. As infecções cutâneas pelo streptococcus B-hemolítico não causam DR, pois são nefritogênicos, podendo causar síndrome nefrítica, por glomerulonefrite aguda 1,7 . A DR ainda constitui um sério problema de saúde pública. Cerca de 30 milhões de pessoas são atingidas pela doença em todo o mundo 1,2.

Em países do primeiro mundo a prevalência da doença vem diminuindo face a melhoria das condições socioeconômica culturais, uso mais freqüente de antibióticos para infecções respiratórias e queda da disseminação das estreptococcias 2,4 .

Patogenia

Os streptococcus do grupo A contêm antígenos que são imunologicamente transreativos com o tecido cardíaco humano (tropomiosina) 7,8. A infecção estreptocóccica das vias aéreas superiores estimula a produção de vários anticorpos que interagem com o tecido conectivo humano (auto-anticorpos) e inicia uma resposta inflamatória sistêmica 8,9. Após um período de latência de 1-4 semanas, o hospedeiro não tratado desenvolve sinais e sintomas da DR aguda 11,12 . Dos sinais maiores, a artrite é o mais freqüente e mais importante no diagnóstico, a cardite, quando presente, assume grande relevância na abordagem diagnóstico-terapêutica por deixar seqüelas e evolução, às vezes, graves 10,11 . Das manifestações menores, a febre, artralgia, leucocitose e provas de atividade inflamatória são as mais freqüentes 8,11 . Existe semelhança antigênica entre os componentes do streptococcus e os tecidos humanos 7,9. Há evidências de reatividade cruzada entre a proteína M e a tropomiosina, entre o carboidrato C e glicoproteínas do endotélio valvular, entre membrana protoplástica e sarcolema miocárdico, núcleo caudado talâmico e subtalâmico e entre ácido hialurômico da cápsula da bactéria e tecido das articulações 7,9,12 . Há estudos mostrando que a estreptolisina O seria um mediador não antigênico dessas reações 10,12. Ela destruiria as membranas celulares com degranulação de lisossomas dos fagócitos, promovendo as reações inflamatórias e citotóxicas 10,12,13. Recentemente, isolou-se de portadores de DR uma proteína celular denominada 883 (+), um marcador de risco para a doença, que tem sido isolada de ±75% dos portadores de DR e em 18% - 25% dos não reumáticos 11-15. Os indivíduos susceptíveis são não-secretores na saliva para IgA (sistema ABH); assim, haveria facilitação para o streptococcus aderir-se à membrana celular do hospedeiro 7. O HLA B5(+) seria a constituição antigênica mais vulnerável para a doença. Estes indivíduos têm redução de C1q, C3e C4 no tecido articular 9-17. Esta conformação antigênica propiciaria a interação entre os antígenos da bactéria e os linfócitos B e T via região IR e Dr do HLA. Os indivíduos com DR apresentam diminuição dos linfócitos T8 (supressores) e aumento dos T4 (helpers) 12,14. Com isto haveria eclosão de "clones proibidos" com lesão celular em vasos, coração e articulações. Na histologia da cardite reumática há macrófogos, linfócitos B, linfócitos T e mastócitos com relação TH/TS >2,0.

A classificação e o exame ultraestrutural do streptococcus com base nas variações de aminoácidos da proteína M (fig. 1) são essenciais para o entendimento da patogênese da DR. A camada mais externa é composta de ácido hialurônico, camada que confere à bactéria sua aparência mucóide quando ela é cultivada em agar-sólido 15,17. O ácido hialurônico dá ao streptococcus a capacidade de resistir a fagocitose, sendo, portanto, um fator de virulência, além de ser antigênico 6,7. A 2ª camada da parede celular contém a proteína M, talvez o principal antígeno da bactéria. Constitui-se de módulos de sete aminoácidos repetidos que se assemelham com as proteínas do tecido humano, como tropomiosina, miosina e vimentina. Esta homologia molecular propiciaria reações cruzadas imune-humoral e celular em indivíduos geneticamente susceptíveis. Os mecanismos de respostas humoral e celular têm sido demonstrados através de exacerbação de respostas a testes cutâneos de hipersensibilidade tardia aos antígenos da bactéria com aumento linear com a incidência da doença até a adolescência 13. Guilherme e Kalil em estudo recente documentaram que epitopes da proteína M e frações de proteínas de miócitos cardíacos e válvula aórtica normais são reconhecidos simultaneamente por linfócitos T infiltrantes (CD+). Estas células, capazes de duplo reconhecimento, sugerem mecanismo de reação de hipersensibilidade retardada, como mediador de lesões cardíacas 16. De acordo com a proteína M, os streptococcus podem ser divididos em pelo menos 80 sorotipos capazes de causar infecções no ser humano. Na gênese da doença, além de antígenos bacterianos e do hospedeiro, outros fatores como ambientais, socioeconômicos são também primordiais. Dos sistemas genéticos estudados o HLA classe II é o que tem forte associação com DR. Diversas etnias e alelos dos antígenos HLA-Dr foram estudadas 18-20.


A imunidade conferida por um anticorpo anti-M protege contra reinfeção homóloga, mas não contra reinfecção heteróloga de outros sorotipos de proteína M. A proteína M, a exemplo do ácido hialurônico, é um fator de virulência, fortemente antigênica e tem propriedade anti-fagocitose. Ela bloqueia a produção de C3 impedindo a ativação do complemento via alternada, que normalmente permite a opsonização dos streptococcus grupo A, facilitando a fagocitose. Trabalhos recentes têm provado que há dois grupos distintos de proteínas M. No grupo I, as moléculas da proteína M compartilham um grupo antigênico que contém seqüência repetida de peptídeos em sua superfície detectada, na maioria dos sorotipos de streptococcus que causam DR. Este grupo tem certos epitopes (determinantes antigênicos) semelhantes ao tecido cardíaco humano, como miosina e proteínas da membrana sarcolêmica. No grupo II, estão as proteínas M que não tendo esta seqüência repetida de peptídeos, produzem o fator de opacidade sérica e não causam DR. A 3ª camada contém carboidratos. São substâncias específicas de grupos, dividindo os streptococcus em grupos A, B, C, D, etc. Os principais carboidratos desta camada são a N-acetilglicosamina e a ramnose, tendo importantes propriedades antigênicas gerando auto-anticorpos que reagem contra as glicoproteínas da superfície celular valvular 6,12,15. A 4ª camada da parede celular é composta de mucopeptídeo, rica em peptideoglicans, cuja síntese é impedida pela ação de antibióticos betalactâmicos, a exemplo das penicilinas e cefalosporinas 10,12. A camada mais interna da parede celular é a membrana protoplástica, um complexo de lipoproteína altamente antigênico 15. No estudo da susceptibilidade genética foi analisado o DNA pela técnica southern blot onde se detectou um fragmento denominado alogenotopo taq1/Dr beta 13,81 kb, positivo em 83,3% dos pacientes vs 34% de controles 21. Este fragmento se inter-relaciona com os antígenos Dr2 e Dr53. Conforme estudos em diversas populações (americanos, árabes, caucasóides e mulatos brasileiros) o antígeno Dr53 constitui marcador de susceptibilidade para a doença 22. Enfim, a parede celular do streptococcus compartilha vários determinantes antigênicos com o tecido cardíaco humano, núcleo caudado, músculos lisos, vasos e membranas basal glomerular, constituindo as incógnitas da patogênese e morbidade da DR.

Anatomia patológica

A anatomia patológica da DR mostra lesões inflamatórias exsudativas e proliferativas dos tecidos conjuntivos, em particular em pequenos vasos (perivascular) e coração 17. A doença tem tropismo particular pelo coração. Existe uma verdadeira pancardite (endocárdio, miocárdio e pericárdio). A marca típica da agressão ao coração é o corpúsculo ou nódulo de Aschoff. Constitui um granuloma submiliar patognomônico da DR, forma massa verrucosa, com material eosinofílico, com células em paliçada. O comprometimento é anular, cuspal e cordonal, com formação de fibrose, cicatrização e encurtamento dos folhetos valvulares. Na valva mitral tem predileção pelo folheto posterior. Existe controversa se as células de Aschoff (miócitos de Anitschkow, células em olho de coruja) são miócitos ou são de origem intersticial. Estas células podem persistir na fase crônica (estenose mitral) 17,23,24. A endocardite reumática caracteriza-se por uma vasculite verrucosa com edema e deformidade do tecido valvular com espessamento fibroso e fusão das comissuras valvares, levando a graus variados de insuficiência (regurgitação) ou estenose 15,25.

As válvulas mais atingidas são mitral e aorta, raramente a tricúspide, quase nunca a pulmonar. A pericardite reumática consiste de inflamação das camadas do pericárdio e derrame. A constrição e o tamponamento são extremamente raros 23,25.

Coréia - A coréia decorre de uma arterite do sistema nervoso central com degeneração celular perivascular, hemorragias e petéquias, sobretudo nos núcleos denteado e subtalâmico 19,20.

Artrite - Existe edema, infiltrado de polimorfonucleares e monócitos nas estruturas peri e articulares. À exceção da artropatia de Jaccoud, seqüela deformante das articulações metacarpofalangeanas em surtos reumáticos recorrentes, o acometimento articular nunca deixa seqüela 19,20.

Pleurite - Em cerca de 50% dos casos existem graus variáveis de acometimento pulmonar com pleurite, pneumonite e derrame serofibrinoso com líquido amarelo pálido com aumento de polimorfonucleares 23-33. Em casos de cardite severa pode surgir pneumonite mais séria com nódulos hemorrágicos (nódulos de Masson) tipo pequenos infartos (+ pulmão esquerdo) com hemorragia alveolar, edema fibrinoso, necrose alveolar e até formação de membrana hialina 20-23.

Lesão renal - Estudos histológicos in vivo e post-mortem tem documentado lesão renal na DR 25. Estas lesões são glomerulonefrite difusa ou proliferativa e nefrite crônica, que são diferentes da nefrite pós-estreptocócica e raramente tem repercussões clínicas 29.

Quadro clínico - critérios de Jones

Os critérios de Jones são utilizados apenas como um guia para o diagnóstico, já que há outras doenças que podem preencher estes critérios. Há também os casos atípicos de DR que podem não satisfazer esses critérios. É necessário bom senso para utilizá-los adequadamente.

Critérios maiores

Poliartrite - É o critério mais freqüente, mas que traz muitas dificuldades de interpretação já que há diversas doenças inflamatórias ou constitucionais (drepanocitose, leucoses na infância, endocardite infecciosa (EI)) que se manifestam com artrite e poderão ter provas positivas de atividade inflamatória da fase aguda. O mais importante é reconhecer a presença da artrite, diferindo-a da artralgia (dor articular ). Na artrite, há presença de sinais e sintomas flogísticos, como aumento do volume articular, eritema, impotência funcional, dor à palpação. A dor ou a sensibilidade dolorosa isoladas não são suficientes para o diagnóstico de artrite 6,15.

O curso clássico de artrite da DR sem tratamento é o seguinte: cerca de 1 a 5 (média de 2-3) semanas após a infecção estreptocócica da orofaringe, surge a artrite em uma ou várias articulações, geralmente nos membros inferiores. A inflamação de uma articulação atinge o máximo de gravidade em 12 a 24h, permanecendo assim pelos próximos dois a seis dias. A artrite dessa articulação começa a melhorar enquanto surge artrite em outra articulação, seguido o mesmo padrão de evolução, caracterizando a artrite migratória. Freqüentemente, há superposição de artrite em outra articulação, enquanto a primeira ainda está ativa, caracterizando a artrite rapidamente aditiva. A artrite pode migrar ou ser rapidamente aditiva por um período de poucos dias ou de algumas semanas. Em 2/3 dos casos, o surto só é severo na 1ª semana, enquanto no restante, permanece assim por duas a três semanas. A partir daí, pode seguir um curso mais leve por uma ou duas semanas. Raramente há casos em que os sintomas duram mais de quatro semanas, mesmo sem uso de antiinflamatórios (ácido acetilsalicílico) 6,10,29.

A artrite costuma ser muito dolorosa à deambulação, em grau desproporcional ao observado no exame físico. Outra importante característica da artrite é sua resposta rápida aos antiinflamatórios não hormonais (salicilatos, ácido acetilsalicilício). Após 24-36h do início dessa terapêutica, os pacientes praticamente estão assintomáticos e os sinais objetivos de artrite cessam em menos de cinco dias. Na falta desse tipo de resposta deve-se colocar em dúvida o diagnóstico de DR. Embora os critérios de Jones levam em conta a presença de artrite em dois ou mais articulações, a DR pode afetar apenas uma e, se os antiinflamatórios forem introduzidos precocemente, o padrão de poliartrite migratória poderá não ser verificado. É importante diagnóstico diferencial a poliartrite reativa pós-estreptocócica ou secundária a qualquer IVAS ou virose sistêmica (hepatite, rubéola, etc). A artrite reativa pós-estreptocócica costuma ter curso prolongado, é simétrica, não migratória, pouca responsiva aos salicilatos, sem outras manifestações. Há trabalhos mostrando cardite após artrite reativa, sendo, portanto, este epifenômeno da estreptococcia um fator de risco para o desenvolvimento de DR com envolvimento cardíaco 25,34, 35.

Cardite - Na maioria dos casos existe uma pancardite (endocárdio, miocárdio, pericárdio). Caracteriza-se por taquicardia, ritmo de galope por B-3, sopros de regurgitação (mitral ou aórtico), cardiomegalia, e outros sinais e sintomas de insuficiência cardíaca (IC). O ecodoppler é exame de grande importância, podendo mostrar, mesmo com ausculta cardíaca normal, sinais de valvulite (regurgitação). A miocardite ou pericardite isolada é muito rara 23,28.

Sopros na cardite reumática: holossistólico apical, sussurrante, de alta tonalidade, com irradiação axilar. O diagnóstico diferencial seria com click sistólico de prolapso de valva mitral, sopro sistólico funcional pulmonar ou aórtico, sopro sistólico de Still (de baixa tonalidade, auscultado em borda esternal esquerda), sopro sistólico de comunicação interatrial ou interventricular com shunt E®D, cardiopatia congênita com regurgitação mitral e cardiomiopatia hipertrófica. A presença de sopro diastólico na cardite reumática deve-se a: regurgitação mitral severa com acentuação de galope por B-3, dilatação ventricular esquerda , valvulite mitral, anormalidade de musculatura papilar propiciando regurgitação mitral. Um sopro diastólico em focos de base (aórtico) pode ser auscultado após a B-2, é sussurrante e se deve à regurgitação aórtica (rara). O diagnóstico diferencial neste caso seria com valva aórtica bicúspide que, além do sopro, tem quase sempre um click de ejeção em ápex e borda esternal esquerda 19,23,33.

Miocardite - A miocardite caracteriza-se por taquicardia acentuada precoce, sopros sistólico ou diastólico, cardiomegalia em radiografia de tórax, IC leve ou severa e regurgitação mitral e/ou aórtica. Miocardite sem valvulite raramente constitui manifestação de DR 23,28.

Pericardite - Caracteriza-se por dor torácica, bulhas abafadas, derrame (ao ecocardiograma), raramente existe tamponamento cardíaco 25.

Coréia - (coréia de Sydenhan) - Geralmente, não apresenta dificuldades diagnósticas por serem manifestações bastante características, entretanto, deve-se procurar afastar a possibilidade de ser lúpus eritematoso sistêmico (LES) que também pode apresentar sintomas coréicos, como primeiras manifestações. Caracteriza-se por movimentos involuntários sem finalidade, fraqueza muscular e labilidade emocional, pode ser tardia, uni ou bilateral. Os principais diagnósticos diferenciais da coréia são: tiques, atetose, histeria, hipercinesia, LES, doença de Wilson, reação a drogas (metoclorpramida, haloperidoal) e coréia de Huntington (senil), tumores cerebrais e encefalites 15,20.

Nódulos subcutâneos - Estes sinais maiores estão presentes nos casos com cardite e, portanto, nessa eventualidade, não trazem problemas no diagnóstico diferencial, são firmes, indolores, têm preferência por superfícies extensoras, como cotovelos, joelhos, pulsos, região occiptal 29,32.

Eritema marginado - O eritema marginado tem centro pálido, não acomete a face, é transitório e migratório, pode ser reproduzido por aplicação de calor local, não é pruriginoso e clareia sob pressão. Geralmente indica pior prognóstico (cardite), são raros, tendo predileção por eminências ósseas 29,33-37 .

Critério menores - Artralgia, febre baixa e precoce (<39o) , provas de atividade inflamatória elevadas (VHS, proteína C reativa, mucoproteínas), antecedentes de DR. PR aumentado no ECG. São bastante inespecíficos e devem ser interpretados com cautela, pois estão presentes na maioria das doenças inflamatórias, vásculo-colagenoses, infecciosas e outras afecções constitucionais. Na coréia isolada, as provas de atividade inflamatória podem ser normais. A presença de vários critérios menores isolados não faz diagnóstico de DR 33-39.

Evidência de infecção estreptocócica

Uma alta percentagem de pacientes (30%-70%) não tem história precedente de infecção de vias aéreas superiores e a cultura é freqüentemente negativa para o streptococcus beta-hemolítico do grupo A. A presença de títulos elevados de antiestreptolisina O (ASO) deve ser analisada com cuidado, pois denota apenas uma infecção estreptocócica prévia, fato comum em crianças na fase escolar e, portanto, inespecífica para o diagnóstico na ausência de critérios maiores. Além disso, nem todo paciente com DR apresenta títulos elevados de ASO na vigência do surto reumático. Vinte e cinco por cento dos pacientes até dois meses de evolução e 40% com coréia isolada podem apresentar ASO negativa. O exame deve ser repetido semanalmente na suspeição clínica da doença. Muitas crianças podem ter outras doenças (virais e bacterianas) com ASO elevada 1,5,6.

Manifestações que ajudam no diagnóstico: dor abdominal, taquicardia durante o sono, taquicardia desproporcional á febre (dissociação febre/temperatura), mal estar, anemia, epistaxe, dor precordial, sudorese. Estes sinais e sintomas não constituem critérios diagnósticos e só adquirem valor em presença dos critérios maiores e menores de Jones 1,6. Exceções aos critérios de Jones: coréia isolada, cardite reumática insidiosa, recorrência de DR (mesmo sem sinais maiores). A presença de uma dessas condições, mesmo isolada, afastada outras causas, constitui critério de DR.

Diagnóstico diferencial - Os mais importantes são: endocardite infecciosa; anemias hemolíticas - anemia falciforme; leucoses - leucemia linfoblástica aguda; vásculo-colagenoses: LES; artrite reumatóide juvenil; púrpura de Henoch-Schonlein; bacteremias ou septicemia com artralgias; artrite gonocócica (acomete articulações e tecidos periarticulares, entesemopatia); artrites (artralgias) reacionais pós-viroses; artrite reacional a drogas; tuberculose ósteo-articular; doença do soro; cardite por yersina enterocolítica; cardite por vírus.

A EI por ter acometimento sistêmico com febre, artralgias, provas de atividade inflamatória positivas e acometimento cardíaco (taquicardia, sopros) simula muito a DR 25. Neste caso as hemoculturas seriadas para isolamento do agente infeccioso e ecocardiograma para detecção de vegetações são exames decisivos no diagnóstico.

A cardite viral ou por yersinia enterocolítica constituem outros diagnósticos diferenciais muito difíceis. Ambas provocam artrite, lesões cardíacas com sopros em tudo mimetizando a DR. As demais condições têm marcadores sorológicos (colagenoses) ou bioquímicos e hematológicos (anemia falciforme) específicos e não mostram grande dificuldade diagnóstica.

Constitui erro comum a administração de AINH (salicilatos) e corticóides antes de se estabelecer o diagnóstico definitivo de quadro articular agudo. Estes medicamentos podem mascarar o diagnóstico e alterar as provas de atividade inflamatória, trazendo dificuldade na profilaxia secundária da doença 25,37,38.

Laboratório

Não existe um marcador bioquímico ou sorológico específico para DR. Os exames são adicionais à clínica e ajudam a confirmar o diagnóstico 37.

Hemograma - Pode haver leococitose leve com pequeno desvio para esquerda e anemia normocítica e normocrônica leve. A presença de leucocitose expressiva deve levantar a suspeita de outras doenças como artrite infecciosa. Leucocitose severa com atipias é comum nas leucoses, nas quais o mielograma é exame diagnóstico definitivo. A velocidade de hemossedimentação estará elevada em proporção à gravidade da doença 24.A VHS é exame de grande valor diagnóstico. A presença de artrite com VHS normal praticamente exclui a possibilidade de DR. Poderá estar normal ou baixa em doenças concomitantes como hepatopatia, IC, uso de antiinflamatórios não hormonais (salicilatos) e corticosteróides. Na anemia está elevada 27,38.

Proteína C reativa (PCR) - Altera precocemente na DR, tendo meia vida curta. Constitui evidência de atividade inflamatória bastante inespecífica. Não se altera com uso de antiinflamatórios e é útil em casos de recorrências 27,38.

Mucroproteínas - Mostram-se positivas em quase 100% dos pacientes com DR, permanecendo assim em toda a evolução da doença 25. Todavia, mostram-se positivas em outras condições como injeções repetidas de penicilina, insuficiência renal avançada, EI, noplasias, doença linforreticular (leucoses) e tuberculose ativa 38,39.

Proteínas séricas - Na eletroforese das proteínas, podemos ter albumina diminuída, aumento da alfa2 e gamaglobulina. Destas, a alfa2 globulnia tem meia vida mais longa e serve com critério de cura 39 .

Anticorpos contra antígenos estreptocócicos - A antiestreptolisina O, anti-hialuronidase, anti-estreptoquinase e anti-desoxirribunuclease B (anti-DNASE B) são os principais Ac formados pelo hospedeiro contra os constituintes do streptococcus 32,39. A ASO mostra-se positiva em mais de 70% dos casos de surto reumático agudo 38,39. Seu pico máximo (15 dias) coincide com o quadro articular agudo e é a prova de estreptococcia prévia 39. Na coréia isolada, que pode se manifestar tardiamente, a ASO pode ser normal (positividade em torno de 20%) 39. Neste caso a anti-DNASE B mostra-se de melhor acurácia diagnóstica, pois tem meia vida mais longa (positividade em torno de 40%) 39. Título normal de ASO: £ 240 em adultos, £333 em crianças. Na DR geralmente aumenta duas ou mais vezes o valor normal. A presença de dois anticorpos positivos tem um sensibilidade de 95% para DR.

Cultura de garganta - Os streptococcus podem ser isolados da garganta na vigência de infecção ativa. Todavia, a cultura positiva pode também ocorrer no portador crônico que faça uma faringite viral 39, tornando-se útil na tipagem da bactéria causadora da infecção ou na distinção das faringites virais e bacterianas. Tem valor limitado, uma vez que o streptococcus é um patógeno natural da cavidade oral 39. Na vigência de DR ativa (artrite) somente 25% dos pacientes têm cultura positiva.

Teste de detecção antigênica - A pesquisa de antígenos estreptocócicos no sangue é de execução fácil e rápida, mas se mostra de pouco valor prático, pois não distingue a infecção ativa do estado de portador crônico, têm alta especificidade e baixa sensibilidade (± 25%) 25,29. Cobre, ceruloplasmina - podem estar elevados na coréia.

Urinálise - Pode apresentar cilindrúria, albuminúria.

Eletrocardiograma - Pode-se ter taquicardia, bloqueio atrioventricular de 1o grau (aumento do intervalo PR), distúrbios de condução intraventricular (aumento QRS), alterações de repolarização ventricular e aumento do QTc (preditor de cardite mais grave) 33.

Radiologia do tórax - Na radiografia do tórax pode-se ter cardiomegalia e congestão pulmonar 34.

Ecocardiografia - Exame de grande sensibilidade no diagnóstico de cardite subclínica, podendo identificar desde uma valvulite até a extensão e gravidade de outras lesões como miocardite e envolvimento pericárdico 27-34. O exame com a técnica Doppler ou com mapeamento de fluxo a cores é de grande valor nos casos onde a ausculta cardíaca é duvidosa ou com sopros discretos. Uma simples regurgitação mitral ou aórtica em um paciente, previamente saudável, é um critério seguro de comprometimento cardíaco 27,34.

Cintilografia - Na cintilografia miocárdica, o radiofármaco mais utilizado é o gálio-67. É considerada positiva quando há presença de captação do radioisótopo. Soares Jr 28, em estudo no INCOR-SP, abrangendo 36 pacientes com cardite reumática, detectou 31 casos com cintilografia positiva, sendo que, 25 mostraram histopatologia positiva e seis negativas. As cinco cintilografias negativas tiveram também histopatologia negativa. Feitos na fase crônica da doença (inatividade reumática) os exames tiveram a mesma correlação cintilografia negativa/histopatologia negativa. A cintilografia com gálio-67, portanto, é exame de grande acurácia não só em detectar o processo inflamatório miocárdico como também um referencial para biópsia endomiocárdica que é considerada positiva pela presença de infiltrado linfocitário. Ambos os exames complementam-se permitindo demonstrar grau de atividade reumática na fase aguda e regressão reumática na fase crônica 28,31.

Tratamento

Medidas gerais - Repouso: na ausência de envolvimento cardíaco, que deverá durar enquanto persistir os sintomas/sinais de artrite 3,4. Na presença de cardite deverá haver repouso enquanto permanecerem sinais/sintomas de disfunção cardíaca 15 (taquicardia de repouso, dispnéia aos pequenos esforços e fadiga). Poderá variar de três semanas a seis meses, conforme o grau e extensão do envolvimento cardíaco 8. Dieta hipossódica, antitérmicos, antieméticos etc.

Tratamento da estreptococcia - A infecção estreptocócica mesmo subclínica ou inaparente deve ser tratada com rigor pelos riscos de recorrência ainda na fase hospitalar 24,29. Os antibióticos de escolha são: penicilina benzatínica, penicilina procainada 400.000UI IM 12/12h, penicilina V 250mg 3x/dia - 10 dias. Não existe nenhuma vantagem em se utilizar as penicilinas semi-sintéticas, uma vez que aquelas têm a mesma eficácia sobre a bactéria com uma relação custo/benefício significativamente menor 40-44. Pacientes alérgicos à penicilina podem ser tratados com eritromicina (estolato ou succinato) 20-40mg/kg/dia - 10 dias, ou cefalexina 500mg 3´/dia - 10 dias (paciente adulto) 44-47.

Antiinflamatórios não hormonais (AINH) - Ácido acetilsalicílico (AAS) 100mg/kg/dia - máximo de 3g/dia, é o medicamento de eleição para artrite 27. A resposta da artrite ao AAS é tão imediata e eficaz que se deve questionar o diagnóstico de DR se não há remissão dos sintomas articulares em poucos dias 28. A duração da terapia com o AAS é em média de quatro semanas, ou seja enquanto durar os sintomas e as provas de atividade inflamatória 27,28. Os efeitos colaterais do AAS (salicismo) são: sonolência, lipotímia, zumbidos nos ouvidos, hiperpnéia, taquipnéia, náuseas, agitação, distúrbios de consciência, até coma, hipertermia e convulsões 28,30. Mais raramente e dependendo da dose pode haver hipoprotrombinemia, retenção de água, IC e edema agudo de pulmão 29,36.

Corticosteróides (prednisona) - Em presença de cardite ou coréia utilizamos a prednisona na dose de 1 - 1,5mg/kg/dia (máximo 60mg em adulto e 40mg na criança <12 anos) em dose única matinal por quatro semanas ou enquanto durar sinais de cardite e provas de atividade inflamatória 30. A partir da remissão dos sinais/sintomas de cardite deve-se suspender gradativamente o medicamento ±5mg/semana 30. Para evitar sintomas de rebote (febre, dores osteomusculares, taquicardia) deve-se associar 2g de AAS e mantê-lo por 2-4 semanas após a suspensão da prednisona 30. Os principais efeitos benéficos do corticosteróide na DR são inibição da migração de polimorfonucleares, ação antifibroblástica, estabilização dos lisossomas celulares, diminuição da permeabilidade vascular, inibição das cininases e outros mediadores da inflamação 27,29. Os efeitos colaterais mais comuns são: fácies cushingóide (lua cheia), retenção hidrossalina, hipertensão arterial, úlcera péptica, diabetes mellitus, osteoporose, hirsutismo, hipocalemia, glaucoma, necrose asséptica de cabeça do fêmur, catarata e pancreatite 20,29.

Insuficiência cardíaca - Dieta hipossódica, repouso, diuréticos, digitálicos, inibidores da ECA. Os compostos digitálicos (deslanasídeo-C, digoxina) devem ser empregados com cautela pelos riscos que estes pacientes têm de intoxicação pela droga 32,34.

Coréia - No tratamento da coréia, recomenda-se manter ambiente calmo, sem estímulos sonoros e visuais, evitar atitudes que excitem ou irritem o paciente, com orientações sobre a evolução e prognóstico da doença 32. Os medicamentos empregados são: ácido valpróico 20-40mg/kg/dia, 3-4 vezes ao dia. O mecanismo do ação do ácido valpróico seria pelo aumento de ácido gama aminobutírico intracerebral (GABA), um neurotransmissor inibidor que melhora os movimentos involuntários e a labililidade emocional. Por ter toxicidade hepática deve-se dosar periodicamente as enzimas aspartato aminotransferase e alanino aminotransferase (AST, ALT). Haloperidol 0,5-5mg/dia, medicamento que na criança têm o inconveniente de causar impregnação dos núcleos da base e desencadear sintomas extrapiramidais (tipo doença de Parkinson) e distúrbios de comportamento. Clorpromazina 1-3mg/kg/dia, fenobarbital 5-7mg/kg/dia. Dessas drogas, a mais eficaz e melhor tolerada para criança e adolescente tem sido o ácido valpróico. Para o adulto a melhor escolha é o haloperidol 32.

Profilaxia da doença reumática

Profilaxia primária - Consiste em tratar tempestiva e rigorosamente toda estreptococcia de vias aéreas superiores (faringe, tonsilite), mastoidite, otite, sinusite, principalmente em crianças e adolescentes. A infecção bacteriana de vias aéreas em geral é iniciada após período de incubação de 1-4 dias com dor súbita de garganta, cefaléia, febre, dor abdominal, náuseas e vômitos, linfadenite cervical anterior e amigdaliana proeminentes e dolorosa, exsudato purulento branco-acinzentado nas amígdalas, petéquias em úvula e pálato, rash escarlatinoforme, sem tosse ou conjuntivite 30. As infecções virais em geral dão mais sintomas irritativos com coriza mucosa, disfonia, tosse seca, conjuntivite, estomatite, hiperemia, hipertrofia de amígdalas e diarréia 30. Como exames complementares, pode-se realizar a cultura do exsudato das amígdalas, podendo haver resultados falso-positivos nos portadores crônicos do streptococcus beta hemolítico. No surto reumático apenas 25% das culturas de orofaringe são positivas 30-32. O teste de detecção antigênica é pouco viável e tem as mesmas limitações da cultura. A dosagem de anticorpos (ASO, anti-DNASE) na fase inicial da infecção são normais e, portanto, sem valor prático nesta etapa 30,38. Eles só têm importância na suspeita de DR, como evidência de estreptococcia prévia 30,38. Enfim ao abordar um paciente com IVAS deve prevalecer o bom-senso e a relação risco/benefício para tratar os casos duvidosos 38. Cerca de 30% - 70% dos casos de DR não têm relato de infecção prévia ou eram casos oligossintomáticos 27,47. Portanto, na dúvida entre IVAS viral ou bacteriana melhor seria instituir pelo menos uma dose de penicilina benzatínica 600.000UI IM para crianças <27kg e 1200.000UI IM para pacientes >27kg 32,37. As outras opções de antibióticos seriam: penicilina V 250mg 3-4 vezes/dia - 10 dias ou eritromicina 20-40mg/kg/dia 38 por 10 dias. As sulfas, associação sulfametoxazol + trimetropim e tetraciclinas não devem ser empregadas pelo elevado número (+ de 70% dos casos) de resistência a essas drogas. Na amigdalite crônica, pela freqüente associação fuso-espiralar, recomenda-se o uso da penicilina benzatínica com clindamicina.

Profilaxia secundária (recorrência) - Na DR sem cardite, a profilaxia deve ser por período mínimo de 5 anos se >16 ou até 21 anos se <15 anos 3,5; na DR com cardite - em presença de cardite, a profilaxia contínua é a única proteção efetiva contra a recorrência 5,8. Nas pessoas em risco de infecções estreptocócicas (pais de crianças pequenas, médicos e paramédicos, recrutas, funcionários de creches e orfanatos, pessoas que vivem em confinamento e baixo nível socioeconômico cultural), mesmo tendo DR sem cardite, devem fazer profilaxia continuada pelos riscos de recorrência reumática 36,44.

Programas de profilaxia - Penicilina benzatínica uma dose 600.000UI para pacientes <27kg ou 1200.000UI >27kg de 15/15 dias nos dois primeiros anos, a seguir de 21/21 dias ou penicilina V 250mg 2x/dia ou eritromicina 250mg 2x/dia ou sulfadiazina 0,5g/dia para pacientes <27kg e 1g para >27kg 5,44. O uso da sulfa exige monitorização clínica pelo risco de leucopenia (hemograma de 15/15 dias) e não deve ser empregada na gestante pelo risco de hiperbilirrubinemia e kernicterus neonatal (a sulfa compete com a bilirrubina nos sítios de ligação com a albumina, elevando a taxa de bilirrubina direta na circulação fetal) 43,46. Trabalho de Décourt e col 45 demonstrou que a concentração inibitória mínima (CIM) após injeção intramuscular de penicilina benzatínica em adultos jovens (0,030UI/ml) estava presente apenas ao final da 1ª semana. Somente 30% destes pacientes tinham CIM no 21º dia e 15% no 28º 44. No Chile, Berrios e col 46 em seguimento de 59 pacientes (40 femininos e 19 masculinos) que completaram programa de prevenção com penicilina benzatínica de 28/28 dias por cinco anos ou até 18 anos sem sinais de cardite e durante 10 anos ou 25 anos de idade com sinais de lesão cardíaca sem seqüela observaram apenas duas recorrências 46. Portanto, de acordo com diversos trabalhos, a profilaxia pode ser limitada na ausência de cardiopatia, mas deve ser mais prolongada ou ad infinitum em presença de cardiopatia ou nos indivíduos com fatores de risco para estreptococcia recorrente. Um problema especial refere-se aos chamados portadores crônicos 43,44. Há indivíduos que têm hipertrofia crônica das amígdalas e albergam nestas o streptococcus B hemolítico. Quando estes indivíduos contraem uma IVAS torna-se difícil saber se é viral ou bacteriana 34. Nesta circunstância melhor seria uma dose de penicilina benzatínica, já que muitas infecções são inaparentes e podem levar à DR. Os portadores crônicos parecem ter maior chance de seqüela reumática e representam riscos de contágio para os circunstantes 43-51.

Profilaxia de endocardite infecciosa - Os indivíduos com valvulopatias ou próteses valvulares que fazem profilaxia antibiótica contra recorrência de DR não estão protegidos contra EI. Portanto, em todo procedimento cirúrgico ou odontológico, passível de bacteremia, é necessária antibioticoprofilaxia para EI 25.

Evolução e prognóstico - Os fatores que indicam pior prognóstico são: início precoce da doença, cardite com pericardite, recorrência. A cardite é mais freqüente em criança. Quanto menor a faixa etária, pior o envolvimento cardíaco. O indivíduo que desenvolve DR tem 20 vezes mais chance de recorrência, após outros surtos de estreptococcias. Daí a importância da aderência do paciente à profilaxia antibiótica. A remissão da DR pode ser total. Cerca de 90% dos pacientes com DR sem cardite não têm nenhuma seqüela em 5-10 anos. Se houver cardite, mesmo com tratamento adequado, existe algum compromentimento cardíaco em 20% dos pacientes ao final de 20 anos. As principais causas de óbito na DR são: choque cardiogênico, IC, EI, tromboembolismo pulmonar e pneumonite reumática 34,40. Veloso e col 40 estudaram 13 casos de DR ativa fatal com idades entre 4,5 e 25 anos. O quadro clínico variou de febre até 39oC em todos os pacientes à disfunção valvar, IC e ausência de coréia em todos os doentes. Ao ecocardiograma todos os pacientes apresentaram dilatação de VE. Hipocinesia ventricular esquerda e vegetações valvares foram detectadas em 45% dos casos. As causas de óbito foram: IC, síndrome de baixo débito e hemorragia incoercível, mais pericardite fibrinosa perioperatória. A necropsia mostrou pericardite em nove casos, pneumonite reumática em quatro, verrugas reumáticas em 10. Os autores concluem que a DR ativa pode ter desfecho fatal à primeira manifestação, mesmo em idade adulta, tendo como diagnóstico diferencial principal a EI.

Fatores genéticos e pesquisa de vacinas

A profilaxia primária da DR é de grande importância, principalmente em países onde a doença constitui grande proporção de doenças cardiovasculares 2-4. A antibioticoprofilaxia é uma solução parcial, visto que sendo a patogênese da doença uma reação imunitária ela pode resultar de muitos casos inaparentes ou assintomáticos 26,52. Por isso, o desenvolvimento de vacinas contra o surto da doença em pessoas susceptíveis seria essencial 43. A DR tende a incidir em certos indivíduos, em média 3% das crianças com estreptococcia, mostrando fatores genéticos nessa susceptibilidade 54. Estudos sobre a incidência da DR em gêmeos mostram concordância em apenas 20% dos casos, uma taxa muito menor do que em outras doenças com forte predisposição genética 21,51. Os marcadores antigênicos do HLA variam conforme a etnia 21. Assim, pacientes brancos com DR têm uma freqüência elevada de HLA tipo Dr4 e em pacientes negros há número elevado de HLA Dr2 22,52. Outro ponto de investigação da susceptibilidade em grupos de pessoas e famílias é a de marcadores de linfócitos B 52. Certos aloantígenos de célula B são mais freqüentes em pacientes com DR do que em outros com glomerulonefrite pós-estreptocócica ou em populações normais (controles). Os aloantígenos de célula B estão presentes em 22% da população normal 22,53. Dessa forma, a utilização futura de anticorpos monoclonais pode tornar possível a seleção de indivíduos em alto risco para DR pós-estreptococcia 51. O desenvolvimento de vacinas feitas a partir de sorotipos de streptococcus reumatogênicos com propriedades imunogênicas que leve à produção de imunidade (proteína M) geraria anticorpos protetores e, portanto, proteção contra DR43. As observações de que exista uma região da proteína M compartilhada por todas as cepas de streptococcus com propriedades imunogênicas, que leve à produção de anticorpo é muito encorajadora para pesquisa de vacinas anti-reumática 43. Uma questão crucial, que ainda resta, é a necessidade de separar epitopes sobre a proteína M de antígenos transreativos (reação cruzada) que causem as manifestações sistêmicas da DR 43. A biologia molecular e as técnicas imunológicas serão as soluções futuras para medidas preventivas eficazes, capazes de combater esta doença, que ainda constitui um mistério, assolando milhões de pessoas, com graves seqüelas e causando elevada mortalidade cardiovascular no mundo inteiro.

** Mayo Clinic and Foundation Rochester, Minn. EUA

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    Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás - Goiânia
    Correspondência: João Joaquim de Oliveira - Rua R-4, Qd R-6, Lt-10 - Setor Oeste - 74125-060 - Goiânia, GO Recebido para publicação em 7/10/96 Aceito em 9/4/97
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Fev 2001
    • Data do Fascículo
      Jul 1997
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